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síntese
Editora
ô da Universidade
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
O anarquismo
(promessas de liberdade).
A história das idéias anarquistas
ou libertárias está presente
nesta obra, remontando perspectivas
de quase dois séculos, e que ainda
se colocam como assunto presente.
Luiz Pilla Vares traça os vínculos
existentes entre as origens
do anarquismo moderno, a Revolução
Francesa, o marxismo e as demais
teorias socialistas que emergem
na turbulência da queda das monarquias
e o nascimento das repúblicas.
A obra passa por Proudhon
e por Bakunin, vindo até os movimentos
sociais libertários que surgiram
na Europa e nos Estados Unidos.
universitária
Editora
da Universidade
Universidade Federal do Rio Grande do Sul ISBN 85-7025-173-4
O anarquismo
promessas de liberdade
0 Editora
da Universidade
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Síntese universitária/15
© de Luiz Pilla Vares
l! edição: 1988
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Capa: Carla Luzzatto
Ilustração: desenho de Falke para uma capa do Crapouillot, em 1938.
Administração: Maria Beatriz A.B. Galarraga
Editoração: Geraldo F. Huff
Revisão: Maria Isabel Tinun, Haydée Diebold,
Mônica Ballejo Canto e Sandra Gabert Masi
Montagem: Rubens Renato Abreu
A publicação desta obra conta com o patrocínio da Secretaria de Ensino
Superior, através do Programa de Estímulo à Editoração do Trabalho
do Intelectual das IES-Federais.
Composição: K&M — Composição, Arte e Revisão Ltda.
Impressão: Pallotti
Luiz Pilla Vares
Jornalista. Formado em Gências Jurídicas e Sociais. Autor dos livros
Socialismo e liberdade, Porto Alegre, 1985; Glasnost, a primavera
vermelha, Porto Alegre, 1987\Rosa, a vermelha, São Paulo, 1988;
O pescador de pérolas: por um marxismo vivo, Porto Alegre, 1988.
CDU 329.285
329.285 : 329.14
329.285 : 323.272
ISBN 85-7025-173-4
Para Elizabeth Souza Lobo
e Marco Aurélio Garcia
8
e da monarquia, na destruição do modo de produção feudal.
Assim, Pedro Kropotkin, o grande pensador anarquista, vê
a revolução burguesa como um freio às suas características
essencialmente plebéias2 e o marxista libertário Daniel Guérin
concebe o processo da Revolução Francesa como permanente,
tomando-se burguês apenas na medida em que o conteúdo
plebeu que pretende levar a revolução além de seus limites
burgueses é reprimido.3
Detenhamo-nos um pouco sobre esta questão, pois tudo
começa aí. A 14 de julho de 1789 caía a Bastilha, símbolo
da autocracia e do absolutismo. Símbolo do poder feudal e
do obscurantismo na França. Daí à derrubada da monarquia
de Luiz XVI e à proclamação da República ainda demorou
algum tempo. No entanto, o 14 de julho é efetivamente o
marco referencial da Revolução Francesa. Não o seu início,
pois este é difícil de precisar cronologicamente, na medida
em que as massas da cidade e do campo já estavam em movi
mento há muito tempo, antes da queda da Bastilha, e a própria
convocação, pelo monarca, dos Estados Gerais foi um elemento
fundamental no processo revolucionário. A Bastilha caiu justa
mente porque a Grande Revolução estava em marcha e nenhuma
força tinha condições para detê-la naquelas circunstâncias his
tóricas. Os conservadores, incapazes de compreender a lógica
da história, lamentam-se: se Luiz XVI fosse mais duro... Esque
cem-se que ele era o próprio tipo que simbolizava a decadência
da aristocracia e do feudalismo. Ou seja, se não fosse Luiz
XVI, seria outro rei, igualmente impotente diante do momento
que impugnava historicamente o velho regime. É certo que
os indivíduos imprimem a sua marca nos processos históricos,
mas só o fazem, positiva ou negativamente, se agem de acordo
com o seu tempo. E 1789 não era mais a época dos senhores
^KROPOTKIN, Pierre, A grande revolução (1789-1793). Salvador, Pro-
gresso, 1955. 2v.
^GUÊRIN, Daniel. A luta de classes em França na primeira república
(1 7 Q 3 -1 7 Q 5 ). L is b o a , A R eg ra do Jo g o , 1977.
9
feudais e muito menos da monarquia absoluta. A burguesia
e a plebe entravam no cenário histórico. E agora seriam os
Robespieire, os Marat, os Danton, os Saint-Just, os Babeuf
e tantos outros que personificavam a nova era. Tomavam-se,
eles e a plebe, os atores, mas também os autores da história,
a tal ponto que ainda hoje a Grande Revolução Francesa e
os movimentos sociais que a realizaram significam muito nos
dias atuais. As lições que eles proporcionam, participando e
mudando uma época histórica inteira, vão continuar atraves
sando os tempos, isto é, a Revolução Francesa permanece
viva quase dois séculos depois da tomada da Bastilha pelo
povo revolucionário.
Naquele 14 de julho, o dia despontou agitado. A plebe
se preparava para o assalto à Bastilha, aquele centro de horrores
e desprezo ao ser humano (e quantas Bastilhas ainda existem
espalhadas pelo mundo contemporâneo) e certamente sabia
que o velho regime estava chegando ao fim. Aquele dia, em
1789, era o dobre de finados. A plebe parisiense e os deserda
dos de todos os tipos que começaram a se concentrar na saída
dos subúrbios e nos cafés estavam certos de que os privilégios
dos aristocratas agonizavam e que um novo mundo estava
por nascer. Mas o que viria depois?
Isso os plebeus franceses não sabiam. Ou melhor, sabiam
o que queriam: a democracia igualitária, o fim da opressão,
o domínio do povo — a Nação — e, mais adiante, a República:
queriam Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O que os ple
beus, os pobres de Paris, não sabiam é que as revoluções
triunfantes acabam percorrendo caminhos diferentes dos que
estavam traçados nas consciências mais avançadas e revolucio
nárias. Na verdade, a Revolução Francesa, antes de ser burgue
sa, foi radicalmente plebéia.4 O que o povo revolucionário
não poderia imaginar naquele 14 de julho, quando a Bastilha
já havia caído e sonhava-se com a imediata instauração de
^GUÊRIN, DanieL La Revohción Francesa y nosotros. Madri, Villalar,
1977.
10
um regime de liberdade, igualdade e fraternidade, é que, em
seguida, viriam o Terror, o Termidor, Napoleão Bonaparte,
a Restauração, para que o processo revolucionário completasse
o seu curso. E, como prometeu, só fosse retomá-lo meio século
depois, em 1848. Ou seja, a sonhada liberdade radical e comple
ta, o império da razão, o entendimento entre os homens e
uma nova era de fraternidade, enfim todos os grandes ideais
que formavam a consciência da Revolução, acabaram se redu
zindo às liberdades burguesas, à liberdade político formal, à
igualdade meramente jurídica entre os homens. A igualdade
real, concreta, havia sido apenas um sonho?
Na verdade, por um breve período de tempo, a plebe esteve
efetivamente com o poder em suas mãos. Robespierre e os
seus — os Jacobinos — apenas em parte representaram este
poder que estava nas ruas e nas comunas, o poder dos “braços
nus”, o poder dos sans-cullottes. Este aspecto da Grande Revo
lução raramente é salientado pelos historiadores, cuja maior
parte insiste em identificar, sem fissuras, o jacobinismo com
a plebe revolucionária. Penso que apenas Pedro Kropotkin e
Daniel Guérin, entre os grandes historiadores da Revolução
Francesa, fazem esta separação necessária. Os jacobinos eram,
realmente, a facção mais decidida e mais radical da burguesia
revolucionária. Eram, sob certos aspectos, sensíveis às reivindi
cações da plebe. Mas constituíam, ao mesmo tempo, um freio
ao domínio plebeu. E quando chegou Napoleão, após o Termi
dor que encerrou a dominação jacobina, o rumo tomado pela
Grande Revolução já era bem diferente daquele clima que
tomou conta das ruas de Paris e se espalhou pelas províncias
em 14 de julho de 1789.
E a Revolução Francesa, como a Russa, mais de um século
depois, deixa a interrogação: será que todas as revoluções
acabam encontrando o seu Termidor?
Esta pergunta tem sido colocada várias vezes, sem que
se chegue a um acordo, desde o advento de Napoleão Bona
parte. E recuando ainda mais no tempo: desde que Spartacus
e seus escravos foram esmagados com seus sonhos de uma
república comunista dos oprimidos, pelo imperialismo romano.
11
Mas uma pergunta os historiadores não fazem: e se o curso
tomado tivesse sido outro? Se a plebe permanecesse em seu
posto e, ao invés do Termidor contra-revolucionário preparar
o caminho para Napoleão Bonaparte, tivessem os pobres de
Paris aplainado a estrada para a Conspiração dos Iguais de
Babeuf e Buonarrotti?5
Não se trata, apenas, de buscar a “versão dos vencidos”,
mas de tentarmos pensar as possibilidades contidas na história,
de um outro curso que não o acontecido: a possibilidade que
nos fala Walter Benjamin.6 O certo é que a Revolução Francesa
foi um divisor de águas. Assim, Woodcock salienta que “na
Revolução Francesa, o choque entre as duas tendências —
libertária e autoritária — era evidente e em certas ocasiões
chegava a assumir formas violentas...” Tal como Kropotkin,
também percebemos que durante esse período surgiram algumas
das idéias que se transformariam no anarquismo do século
XIX. Condorcet, um dos cérebros mais fecundos da época,
que acreditava no progresso infinito do homem rumo a uma
sociedade sem classes, enquanto se escondia dos jacobinos,
já havia anunciado a idéia da mutualité, que viria a ser um
dos pilares do anarquismo de Proudhon. Condorcet concebeu
um grande plano de ajuda mútua, que reuniria todos os operá
rios para salvá-los dos perigos das crises econômicas, durante
as quais eram normalmente obrigados a vender seu trabalho
em troca de salários de fome. O outro pilar do anarquismo
proudhoniano era o federalismo, objeto de muitas discussões
e experiências durante a Revolução. E enquanto a Comuna
de Paris veria na criação da República Federal, em 1871, um
meio de salvar Paris de uma França reacionária, os girondinos
imaginavam que ela poderia salvar a França de uma Paris
jacobina. Um tipo mais autêntico de federalismo social surgiu
'’VARES, Luiz Pilla. O 14 de julho. Zero Hora, Porto Alegre, 14 jul.
1986. p.4.
^BENJAMIN, W alter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política,
São Paulo, Brasiliense, 1985. p.222-32.
12
então entre as várias instituições revolucionárias semi-espon-
tâneas da época, primeiro nos “distritos” ou “seções” em
que fora dividida a capital para fins eleitorais, dando origem
à Comuna de Paris, e depois na rede de Sociedades Populares
e Irmandades, assim como nos comitês revolucionários que
aos poucos iam tomando o lugar das seções, à medida que
estas se tomavam órgãos políticos subordinados, dominados
pelos jacobinos... Kropotkin vê nesse tipo de organização uma
expressão primitiva dos princípios do anarquismo e conclui
que esses princípios não são fiuto de especulações teóricas
mas de atos da Grande Revolução Francesa.7 Woodcock, po
rém, vê um certo exagero do pensador anarquista, uma ânsia
de provar as origens populares de seu pensamento e acrescenta
que o que Kropotkin “não chega a perceber é o fato de que
o direito de legislar continua existindo, mesmo que apenas
ao nível de assembléias gerais; o povo govema. Assim, deve
mos considerar esse período revolucionário como uma tentativa
de estabelecer não a anarquia, mas a democracia direta. Entre
tanto, ainda que não fosse anarquista na verdadeira acepção
do termo — tal como sua sucessora em 1871 — a Comuna
era federalista e nisto ela antecipou Proudhon, ao criar um
esboço, um modelo tosco do tipo de estrutura prática na qual,
segundo ele julgava, seria possível desenvolver uma sociedade
anarquista”.8
Entretanto, se as críticas de Woodcock são pertinentes,
não é menos verdade que havia um embrião de anarquismo
na Grande Revolução e este se encontrava entre Jacques Roux,
Jean Variet e os Enragés, os quais se uniam na recusa às
idéias jacobinas sobre a autoridade do Estado, defendendo
a tese de que o povo deve exercer a ação direta e propondo
medidas econômicas comunistas como o único caminho para
acabar com os sofrimentos dos pobres.
Assim, é certo que já na Revolução Francesa estavam
em conflito as concepções libertárias e autoritárias do processo
7 WOODCOCK, George. Op. cit. p.45-6.
^Idem, ibidem.
13
revolucionário. O pensador polonês Leszek Kolakowsky tem
dado inequívocas contribuições no plano teórico, ao desnudar
os regimes totalitários. Seus escritos trazem, apesar do saudá
vel ceticismo de que estão impregnados, uma lúcida tomada
de posição em favor da liberdade. No entanto, Kolakowsky,
em sua paixão pela liberdade, acaba fazendo uma indevida
crítica ao pensamento revolucionário, ao identificar de maneira
um tanto simplista o espírito revolucionário com o autorita
rismo, o que nem sempre é correto. Em primeiro lugar, o
chamado espírito revolucionário não pode ser analisado em
si mesmo, abstratamente, desligado de sua época e das condi
ções que o engendram. Ou seja, o espírito revolucionário é
fundamentalmente prático, não especulativo, e só tem sentido
se vinculado à ação, que & sua essência, seu próprio conteúdo
e sua razão de ser.
Toda época revolucionária possui, assim, o seu próprio
espírito, que se nutre da realidade na qual está imerso. “ A
coruja de Minerva só levanta vôo ao anoitecer” , dizia Hegel.
E isto vale também para as épocas revolucionárias. Desta for
ma, as épocas de revolução geram o seu próprio pensamento
revolucionário que não pode ser considerado como um bloco
monolítico, sem tendências, sem fissuras. Como vimos, já na
Revolução Francesa coexistiam correntes libertárias, descentra-
lizadoras e comunalistas, com correntes autoritárias e centrali
zadoras, as quais, por sua vez, igualmente possuíam tendências
diversas e, até mesmo, conflitantes.
Portanto, é possível conceber a Revolução Francesa como
de essência nitidamente libertária em contraposição ao absolu
tismo monárquico. Não obstante, essa essência libertária da
Revolução Francesa acaba gerando o autoritarismo jacobino
que, teoricamente, propõe-se a levar o processo revolucionário
às últimas conseqüências. Mas, ao geral, o jacobinismo como
uma de suas vanguardas — a principal — a própria Revolução
nega a sua essência libertária e alguns de seus postulados
teóricos, preparando, durante o terror, o caminho para o domí
nio ditatorial de Napoleão Bonaparte.
14
No século XIX, com o advento do movimento operário,
refletem-se os conflitos entre as tendências autoritárias e liber
tárias no interior das teorias socialistas que procuravam expres
sar o conteúdo deste mesmo movimento. A começar, por exem
plo, pelo próprio Proudhon. Com efeito, o autor de Que é
a propriedade? e Filosofia da miséria elaborou um pensamento
em seu conjunto nitidamente libertário, podendo, com justa
razão, ser considerado por Daniel Guérin, entre outros, como
um legítimo precursor da teoria da autogestão, tão discutida
hoje em dia. Entretanto, se ê verdade que Proudhon é, em
essência, um libertário, contestador implacável de qualquer
foima de Governo e de Estado, não é menos verdade que,
quando se propõe a analisar a família e o papel da mulher,
revela-se um empedernido reacionário.
