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yf}) universitária

síntese

Editora
ô da Universidade
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
O anarquismo
(promessas de liberdade).
A história das idéias anarquistas
ou libertárias está presente
nesta obra, remontando perspectivas
de quase dois séculos, e que ainda
se colocam como assunto presente.
Luiz Pilla Vares traça os vínculos
existentes entre as origens
do anarquismo moderno, a Revolução
Francesa, o marxismo e as demais
teorias socialistas que emergem
na turbulência da queda das monarquias
e o nascimento das repúblicas.
A obra passa por Proudhon
e por Bakunin, vindo até os movimentos
sociais libertários que surgiram
na Europa e nos Estados Unidos.

universitária

Editora
da Universidade
Universidade Federal do Rio Grande do Sul ISBN 85-7025-173-4
O anarquismo
promessas de liberdade

Luiz Pilla Vares

0 Editora
da Universidade
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Síntese universitária/15
© de Luiz Pilla Vares
l! edição: 1988
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Capa: Carla Luzzatto
Ilustração: desenho de Falke para uma capa do Crapouillot, em 1938.
Administração: Maria Beatriz A.B. Galarraga
Editoração: Geraldo F. Huff
Revisão: Maria Isabel Tinun, Haydée Diebold,
Mônica Ballejo Canto e Sandra Gabert Masi
Montagem: Rubens Renato Abreu
A publicação desta obra conta com o patrocínio da Secretaria de Ensino
Superior, através do Programa de Estímulo à Editoração do Trabalho
do Intelectual das IES-Federais.
Composição: K&M — Composição, Arte e Revisão Ltda.
Impressão: Pallotti
Luiz Pilla Vares
Jornalista. Formado em Gências Jurídicas e Sociais. Autor dos livros
Socialismo e liberdade, Porto Alegre, 1985; Glasnost, a primavera
vermelha, Porto Alegre, 1987\Rosa, a vermelha, São Paulo, 1988;
O pescador de pérolas: por um marxismo vivo, Porto Alegre, 1988.

V296a Vares, Luiz Pilla


O anarquismo: promessas de liberdade. — Porto
Alegre : Ed. da Universidade/UFRGS ; MEC/SESu/
PROEDI, 1988.
95p. —.(Série síntese universitária)
1. Anarquismo. 2. Anarquismo — socialismo. 3.
Anarquismo — Revoluções. I. Título. II. Série.

CDU 329.285
329.285 : 329.14
329.285 : 323.272

C atalogação na fonte da B ib lio teca C entral da UFRGS.

ISBN 85-7025-173-4
Para Elizabeth Souza Lobo
e Marco Aurélio Garcia

A obra de Proudhon Que é a propriedade? tem,


para a economia nacional moderna,
a mesma importância que a obra de Siéyès,
O Que é o Terceiro Estado,
para a política moderna.
KARL MARX
Não temos nem desejamos ter habilidades políticas.
A melhor habilidade é sermos sinceros.
HÉLIO NEGRO E EDGARD LEUENROTH
A lição: um socialismo revolucionário
que se liberta do jacobinismo marxista-leninista
corre o sério risco de retomar
às ideologias pequeno-burguesas
e contra-revolucionárias.
Só existe uma forma sã e segura
de desjacobinizar-se, de situar-se devidamente
diante do socialismo autoritário:
unir-se ao socialismo libertário, o único valor
não desvalorizado de nosso tempo,
o único socialism o que permanece jovem ,
o único socialismo autêntico.
DANIEL GUÉRIN
SUM ÁRIO

Pequena introdução à história das idéias libertárias.............. 7


A idéia e os precursores.............................................................. 18
Proudhon: a propriedade é um roubo........................................ 26
Bakunin: a revolta permanente.................................................. 37
Kropotkin, o príncipe anarquista....................................... 5
O anarquismo na prática............................................................. 58
Começa a revolução............................................................... 58
O comunismo dos conselhos: o proletariado russo 64
Espanha: o comunismo libertário.......................................... 73
Libertários no Brasil: a organização independente
do proletariado........................................................................ 82
Conclusão: e hoje?....................................................................... 90
PEQUENA INTRODUÇÃO
À HISTÓRIA DAS IDÉIAS LIBERTÁRIAS