Também na polêmica que, pela primeira vez, causou uma
grande divisão entre os socialistas, Bakunin, o mais famoso
representante do pensamento anarquista, acusou Karl Marx
de autoritarismo. Por outro lado, Marx e Engels não cansaram
de condenar os métodos de Bakunin, que, através de uma
aliança secreta — a “ Aliança da Democracia Socialista” —,
procurava dominar a Associação Internacional dos Trabalha
dores (AIT), a Primeira Internacional. Na realidade, ainda está
para ser feita uma verdadeira análise desta polêmica, cujo
eco ainda é perfeitamente perceptível hoje em dia. Bakunin
tem razão em apontar aqui e ali tendências autoritárias no
pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels, mas esconde,
às vezes deliberadamente, as tendências libertárias que perpas
sam o pensamento marxista. É inegável, porém, que também
Marx e Engels, em uma série de apreciações que fazem sobre
Mikhail Bakunin, distorcem o seu pensamento, na medida em
que suas idéias demonstram, com o passar dos anos, um imenso
^GUÉRIN, Daniel. L ’anarchisme. Paris, Gallimard, 1965. p.68. E também:
GURVITCH, George. Proudhon e Marx. Lisboa, Presença, 1980. p.127.;
MOTTA, Fernando C. Prestes. Burocracia e autogestão; a proposta de
Proudhon. São Paulo, Brasiliense, 1981.; BANCAL, Jean, PTOUdhOTtt p[ura~
lismo e autogestão. Brasília, Novos Tempos, 1984.
15
vigor, especialmente no que diz respeito ao perigo de um
Estado altamente centralizado, com o rótulo de socialista, sufo
car a liberdade e a iniciativa de milhões de trabalhadores.
O antagonismo entre os libertários e os autoritários se
projetou para o tempo e acabou por cindir de forma até agora
irremediável os socialistas, com o advento da Rússia sob o
domínio bolchevique, ao qual os anarquistas chegaram a simpa
tizar durante algum tempo. E, ainda mais funda ficou a fissura
com o surgimento do stalinismo, o qual, se é verdade que
complementa certas tendências inerentes à teoria de Lênin,
por outro lado, aniquila certas virtudes inegáveis contidas no
“leninismo”. Hoje, com as revoluções no mundo subdesen
volvido, periférico e colonial, assim como o impasse verificado
nos países industrializados, o debate está readquirindo atuali
dade prática, especialmente após o Maio de 1968, pois estamos
diante de acontecimentos vivos, que se passam diante de nossos
olhos e que, de uma ou de outra forma, envolvem-nos. Assim,
se a revolução dos países coloniais e dependentes parece de
sembocar sempre em regimes de feições altamente autoritárias,
nos países desenvolvidos criam-se tendências de cunho nitida
mente oposto, libertárias em essência.
O certo é que a questão não é simples, nem pode ser
resolvida de forma mecânica e dogmática, o que, no entanto,
parece ser a tendência de tantos revolucionários, obstinados
por sua própria natureza. Em todo o caso, o problema teórico
não é para ser solucionado no terreno especulativo, pois a
revolução, em si mesma, é um ato autoritário que se dá na
prática, na vida real e concreta das sociedades. No entanto,
ao realizar-se ela gera dois movimentos contraditórios: um
que tende a perpetuá-la como ato autoritário, instituciona-
lizando-a justamente nesse aspecto. O outro movimento vai
em sentido inverso: busca soltar as virtualidades contidas no
processo e que têm, como seu conteúdo básico, a ampliação
do espaço para a liberdade humana. E, ao que parece, apesar
de tudo, é este segundo aspecto, o libertário, que está se
afirmando, pois quando a humanidade se coloca uma questão
16
desse tipo é porque as condições para a sua solução já estão
dadas, embora as revoluções do século XX tenham devorado
vorazmente as suas chamas libertárias, estas teimam em renas
cer, cada vez com mais ímpeto.
17
A ID ÉIA E OS PRECURSORES
Para os anarquistas, de todos os preconceitos que cegam o homem
desde a origem dos tempos, o mais fimesto é o do Estado,
DANIEL GUÉRIN
18
de um dos primeiros resumos para a vulgarização do primeiro
tomo de O capital. “ Não nos tomemos chefes de uma nova
religião”, escreveu Proudhon a Karl Marx. E esse antidogma-
tismo que perpassa todo o pensamento socialista libertário
não ajuda a simplificar, o que é o objetivo desta pequena
introdução. Mas há, evidentemente, uma trajetória comum,
que se poderia resumir na concepção socialista ou comunista
da sociedade e, fundamentalmente, no combate sem tréguas
a qualquer forma de Estado. E é nesse sentido que procura
remos trazer ao debate esse instigante pensamento que sempre
é dado como coisa do passado e sempre retoma atualidade
quando o questionamento da sociedade passa da teoria à práti
ca. Na verdade, os problemas colocados pelos grandes pensado
res socialistas libertários, longe de terem sido sepultados pelo
tempo, renovam-se e persistem como fascinantes interrogações
por todos aqueles que se preocupam com o homem e seu
destino planetário. Além disso, os libertários estiveram presen
tes em todas as grandes comoções sociais desde o século
XIX, na Comuna de 1871, na Revolução Russa e em seus
soviets de 1917, na Alemanha e na Itália em 1918, na Espanha
de 1936 e em Maio de 1968. No Brasil, é preciso não esquecer,
o movimento operário foi em primeiro lugar libertário, anarcos-
sindicalista, e a velha COB — a Confederação Operária Brasi
leira —tem ainda muito a ensinar a um sindicalismo que apenas
agora começa a se libertar das tutelas do Estado e de uma
legislação corporativista e de inspiração fascista.11
Vejamos então o que é o anarquismo, palavra antiga, mile
nar, que vem da Grécia, composta de “an” e ''arkhê”, signifi
cando ausência de autoridade ou de governo. No excelente
Dicionário do pensamento marxista, editado por Tom Bottomo-
re, o verbete anarquismo aparece definido como “a doutrina
e o movimento que rejeita o princípio da autoridade política
11A Voz do Trabalhador, jornal que circulou de 1908 a 1915, era o
órgão central da COB. A Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
ed itou, em 1985, uma coleção fac-similar do jornal da COB, com um
prefácio do historiador Paulo Sérgio Pinheiro.
19
e sustenta que a ordem social é possível e desejável sem esta
mesma autoridade”.12 Mas os anarquistas estão muito longe
de pretenderem um caos permanente. Ao contrário. Proudhon,
por exemplo, que apesar das aparências é mais um construtor
do que um destruidor, entendia a anarquia como o avesso
da desordem e do caos. Para ele, o governo é o fator da
desordem. Entretanto, tanto ele como o seu principal discípulo,
o russo Mikhail Bakunin, entendiam a palavra em seu duplo
sentido, ao mesmo tempo a mais formidável das desordens,
a desorganização mais absoluta da sociedade, isto é, a revolu
ção e, paralelamente, a reconstrução, a formação de uma nova
ordem, estável e racional, baseada na liberdade e na solidarie
dade, como acentua Daniel Guérin.13
Mas muito antes de Proudhon e Bakunin (em um livro
a meu ver com muitos equívocos, entre os quais o de tratar
o anarquismo como sucessor do liberalismo, quando penso
que se trata, apesar da preservação do indivíduo e do individua
lismo, da negação prática e teórica do liberalismo) Henri Arvon
tem o mérito indiscutível de esboçar uma breve história do
anarquismo, inidando-a com o inglês William Godwin.14
Também no Dicionário do pensamento marxista, de Botto-
more, William Godwin ê apresentado como o autor da “primei
ra exposição sistemática do anarquismo”.1S Em sua monumen
tal História do pensamento socialista, o britânico G.D.H. Cole
destaca a obra de Godwin, Enquiry into political justice (1793),
como anarquista: “O ideal que Godwin apresenta é o de que
a humanidade deve começar a prescindir de todas as formas
de governo e a confiar por completo na boa vontade espontânea
e no sentido de justiça de cada homem, guiado pela norma
i^BOTTOMORE, Tom (org.). A dictionary o f marxist thought, Cambridge,
Harvard, 1983. p.18.
^GUÉRIN, Daniel. V anarchisme. Op. cit. p.14.
14ARVON, Henri. História breve do anarquismo, Lisboa, Verbo, 1966.
^BOTTOMORE, Tom (org.). A dictionary o f marxist thought. Op. cit.
p .18.
20
final da razão. Acreditava na razão como guia infalível para
a verdade e o bem, presente em todos os homens, embora
obscurecida nas sociedades atuais por convenções irracionais
e práticas coercitivas. Verdadeiro discípulo do século XVIII,
o Século das luzes, acreditava totalmente na perfectibilidade
da raça humana, não no sentido de que os homens chegassem
alguma vez a ser perfeitos, porém no de um contínuo e infinito
avanço para uma racionalidade superior e um aumento de bem-
estar... Sua doutrina era a de um puro comunismo no gozo
dos frutos da natureza e do trabalho do homem sobre o propor
cionado pela natureza”.16 Godwin, porém, como salienta Cole,
não era apenas um filho do Século das luzes, do Iluminismo,
mas, também, dos puritanos ingleses. Ele nasceu em Wisbeach,
em 1756, filho de um pastor e destinado também ele a se
tomar um pregador religioso, profundamente influenciado pelo
calvinismo, sendo nomeado pastor em 1778 em Ware. Seu
biógrafo, Henri Roussin, acentua-lhe a retidão de caráter. E,
talvez, seja justamente esta retidão de caráter que lhe faz
descobrir na leitura de Rousseau, Mably e Helvetius as verda
des de seu século, abalando-lhe definitivamente a fé calvinista
e abandonando as funções religiosas em 1782, quando parte
para Londres, onde se coloca na ala esquerda do partido Whig
(liberal). O ano, porém, que marca decisivamente sua vida
é o da Revolução Francesa, 1789. O próprio Godwin conta:
“ Era o ano da Revolução Francesa! O meu coração batia forte
mente ao compasso do sentimento e da liberdade. Li, com
grande satisfação, as obras de Rousseau, de Helvetius e de
outros escritores franceses. Observei neles um sistema mais
geral, e mais simplesmente filosófico, do que na maioria dos
autores ingleses que abordavam os mesmos assuntos. E fiquei
com grandes esperanças numa revolução, de que aqueles escri
tores tinham sido os precursores”.17 E é esse entusiasmo pela
l6COLE, G.D.H. Los precursores (1789-1850). In: Historia dei pensamiento
socialista. México, Fondo de Cultura Econômica, 1974. v .l. p.32.
17ARVON, Henri. Op. cit. p.31.
21
Revolução que leva Godwin a escrever sua obra que leva
o pomposo título de An inquiry concerning political justice
and its influence on general virtue and happiness (Um inquérito
acerca da justiça política e da sua influência na virtude e
na felicidade humanas) ou, simplesmente Enquiry into political
justice, como ficou conhecida. As teses de William Godwin,
hoje quase esquecidas, tiveram grande repercussão em sua épo
ca. Malthus, por exemplo, escreveu o seu Ensaio sobre o
princípio da população como uma resposta a Godwin e, em
1794, os poetas Southey, Coleridge e Wordsworth pretendiam
ir para os Estados Unidos a fim de fundarem ali uma sociedade
aos moldes da preconizada por Godwin. Algumas de suas idéias
influenciaram Robert Owen e suas cooperativas socialistas,
que tiveram posteriormente um papel fundamental na formação
do socialismo inglês e no próprio marxismo. Owen é conside
rado, juntamente com os franceses Saint-Simon e Fourier, por
Marx e Engels como um dos três mais importantes “ socialistas
utópicos” que teriam uma influência decisiva para o surgimento
do “socialismo científico”. Mas a influência e a “ glória” de
Godwin eram restritas a um público leitor liberal e avançado
para uma Inglaterra conservadora, cuja classe dominante abo
minava a sua obra. Aliás, e ele certamente não é o único
nesse aspecto, alguns fatos de sua vida pessoal entram em
contradição com sua obra. Veemente inimigo do casamento,
que considerava “ a pior das leis” e a “pior das propriedades” ,
casou-se secretamente com Mary Woolstonekraft, em 1797.
Teve ainda um segundo matrimônio em 1801. Acérrimo inimigo
dos preconceitos, não aceitou, porém, o romance do poeta
Shelley com sua filha Mary, proibindo aos amantes que fre
qüentassem a sua casa. Morreu pobre em 1836, como um peque
no funcionário de um ministro, triste fim para quem um dia
abalara mentes jovens, depositando as maiores esperanças num
mundo novo.
Outro precursor do anarquismo é. sem dúvida alguma, o
alemão Max Stimer, cujo nome verdadeiro era Johann Caspar
18Idern, ibidem. p.43.
22
Schmidt, nascido na Baviera em 1806. Foi, como todos os
jovens alemães universitários de sua época, fortemente influen
ciado por Hegel, a cujos cursos assistiu. Mas, ao contrário
de seu mestre, voltou-se desde logo contra o Estado, afirmando
que “ somos ambos, o Estado e eu, inimigos” e que “todo
Estado é uma tirania, seja a tirania de um só ou de vários”.
Stimer pertencia ao círculo dos chamados jovens hegelianos
ou a esquerda hegeliana, da qual aproximou-se Karl Marx,
mas logo tomou-a objeto de suas críticas ferinas e demolidoras,
das quais Stimer não escapou. Sua principal obra, O único
e sua propriedade (1844) surge em um momento no qual 0
movimento operário já afirmava a sua autonomia e o marxismo
estava em processo de elaboração. Proudhon já pontificava
como teórico do socialismo francês, que tanto impressionara
— e influenciara — Marx e Engels. Ocorre, porém, que Stimer
em O único e sua propriedade leva ao extremo aquele anarquis
mo individualista, desvinculado da luta de classes real e a
sua revolta não é uma revolta social. Antes é a revolta do
“ eu” , a consciência do “único”. Stimer afirma: “ Nós vencere
mos a opressão, mas só na medida em que verificarmos que
esses poderes refiram a sua força, única e simplesmente, da
ignorância em que nos mantemos do nosso papel de criadores
absolutos e soberanos”. Daniel Guérin, que curiosamente não
menciona William Godwin, começa a sua cativante Antologia
do anarquismo, intitulada Ni Dieu, ni maître (Nem Deus, nem
senhor), justamente por Max Stimer, definindo-o como um
“ revoltado solitário”.19 A originalidade de Stimer é a de reabi
litar o indivíduo numa época e num cenário —a intelectualidade
alemã da primeira metade do século XIX — extremamente
antiindividualista, pendendo para as tendências socializantes
que surgiam da esquerda hegeliana, onde pontificava principal
mente Bruno Bauer. Cole, porém, vê um certo parentesco
entre as idéias de Stimer e as de Fichte na ênfase colocada
23.
na racionalidade do espírito humano individual.20 Não seria
exagero afirmar que o anarquismo individualista de Max Stimer
antecipa algumas das teses que viriam a ser defendidas, com
muito mais beleza e profundidade, anos mais tarde por outro
alemão: Nietzsche. Das posições filosóficas de Max Stimer,
porém, não poderia ganhar consciência qualquer movimento
social e não foi apenas de Marx e Engels que ele recebeu
uma crítica demolidora. Também Proudhon criticou a “ adora
ção stiraeana do indivíduo” . Mas, se isso é verdade, não
é menos certo que ao desmistificar o Estado e a moral burguesa,
Stimer lançou as bases da teoria anarquista.
A verdade é que Stimer, hoje, é um nome pouco mencio
nado, tanto na história do pensamento socialista, o que seria
natural dado o seu exacerbado individualismo, quanto na histó
ria da filosofia, o que, de certa forma, é injusto, pois sua
obra teve um papel antecipador em vários aspectos, inclusive
da psicanálise. Era um homem de paradoxos. Individualista
extremado, seu único luxo era o fumo e aceitou de bom grado
o pseudônimo de Stimer, em razão de sua enorme fronte {stirn
em alemão significa testa). Arvon conta o seu triste final
de vida: “O esquecimento e, em breve, a miséria atormenta
ram-no e acabaram por entenrá-lo vivo. Com suas últimas eco
nomias, o filósofo tentou entrar em negócios e abriu uma
leiteria. Mas se o recolhimento do leite era fácil, custava muito
mais vendê-lo. A falência reduziu-o à extrema miséria. Tentou
ainda captar o favor do público com algumas traduções e
compilações. Mas em vão. Em 1853, a sociedade lembrou-se
dele, mas para o mandar duas vezes para a cadeia. Nem mesmo
na morte escapou ao ridículo. Uma mosca envenenada picou-o
na nuca e venceu a resistência do único. O Registro Civil
anota secamente acerca de seu falecimento, ocorrido em 1856:
Nem mãe, nem mulher, nem filhos”.21
Assim, com o desaparecimento de William Godwin e Max
Stimer, desaparecem também aquelas idéias precursoras do
20COLE, G.D.H. Op. cit. pJ225.
21ARVON, Henri. Op. cit. p.42.
24
anarquismo desvinculadas do novo movimento social que já
começava a se afirmar, sepultadas as ilusões nas promessas
liberais da Grande Revolução Francesa. A liberdade, a igual
dade e fraternidade se fragmentavam diante do muro erguido
pela burguesia, a nova classe dominante, com o seu modo
de produção capitalista e o seu estado. O novo movimento
social não era mais simplesmente plebeu como nas grandes
jornadas de 1789. Entrava em cena o movimento operário
vivo, com reivindicações próprias, afirmando-se a cada passo.
E as idéias dos precursores teriam de ceder lugar àqueles pensa
dores que procuravam tirar as conclusões necessárias das novas
lutas de classe. E entre estes ocuparam os primeiros lugares,
antes do marxismo se afirmar, os socialistas anarquistas, os
libertários. Começa uma nova era na longa história das lutas
sociais da humanidade.
25
PROUDHON: A PROPRIEDADE É UM ROUBO
Alguns ensinam que a propriedade é um direito civil originado
da ocupação e sancionado pela lei; outros sustentam que é um
direito natural, tendo sua fonte no trabalho: e essas doutrinas,
por opostas que pareçam são fomentadas, aplaudidas. Sustento
que nem o trabalho, nem a ocupação, nem a lei podem criar
a propriedade; ela é um efeito sem causa; deverei ser repreendido
por isso?
PIERRE-JOSEPH PROUDHON
28
o seu anticlericalismo e a sua aversão pelas religiões. Jean
Bancai o define como “ semicamponês, semi-operário, semi-
classe média” , uma espécie de “microcosmo do povo fran
cês” .28 E isso talvez venha a explicar as contradições contidas
em sua obra. Em 1833, volta à terra natal para dirigir a tipogra
fia Gauthier, e três anos depois monta, com um sócio, a sua
própria. O empreendimento fracassa, o sócio comete suicídio
e Proudhon vai se refugiar no campo, onde escreve seu Ensaio
de gram ática geral, pelo qual recebe menção honrosa da Acade
mia de Besançon. Retoma a Paris e freqüenta cursos na célebre
Sorbonne, no Collége de France e na École des Arts e de
Métiers. Com 29 anos faz o bacharelado e recebe uma bolsa.
Mas não esquece os seus tempos difíceis: “Eu sei o que é
a miséria, escreveu, eu vivi nela” . E, assim, foi até o fim,
publicando obras sobre obras, fundamentalmente destinadas
a mudar o mundo e o destino dos homens, todas escritas
com um estilo e numa linguagem que provocaram a admiração
de Saint-Beuve, para o qual Proudhon era “um filósofo comba
tente, que quer ser, antes de tudo, um homem de pensamento
de luta e de audácia”. O grande poeta Baudelaire também
era um admirador de seus escritos.
Como Marx, mas sem a profundidade deste, Proudhon inte-
ressou-se basicamente pela economia política. Em 1840, publi
ca a obra que vai lhe marcar para sempre como um dos princi
pais representantes do socialismo francês do século XIX, obra,
aliás, que não perdeu até hoje a sua atualidade e que se lê
às vésperas do século XXI com avidez e paixão, pois os proble
mas e as questões ali colocadas ainda não foram resolvidos:
O que é a propriedade?, na qual ele dá a célebre resposta:
“ A propriedade é um roubo” .29 A obra O que é apropriedade?
recebeu de Karl Marx os mais rasgados elogios. Com efeito,
Marx chama Proudhon de o “pensador mais audacioso do socia
33
a respeito do futuro da humanidade e do socialismo, que viu,
apesar de suas nítidas simpatias proudhonianas (ele definia
o anarquismo como “o proudhonismo amplamente desenvol
vido e levado às suas conseqüências extremas”) com muita
lucidez o conflito teórico entre os dois pensadores.
“Marx — diz Bakunin — é um pensador sério e profundo
dos problemas econômicos. Tem sobre Proudhon a imensa van
tagem de ser um verdadeiro materialista. Proudhon, apesar
de todos os esforços que realizou para se livrar das tradições
do idealismo clássico, foi durante toda a sua vida um idealista
incorrigível, influenciado às vezes pela Bíblia, e às vezes pelo
Direito Romano, como eu próprio tive de dizê-lo dois meses
antes de sua morte, e metafísico sempre e em tudo até a
medula. Sua maior desgraça foi não ter estudado nunca as
ciências naturais e nem jamais ter assimilado os seus métodos.
Era um homem de instinto e este lhe traçava uma que outra
vez o caminho correto, mas, levado pelos maus hábitos, isto
é, pelos hábitos idealistas de seu espírito, voltava a reincidir
nos velhos erros. Assim se explica que Proudhon fosse, durante
toda a sua vida, uma contradição constante, um gênio poderoso,
um pensador revolucionário que nunca cessava de se revoltar
contra os fantasmas do idealismo, sem conseguir vencê-los
jamais.”
E, em seguida, referindo-se a Karl Marx, afirma Bakunin:
“ Como pensador, Marx vai pelo caminho certo. Proclama como
princípio fundamental que os movimentos religiosos, políticos
e jurídicos da história nunca foram as causas, mas os efeitos
dos movimentos econômicos. É esta uma idéia grande e fecun
da, que Marx não foi o primeiro a descobrir; já antes haviam
atinado com ela e muitos outros a proclamaram, mas o que
não se pode negá-lo (a Marx) é a honra de tê-la desenvolvido
cientificamente, colocando-a como base de todo um sistema
econômico. Por outro lado, a liberdade foi muito melhor com
preendida e sentida por Proudhon do que por Marx; apesar
de que sua doutrina e imaginação não fossem tão grandes,
Proudhon possuía o verdadeiro instinto do revolucionário. É
muito provável que Marx se eleye a um sistema ainda mais
34
racional da liberdade do que Proudhon, mas falta-lhe o instinto
deste. Como alemão e judeu que é (Marx), é um autoritário
dos pés à cabeça”.
Longe dos espíritos sectários e dogmáticos, é evidente,
a polêmica vem ganhando nos tempos atuais novos contornos,
especialmente após Maio de 1968, quando os velhos conteúdos
foram questionados e aquele instinto anarquista recobrou atua
lidade, e alguns pensadores chegam a afirmar que uma transição
real do capitalismo ao socialismo nas sociedades contempo
râneas não poderá ser feita sem Marx e Proudhon juntos. Obvia
mente, sem reincidir no erro proudhoniano do lado bom e
do lado mau da dialética, ou seja, extirpando de um e de
outro pensador aquilo que não presta e conservando o que
é válido e perene. Nada disso. O que se requer é uma leitura
crítica tanto de Proudhon como de Marx, situando-os em seu
tempo para que se formule uma teoria da transformação social
mais completa e abrangente. O sociólogo Georges Gurvitch,
por exemplo, afirma: “Cem anos volvidos após a morte de
Proudhon, a atualidade do pensamento deste impõe-se a Leste
como a Oeste... Enquanto sociólogo e doutrinador social, Prou
dhon não é apenas um traço de união importante entre Saint-
Simon e Marx, sem o qual Marx não seria possível. É muito
mais do que isso. Os pensamentos de Proudhon e Marx comple
tam-se e corrigem-se mutuamente. Nunca se excluem, mesmo
quando se contradizem. As diversas tentativas de síntese têm
falhado até aqui, por não se terem elevado ao nível destes
dois irmãos inimigos. Mas ainda não houve quem pronunciasse
a última palavra. Esta síntese está muito mais adiantada na
realidade dos fetos do que na teoria. Tenho a certeza de que
uma nova concepção, superando, ao mesmo tempo, Proudhon
e Marx, a fim de os unir, não tardará a ser formulada”.33
Pessoalmente, creio que Gurvitch está certo. O autorita
rismo das sociedades contemporâneas estava germinando no
momento mesmo em que as revoluções do século passado forta
leciam cada vez mais o Estado, tão negligenciado por Marx.
33GURVITCH, George. Op. c it p.166.
35
Na verdade, as explosões sociais contemporâneas, quando
acontecem, têm um conteúdo nitidamente autoritário e sobre
esta questão Proudhon tem muito a dizer em sua obra longa
e tão rica. Aliás, é o próprio Proudhon quem afirma: a Revolu
ção Francesa proclamou o advento da liberdade e da igualdade,
mas, sob o manto dos formalismos de participação, deixou
como legado efetivo a autoridade: não consolidou a sociedade,
antes esmerou-se em seu govemo. A potencialidade dos movi
mentos revolucionários esterilizou-se nas constituições políti
cas. Foi tão-só uma revolução política, que repôs a autoridade
em outros termos.34
Em uma de suas obras póstumas — talvez tão importante
como a célebre O que é a propriedade? — Proudhon traça
um perfil da burguesia que revela todo aquele instinto percebido
nele por Bakunin, um perfil que provavelmente seja até mais
adequado aos dias atuais do que em seu próprio tempo: “ En
quanto a plebe operária, pobre, ignorante, sem influência, sem
crédito, fala de sua emancipação, de seu futuro, de uma trans
formação social que deve mudar sua condição e emancipar
todos os trabalhadores do globo, a burguesia, que é rica, que
possui, que sabe e que pode, não tem nada a dizer de si
mesma», parece sem destino, sem papel histórico: carece de
pensamento e de vontade... é uma minoria que trafica, que
especula, que agiota, uma confusão”.35
34RESENDE,
O^
Paulo Edgar A. & PASSETTI, Edson. Op. cit. p .17.
J J PROUDHON, Pierre-Joseph. Da capacidade política das classes operá
rias. In: RESENDE, Paulo Edgar A. & PASSETTI, Edson. Op cit.
p .107.
36
BAKUNIN: A REVOLTA PERMANENTE
Quem diz Estado, diz automaticamente dominação e, conseqüente
mente, escravidão; um Estado sem escravidão, confessada ou masca
rada, ê inconcebível. Por isso, somos inimigos do Estado.
Liberdade sem socialismo ê privilégio, injustiça; socialismo sem
liberdade ê escravidão e brutalidade.
MKHAIL BAKUNIN
37
mento um tom mais conservador. Sua prolixa e monumental
Justiça na revolução e na igreja (1858) é sobretudo consagrada
ao problema religioso e a conclusão é muito pouco libertária...
Com Bakunin, o fenômeno é inverso. É a primeira parte de
sua carreira agitada de conspirador revolucionário que não
tem relação com o anarquismo. Ele somente vai aderir às idéias
libertárias a partir de 1864, após o fracasso da insurreição
polonesa, da qual foi um dos participantes”.36 A tese de Prou-
dhon de que “ a democracia não é nada mais do que o arbítrio
constitucional” exerceu uma forte impressão sobre ojovemhege-
liano exilado que logo em seguida rompeu seus laços com a
democracia revolucionária para se tomar um anarquista muito
mais radical do que o próprio Proudhon.
No início de sua vida revolucionária, porém, suas idéias
se expressam fundamentalmente no apoio aos povos eslavos
em suas lutas contra a dominação autocrática da Rússia, da
Alemanha e da Áustria. Sua reputação como revolucionário
cresceu imensamente pela participação pessoal que tomou em
várias insurreições nos turbulentos anos de 1848-49.37 Foi pre
so após o fracassado levante de Dresden, permanecendo encar
cerado durante sete anos e depois enviado para a Sibéria,
de onde escapou em 1861. No entanto, foi na derrota da
revolução nacional-democrática polonesa de 1863 que Bakunin
deixou de ver qualquer possibilidade realmente revolucionária
nos movimentos de libertação nacional. Então, já definitiva
mente anarquista, passa a se preocupar em promover a revolu
ção social em escala internacional.
Em 1864, voltou à Itália, passando por Londres, onde
encontrou Marx, e Paris, onde reviu Proudhon já perto do
fim. Na Itália, ele se fixou até 1867, principalmente em Flo
rença e em Nápoles e seus arredores. James Guillaume, o
historiador (e militante) anarquista conta que por essa época
36GUÉRIN, Daniel. U anarchisme. Op. cit. p.8.
37BOTTOMORE, Tom (org.). A dictionary o f marxist thought. Op. cit.
p.40.
38
as suas idéias já estavam amadurecidas plenamente e Bakunin
estava decidido a lutar pela formação de uma organização
secreta de revolucionários, que se concretizou com a ajuda
de militantes italianos, espanhóis, franceses, escandinavos e
eslavos, tomando-se conhecida como Fraternidade Interna
cional- ou Aliança dos Revolucionários Socialistas,38 Na luta
contra os republicanos autoritários de Mazzini, Bakunin e seus
companheiros fundam, em Nápoles, o jornal Liberdade e Justi
ça, onde desenvolve e aprimora o seu programa. Mas não
se define como comunista: “ Detesto o comunismo porque trata-
se da negação da liberdade e eu não posso conceber nada
humano sem a liberdade. Não sou comunista ainda porque
o comunismo concentra e absorve todas as forças da sociedade
nas mãos do Estado, enquanto eu quero a abolição do Estado
— a extirpação radical da autoridade e da tutela do Estado,
que, sob o pretexto de moralizar e civilizar os homens, até
hoje só os aviltou, oprimiu, explorou e depravou. Quero a
organização da sociedade e da propriedade coletiva ou social
de baixo para cima, pelo caminho da livre associação, e não
de cima para baixo, por meio de qualquer autoridade seja
ela qual for. á nesse sentido que eu sou coleüvista e de
nenhuma maneira comunista”.39
No entanto, verifica-se nos textos de Bakunin para a Fra
ternidade Revolucionária Internacional, uma certa ambigüi
dade no tratamento dado por ele ao Estado. É certo que ele
se pronuncia categoricamente pela destruição dos estados: “O
Estado, afirma, deve ser radicalmente demolido”. Porém, a
palavra “ Estado” é reintroduzida em sua argumentação, defi-
nindo-a como “ a unidade central do país”, como um órgão
federativo. Verifica-se, portanto, em Bakunin, a mesma ambi
güidade encontrada em Proudhon, especialmente o último Prou-
dhon, o do Princípio federativo, livro escrito em 1863, dois
3®BAKUNIN, Mikhail. Textos escolhidos. Porto Alegre, L&PM, 1983.
p. 12.