Terá sentido estudarmos hoje, quando estamos quase no


século XXI, as idéias anarquistas ou libertárias? Não será
um mero exercício acadêmico ou algo semelhante ao médico
legista que disseca cadáveres? Pois atinai de contas o anarquis­
mo e/ou as idéias libertárias tiveram sua origem ainda no
século XVni e seu apogeu, sua idade dourada, no século XIX
e nas primeiras décadas do atual. Não penso assim. Ao contrá­
rio, ao longo dos anos, tenho solidificado a opinião de que,
mesmo fora dos compêndios filosóficos, as idéias anarquistas
se projetaram para o futuro e, mesmo com a deliberada intenção
de todas as correntes de pensamento em considerá-las como
a mera “infância” do pensamento socialista, sem nenhuma
atualidade prática nos tempos atuais, exerceram e continuarão
a exercer uma considerável influência nos projetos de transfor­
mação social, particularmente a partir de Maio de 1968, quando
todas as velhas fórmulas clássicas do fenômeno revolucionário
se revelaram insuficientes, ineficazes, para dizer o mínimo.
E, ao contrário, as intuições anarquistas e/ou libertárias acaba­
ram rompendo o bloqueio e revelando-se com uma surpreen­
dente modernidade para o questionamento teórico e prático
da sociedade autoritária.
Assim, perspectivas de quase dois séculos, colocadas con­
tra a parede e “enterradas” pela idolatria estatal da esquerda,
ressurgiram com impressionante atualidade e hoje podemos
falar em Proudhon, Kropotkin, Bakunin, Malatesta, Fabri, na
FAI espanhola, sem nos colocarmos na posição de dissecadoies
de cadáveres e, sim, como estudiosos de um projeto que ficou
7
entre parênteses durante várias décadas e pode hoje ser perfei­
tamente reassumido como contemporâneo de nosso presente.
Certamente, o resgate do anarquismo não pode ser feito em
bloco, como se pretendêssemos dar “vida” ao antigo debate
entre os libertários e os marxistas. Em primeiro lugar, porque
o anarquismo, se tem uma história e uma “ árvore genealógica”,
não é uma “ doutrina” sem contradições, fechada. Ao contrário:
tem muitas faces e caminhos, teóricos e práticos. E, da mesma
forma como o marxismo, muitas de suas propostas realmente
envelheceram e ficaram sepultadas em seu século. Outras, po­
rém, renasceram, assumiram um novo vigor e apresentam-se
diante de nosso tempo, teórica e praticamente, como um desa­
fio. Desafio, aliás, que a humanidade vem se propondo desde
os seus primórdios. Ou, para sermos mais precisos, quando
0 Estado e a propriedade privada entraram na cena da história.
Assim, poderíamos fazer como George Woodcock, uma árvore
genealógica do anarquismo que remontasse à infância da histó­
ria,1 mas uma empreitada desse tipo ultrapassaria em muito
os limites deste trabalho, que não é mais do que uma pequena
introdução às idéias libertárias. E, é claro, quando falamos
em introdução às idéias, não pensamos na construção mera­
mente abstrata, mas na vinculação do pensamento anarquista
com a sua prática, o que significa, em última análise, ao seu
desafio proposto aos homens e mulheres: a luta concreta pela
liberdade e a igualdade. E isso começa, verdadeiramente, com
a Grande Revolução Francesa de 1789. Iniciemos, pois, nosso
trabalho pelo significado da Revolução Francesa que derrubou
em poucos anos uma ordem estabelecida várias vezes milenar,
destruindo um tipo específico de propriedade e uma forma
particular de Estado, proclamando e prometendo à humanidade
a liberdade e a igualdade.
Costuma caracterizar-se a Revolução de 1789 como bur­
guesa. Burguesa foi a sociedade que dela emergiu. Havia uma
série de forças sociais empenhadas na derrubada do absolutismo
1 WOODCOCK, George. A idéia. In: Anarquismo: uma história das idéias
e movimentos libertários. Porto Alegre, L&PM, 1983. v .l. p.31-50.

8
e da monarquia, na destruição do modo de produção feudal.
Assim, Pedro Kropotkin, o grande pensador anarquista, vê
a revolução burguesa como um freio às suas características
essencialmente plebéias2 e o marxista libertário Daniel Guérin
concebe o processo da Revolução Francesa como permanente,
tomando-se burguês apenas na medida em que o conteúdo
plebeu que pretende levar a revolução além de seus limites
burgueses é reprimido.3
Detenhamo-nos um pouco sobre esta questão, pois tudo
começa aí. A 14 de julho de 1789 caía a Bastilha, símbolo
da autocracia e do absolutismo. Símbolo do poder feudal e
do obscurantismo na França. Daí à derrubada da monarquia
de Luiz XVI e à proclamação da República ainda demorou
algum tempo. No entanto, o 14 de julho é efetivamente o
marco referencial da Revolução Francesa. Não o seu início,
pois este é difícil de precisar cronologicamente, na medida
em que as massas da cidade e do campo já estavam em movi­
mento há muito tempo, antes da queda da Bastilha, e a própria
convocação, pelo monarca, dos Estados Gerais foi um elemento
fundamental no processo revolucionário. A Bastilha caiu justa­
mente porque a Grande Revolução estava em marcha e nenhuma
força tinha condições para detê-la naquelas circunstâncias his­
tóricas. Os conservadores, incapazes de compreender a lógica
da história, lamentam-se: se Luiz XVI fosse mais duro... Esque­
cem-se que ele era o próprio tipo que simbolizava a decadência
da aristocracia e do feudalismo. Ou seja, se não fosse Luiz
XVI, seria outro rei, igualmente impotente diante do momento
que impugnava historicamente o velho regime. É certo que
os indivíduos imprimem a sua marca nos processos históricos,
mas só o fazem, positiva ou negativamente, se agem de acordo
com o seu tempo. E 1789 não era mais a época dos senhores
^KROPOTKIN, Pierre, A grande revolução (1789-1793). Salvador, Pro-
gresso, 1955. 2v.
^GUÊRIN, Daniel. A luta de classes em França na primeira república
(1 7 Q 3 -1 7 Q 5 ). L is b o a , A R eg ra do Jo g o , 1977.