39GUÉRIN, DanieL Op. cit. p.26.
39
anos antes do Programa de Bakunin, onde a palavra “ Estado”
assume o mesmo sentido federativo e anticentralista.
Quando Bakunin entra em cena, como anarquista-coleti-
vista ou socialista, o movimento operário europeu já tinha
dado passos gigantescos para o seu pleno amadurecimento.
Tanto é assim que, a 28 de setembro de 1864, é criada em
Saint Martin’s Hall, em Londres, a célebre AssociaçãoInterna
cional dos Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional, cu
jos Manifesto, Mensagem Inaugural e Estatutos foram redigidos
por Kari Marx, com várias tendências, abarcando desde os
lassaleanos e marxistas alemães até os mazzinistãs italianos,
passando, evidentemente, pelos sindicalistas ingleses e pelos
anarquistas proudhonianos e bakuninistas. Aliás, é o discípulo
de Bakunin, James Guillaume, que se tomou o autor da melhor
história da Primeira Internacional. Foi também na AIT que
se criou o cenário para a luta teórica e programática entre
Maix e Bakunin, uma luta não concluída e cujos problemas
colocados ainda perduram, em nossos dias, sem resposta. Luta
reavivada nas últimas décadas num sentido extremamente posi
tivo, pois, aos poucos, foi-se descobrindo que entre Bakunin
e Marx as distâncias não eram intransponíveis. François Munoz,
por exemplo, não hesita em afirmar com todas as letras: “ Baku
nin é marxista”. E argumenta: “ Quando ele evoca a querela
ideológica e livresca entre Marx e Proudhon é para dizer que,
como pensador, é Marx que estava no caminho certo. A respeito
de O capital, ele (Bakunin) apenas falará bem. Mas certamente
ele faz as suas objeções. Estas, que se seguem, entre outras:
OS comunistas alemães vêem na história humana apenas reflexos
dos fatos económicos. Este é um princípio profundamente ver
dadeiro quando se examina concretamente, isto é, de um ponto
de vista relativo, más que encarado e colocado de uma maneira
absoluta, como o único fundamento e a fonte original de todos
os outros princípios, como faz esta escola, toma-se completa
mente falso... O estado político de cada país... é sempre o
produto e a expressão fiel de sua situação econômica; para
mudar o primeiro é preciso simplesmente transformar esta últi
ma. Todo o segredo das evoluções históricas, segundo o senhor
40
Marx, está lá. Ele não leva em conta outros elementos da
história, tais como a reação, que é evidente, das instituições
políticas, jurídicas e religiosas sobre a situação econômica.
Ele (Marx) afirma: a miséria produz a escravidão política,
o Estado; mas ele não permite a reversão desta frase e afirma:
a escravidão política, o Estado, por seu turno, reproduz e
mantém a miséria, como uma condição de sua existência...
Com efeito, o senhor Marx desconhece igualmente um elemento
muito importante no desenvolvimento histórico da humanidade:
é o temperamento e o caráter particular de cada raça e de
cada povo, temperamento e caráter que são naturalmente os
produtos de uma multidão de causas etnológicas, climatoló-
gicas e econômicas, assim como históricas, mas que uma vez
dadas, exercem, mesmo fora e independentemente das condi
ções econômicas de cada país, uma influência considerável
sobre seus destinos, e mesmo sobre o desenvolvimento de
suas forças econômicas”. E François Munoz, após este longo
exame das restrições de Bakunin a certos aspectos do pensa
mento marxista, prossegue: “ As debilidades em Marx que Ba
kunin indica serão descobertas por Jean-Paul Sartre por sua
própria conta 80 anos após Bakunin e ele escreverá, por exem
plo, que Marx desconhecia a existência de um processo circular
e que o Estado, produzido e sustentado pela classe dominante
e ascendente, constitui-se como o órgão de coesão e integração.
E certamente esta integração se dá através das circunstâncias
e como totalização histórica; não impede que ela se faça por
ele, ao menos em parte”.
Assim, as objeções de Bakunin não são feitas por fora
do marxismo, tal como as de Sartre. O próprio Marx, aliás,
ultrapassa o marxismo e Sartre demonstrou ter encontrado
em Marx algumas destas objeções.40
Mas Munoz não está isolado nesta aproximação póstuma
entre os dois revolucionários. Muitos anos antes, Franz Meh-
^^MUNÕZ, François. La Liberté. Paris, J J . Pauvert, 1965. p.10-2. Prefá
cio a BAKUNIN, Mikhail.
41
ring, da ala esquerda da social-democracia alemã, também faz
uma apreciação semelhante. Diz Mehring: “ Bakunin era um
caráter fundamentalmente revolucionário e possuía, como Marx
e Lassalle, o talento de ouvir os homens... Marx e Bakunin
viam a revolução aproximar-se com passos enormes, mas en
quanto Marx havia estudado o proletariado da grande indústria,
que tinha os seus principais centros e efetivos na Inglaterra,
França e Alemanha, Bakunin fazia os seus cálculos com os
batalhões da juventude sem classe, das massas camponesas
e do lumpemproletariado. E, embora reconhecendo diretamente
que, como pensador cientista, Marx lhe era muito superior,
não cessava de incorrer, uma e outra vez, nos seus erros do
passado... É uma torpeza e uma injustiça, que atinge igualmente
a Marx e a Bakunin, pretender julgar as suas relações apenas
pela discórdia irremediável em que acabaram... Muito mais
importante, desde o ponto de vista político, e sobretudo sob
o aspecto psicológico, é observar como, durante 30 anos, estes
dois homens nunca cessaram de se atrair e repelir mutuamen
te”.41 E mais adiante, Franz Mehring conclui que apesar de
tudo, Marx conservou sempre o afeto pelo velho revolucionário
e se opôs aos ataques que pessoas chegadas a ele (Marx)
dirigiram ou pretendiam dirigir contra Bakunin.42
A Primeira Internacional, porém, era uma realidade e, nela,
tanto os marxistas como os bakuninistas exerciam um papel
importante, tão importante quanto constituíam os pólos diver
gentes da nova organização dos trabalhadores. O atrito decisi
vo, que acabou minando completamente o relacionamento dete
riorado entre Marx e Engels de um lado e Bakunin de outro
foi a formação no interior da AIT da organização secreta baku-
ninista, Aliança para a Democracia Socialista. Na Interna
cional, como vimos, coexistiam as mais diversas tendências
e não seria o fato dos bakuninistas se organizarem como ten
dência que provocaria a ira de Marx. O que este não tolerava
^ 1MEHRING. Franz. Op. cit. p.428-9.
42Idem, ibidem. p.432.
42
era o fato de que a Aliança agia secretamente, com base nos
trabalhadores relojoeiros do Jura, na Suíça, para dominar a
Internacional e colocar esta sob sua orientação, diante da revo
lução que se aproximava segundo calculavam os partidários.
Mesmo assim, os historiadores anarquistas da AIT, honrada
mente colocam em realce o trabalho de Marx na Internacional.
Victor Garcia, por exemplo, diz que “negar a contribuição
de Marx, após seu ingresso na Internacional já criada, 6 faltar
com a verdade. A presença de Maxx no Conselho Geral de
Londres foi valiosa, embora quando chegou o momento tenha
sido ele quem a matasse e a sepultasse”.43 O erudito e minu
cioso historiador do anarquismo, Max Nettlau, também afirma
que Marx produziu um “trabalho ótil na Associação”.
Mas, além das divergências Marx-Bakunin, é inegável que
este tíltimo também exerceu um papel fundamental na conscien
tização revolucionária no sentido libertário. Para George
Woodcock, “ Bakunin foi, entre todos os anarquistas, o que
desempenhou seu papel de forma mais coerente” .44 Até o seu
aspecto ffsico contribuía para isso. Era um verdadeiro gigante,
sempre em desalinho, apesar das maneiras refinadas que traíam
a sua origem aristocrática. Praticamente esteve envolvido em
todas as conspirações de esquerda da segunda metade do século
XIX. Mas a sua intuição superava a todos os grandes pensado
res de seu tempo, inclusive Proudhon e Marx. No início dos
anos 60 do século passado, por exemplo, compreendeu com
muito mais acuidade do que Proudhon que estava mais do
que na hora de levar as teorias do anarquismo e do socialismo
libertário para formar a consciência revolucionária dos descon
tentes operários e camponeses dos países latinos. E foi na
Itália onde ele encontrou o seu segundo lar e foi lá onde amadu
receram plenamente as suas idéias, inclusive no que diz respeito
à associação, germe da teoria anarcossindicalista, que se toma
ria na Espanha a principal força da classe operária. Nesse
^GARCIA, Vitor. La internacional obrera. Madri, Jucar, 1977. p.27.
^WOODCOCK, George. Op. cit. p.127.
43
aspecto, aliás, Bakunin diferia de Proudhon, que aceitou apenas
com muita relutância a idéia das associações. Com Bakunin,
a principal corrente do anarquismo afasta-se do individualismo
à la Stimer definitivamente, sendo que, inclusive, no seio
da Primeira Internacional, os discípulos coletivistas de Bakunin
acabariam se opondo aos herdeiros “mutualistas” de Proudhon.
Mas, como vimos, apesar de seus inúmeros folhetos, Baku
nin não nos legou sequer um livro completo. Era visceralmente
um homem de ação e, em toda a sua carreira, Woodcock
o acentua bem, está presente a idéia da ação revolucionária
como força purificadora e reformadora, tanto para a sociedade,
como para o indivíduo. A seus amigos, ele costumava repetir
uma das frases preferidas de Proudhon: “ Vamos revolucionar!
É a única coisa boa, a única realidade da vida”.
O seu instinto revolucionário ficaria mais uma vez compro
vado logo que sobreveio a Guerra Franco-Prussiana de 1870.
Ele exultava com as seguidas derrotas de Napoleão m , mas,
ao mesmo tempo, manifestava o seu temor de uma Alemanha
imperial vitoriosa. E no meio dessas contradições vislumbrava
uma outra possibilidade que não passou pela cabeça de nenhum
dos grandes revolucionários e teóricos da esquerda daqueles
tempos: a de que a guerra entre a França e a Alemanha acabasse
se transformando em nova edição da Revolução Francesa, agora
com os proletários na cabeça. Ele afirmava: “Como Estado,
a França está acabada. Ela já não pode salvasse através de
medidas administrativas regulares. Agora, a França natural,
a França do povo, deve entrar no palco da história, deve
salvar sua própria liberdade e a liberdade de toda a Europa,
através de um levante imenso, espontâneo e totalmente popu
lar, fora de qualquer organização oficial, de todo o centralismo
governamental”. Bakunin conclamava, em plena guerra, o povo
francês paia um “levante elementar, poderoso, apaixonada
mente enérgico, anarquista, destrutivo e ilimitado”. E não
ficou nos apelos: arregaçou as mangas e com seus amigos
tratou de preparar a ação revolucionária nas cidades do vale
do Rhone, escrevendo para os seus partidários de Lyon, quando
estes o chamaram, convidando a unir-se a eles: “ Decidi arrastar
44
meus velhos ossos até aí para jogar o que será provavelmente
a minha última cartada”. A República fora proclamada em
Lyon, em seguida à derrota de Sedan, mas quando lá chegou
Bakunin, a 15 de setembro de 1870, viu que estava diante
da república burguesa, com o Estado reconstruído e um Conse
lho Municipal devidamente eleito. Mas a grande revolução
sonhada por ele estava por vir e iria eclodir alguns meses
depois, em março de 1871, em Paris, com tal radicalidade
que obrigou o próprio Marx a revisar algumas de suas posições,
particularmente no que diz respeito ao Estado e seu papel
na sociedade revolucionária. Sem a Comuna de Paris de 1871,
a Revolução dos Soviets, na Rússia de 1905-17 teria sido
impensável.
Após a derrota da Comuna de Paris, consumou-se a cisão
na Internacional. O Conselho Geral transferiu-se para Nova
Iorque e, usando os poderes que lhe tinham sido conferidos
no Congresso de Haia, decidiu a 5 de janeiro de 1873 suspender
da AIT a Federação Jurassiana, onde se encontravam os mais
dedicados bakuninistas, inclusive o professor James Guillaume.
Mas estes não aceitaram a decisão e reuniram-se a 1! de setem
bro de 1873, em Genebra, como o VI Congresso Geral da Inter
nacional, com representações da Bélgica, Holanda, Itália, Espa
nha, França, Inglaterra e o Jura suíço. Até mesmo um setor
lassaleano de Berlim enviou uma moção de simpatia. O VI
Congresso revisou os estatutos da AIT, extinguiu o Conselho
Geral e fez da Internacional uma federação livre, sem autori
dade dirigente de qualquer espécie. As idéias de Bakunin,
que sempre insistiu na estrutura federativa, baseada em sessões
autônomas, estavam plenamente vitoriosas. Mas o velho revo
lucionário estava entoando o seu canto de cisne. Cansado
e sem forças, sabia que seu tempo havia passado, sem que
o problema da revolução social fosse resolvido. As lutas contí
nuas, a clandestinidade quase permanente, as prisões, as fugas,
os levantes fracassados, haviam alquebrado o seu corpo de
gigante. Era justo que agora ele pretendesse a aposentadoria
e o descanso que nunca teve, desde quando jovem aristocrata
russo rompera os laços que o prendiam à classe dominante
45
e se jogara com todo o ímpeto, primeiro na revolução democrá
tica, depois na revolução social.
A reorganização da Internacional segundo os princípios
federativos, que sempre defendera, proporcionou-lhe o mo
mento e a 12 de outubro de 1873 escreverá a seus fiéis camara
das da Federação Jurassiana, pedindo que aceitem a sua demis
são como membro da Federação e da Internacional: “ Não me
sinto mais com as forças necessárias para a luta: seria, pois,
no campo do proletariado, um estorvo, não uma ajuda. Retiro-
me, portanto, caros companheiros, cheio de simpatia por esta
grande e santa causa, a causa da humanidade... Continuarei
seguindo com ansiedade fraterna todos os vossos passos e
saudarei com alegria cada um dos vossos novos triunfos. Até
a morte serei vosso”. Três anos depois Mikhail Bakunin morre
ria, em Berna, Suíça. Não sem antes envolver-se em mais
uma tentativa revolucionária.
Carlos Cafiero, revolucionário italiano que fez o resumo
de O capital, de Marx, hospedou-o perto de Lucamo e ali
Bakunin passou, até meados de 1874, talvez os dias mais
tranqüilos de sua vida adulta. Mas não resistiu aos apelos
de seus instintos revolucionários. Nem o cansaço, nem a doença
que já minava as suas resistências, conseguiram impedi-lo de
juntar-se aos revolucionários que preparavam uma sublevação
em Bolonha, muito mal organizada e que, obviamente, fracas
sou. Bakunin, então, teve de abandonar a vila que Cafiero
carinhosamente lhe reservara para, pela última vez, fugir clan
destinamente de um país. Disfarçado, tomou o rumo da Suíça.
“ Bakunin era, em 1875, apenas uma sombra dele mesmo.
Em junho de 1876, na esperança de encontrar algum conforto
para seus males, deixou Lucamo para ir a Bema, onde chegou
no dia 14 de junho. Disse a seu amigo, doutor Adolf Vogt:
“ Venho aqui para que me cures ou morrer”. Expirou no dia
n de julho, ao meio-dia”.45
49
KROPOTKIN, O PRÍNCIPE ANARQUISTA
Somente a Revolução que, depois de colocar os instrumentos,
as máquinas, as matérias-primas e toda a riqueza social nas mãos
dos produtores e reorganizar a produção de modo a satisfazer
as necessidades daqueles que produzem tudo, poderá colocar um
fim nas guerras pelos m ercadosC ada um trabalhando por todos
e todos para cada um, eis a única condição para chegar à paz
entre as nações.
Foi um mundo em ação. (Sobre a Grande Revolução Francesa
de 1789.)
PIERRE KROPOTKIN
50
No seu período de instrução, desde logo ficou evidente a
inclinação para a ciência, em detrimento da formação militar:
Kropotkin viria a ser um geógrafo renomado mundialmente.
Esta vocação para o estudo da Geografia sedimentou-se na
Sibéria, onde ele fazia expedições para a elaboração de mapas
e o estudo da geografia de regiões desconhecidas naquela épo
ca. Mais tarde, já revolucionário e anarquista, Kropotkin tam
bém se revelou um historiador de indiscutível mérito, sendo
o autor de uma magnífica história da Revolução Francesa de
1789,50 na qual, de forma pioneira, faz a análise e a crítica
da Revolução de 1789 do ponto de vista das massas em oposi
ção aos estudos tradicionais.
Entretanto, esse período da Sibéria também ofereceu ao
príncipe Kropotkin a oportunidade de discussões sobre temas
filosóficos e sociais e de reformas políticas. “Foi especialmente
no contato com a dura realidade siberiana que ele se convenceu
da necessidade do federalismo e da ajuda mútua entre os seres
humanos”.51
Em 1867, deixa o exército e volta a Moscou para se dedicar
aos estudos científicos, mas rompe financeiramente com a sua
aristocrática família, tomando-se, em 1868, membro da Socie
dade Russa de Geografia. Seu primeiro gesto revolucionário,
conta Martin Zemliak, foi a recusa da função de secretário
da Sociedade de Geografia que lhe tinha sido oferecida. Em
1872, parte para a Suíça. Durante a viagem, passa grande
parte do tempo ouvindo as discussões dos refugiados russos
das várias facções revolucionárias em Zurique e Genebra. Pos
teriormente, passou alguns dias na região do Jura suíço, conhe
cendo pessoalmente a James Guillaume, filiando-se à Interna
cional, que ainda não estava cindida, como um dos partidários
de Bakunin. No verão, retoma à Rússia, ingressando no coleti
vo Tchaikovsky, que reunia jovens partidários do socialismo,
5®KROPOTKIN, Pierre. A grande revolução (1789-1793). Salvador, Pro
gresso, 1955. 2v.
51ZEMLIAK, Martin. Traits principaux de la vie de Pierre Kropotkin.
In; KROPOTKIN, Pierre. Oewvres. Paris, Maspero, 1976. p.7-8.
51
e escreve o seu primeiro ensaio revolucionário Devemos nos
ocupar da realização futura do Ideal?, redigido em novembro
de 1873 e apreendido pela polícia czarista: o ensaio só foi
publicado na íntegra quase um século depois, em 1964, No
entanto, ali já estão as teses fundamentais que Pierre Kropotkin
defenderia o resto de sua vida, tais como a negação do Estado,
a comuna como a base da sociedade futura, a necessidade
de satisfazer o máximo das reivindicações populares desde
os primeiros dias da revolução e a recusa dos revolucionários
profissionais.
Kropotkin tentava conciliar seu trabalho de cientista com
a sua militância revolucionária, trabalhando na Sociedade Rus
sa de Geografia e, dois dias depois de apresentar para esta
mesma sociedade uma comunicação sobre geologia polar, foi
preso pela polícia, a 23 de março de 1874, juntamente com
outros camaradas e encarcerado, sem julgamento, na triste
mente célebre fortaleza Pedro e Paulo, de Petrogrado, de onde
escapou algum tempo depois de forma espetacular, considerado
um dos episódios mais fascinantes da história do movimento
revolucionário russo. Assim, a partir de 1876, ele inicia a
sua vida de exilado. Seus conhecimentos de várias línguas,
como o francês, o inglês, o alemão e o sueco, porém, tomaram-
lhe menos dolorosas as agruras do exílio, já que podia se
integrar com mais facilidade nos diversos países por onde andou
sempre fazendo a propaganda anarquista-comunista.
Curiosamente, Kropotkin e Bakunin jamais se encontraram,
apesar da identidade de pontos de vista.
George Woodcock, notável biógrafo de Kropotkin, acredita
que este “ desencontro” deve-se em grande parte à diferença
entre estas duas personalidades marcantes do anarquismo. Com
efeito, “Kropotkin acreditou durante toda a sua vida que a
revolução era algo desejável e inevitável, mas jamais foi um
revolucionário atuante, como fora Bakunin. Jamais chegou a
lutar numa barricada e preferiu o debate aberto à obscuridade
romântica da conspiração. Embora pudesse admitir a necessi
dade da violência, opunha-se por temperamento, ao seu empre
go. As visões destruidoras de fogo e sangue que tão lugubre
52
mente iluminavam o pensamento de Bakunin não o atraíam.
O que o atraía era o aspecto positivo e construtivo do anarquis
mo, a visão cristalina de um paraíso terrestre reconquistado
e contribuiu para a sua elaboração através de seu treinamento
científico e de seu invencível otimismo”.52 Bemard Shaw,
que o conheceu, dizia que “pessoalmente Kropotkin era amável
a ponto de ser quase um santo” e acrescentava: “Com sua
abundante barba vermelha e sua expressão bondosa, bem pode
ria ter sido o pastor das Deleitáveis Montanhas”.
Há outras diferenças, porém, entre a vida dos dois anarquis
tas que tinham pontos de vista tão próximos. Enquanto a
carreira de Bakunin foi sempre uma vida ininterrupta de conspi
rações, prisões, novas conspirações e novos exílios, Kropotkin
viveu mais de 30 anos em Londres e, para os ingleses progres
sistas, ele não era o incendiário e irreconciliável inimigo da
sociedade burguesa, mas o que havia de melhor entre os exila
dos que lutavam contra a autocracia do Czar russo.
Mas não se faça uma imagem idílica de Kropotkin. Certa
mente, sua personalidade diferia muito da de Bakunin. Mas
ele estava longe de ser um pacifista. Seus folhetos revolucio
nários eram um constante apelo à revolta dos oprimidos e
deserdados e sua vida vai se ligar a jornais que nada tinham
de conciliadores, como La Révolíe e Le Revolté, editados na
França, onde foi publicada grande parte de seus escritos, e,
posteriormente, Freedom, editado na Inglaterra. Na França,
Pierre Kropotkin chegou a estar preso de 1883 a 1886, mas
o clima liberal da Inglaterra permitiu que ele dividisse seu
tempo entre as atividades de propaganda revolucionária e a
científica. Em 1893, ele se tomou membro da Associação Cien
tífica Britânica, mas recusou a oferta de ensinar na Univer
sidade de Cambridge porque a cátedra tinha como condição
a abdicação de suas atividades políticas.
A Rússia, porém, não safa de suas preocupações, especial
mente depois que seu irmão Alexandre, que pertencia também
ao mesmo coletivo socialista Tchaikovsky, foi preso e enviado
52WOODCOCK, George. Anarquismo. Op. cit. p.163.
53
à Sibéria, onde, em 1886, após mandar sua mulher e filhos
para Moscou, cometeu suicídio. A partir de 1903, Kropotkin
e outros emigrados russos fundam um jomal anarquista para
ser enviado clandestinamente à Rússia e que teve evidente
influência nas correntes libertárias russas que participaram ati
vamente tanto dos acontecimentos de 1905, como dos de
1917.53
A guerra de 1914, porém, foi um momento doloroso para
este pensador intemacionalista. Ele, como tantos outros, acre
ditou tratar-se de um conflito em que era preciso se posicionar
contra o espírito militarista-germânico. Em nome do anarquis
mo, pretendeu que era seu dever ficar ao lado das potências
que lutavam contra a Alemanha, isto é, a França e a Inglaterra,
principalmente, não se excluindo o eslavismo latente tanto
em seu espírito como no do velho Bakunin. O surpreendente
belicismo de Kropotkin abalou profundamente os demais anar
quistas e libertários e não foram poucos os que se insurgiram
contra ele. Com a Revolução de 1917, Kropotkin, já enfraque
cido, retoma à Rússia, sendo acolhido com imenso respeito
e até com entusiasmo. Recebeu propostas para participar do
Governo Kerenski, mas recusou-as. Lênin também fez o mesmo
quando os bolcheviques chegaram ao poder em outubro, mas
teve a mesma negativa. De 1917 a 1921, ano de sua morte,
Kropotkin, em plena Rússia soviética, continuou a propaganda
anarquista ao lado de seus camaradas Voline e Makhno. Seus
funerais, realizados no dia 13 de fevereiro de 1921, em Moscou,
apenas 20 dias antes do Levante de Kronstadt, que teve sua
nítida influência, serviram de pretexto para a última grande
manifestação de massas anarquistas na jovem Rússia soviética.
Apesar de sua oposição aos rumos tomados pelo govemo bol
chevique Kropotkin teve reconhecimento póstumo da União
Soviética, onde as suas Memórias de um revolucionário. Autour
d une vie foram publicadas em 1966. Na apresentação da obra
V.A. Tvardoskaia escreve: “ O nome do autor deste livro soa
54
familiar: ele está presente na nossa vida quotidiana. Em Mos
cou, é uma estação de metrô, uma praça, uma avenida, uma
rua, um bairro. Na Sibéria, é uma cadeia de montanhas e
uma colônia operária no departamento de Bodaibo. EmKouban
cresce a cidade de Kropotkin, antigamente Khoutor”. Kropotkin
é evidentemente apresentado como anarquista e criticado de
acordo com os postulados marxistas, mas ele surge também
como geógrafo de reputação, propagandista da literatura russa,
historiador apreciado por Lênin, biólogo que corrigiu Darwin
e sobretudo como uma personalidade rica, de notáveis qualida
des de inteligência, bondade, compreensão do belo, e com
senso de justiça.54
Talvez antes do final deste século Kropotkin ainda tenha
muito o que dizer na União Soviética contemporânea, onde
começa a ocorrer uma série de mudanças da mais alta sig
nificação.
Kropotkin foi, contudo, o último dos grandes teóricos anar
quistas e chega a ser surpreendente o descaso de Henri Arvon
com sua obra no livro História breve do anarquismo. O objetivo
de Kropotkin era a unidade da teoria e da prática e é nesse
sentido que devem ser estudados os seus folhetos e artigos
para os jornais anarquistas, especialmente Le Revolté, e os
seus livros como A grande revolução, O anarquismo, A con
quista do pão, Ajuda mútua, Fábricas, campos e oficinas,
O anarquismo e a ciência moderna, etc. Ele entende a revolu
ção como um fato concreto, para o qual os operários, sujeitos
do processo, precisam estar conscientes da ação que empreen
dem, a fim de que a destruição inevitável da velha sociedade
não faça nascer novos mecanismos de poder que venham cer
cear a liberdade de iniciativa e o desenvolvimento natural
da sociedade liberta de todos os seus órgãos de coação. Na
base desta revolução, segundo Kropotkin, está a comuna e,
em conseqüência, a federação, e a economia será comunista.55
54ZEMLIAK, Martin, Op. cit. p.ll.
55KROPOTKIN, Pierre. A conquista do pão. Rio de Janeiro, Simões,
1953.
55
O Príncipe anarquista, durante toda a sua vida militante, pro
curou sempre demonstrar o nexo lógico e profundo que existe
entre a filosofia das ciências naturais e o anarquismo. Em
outras palavras, seu objetivo era o de proporcionar uma base
científica ao anarquismo.56
Para Kropotkin, portanto, a ajuda mútua, que faz parte
da natureza humana, &um elemento essencial para a construção
do comunismo. Sem dúvida, estamos diante de um pensamento
rico e profundo, mas, sob certo aspecto, limitado pelo excesso
de “cientificismo” que impregna todo o seu desenvolvimento
e que, aliás, é uma das características do próprio “ espírito
do século XIX”. Não há, na teoria kropotkiniana, qualquer
resquício de dialética, no sentido hegeliano do termo, como
se pode perceber em Proudhon, mesmo mutilada, e certamente
em Bakunin, obcecado filosoficamente durante toda a sua vida
militante pela negatividade, como um elemento essencial da
dialética destruição-construção da sociedade. Para Bakunin,
a negação radical da ordem existente era um momento da
totalidade dialética, necessário e imprescindível, sem o qual
seria sem sentido e impossível a revolução social. Em Kropot
kin, ao contrário, o que se verifica é a tendência evolutiva
das ciências, que permite aos homens descobrir a ajuda mútua
e construir o comunismo a partir do império da razão e da
ciência.57 A sua conclusão comunista decorre, pois, não de
uma interpretação dialética do desenvolvimento da sociedade,
mas de uma tentativa de aplicar à evolução social os conheci
mentos extraídos das ciências modernas. “O que ele faz, na
verdade, diz corretamente Woodcock, é escolher uma série
de problemas sociais que nos afligem no momento e considerar,
experimentalmente, como seriam solucionados num mundo on
de a produção seria para o consumo e não para o lucro e
COMEÇA A REVOLUÇÃO
A Comuna no momento atual está pronta para a História.
LOUISE MICHEL
Seria um equívoco imenso pensar que as idéias libertárias
permaneceram em pequenos círculos de intelectuais desajus
tados, sem qualquer conexão com os movimentos sociais. Maior
equívoco ainda seria fazer o teste de sua viabilidade através
de fracassos, conspirações abortadas e ações terroristas isola
das. Houve tudo isso de fato. Pequenos círculos intelectuais
de origem burguesa, rejeitando a ordem, mas sem mover uma
palha para destruí-la. Houve fracassos, como as tentativas in
frutíferas de Proudhon e as lutas nunca vitoriosas de Bakunin
e os seus. Houve a loucura de Nechaev e o seu Catecismo
revolucionário, que trouxeram descrédito e amargura a Baku
nin. Houve dezenas de rebeliões isoladas, logo esmagadas e
esquecidas. Houve o terrorismo e as bombas que, com Reva-
chol, contribuíram para a versão caricata do anarquista. Mas,
como vimos, houve também um poderoso arsenal de idéias
novas cujas origens remontam à própria Revolução Francesa,
que renovaram as esperanças e reviveram o conteúdo das pala
vras liberdade, igualdade e fraternidade. Houve o desgastante,
mas enriquecedor debate na Primeira Internacional, quando
o movimento operário do século XIX já caminhava sobre os
seus próprios pés.