9
feudais e muito menos da monarquia absoluta. A burguesia
e a plebe entravam no cenário histórico. E agora seriam os
Robespieire, os Marat, os Danton, os Saint-Just, os Babeuf
e tantos outros que personificavam a nova era. Tomavam-se,
eles e a plebe, os atores, mas também os autores da história,
a tal ponto que ainda hoje a Grande Revolução Francesa e
os movimentos sociais que a realizaram significam muito nos
dias atuais. As lições que eles proporcionam, participando e
mudando uma época histórica inteira, vão continuar atraves­
sando os tempos, isto é, a Revolução Francesa permanece
viva quase dois séculos depois da tomada da Bastilha pelo
povo revolucionário.
Naquele 14 de julho, o dia despontou agitado. A plebe
se preparava para o assalto à Bastilha, aquele centro de horrores
e desprezo ao ser humano (e quantas Bastilhas ainda existem
espalhadas pelo mundo contemporâneo) e certamente sabia
que o velho regime estava chegando ao fim. Aquele dia, em
1789, era o dobre de finados. A plebe parisiense e os deserda­
dos de todos os tipos que começaram a se concentrar na saída
dos subúrbios e nos cafés estavam certos de que os privilégios
dos aristocratas agonizavam e que um novo mundo estava
por nascer. Mas o que viria depois?
Isso os plebeus franceses não sabiam. Ou melhor, sabiam
o que queriam: a democracia igualitária, o fim da opressão,
o domínio do povo — a Nação — e, mais adiante, a República:
queriam Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O que os ple­
beus, os pobres de Paris, não sabiam é que as revoluções
triunfantes acabam percorrendo caminhos diferentes dos que
estavam traçados nas consciências mais avançadas e revolucio­
nárias. Na verdade, a Revolução Francesa, antes de ser burgue­
sa, foi radicalmente plebéia.4 O que o povo revolucionário
não poderia imaginar naquele 14 de julho, quando a Bastilha
já havia caído e sonhava-se com a imediata instauração de
^GUÊRIN, DanieL La Revohción Francesa y nosotros. Madri, Villalar,
1977.
10
um regime de liberdade, igualdade e fraternidade, é que, em
seguida, viriam o Terror, o Termidor, Napoleão Bonaparte,
a Restauração, para que o processo revolucionário completasse
o seu curso. E, como prometeu, só fosse retomá-lo meio século
depois, em 1848. Ou seja, a sonhada liberdade radical e comple­
ta, o império da razão, o entendimento entre os homens e
uma nova era de fraternidade, enfim todos os grandes ideais
que formavam a consciência da Revolução, acabaram se redu­
zindo às liberdades burguesas, à liberdade político formal, à
igualdade meramente jurídica entre os homens. A igualdade
real, concreta, havia sido apenas um sonho?
Na verdade, por um breve período de tempo, a plebe esteve
efetivamente com o poder em suas mãos. Robespierre e os
seus — os Jacobinos — apenas em parte representaram este
poder que estava nas ruas e nas comunas, o poder dos “braços
nus”, o poder dos sans-cullottes. Este aspecto da Grande Revo­
lução raramente é salientado pelos historiadores, cuja maior
parte insiste em identificar, sem fissuras, o jacobinismo com
a plebe revolucionária. Penso que apenas Pedro Kropotkin e
Daniel Guérin, entre os grandes historiadores da Revolução
Francesa, fazem esta separação necessária. Os jacobinos eram,
realmente, a facção mais decidida e mais radical da burguesia
revolucionária. Eram, sob certos aspectos, sensíveis às reivindi­
cações da plebe. Mas constituíam, ao mesmo tempo, um freio
ao domínio plebeu. E quando chegou Napoleão, após o Termi­
dor que encerrou a dominação jacobina, o rumo tomado pela
Grande Revolução já era bem diferente daquele clima que
tomou conta das ruas de Paris e se espalhou pelas províncias
em 14 de julho de 1789.
E a Revolução Francesa, como a Russa, mais de um século
depois, deixa a interrogação: será que todas as revoluções
acabam encontrando o seu Termidor?
Esta pergunta tem sido colocada várias vezes, sem que
se chegue a um acordo, desde o advento de Napoleão Bona­
parte. E recuando ainda mais no tempo: desde que Spartacus
e seus escravos foram esmagados com seus sonhos de uma
república comunista dos oprimidos, pelo imperialismo romano.
11
Mas uma pergunta os historiadores não fazem: e se o curso
tomado tivesse sido outro? Se a plebe permanecesse em seu
posto e, ao invés do Termidor contra-revolucionário preparar
o caminho para Napoleão Bonaparte, tivessem os pobres de
Paris aplainado a estrada para a Conspiração dos Iguais de
Babeuf e Buonarrotti?5
Não se trata, apenas, de buscar a “versão dos vencidos”,
mas de tentarmos pensar as possibilidades contidas na história,
de um outro curso que não o acontecido: a possibilidade que
nos fala Walter Benjamin.6 O certo é que a Revolução Francesa
foi um divisor de águas. Assim, Woodcock salienta que “na
Revolução Francesa, o choque entre as duas tendências —
libertária e autoritária — era evidente e em certas ocasiões
chegava a assumir formas violentas...” Tal como Kropotkin,
também percebemos que durante esse período surgiram algumas
das idéias que se transformariam no anarquismo do século
XIX. Condorcet, um dos cérebros mais fecundos da época,
que acreditava no progresso infinito do homem rumo a uma
sociedade sem classes, enquanto se escondia dos jacobinos,
já havia anunciado a idéia da mutualité, que viria a ser um
dos pilares do anarquismo de Proudhon. Condorcet concebeu
um grande plano de ajuda mútua, que reuniria todos os operá­
rios para salvá-los dos perigos das crises econômicas, durante
as quais eram normalmente obrigados a vender seu trabalho
em troca de salários de fome. O outro pilar do anarquismo
proudhoniano era o federalismo, objeto de muitas discussões
e experiências durante a Revolução. E enquanto a Comuna
de Paris veria na criação da República Federal, em 1871, um
meio de salvar Paris de uma França reacionária, os girondinos
imaginavam que ela poderia salvar a França de uma Paris
jacobina. Um tipo mais autêntico de federalismo social surgiu
'’VARES, Luiz Pilla. O 14 de julho. Zero Hora, Porto Alegre, 14 jul.
1986. p.4.
^BENJAMIN, W alter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política,
São Paulo, Brasiliense, 1985. p.222-32.