Houve, em março de 1871, a Comuna de Paris. Depois
de tantos fracassos e derrotas, de tantas esperanças perdidas,
o sonho tomava corpo. Tomava-se verdade. Em março de 1871,
58
como afirmaria Karl Marx, o proletariado tomava o céu de
assalto.® Na Internacional, como vimos, polarizou-se o debate
entre os socialistas libertários e os chamados autoritários, entre
os quais se encontrava Marx. A Comuna de Paris surpreendeu
a todos. A população operária de Paris se levantara de armas
na mão. Os revolucionários vinham de todas as tendências:
jacobinos de esquerda, blanquistas, proudhonianos, bakuninis-
tas e marxistas. A revolução, porém, tinha a sua própria lógica
e não aceitava rótulos. A Comuna foi derrubando, um por
um, todos os dogmas teóricos e dando vida nova ao que,
em todas aquelas teorias socialistas e semi-socialistas, incorpo
rava o movimento social real, de Blanqui e Proudhon a Bakunin
e Marx. Muito mais do que a Revolução de 1848, a Comuna
de Paris trouxera o proletariado ao poder. Poder? Sim, no
sentido de que uma classe social nova desarmava e desapro
priava as antigas classes dominantes, formava as suas próprias
milícias em lugar de um exército regular, declarava a sua pró
pria autonomia e determinava que qualquer funcionário, ocu
passe o cargo que ocupasse, poderia ser destituído de suas
funções a qualquer momento.61 O que se via não era mais
o Estado no sentido tradicional do termo, mas um Estado
em processo de extinção: foi o que Karl Marx soube perceber
de imediato, sem vacilar em revisar suas próprias opiniões
anteriores acerca do problema do Estado, que, aliás, nunca
chegaram a ser aprofundadas. Na sua obra clássica, A guerra
civil na França, Marx detecta de imediato que estava diante
de um novo problema colocado pela revolução proletária, isto
é, o Estado. Marx concluía — e ele nunca esteve tão próximo
de Bakunin e dos libertários como em suas conclusões sobre
a Comuna — que não bastava ao proletariado revolucionário
assumir a máquina do Estado e reorganizar a sociedade segundo
os seus próprios interesses. A Comuna de Paris lhe revelara
60mARX, Karl. A guerra civil na França. In: MARX, Karl & ENGELS,
Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, s/d, v.2. p.39-103.
^M IC H E L, Louise. Mis recuerdos de la comuna. México, Siglo XXI,
1973.
59
que a lógica da revolução proletária conduz necessariamente
à destruição da máquina estatal burguesa, como durante anos
e anos os anarquistas afirmaram. Marx, porém, preocupado
ainda com as questões da economia política, não aprofundou
nunca a questão do Estado (que até hoje continua problemática
no interior da teoria marxista), referindo-se apenas a um vago
período de transição, no qual, como diria Engels, o Estado
não é abolido, mas se extingue. Entre os marxistas, será Lênin
que, às vésperas da Revolução de 1917, retomará as teses
de Marx sobre a Comuna de Paris, num livro, O Estado e
a revolução, com certo dogmatismo que lhe prejudica a percep
ção aguda dos ensinamentos de 1871.62
Os libertários, por outro lado, não tiraram igualmente todos
os ensinamentos da Comuna, inclusive o fundamental: quando
uma verdadeira revolução, como o foi a Comuna, tem início,
não pode se deter a meio do caminho. E enquanto prossegue
a luta, de uma ou de outra forma, coloca-se a questão do
poder, mesmo que esse poder seja exercido no sentido de
uma sociedade autônoma, como era o caso da Comuna de
Paris, que ficou isolada e acabou permitindo a reorganização
da classe dominante e de suas forças armadas no resto da
França. Acabou esmagada, com toda a selvageria de que são
capazes os conservadores destronados que sentem-se com força
para recuperar o poder. Mesmo derrotada em poucos meses,
porém, a Comuna de Paris ofereceu enormes ensinamentos
a todo o conjunto da esquerda daquela época, a começar pelo
próprio Marx, que reviu sua posição, como vimos, em sua
obra A guerra civil na França. Assim, salienta James Guillau-
me: "A guerra civil na França é uma declaração surpreendente,
segundo a qual Marx parece ter abandonado seu próprio progra
ma e passado para o lado dos feder alistas (os anarquistas,
nota de LPV). Foi esta uma conversão sincera por parte do
autor de O capital, ou uma manobra temporária ditada pelos
62LêNIN, V. El estado y la revolución. In: LÊNIN, V. Obras escogidas.
M oscou, Progresso, 1969. v .l. p.272-365.
60
acontecimentos, uma adesão aparente à Comuna em beneffdo
do prestígio que possui o seu nome?”.63
Certamente não se tratava de um mero jogo oportunista
de Marx, não apenas pela sua reconhecida seriedade científica
e intelectual, inclusive na obra em questão, como se compro
vará mais tarde nos prefácios de Engels ao Manifesto comunista
de 1848, que revisam amplamente a questão do enfoque marxis
ta do Estado. E Aithur Müller Lehning, o editor das edições
completas dos Archivos Bakunin, diz que “é uma ironia da
história que, no momento em que o enfrentamento entre autori
tário e antiautoritário chegasse a seu apogeu na Internacional,
Maix assimilasse o programa da tendência antiautoritária...
A Comuna não tinha nada em comum com o programa estatal
de Marx e estava mais de acordo com as idéias de Proudhon
e as teorias federalistas de Bakunin. A guerra civil na França
está em completa contradição com todos os escritos de Marx
sobre a questão do Estado”.64
A Comuna, na verdade, não se dirigiu no sentido estatal,
apesar da grande influência blanquista, jacobina e marxista
em seu interior. O proletariado parisiense impulsionava a revo
lução no sentido bakuninista. Esta tendência, porém, também
revelou as suas debilidades, como o faria igualmente, muitos
anos mais tarde, na Espanha. O certo é que os libertários
tiveram de assumir funções estatais na própria Comuna e o
que eles não conseguiam compreender é que se tratava de
um Estado de novo tipo, um Estado em vias de extinção,
como afirmaria Marx e, depois dele, Lênin. Mas, enquanto
programa, & inegável que a Comuna de 1871 estava mais
perto dos proudhonianos e dos bakuninistas. O próprio Baku
nin, sensível como era, salienta este aspecto: “ Sou partidário
da Comuna de Paris que, apesar do banho de sangue que
sofreu nas mãos da reação clerical e monárquica, cresceu mais
forte e poderosa nos corações e nas mentes do proletariado
63DOLGOFF, Sam (org.). La anarquia según Bakunin. Op. cit. p.309.
^Id e m , ibidem. p.310.
61
europeu. Sobretudo, sou seu partidário porque foi uma negação
direta e claramente formulada do Estado”.65 Esta tendência
antiestatal, porém, não deve ser vista apenas como um fruto
da espontaneidade do proletariado parisiense.
Em 1871, apesar de suas divisões interiores, os anarquistas
influíram de forma praticamente decisiva nos rumos da Comu
na, particularmente na organização dos serviços públicos, não
apenas pela participação de nomes como Courbet, Longuet
e Vermorel (mutualistas), Variin, Malon e Lefrançais (coleti-
vistas libertários) e os bakuninistas Élie e Élisée Reclus e
a famosa Louise Michel, também bakuninista. O aspecto liber
tário da Comuna foi ressaltado, como aponta George Wood-
COCk, no Manifesto ao povo francês, datado de 19 de abril
de 1871: “ A completa autonomia da Comuna estendeu-se a
todas as localidades da França, garantindo a cada uma os
seus direitos integrais e a todos os franceses o pleno exercício
de suas capacidades, como homens, cidadãos e trabalhadores.
A autonomia da Comuna terá como limite apenas a idêntica
autonomia de todas as demais comunidades que concordarem
com o contrato; sua cooperação deve assegurar a liberdade
da França”.66 O historiador anarquista George Woodcock vê
neste Manifesto uma nítida influência proudhoniana, ainda mais
do que bakuninista. Para ele, o próprio Proudhon, se vivo
fosse, poderia ser o autor da proclamação.
Dir-se-ia que a Comuna foi prematura e que estava irreme
diavelmente condenada ao fracasso quando seus partidários
não tomaram a iniciativa de atacar Versalhes, onde se concen
trava a reação. Mas a Guerra Franco-Prussiana havia aberto
o caminho para a revolução, da mesma forma que a Grande
Guerra de 1914 abriria a estrada para o poder soviético de
1917. O historiador inglês do socialismo, G.D.H. Cole, diz
que “ durante sua breve existência, a Comuna de Paris não
teve sequer tempo para colocar os fundamentos de uma nova
65Idem, ibidem. p.315.
^WOODCOCK, George, O movimento. A n a r q u is m o : u m a h is tó r ia d a s
idéias e movimentos libertários. Porto Alegre, L&PM, 1984. v.2. p.48.
62
sociedade. Sua tarefa era lutar, uma tarefa sem esperança,
desde o momento em que renunciou à idéia de um ataque
em massa a Versalhes, deixando Thiers em liberdade para orga
nizar a força militar que acabaria com a revolução”.67
Mas a derrota da Comuna teve conseqüências imediatas
no movimento socialista. Em primeiro lugar, a revisão de Marx
sobre a questão do Estado, expressa em A guerra civil na
França, não teve muita repercussão entre os próprios marxis
tas, especialmente os alemães que, de uma ou de outra forma,
continuaram a defender as antigas posições estatistas, inclusive
porque o próprio Marx nesta obra já várias vezes citada não
proclama a abolição do Estado pura e simplesmente como
os anarquistas, mas apenas um tipo de Estado, o Estado bur
guês, e insiste em que o proletariado deve tomar o poder,
organizando uma nova sociedade, na qual o Estado não iria
desempenhar o seu papel decisivo, como na sociedade capita
lista, mas seria, como vimos, um Estado em vias de extinção.
Além disso, os marxistas alemães estavam excessivamente im
pregnados da influência de Lassalle, o discípulo de Marx mais
estatista do que qualquer outro. Assim, a derrota da Comuna,
apesar da reviravolta no pensamento de Karl Marx, reforçou
em muito as concepções estatistas do socialismo, que viriam
se consolidar posteriormente na social-democracia, primeiro
alemã, depois ao nível internacional, na Segunda Internacional,
baseada inteiramente nos programas de Gotha e de Erfurt do
socialismo alemão. A social-democracia havia esquecido total
mente os ensinamentos de A guerra civil na França e o próprio
Engels passa claramente a se inclinar para um novo revisio
nismo no sentido inverso ao que havia sido imprimido por
Marx após as lições da Comuna. A república democrática
e a luta parlamentar e sindical passam a ser as prioridades
do socialismo de tendência marxista, tendência que será abala
da apenas no transcurso da Primeira Guerra Mundial, quando
a Revolução chega à Rússia czarista e Lênin desenterra A
67COLE, G.D.H. Marxismo y anarquismo (1850-1890). Op. cit. v.2. p.153.
63
guerra civil na França e a Comuna de Paris para a elaboração
do novo programa dos bolcheviques. Entretanto, desde a derro
ta da Comuna de Paris, começa o declínio do anarquismo
europeu. Com exceção dos países latinos, onde os libertários
ainda conseguem manter alguma influência, o socialismo inter
nacional se coloca quase inteiramente sob a bandeira do mar
xismo.
70
de Kronstadt,78 mas é inegável a sua participação. De qualquer
forma, os objetivos da Revolução de Kronstadt eram os mesmos
pelos quais lutaram os anarquistas durante todo o período
revolucionário. E ironicamente Trotsky, anos mais tarde, ins
creverá em seu programa de oposição ao stalinismo muitas
das reivindicações expressas pelos marinheiros da comuna de
Kronstadt de 1921. A ironia da história consiste no fato de
que Leon Trotsky foi o comandante das tropas bolcheviques
que esmagaram a insurreição conselhista. No programa de
Kronstadt constava a revitalização dos sovietes e o fim do
domínio do partido único, com liberdade para todas as tendên
cias socialistas-proletárias, exatamente o que Trotsky iria rei
vindicar anos depois quando a burocracia vitoriosa em toda
a sua plenitude se desembaraçava de todos os seus vestígios
revolucionários e bolcheviques. Certamente Trotsky não se
inclinaria para o anarquismo. Pelo contrário, na luta contra
Stálin, ele pretendia encarnar as mais autênticas tradições do
bolchevismo e até o fim da vida seria um ardoroso e inflexível
defensor das concepções de Marx, Engels e Lênin. A tendência
que se desgarra claramente das concepções bolcheviques e
se aproxima do anarcossindicalismo é a Oposição operária,
de Alexandra Kolontai, oposição esta que perde o seu direito
de cidadania justamente por causa da insurreição de Kronstadt
sob a alegação de que “ a revolução estava em perigo”. Pela
primeira vez, na história do bolchevismo, interditava-se as
frações e seu direito de se expressar livremente no interior
do partido. O sonho dos libertários em relação ao poder dos
sovietes estava fraudado. Mais uma vez a história libertara
as energias das massas no sentido do socialismo libertário
e, mais uma vez, em vez da extinção do estado, o que se
verificara fora o aperfeiçoamento da máquina estatal.
Entretanto, é importante destacar, como o faz Eric J. Hobs-
bawm, que nos primeiros tempos do período revolucionário
Henri. A r e v o lt a d e K r o n s ta d t. São Paulo, Brasiliense, 1984.
7$A R V O N ,
METT, Ida. La commune de Crostadt: crépuscule sanglant des soviets.
Paris, Spartacus, s/d.
71
a atitude dos bolcheviques em relação aos anarquistas foi muito
mais benévola do que na era de Marx e Engels. Diz Hobsbawm
que “ a posição bolchevista em relação aos movimentos anar
quistas e anarco-sindicalistas existentes era surpreendentemen
te benévola, sendo determinada por três fatores principais:
a) a convicção de que a maioria dos operários anarco-sindi
calistas era revolucionária e aliada objetiva e, dadas as circuns
tâncias corretas, aliada subjetiva do comunismo contra a social-
democracia, assim como era potencialmente comunista; b) a
manifesta atração que a Revolução de Outubro exerceu sobre
muitos sindicalistas e mesmo anarquistas nos anos imediata
mente posteriores a 1917; c) o declínio, igualmente inquestio
nável e cada vez mais rápido do anarquismo e do anarcossindi-
calismo como movimento de massas em todos os seus antigos
centros, à exceção de alguns poucos”.79
Na realidade, as relações entre bolcheviques e anarquistas,
no período pós-revolucionário, não foram lineares. Entremea
ram-se momentos de aproximação e afastamento, que podem
ser exemplificados na figura lendária de Nestor Machno, que
entra em cena, na Ucrânia, logo ao dia seguinte da Revolução.