12
então entre as várias instituições revolucionárias semi-espon-
tâneas da época, primeiro nos “distritos” ou “seções” em
que fora dividida a capital para fins eleitorais, dando origem
à Comuna de Paris, e depois na rede de Sociedades Populares
e Irmandades, assim como nos comitês revolucionários que
aos poucos iam tomando o lugar das seções, à medida que
estas se tomavam órgãos políticos subordinados, dominados
pelos jacobinos... Kropotkin vê nesse tipo de organização uma
expressão primitiva dos princípios do anarquismo e conclui
que esses princípios não são fiuto de especulações teóricas
mas de atos da Grande Revolução Francesa.7 Woodcock, po­
rém, vê um certo exagero do pensador anarquista, uma ânsia
de provar as origens populares de seu pensamento e acrescenta
que o que Kropotkin “não chega a perceber é o fato de que
o direito de legislar continua existindo, mesmo que apenas
ao nível de assembléias gerais; o povo govema. Assim, deve­
mos considerar esse período revolucionário como uma tentativa
de estabelecer não a anarquia, mas a democracia direta. Entre­
tanto, ainda que não fosse anarquista na verdadeira acepção
do termo — tal como sua sucessora em 1871 — a Comuna
era federalista e nisto ela antecipou Proudhon, ao criar um
esboço, um modelo tosco do tipo de estrutura prática na qual,
segundo ele julgava, seria possível desenvolver uma sociedade
anarquista”.8
Entretanto, se as críticas de Woodcock são pertinentes,
não é menos verdade que havia um embrião de anarquismo
na Grande Revolução e este se encontrava entre Jacques Roux,
Jean Variet e os Enragés, os quais se uniam na recusa às
idéias jacobinas sobre a autoridade do Estado, defendendo
a tese de que o povo deve exercer a ação direta e propondo
medidas econômicas comunistas como o único caminho para
acabar com os sofrimentos dos pobres.
Assim, é certo que já na Revolução Francesa estavam
em conflito as concepções libertárias e autoritárias do processo
7 WOODCOCK, George. Op. cit. p.45-6.
^Idem, ibidem.
13
revolucionário. O pensador polonês Leszek Kolakowsky tem
dado inequívocas contribuições no plano teórico, ao desnudar
os regimes totalitários. Seus escritos trazem, apesar do saudá­
vel ceticismo de que estão impregnados, uma lúcida tomada
de posição em favor da liberdade. No entanto, Kolakowsky,
em sua paixão pela liberdade, acaba fazendo uma indevida
crítica ao pensamento revolucionário, ao identificar de maneira
um tanto simplista o espírito revolucionário com o autorita­
rismo, o que nem sempre é correto. Em primeiro lugar, o
chamado espírito revolucionário não pode ser analisado em
si mesmo, abstratamente, desligado de sua época e das condi­
ções que o engendram. Ou seja, o espírito revolucionário é
fundamentalmente prático, não especulativo, e só tem sentido
se vinculado à ação, que & sua essência, seu próprio conteúdo
e sua razão de ser.
Toda época revolucionária possui, assim, o seu próprio
espírito, que se nutre da realidade na qual está imerso. “ A
coruja de Minerva só levanta vôo ao anoitecer” , dizia Hegel.
E isto vale também para as épocas revolucionárias. Desta for­
ma, as épocas de revolução geram o seu próprio pensamento
revolucionário que não pode ser considerado como um bloco
monolítico, sem tendências, sem fissuras. Como vimos, já na
Revolução Francesa coexistiam correntes libertárias, descentra-
lizadoras e comunalistas, com correntes autoritárias e centrali­
zadoras, as quais, por sua vez, igualmente possuíam tendências
diversas e, até mesmo, conflitantes.
Portanto, é possível conceber a Revolução Francesa como
de essência nitidamente libertária em contraposição ao absolu­
tismo monárquico. Não obstante, essa essência libertária da
Revolução Francesa acaba gerando o autoritarismo jacobino
que, teoricamente, propõe-se a levar o processo revolucionário
às últimas conseqüências. Mas, ao geral, o jacobinismo como
uma de suas vanguardas — a principal — a própria Revolução
nega a sua essência libertária e alguns de seus postulados
teóricos, preparando, durante o terror, o caminho para o domí­
nio ditatorial de Napoleão Bonaparte.
14
No século XIX, com o advento do movimento operário,
refletem-se os conflitos entre as tendências autoritárias e liber­
tárias no interior das teorias socialistas que procuravam expres­
sar o conteúdo deste mesmo movimento. A começar, por exem­
plo, pelo próprio Proudhon. Com efeito, o autor de Que é
a propriedade? e Filosofia da miséria elaborou um pensamento
em seu conjunto nitidamente libertário, podendo, com justa
razão, ser considerado por Daniel Guérin, entre outros, como
um legítimo precursor da teoria da autogestão, tão discutida
hoje em dia. Entretanto, se ê verdade que Proudhon é, em
essência, um libertário, contestador implacável de qualquer
foima de Governo e de Estado, não é menos verdade que,
quando se propõe a analisar a família e o papel da mulher,
revela-se um empedernido reacionário.
Também na polêmica que, pela primeira vez, causou uma
grande divisão entre os socialistas, Bakunin, o mais famoso
representante do pensamento anarquista, acusou Karl Marx
de autoritarismo. Por outro lado, Marx e Engels não cansaram
de condenar os métodos de Bakunin, que, através de uma
aliança secreta — a “ Aliança da Democracia Socialista” —,
procurava dominar a Associação Internacional dos Trabalha­
dores (AIT), a Primeira Internacional. Na realidade, ainda está
para ser feita uma verdadeira análise desta polêmica, cujo
eco ainda é perfeitamente perceptível hoje em dia. Bakunin
tem razão em apontar aqui e ali tendências autoritárias no
pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels, mas esconde,
às vezes deliberadamente, as tendências libertárias que perpas­
sam o pensamento marxista. É inegável, porém, que também
Marx e Engels, em uma série de apreciações que fazem sobre
Mikhail Bakunin, distorcem o seu pensamento, na medida em
que suas idéias demonstram, com o passar dos anos, um imenso
^GUÉRIN, Daniel. L ’anarchisme. Paris, Gallimard, 1965. p.68. E também:
GURVITCH, George. Proudhon e Marx. Lisboa, Presença, 1980. p.127.;
MOTTA, Fernando C. Prestes. Burocracia e autogestão; a proposta de
Proudhon. São Paulo, Brasiliense, 1981.; BANCAL, Jean, PTOUdhOTtt p[ura~
lismo e autogestão. Brasília, Novos Tempos, 1984.

15
vigor, especialmente no que diz respeito ao perigo de um
Estado altamente centralizado, com o rótulo de socialista, sufo­
car a liberdade e a iniciativa de milhões de trabalhadores.
O antagonismo entre os libertários e os autoritários se
projetou para o tempo e acabou por cindir de forma até agora
irremediável os socialistas, com o advento da Rússia sob o
domínio bolchevique, ao qual os anarquistas chegaram a simpa­
tizar durante algum tempo. E, ainda mais funda ficou a fissura
com o surgimento do stalinismo, o qual, se é verdade que
complementa certas tendências inerentes à teoria de Lênin,
por outro lado, aniquila certas virtudes inegáveis contidas no
“leninismo”. Hoje, com as revoluções no mundo subdesen­
volvido, periférico e colonial, assim como o impasse verificado
nos países industrializados, o debate está readquirindo atuali­
dade prática, especialmente após o Maio de 1968, pois estamos
diante de acontecimentos vivos, que se passam diante de nossos
olhos e que, de uma ou de outra forma, envolvem-nos. Assim,
se a revolução dos países coloniais e dependentes parece de­
sembocar sempre em regimes de feições altamente autoritárias,
nos países desenvolvidos criam-se tendências de cunho nitida­
mente oposto, libertárias em essência.
O certo é que a questão não é simples, nem pode ser
resolvida de forma mecânica e dogmática, o que, no entanto,
parece ser a tendência de tantos revolucionários, obstinados
por sua própria natureza. Em todo o caso, o problema teórico
não é para ser solucionado no terreno especulativo, pois a
revolução, em si mesma, é um ato autoritário que se dá na
prática, na vida real e concreta das sociedades. No entanto,
ao realizar-se ela gera dois movimentos contraditórios: um
que tende a perpetuá-la como ato autoritário, instituciona-
lizando-a justamente nesse aspecto. O outro movimento vai
em sentido inverso: busca soltar as virtualidades contidas no
processo e que têm, como seu conteúdo básico, a ampliação
do espaço para a liberdade humana. E, ao que parece, apesar
de tudo, é este segundo aspecto, o libertário, que está se
afirmando, pois quando a humanidade se coloca uma questão
16
desse tipo é porque as condições para a sua solução já estão
dadas, embora as revoluções do século XX tenham devorado
vorazmente as suas chamas libertárias, estas teimam em renas­
cer, cada vez com mais ímpeto.