E 6 inegável que o triunfo do socialismo na Rússia deve muito
a este camponês, filho de camponeses, que se tomou no próprio
processo revolocionário um líder militar de surpreendente capa
cidade, tomando-se uma barreira, durante a guerra civil, aos
exércitos brancos.80 Desde o primeiro momento Machno foi
um anarquista e mobilizou militarmente os camponeses ucrania-
nos ao mesmo tempo contra os latifundiários russos e contra
as forças de ocupação alemãs e austríacas. E a mobilização
se deu através da guerra de guerrilhas, nas quais os liderados
de Nestor Machno saíram plenamente vencedores. Mas, na
medida em que ia derrotando militarmente os brancos e os
ocupantes estrangeiros, Machno colocava em prática a revolu
70
HOBSBAWN, E J. Revolucionários. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
p.78-9.
80VOLIN. La revohtciôn dexonocida, Buenos Aires, Americalee, 1954.
72
ção de acordo com a orientação anarquista-comunista, coletivi-
zando a terra e formando sovietes camponeses. “ A honra de
ter aniquilado Denikin (um dos principais generais contra-revo-
lucionários, nota de LPV), no outono do ano de 1919, pertence
principalmente aos insurretos anarquistas”, conta Piotr Archi-
nov, participante e historiador da “machnovstchina”. Machno,
porém, nunca aceitou colocar suas foiças sob as ordens de
Trotsky, chefe do Exército Vermelho.
Mesmo assim, os dois exércitos, o bolchevique e o anar
quista, foram obrigados pela necessidade a lutarem juntos con
tra os inimigos comuns, pelo menos até 1920, quando os guerri
lheiros de Machno derrotaram Wrangel. Após isto, os bolchevi
ques exigiram submissão completa dos anarquistas da Ucrânia.
Como estes se recusaram, os bolcheviques iniciaram a repres
são, prendendo dezenas de partidários de Machno e do anar
quismo. Chegou a haver luta, na qual os libertários, inferiori
zados numericamente acabaram derrotados. Machno se refugiou
primeiramente na Romênia em 1921 e, posteriormente, em
Paris, onde moireu em 1935 na mais extrema miséria.81
Acabara o sonho russo do comunismo libertário.
ESPANHA: O COMUNISMO LIBERTÁRIO
Para a CNT-FAI, enquanto vanguarda organizada dos trabalha
dores da cidade e do campo, interessava limpar a mesa do jogo.
Sua luta era ofensiva; sua meta uma nova sociedade. Para este
objetivo, o Estado da pequena burguesia e de seus partidos,
fraco e comprovadamente inviável, precisava ser tirado do caminho.
Fiéis a seus princípios, os anarquistas tinham em vista abolir
qualquer forma de Estado e erigir na Espanha o reino da liberdade.
HANS MAGNUS ENZENSBERGER
Quando os fascistas deram o golpe de estado na Espanha,
em 1936, não esperavam encontrar pela frente a resistência
81GUÉRIN, DanieL Ni Dieu, Ni Maître: anthologie de l’anarchisme. Op.
cit. v.4.; MACHNO, Nestor. El gran octubre en Ucrania.i La hicha contra
el estado.; La concepciôn machonovista de los soviets.; Por unos soviets
libres. In; Los anarquistas y los soviets. Op. cit.
73
que tiveram. Nem sonhavam que o golpe desencadeasse uma
revolução social, com os anarquistas organizados na Confede
ração Nacional dos Trabalhadores (CNT) e na Federação Anar
quista Ibérica (FAI) como vanguarda. Foi em toda a sua história
o grande momento do anarquismo. Afinal, em terras espanho
las, eram eles, os libertários, hegemônicos, firmemente enraiza
dos na consciência dos trabalhadores da cidade e do campo.
E não esperaram um segundo sequer. Tão logo souberam da
rebelião fascista, que contava com o apoio dos governos alemão
e italiano, os libertários da CNT-FAI armaram as massas traba
lhadoras e desencadearam a revolução social, ocupando fábricas
e desapropriando as terras dos latifundiários.
O anarquismo, na verdade, tinha uma grande tradição na
Espanha. Não tinha os teóricos do comunismo libertário de
outros países, como a França, Itália, Alemanha, Rússia. Mas
em nenhum outro lugar as idéias libertárias tiveram tanta recep
tividade entre os trabalhadores. País de imensas contradições,
a Espanha, segundo os libertários, estava pronta para a Revolu
ção, o que se comprovaria pela vitória eleitoral da Frente
Popular, em fevereiro de 1936, fato que, pela primeira vez,
marca a participação dos anarquistas no processo político. Diz
Daniel Guérin, “ a revolução espanhola estava, pois, relativa
mente amadurecida tanto no cérebro dos pensadores libertários
como na consciência popular... A vitória eleitoral da Frente
Popular pode ser considerada como o início de uma revolução.
Com efeito, as massas não demoraram em ultrapassar os qua
dros estreitos do sucesso obtido nas umas”.82
Este era o resultado de um processo longo de conscienti
zação, do qual não podem também ser excluídas outras organi
zações de trabalhadores, como a UGT (União Geral dos Traba
lhadores), que havia conquistado imenso prestígio nas Astúrias,
onde os socialistas lideraram uma autêntica revolução proletá
ria. Os comunistas constituíam ainda um pequeno grupo. Menor
ainda era a organização dos trotskistas. Mas havia 0 POUM
82GUÊRIN, Daniel. Vanarchisme. Op. cit. p.146.
74
(Partido Operário de Unificação Marxista), nem stalinista, nem
trotskista, que chegou a ser um verdadeiro partido de massas
na Catalunha e que esteve próximo da CNT nos momentos
mais dramáticos da guerra civil e da revolução.83 O POUM,
dirigido por Joaquim Maurin e Andrés Nin, sem o dogmatismo
dos stalinistas e liberto do sectarismo de Trotsky em relação
aos anarquistas espanhóis, também compreendera que a guerra
contra o fascismo só poderia ser vencida se fosse levada a
cabo paralelamente à revolução socialista, e a organização
revolucionária de massas na Espanha era, sem dúvida, a CNT
que já em 1934 contava com mais de um milhão de membros.
O Partido Socialista (PSOE) embora bastante forte, não chega
va ao poderio da CNT-FAI. Era, além disso, extremamente
heterogêneo, contando com uma tendência de esquerda, nitida
mente revolucionária, e uma maioria reformista na mais clássica
tradição da social-democracia européia.
A revolução espanhola de 1936 teve um período ascencio-
nal dinâmico e quase irresistível, especialmente pela decisão
da CNT-FAI em instaurar de imediato o comunismo libertário
e a autogestão no campo e na cidade. Gaston Levai salienta
que a palavra “coletivização” durante a guerra civil na Espanha
designa simplesmente a autogestão,84 A situação e o clima
era de uma autêntica revolução, especialmente na Catalunha,
no Levante e em partes do Aragão. Nessas regiões, estabele
cia-se, de fato, o programa da CNT-FAI, o programa do comu
nismo libertário, e estava em curso uma revolução autentica
mente operária, a última revolução proletária nos moldes clássi
cos ocorrida na Europa. Por isso mesmo, é de surpreender
que um dos mais brilhantes marxistas, Leon Trotsky, tenha
se equivocado tanto em relação ao que ocorria na Espanha.
Ao contrário de sua obra clássica sobre a Alemanha, onde
ele percebeu como ninguém as forças em jogo, na Espanha
83WOODCOCK, George. Anarquismo, Op. cit. v.2. p,102.
^LEVAL, Gaston. La colectivizaeién en Espana de 1936 a 1939. In:
Lm autogestion, el estado y la revolución• Buenos Aires, Proyección,
1969. p.37.
75
Trotsky simplesmente não via o que estava diante de todos,
ou seja, a revolução era conduzida pela CNT e, em parte,
pelo POUM. Trotsky, porém, num julgamento dogmático e
sectário, afirma que “os anarquistas demonstraram sua fatídica
incompreensão das leis e problemas da revolução quando tenta
ram limitar seu trabalho a seus próprios sindicatos, presos
à rotina dos tempos de paz”.85 Ora, o que houve foi exatamente
o contrário. A revolução em curso era obra das massas em
perfeita combinação com os objetivos da CNT. E ainda mais
do que isso: a própria revolução deitava por terra o “ purismo”
apolítico dos anarquistas que não apenas votaram na Frente
Popular como, no transcurso da guerra civil, fizeram parte
integrante do governo republicano.
O próprio líder guerrilheiro Buenaventura Durruti, segura
mente o mais popular entre todos os líderes da esquerda espa
nhola, aceitou a participação política, juntamente com seus
amigos e companheiros da CNT, Garcia Oliver e Jover, sendo
que Oliver chegou a ser ministro da República.86 Certamente
a participação política dos anarquistas no Governo não foi
uma questão pacífica e houve dissidências, embora estas não
chegassem a afetar a unidade da CNT e da FAL Mais de
30 anos depois, será a legendária Federica Montseny quem
fará a autocrítica da participação dos anarquistas no governo
republicano. De qualquer forma, a revolução e a guerra da
Espanha demonstraram, mais uma vez, as limitações do anar
quismo, mesmo em sua forma mais acabada que, sem dúvida
alguma, foi o anarcossindícalismo espanhol, na questão crucial
do poder e da transição. Despreparadas para enfrentar o proble
ma do exercício do poder, a CNT e a FAI acabaram sendo
envolvidas pelos partidos políticos com experiência, prática
e vocação para o Governo. É quando isto ocorre que a revolu
ção se paralisa, entra em estagnação, privilegiando-se apenas
85TROTSKY, Léon. Lessons of Spain. Londres, 1937.
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O curto verão da anarquia. São Paulo,
Companhia das Letras, 1987.; GUÉRIN, Daniel. Ni Dieu, Ni Maître:
anthologie de l’anarchisme. Op. cit. v.4.
76
a República e a guerra contra o fascismo. Assim, a partir
de maio de 1937, começa o declínio da revolução. Mas qualquer
historiador sério não poderá negar que os acontecimentos do
verão e do outono de 1936 revelaram as virtudes e as falhas
das organizações libertárias espanholas. A verdade é que “ du
rante anos a FAI tinha se preparado para um tipo de situação
em que uma greve geral e um curto e intenso período de
insurreição poderiam derrubar o Estado e instaurar o milênio
do comunismo libertário”.87 Mas os anarquistas espanhóis não
eram intelectuais sonhadores e desligados do movimento de
massas. Pelo contrário, a maioria absoluta dos integrantes da
CNT e da FAI, inclusive as lideranças como Durruti, Oliver,
Ascaso, Jover e tantos outros, eram operárias. “ Eles eram
agitadores de rua e guerrilheiros experientes, e na situação
crítica surgida com o golpe militar de 19 de julho estavam
no melhor de sua forma. Em Barcelona e Valência, nos distritos
rurais da Catalunha e em partes de Aragão, e até certo ponto
em Madri e Astúrias, foi a ação imediata da elite da FAI
e dos trabalhadores sindicalizados da CNT que derrotou os
generais e preservou estas cidades e regiões para a República.
O triunfo das organizações da classe trabalhadora criou um
clima revolucionário e até uma certa situação revolucionária
temporária na Catalunha, no Levante e em partes de Aragão.
Durante vários meses as forças armadas dessas regiões foram,
em geral, milícias controladas pelos anarquistas. As fábricas
foram em grande parte tomadas pelos trabalhadores e dirigidas
pelos comitês da CNT, enquanto centenas de aldeias ou divi
diam ou coletivizavam a terra, e muitas vezes tentavam organi
zar comunidades libertárias do tipo defendido por Kropotkin.
A vida mudou suas feições nos menores detalhes...” 88 E que
é isso se não uma autêntica revolução em curso? Uma revolu
ção, aliás, que tinha as suas próprias bases teóricas, como
nos conta Diego Abad de Santillán: “ Em todas as reuniões
da CNT e da FAI propicia-se o estudo das bases gerais sobre
87WOODCOCK, George. O anarquismo. Op. cit. v.2. p,103.
88Idem, ibidem.
77
as quais há de ser edificada a nova sociedade, sem capitalismo
e sem Estado”.89
O espantoso é que, decorridos mais de 50 anos da Guerra
Civil Espanhola, este aspecto daquele marcante e decisivo
acontecimento histórico (não apenas para a Espanha), ainda
permaneça em grande parte desconhecido. E o que é mais
curioso: sistematicamente relegado ao esquecimento durante
décadas, seja pelo fascismo triunfante no interior das fronteiras
ibéricas, pelo stalinismo vitorioso após a Segunda Guerra Mun
dial, ou pelas democracias capitalistas igualmente beneficiadas
pela derrota das forças do Eixo. O que se deixa na penumbra
da história ê que o golpe fascista serviu como sinal para uma
autêntica revolução social na Espanha. São raros os historia
dores, como Pierre Broué e Émile Teminne, com sua Revolução
e guerra na Espanha, que percebem com argúcia o processo
revolucionário espanhol. Aliás, foi esta revolução social que
levou a guerra tão longe, pois Franco e seus fascistas poderiam
ter liquidado o caso espanhol em poucos dias, não fosse a
resposta revolucionária dos trabalhadores.
Integrados na Frente Popular que sustentava a República
contra o fascismo, os trabalhadores foram muito mais além
de uma pura e simples defesa da democracia convencional.
Quando a República parecia perdida, exigiram as armas que,
de forma relutante, acabaram lhes sendo entregues. Então,
teve início um processo que poderia ter mudado o curso da
história, não fosse o abandono em que se viram atirados os
resistentes espanhóis, enquanto os fascistas recebiam todo o
apoio da Alemanha hitlerista e da Itália de Mussolini. Especial
mente na Catalunha, no Levante e em partes de Aragão o
que se verificou foi uma revolução social. República sim, mas
não a que permita o pronunciamento dos fascistas. George
Orwell em sua maravilhosa Homage to Catolonia (no Brasil
78
traduzida como Lutando na Espanha), define bem o tipo de
resistência dos trabalhadores espanhóis: “ A classe operária
não resistiu a Franco em nome da democracia, como seria
provável que o fizéssemos na Inglaterra. Sua resistência evoluiu
juntamente com uma insurreição revolucionária. Os campone
ses confiscaram a terra e os sindicatos se apoderam de inúmeras
fábricas e da maior parte dos meios de transporte”.
Assim, ao mesmo tempo em que resistiam ao golpe fascista,
os trabalhadores punham em prática a reconstrução da socie
dade em novas bases. Em última análise, a luta contra o fascis
mo e a construção do socialismo se confundiam em um único
processo. E quem estava na ftente dessa revolução? Não era
o diminuto Partido Comunista, quase inexpressivo e incondi
cional, embora heróico, defensor da República democrática
pura e simples, com os tradicionais partidos burgueses e a
maior parte do Partido Socialista. Também não era o PSOE
(o partido socialista), igualmente defensor da democracia e
igualmente heróico no combate ao fascismo, dividido com cor
rentes à esquerda e à direita. Também não eram os tiotskistas,
inexpressivos na Espanha quantitativamente, mesmo tendo rea
lizado um m agnífico trabalho teórico,90 apesar das posições
dogmáticas de Trotsky. E, é claro, não poderiam ser os demo
cratas de várias tendências que se unificaram na luta anti
fascista.