17
A ID ÉIA E OS PRECURSORES
Para os anarquistas, de todos os preconceitos que cegam o homem
desde a origem dos tempos, o mais fimesto é o do Estado,
DANIEL GUÉRIN

Vimos os vínculos existentes entre as origens do anarquis­


mo moderno e a Grande Revolução Francesa. Estes vínculos
também existem entre o marxismo e as demais teorias socia­
listas que emergem na turbulência da queda da monarquia
e o nascimento da República. Mas, tal como o marxismo,
as idéias anarquistas vão se desenvolver em íntima ligação
com o desenvolvimento do movimento operário que nasce para­
lelamente à burguesia e ao modo de produção capitalista. E
tal como as primeiras idéias socialistas do século XIX, também
as anarquistas se revestem de um invólucro idealista, não raras
vezes ingênuo. Entretanto, desde o seu início os traços do
anarquismo são difíceis de definir. “ Seus mestres quase nunca
condensaram seu pensamento em tratados sistemáticos... Além
disso, existem várias espécies de anarquismo. E muitas varia­
ções no pensamento de cada um dos maiores libertários”.10
Assim, é preciso fazer a ressalva de que o pensamento libertário
é muito mais complexo em sua diversidade e que é praticamente
impossível traçar com segurança uma evolução linear, com
suas divisões e subdivisões, tal como se faz em relação ao
socialismo de inspiração marxista. É preciso não esquecer o
fato de que o próprio Bakunin, por mais de uma vez, se reivindi­
cou de Marx e do materialismo histórico, e que um de seus
m ais p r ó x im o s s e g u id o r e s , o ita lia n o C a r io C a fie r o , fo i o a u to r

^G U É R IN , Daniel. Uanarch isme. Op. cit. p.5.

18
de um dos primeiros resumos para a vulgarização do primeiro
tomo de O capital. “ Não nos tomemos chefes de uma nova
religião”, escreveu Proudhon a Karl Marx. E esse antidogma-
tismo que perpassa todo o pensamento socialista libertário
não ajuda a simplificar, o que é o objetivo desta pequena
introdução. Mas há, evidentemente, uma trajetória comum,
que se poderia resumir na concepção socialista ou comunista
da sociedade e, fundamentalmente, no combate sem tréguas
a qualquer forma de Estado. E é nesse sentido que procura­
remos trazer ao debate esse instigante pensamento que sempre
é dado como coisa do passado e sempre retoma atualidade
quando o questionamento da sociedade passa da teoria à práti­
ca. Na verdade, os problemas colocados pelos grandes pensado­
res socialistas libertários, longe de terem sido sepultados pelo
tempo, renovam-se e persistem como fascinantes interrogações
por todos aqueles que se preocupam com o homem e seu
destino planetário. Além disso, os libertários estiveram presen­
tes em todas as grandes comoções sociais desde o século
XIX, na Comuna de 1871, na Revolução Russa e em seus
soviets de 1917, na Alemanha e na Itália em 1918, na Espanha
de 1936 e em Maio de 1968. No Brasil, é preciso não esquecer,
o movimento operário foi em primeiro lugar libertário, anarcos-
sindicalista, e a velha COB — a Confederação Operária Brasi­
leira —tem ainda muito a ensinar a um sindicalismo que apenas
agora começa a se libertar das tutelas do Estado e de uma
legislação corporativista e de inspiração fascista.11
Vejamos então o que é o anarquismo, palavra antiga, mile­
nar, que vem da Grécia, composta de “an” e ''arkhê”, signifi­
cando ausência de autoridade ou de governo. No excelente
Dicionário do pensamento marxista, editado por Tom Bottomo-
re, o verbete anarquismo aparece definido como “a doutrina
e o movimento que rejeita o princípio da autoridade política
11A Voz do Trabalhador, jornal que circulou de 1908 a 1915, era o
órgão central da COB. A Imprensa Oficial do Estado de São Paulo
ed itou, em 1985, uma coleção fac-similar do jornal da COB, com um
prefácio do historiador Paulo Sérgio Pinheiro.

19
e sustenta que a ordem social é possível e desejável sem esta
mesma autoridade”.12 Mas os anarquistas estão muito longe
de pretenderem um caos permanente. Ao contrário. Proudhon,
por exemplo, que apesar das aparências é mais um construtor
do que um destruidor, entendia a anarquia como o avesso
da desordem e do caos. Para ele, o governo é o fator da
desordem. Entretanto, tanto ele como o seu principal discípulo,
o russo Mikhail Bakunin, entendiam a palavra em seu duplo
sentido, ao mesmo tempo a mais formidável das desordens,
a desorganização mais absoluta da sociedade, isto é, a revolu­
ção e, paralelamente, a reconstrução, a formação de uma nova
ordem, estável e racional, baseada na liberdade e na solidarie­
dade, como acentua Daniel Guérin.13
Mas muito antes de Proudhon e Bakunin (em um livro
a meu ver com muitos equívocos, entre os quais o de tratar
o anarquismo como sucessor do liberalismo, quando penso
que se trata, apesar da preservação do indivíduo e do individua­
lismo, da negação prática e teórica do liberalismo) Henri Arvon
tem o mérito indiscutível de esboçar uma breve história do
anarquismo, inidando-a com o inglês William Godwin.14
Também no Dicionário do pensamento marxista, de Botto-
more, William Godwin ê apresentado como o autor da “primei­
ra exposição sistemática do anarquismo”.1S Em sua monumen­
tal História do pensamento socialista, o britânico G.D.H. Cole
destaca a obra de Godwin, Enquiry into political justice (1793),
como anarquista: “O ideal que Godwin apresenta é o de que
a humanidade deve começar a prescindir de todas as formas
de governo e a confiar por completo na boa vontade espontânea
e no sentido de justiça de cada homem, guiado pela norma
i^BOTTOMORE, Tom (org.). A dictionary o f marxist thought, Cambridge,
Harvard, 1983. p.18.
^GUÉRIN, Daniel. V anarchisme. Op. cit. p.14.
14ARVON, Henri. História breve do anarquismo, Lisboa, Verbo, 1966.
^BOTTOMORE, Tom (org.). A dictionary o f marxist thought. Op. cit.
p .18.

20
final da razão. Acreditava na razão como guia infalível para
a verdade e o bem, presente em todos os homens, embora
obscurecida nas sociedades atuais por convenções irracionais
e práticas coercitivas. Verdadeiro discípulo do século XVIII,
o Século das luzes, acreditava totalmente na perfectibilidade
da raça humana, não no sentido de que os homens chegassem
alguma vez a ser perfeitos, porém no de um contínuo e infinito
avanço para uma racionalidade superior e um aumento de bem-
estar... Sua doutrina era a de um puro comunismo no gozo
dos frutos da natureza e do trabalho do homem sobre o propor­
cionado pela natureza”.16 Godwin, porém, como salienta Cole,
não era apenas um filho do Século das luzes, do Iluminismo,
mas, também, dos puritanos ingleses. Ele nasceu em Wisbeach,
em 1756, filho de um pastor e destinado também ele a se
tomar um pregador religioso, profundamente influenciado pelo
calvinismo, sendo nomeado pastor em 1778 em Ware. Seu
biógrafo, Henri Roussin, acentua-lhe a retidão de caráter. E,
talvez, seja justamente esta retidão de caráter que lhe faz
descobrir na leitura de Rousseau, Mably e Helvetius as verda­
des de seu século, abalando-lhe definitivamente a fé calvinista
e abandonando as funções religiosas em 1782, quando parte
para Londres, onde se coloca na ala esquerda do partido Whig
(liberal). O ano, porém, que marca decisivamente sua vida
é o da Revolução Francesa, 1789. O próprio Godwin conta:
“ Era o ano da Revolução Francesa! O meu coração batia forte­
mente ao compasso do sentimento e da liberdade. Li, com
grande satisfação, as obras de Rousseau, de Helvetius e de
outros escritores franceses. Observei neles um sistema mais
geral, e mais simplesmente filosófico, do que na maioria dos
autores ingleses que abordavam os mesmos assuntos. E fiquei
com grandes esperanças numa revolução, de que aqueles escri­
tores tinham sido os precursores”.17 E é esse entusiasmo pela
l6COLE, G.D.H. Los precursores (1789-1850). In: Historia dei pensamiento
socialista. México, Fondo de Cultura Econômica, 1974. v .l. p.32.
17ARVON, Henri. Op. cit. p.31.
21
Revolução que leva Godwin a escrever sua obra que leva
o pomposo título de An inquiry concerning political justice
and its influence on general virtue and happiness (Um inquérito
acerca da justiça política e da sua influência na virtude e
na felicidade humanas) ou, simplesmente Enquiry into political
justice, como ficou conhecida. As teses de William Godwin,
hoje quase esquecidas, tiveram grande repercussão em sua épo­
ca. Malthus, por exemplo, escreveu o seu Ensaio sobre o
princípio da população como uma resposta a Godwin e, em
1794, os poetas Southey, Coleridge e Wordsworth pretendiam
ir para os Estados Unidos a fim de fundarem ali uma sociedade
aos moldes da preconizada por Godwin. Algumas de suas idéias
influenciaram Robert Owen e suas cooperativas socialistas,
que tiveram posteriormente um papel fundamental na formação
do socialismo inglês e no próprio marxismo. Owen é conside­
rado, juntamente com os franceses Saint-Simon e Fourier, por
Marx e Engels como um dos três mais importantes “ socialistas
utópicos” que teriam uma influência decisiva para o surgimento
do “socialismo científico”. Mas a influência e a “ glória” de
Godwin eram restritas a um público leitor liberal e avançado
para uma Inglaterra conservadora, cuja classe dominante abo­
minava a sua obra. Aliás, e ele certamente não é o único
nesse aspecto, alguns fatos de sua vida pessoal entram em
contradição com sua obra. Veemente inimigo do casamento,
que considerava “ a pior das leis” e a “pior das propriedades” ,
casou-se secretamente com Mary Woolstonekraft, em 1797.
Teve ainda um segundo matrimônio em 1801. Acérrimo inimigo
dos preconceitos, não aceitou, porém, o romance do poeta
Shelley com sua filha Mary, proibindo aos amantes que fre­
qüentassem a sua casa. Morreu pobre em 1836, como um peque­
no funcionário de um ministro, triste fim para quem um dia
abalara mentes jovens, depositando as maiores esperanças num
mundo novo.
Outro precursor do anarquismo é. sem dúvida alguma, o
alemão Max Stimer, cujo nome verdadeiro era Johann Caspar
18Idern, ibidem. p.43.