Na vanguarda da Revolução Espanhola, os anarquistas
(CNT-FAI) e o Partido Operário de Unificação Marxista
(POUM). Estas duas forças expressavam toda a disposição
dos trabalhadores espanhóis em mudar o curso da luta e, talvez,
LIBERTÁRIOS NO BRASIL;
A organizaç Ao INDEPENDENTE DO PROLETARIADO
Foi, no Brasil, inegavelmente, na curta história do movimento
obreiro, a maior, a mais solene, a mais genuína reunião proletária,
que passará para as páginas sempre rubras desta mesma história,
como um marco, como uma atalaia gigantesca, a descortinar
o Juturo, abrindo caminho largo e reto por onde passa altiva
e heróica a legião proletária em busca dos verdadeiros princípios
humanos: liberdade e justiça, em contradição à tirania e à miséria
da sociedade contemporânea. A realização do Segundo Congresso
foi a demonstração frisante da vontade, da energia proletária,
representada nas organizações de produtores existentes neste vasto
83
cadêmicos,92 como Everardo Dias, Otávio Brandão, Hermínio
Linhares, Edgar Rodrigues, Edgar Leuenroth. Mesmo com to
dos os óbvios limites dos estudos acadêmicos no que diz respei
to à história da classe trabalhadora no Brasil, é inegável que
houve um incontestável avanço e já se tomou possível reunir
material suficiente para pelo menos se esboçar uma trajetória
histórica que foi muito diferente das versões oficiais e tratou-se
de uma história não raras vezes subterrânea, que nada teve
da tranqüilidade dos sindicatos atrelados ao Estado através
do Ministério do Trabalho, atrelamento que permanece até
hoje.
Por outro lado, se isto é verdade em relação ao conjunto
do movimento operário, as dificuldades redobram quando se
trata de pesquisar a presença do anarquismo e do anarcossindi-
calismo no Brasil. Também aqui a própria esquerda tem a
sua parcela de responsabilidade, pois durante várias décadas
aceitou a tese simplista e dogmática de que o anarquismo
e o anarcossindicalismo representavam apenas a infância do
movimento operário brasileiro. Esta foi a tese sempre defendida
pelo Partido Comunista, mas não somente pelo PC. Em seu
conjunto, a totalidade da esquerda embalou-se nesse simplismo,
sem aprofundar tudo o que significava a presença do anarcos
sindicalismo nos primeiros tempos do movimento operário no
país. Esta cortina de silêncio que cobria a participação anar
quista no movimento social brasileiro começa, felizmente, a
ser levantada e já se pode reconstituir uma etapa importante
das lutas operárias, graças a uma série de obras editadas recen
temente, mas, principalmente, pela recuperação de um material
de primeira mão, como a coleção do jomal da Confederação
Operária Brasileira (COB), A Voz do Trabalhador, pela Impren
sa Oficial do Estado de São Paulo, e a revista A Vida, que
se intitulava Periódico Anarquista, esta última organizada pelo
Entre os pioneiros da história das lutas operárias no Brasil encon-
tram»se velhos militantes anarquistas e comunistas, como Everardo Dias,
Edgar Rodrigues, Edgard Leuenroth, Hermínio Linhares, Astrogildo
Pereira, Octâvio Brandão e outros.
84
Centro de Memória Social (CMS) e pelo Arquivo Histórico
do Movimento Operário Brasileiro de Milão, Itália (ASMOB).
Além disso, funciona na Universidade de Campinas (Unicamp),
o Arquivo Edgard Leuenroth, que passou a coletar dados pre
ciosos sobre a história social do Brasil.
Enfim, parece estar se encerrando o período do silêncio
preconceituoso ou mal intencionado e o do simplismo em rela
ção à presença das idéias libertárias no Brasil. Esta nova postu
ra certamente virá favorecer o surgimento de uma visão mais
abrangente que certamente terá as suas conseqüências práticas
no interior dos próprios movimentos sociais brasileiros, espe
cialmente o sindicalismo que ficou anos a fio anestesiado pela
sua vinculação ao Estado através, como nos referimos acima,
do Ministério do Trabalho.
E, sem dúvida alguma, olhando o seu próprio passado,
a sua infância, se quisermos chamar assim, o movimento operá
rio brasileiro encontrará ali virtudes que perdeu no seu desen
volvimento, podendo adquirir um novo vigor, justamente quan
do começa a soltar as amarras que o prendem ao Estado.
Poderá descobrir que, em um tempo que já vai distante, foi
ousado e independente e que o seu ressurgimento em novas
bases, com nova mentalidade, em outra época, tem algo a
ver com o ano de 1906.
Obviamente, não se trata aqui de se realizar um resumo
do movimento operário brasileiro, o que ultrapassaria em muito
os objetivos desta obra. Mas toma-se impossível falar sobre
o anarquismo no Brasil, sem buscar as origens deste movi
mento, já que, na prática, ambos se confundem. Era ainda
nos últimos anos do século passado um movimento operário
incipiente, como primitiva era a indústria em um país que
recém havia abolido a exploração da mão-de-obra escrava.
Em 1890, surge, pelo menos teoricamente, um Partido Operário
Brasileiro, criado pelos socialistas, que durou até 1892, ano
da realização do Primeiro Congresso Operário Brasileiro,
eleição direta para todos os postos eletivos, salário mínimo,
jornada de trabalho de oito horas e proibição ao trabalho para
os menores de 12 anos de idade, mas o Congresso recomendava
85
também a revolução social e afirmava que “a classe trabalha
dora jamais poderá emancipar-se da tutela do capital, sem
que se aproprie dos meios de produção”,93 Em 1902, surge
o célebre Manifesto socialista, o primeiro documento marxista
brasileiro, redigido por Silvério Fontes, ano em que se realizou
em São Paulo, o Congresso Operário Brasileiro. Basicamente
influenciado por imigrantes, principalmente italianos, em meio
a imensas dificuldades (para a classe dominante a questão
social “era um caso de polícia”), começa também a surgir
uma imprensa operária que até o início da década de 20 foi
muito rica e variada, expressando não apenas a visão ideológica
dos primeiros militantes da classe trabalhadora com consciência
de classe, mas também o nível da própria luta de classes no
País. E tanto nos sindicatos, como na imprensa operária, os
anarquistas vão se tomando hegemônicos em relação aos socia
listas de inspiração marxista ou reformista. As greves começa
vam igualmente a fazer parte da vida urbana brasileira, apesar
da repressão. Nessas greves de início do século XX, os maiores
incentivadores eram os trabalhadores imigrantes, de tendência
ideológica libertária, os quais preparavam o período marcante
do anarcossindicalismo brasileiro.
As teses do anarcossindicalismo triunfam plenamente em
1906, no Congresso Operário Brasileiro, realizado no Rio de
Janeiro, que adota o sistema federativo de organização nos
moldes da Confederação Geral dó Trabalho francesa. A Confe
deração Operária Brasileira (COB), porém, só surgirá em 1908
e terá no jomal A Voz do Trabalhador o seu mais eficaz
meio de divulgação e organização, com informações do movi
mento operário de todo o país. A Voz durará de 1908 a 1915
e, relida hoje em edição fac-similar, demonstrará que a chamada
“ infância” do movimento operário no Brasil, pelo menos no
que diz respeito à imprensa, estava bem mais próxima da classe
trabalhadora do que os jornais politizados da esquerda que
ainda circulam hoje em dia.
Antônio Paulo. História do movimento operário no Brasil.
93R E Z E N D E ,
São Paulo, Ática, 1986. p.9-10.
86
Entretanto, além de A Voz do Trabalhador, os libertários
se faziam presentes com outras publicações, das quais as princi
pais foram A Terra Livre, La Battaglia e A Plebe, além da
revista A Vida, cujo primeiro número sairia a 30 de novembro
de 1914.94 E isto para não se mencionar dezenas e dezenas
de publicações locais e jornais elaborados pelos próprios operá
rios em seus sindicatos, exaustivamente mencionados por Her-
mínio Linhares.95
Praticamente toda a imprensa libertária no Brasil dos pri
meiros 20 anos do século XX refletem as concepções anarcos-
sindicalistas da COB, assim descritas por Giuseppina Sferra:
“ ...a primeira contribuição dos anarcossindicalistas para o mo
vimento operário diz respeito à maneira como conceberam as
formas de organização independente dos trabalhadores, reco
nhecendo sua importância como instrumento de sua conscienti
zação de classe. Um de seus maiores méritos é 0 de, entendendo
a importância da organização dos trabalhadores, nela participar,
atuando como parte das manifestações da classe operária, per
mitindo a integração entre militantes e a própria organização
operária. Assim, esta atuação não pode ser vista como exterior
à classe, e não pretendiam os anarcossindicalistas dirigi-la ou
conduzi-la ao caminho da revolução, pois esta continua a ser
uma tarefa da própria classe”.96
A COB realizou, ainda, 0 seu Segundo Congresso, em
setembro de 1913, onde triunfaram plenamente as idéias do
anarcossindicalismo, então plenamente hegemônicas no movi
mento operário brasileiro. Na realidade, a hegemonia do anar
cossindicalismo e das idéias libertárias no movimento operário
só será abalada definitivamente em 1917, com a Revolução
Soviética triunfante, que tem intensa repercussão nos meios
94FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880-1920).
Petrôpolis, V ozes, 1978.
95LINHARES, Hermínio. Contribuição à história das lutas operárias no
Brasil. São Paulo. Aifa-Omega, 1977.
FERRA, Giuseppina. Anarquismo e anarcossindicalismo. São Paulo,
Âtica, 1987. p.85.
87
operários e entre os intelectuais de esquerda no Brasil. Foi
tão grande o impacto da Revolução Russa que mesmo anarquis
tas de primeira linha, como Hélio Negro e Edgard Leuenroth
editaram um pequeno livro com o que eles entendiam ser o
“ maximismo” ou o “bolchevismo”.97 O livro reflete certamente
as posições anarcossindicalistas de ambos, Negro e Leuenroth,
mas traz inequivocamente as esperanças depositadas pela coi>
rente libertária na Revolução Soviética dois anos após o seu
triunfo. Tanto é assim que o subtítulo de O que é o maximismo
ou o bolchevismo é Programa comunista. Aliás, não foi apenas
no Brasil que a Revolução Soviética influenciou os anarquistas.
A magnífica obra de Luigi Fabbri, Ditadura e revolução, com
introdução de Errico Malatesta, mostra que também na Itália
o sucesso dos bolcheviques russos repercutiu intensamente en
tre os anarquistas, possibilitando, inclusive, um avanço nas
próprias concepções libertárias em relação ao processo de revo
lução social. O livro de Fabbri, nesse sentido, não envelheceu
e permanece extremamente atual quando se quer debater a
sociedade pós-revolucionária.
No Brasil, porém, a influência será definitiva. O impacto
da Revolução era poderoso demais para não criar raízes em
um movimento social jovem e que apenas começava a dar
os seus primeiros passos. Assim, será entre os antigos militan
tes anarquistas que o marxismo em sua versão bolchevista
se implantará definitivamente no Brasil, quando em março
de 1922, é fundado o Partido Comunista do Brasil, entre cujos
primeiros integrantes estariam Astrogildo Pereira e Otávio
Brandão, ex-propagandistas intelectuais do anarquismo e das
idéias libertárias. Edgard Leuenroth, porém, não se tomará
jamais um marxista, apesar do encanto e da atração que sobre
ele exerceu a revolução bolchevique. Permanecerá até o fim
um anarquista e em obra posterior revelará a sua desilusão
com o bolchevismo, reafirmando as idéias libertárias que sem
pre defendeu.
^N EG RO , Hélio & LEUENROTH, Edgard. O que é marxismo ou o
bolchevismo. São Paulo, Semente, s/d.
88
A fundação do Partido Comunista, porém, foi um fator
decisivo para o declínio do anarquismo e do anarcossindi-
calismo no Brasil. As tendências libertárias ainda permane
ceriam relativamente influentes no transcurso da década de
20, mas não possuíam mais, longe disso, a hegemonia do movi
mento operário. Na década de 30, em franco declínio, o anar-
cossindicalismo praticamente não tem mais expressão alguma
no movimento social. A hegemonia passa para o PCB, mas
este também encontrará, à sua direita, um obstáculo imenso
e que até hoje não foi transposto por nenhuma tendência da
esquerda em sua tentativa de fusão com o movimento vivo
da classe trabalhadora: o sindicalismo oficialista inaugurado
por Getúlio Vargas após a Revolução de 30.
Apenas agora, nos últimos 10 anos, o movimento da classe
trabalhadora brasileira luta por um sindicalismo livre da tutela
oficial e deu passos significativos nesse sentido, com conquis
tas reais. Ao recuperar sua autonomia e sua própria história,
o sindicalismo brasileiro encontrará, surpreso, em seu passo
remoto, valiosas indicações para a sua afirmação como movi
mento independente: verá na COB os insistentes apelos para
a organização independente das classes trabalhadoras, apelos
que soam com impressionante atualidade.
80
CONCLUSÃO: E HOJE?
Fora do marxismo libertário — uma experiência longa, árdua
e dolorosa já o demonstrou — não existe verdadeiro socialismo•
DANIEL GUÉRIN
A revolução poderá ser feita, repetimo-lo pela milésima vez, com
uma orientação não-anarquista, mas será tanto mais completa
quanto mais anárquica for; e satvar-se-â de um retomo ao passado,
de um salto para trás, isto ê, terá triunfado totalmente apenas
quando tiver proporcionado aos homens toda a liberdade, tomando
impossível qualquer dominação e qualquer ditadura de qualquer
espécie e sob qualquer nome que se esconda.
LUIGI FABBRI
Reitor
Gerhard Jacob
Pró-Reitor de Extensão
Waldomiro Carlos Manfrói
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Abílio Afonso Baeta Neves
Pró-Reitor de Administração
José Serafim Gomes Franco
Pró-Reitor de Planejamento
Edemundo da Rocha Vieira
Pró-Reitor de Assistência
à Comunidade Universitária
Fernando Irajá Félix de Carvalho
Pró-Reitor de Graduação
Darcy Dillenburg
E D IT O R A D A U N IV E R S ID A D E
Diretor
Sergius Gonzaga
C O N S E L H O E D IT O R IA L
Cenas m édicas
(pequena in trodução à história da m edicina) / 1
Moacyr Scliar
Nossos adolescentes / 2
Ronald Pagnoncelli de Souza
Segunda Guerra M undial
(história e relações internaeionais/1931 -4 5 ) / 3
Paulo G. Fagundes Vizentini
H istória e literatura / 4
Flávio Loureiro Chaves
Cultura brasileira (das origens a 1808) / 5
Luiz Roberto Lopez
Cinem a brasileiro (idéias e imagens) / 6
Carlos Diegues
O nazism o (breve história ilustrada) / 7
Voltaire Schilling
Biologia, cultura e evolução / 8
Francisco M. Salzano
Caderno de notas (um repórter na A m érica Latin a) / 9
Eric Nepomuceno
Evolução social do Brasil / 10
Nelson Werneck Sodré
A descoberta da A m érica (que ainda não houve) / 11
Eduardo Galeano
Cultura brasileira (de 1 8 0 8 ao pré-m odernism o) / 12
L u iz Roberto Lopez
O rom ance na A m érica Latin a / 13
Márcia Hoppe Navarro
Guerra d o V ietnam e (descolonização e revolução) / 14
Paulo G. Fagundes Vizentini
O anarquism o (prom essas de liberdade) / 15
Luiz Pilla Vares