22
Schmidt, nascido na Baviera em 1806. Foi, como todos os
jovens alemães universitários de sua época, fortemente influen­
ciado por Hegel, a cujos cursos assistiu. Mas, ao contrário
de seu mestre, voltou-se desde logo contra o Estado, afirmando
que “ somos ambos, o Estado e eu, inimigos” e que “todo
Estado é uma tirania, seja a tirania de um só ou de vários”.
Stimer pertencia ao círculo dos chamados jovens hegelianos
ou a esquerda hegeliana, da qual aproximou-se Karl Marx,
mas logo tomou-a objeto de suas críticas ferinas e demolidoras,
das quais Stimer não escapou. Sua principal obra, O único
e sua propriedade (1844) surge em um momento no qual 0
movimento operário já afirmava a sua autonomia e o marxismo
estava em processo de elaboração. Proudhon já pontificava
como teórico do socialismo francês, que tanto impressionara
— e influenciara — Marx e Engels. Ocorre, porém, que Stimer
em O único e sua propriedade leva ao extremo aquele anarquis­
mo individualista, desvinculado da luta de classes real e a
sua revolta não é uma revolta social. Antes é a revolta do
“ eu” , a consciência do “único”. Stimer afirma: “ Nós vencere­
mos a opressão, mas só na medida em que verificarmos que
esses poderes refiram a sua força, única e simplesmente, da
ignorância em que nos mantemos do nosso papel de criadores
absolutos e soberanos”. Daniel Guérin, que curiosamente não
menciona William Godwin, começa a sua cativante Antologia
do anarquismo, intitulada Ni Dieu, ni maître (Nem Deus, nem
senhor), justamente por Max Stimer, definindo-o como um
“ revoltado solitário”.19 A originalidade de Stimer é a de reabi­
litar o indivíduo numa época e num cenário —a intelectualidade
alemã da primeira metade do século XIX — extremamente
antiindividualista, pendendo para as tendências socializantes
que surgiam da esquerda hegeliana, onde pontificava principal­
mente Bruno Bauer. Cole, porém, vê um certo parentesco
entre as idéias de Stimer e as de Fichte na ênfase colocada

19GUÉRIN, Daniel. N i Dieu, Ni Maître: anthologie de Vanarchisme, Paris,


Maspero, 1980. p.9.

23.
na racionalidade do espírito humano individual.20 Não seria
exagero afirmar que o anarquismo individualista de Max Stimer
antecipa algumas das teses que viriam a ser defendidas, com
muito mais beleza e profundidade, anos mais tarde por outro
alemão: Nietzsche. Das posições filosóficas de Max Stimer,
porém, não poderia ganhar consciência qualquer movimento
social e não foi apenas de Marx e Engels que ele recebeu
uma crítica demolidora. Também Proudhon criticou a “ adora­
ção stiraeana do indivíduo” . Mas, se isso é verdade, não
é menos certo que ao desmistificar o Estado e a moral burguesa,
Stimer lançou as bases da teoria anarquista.
A verdade é que Stimer, hoje, é um nome pouco mencio­
nado, tanto na história do pensamento socialista, o que seria
natural dado o seu exacerbado individualismo, quanto na histó­
ria da filosofia, o que, de certa forma, é injusto, pois sua
obra teve um papel antecipador em vários aspectos, inclusive
da psicanálise. Era um homem de paradoxos. Individualista
extremado, seu único luxo era o fumo e aceitou de bom grado
o pseudônimo de Stimer, em razão de sua enorme fronte {stirn
em alemão significa testa). Arvon conta o seu triste final
de vida: “O esquecimento e, em breve, a miséria atormenta­
ram-no e acabaram por entenrá-lo vivo. Com suas últimas eco­
nomias, o filósofo tentou entrar em negócios e abriu uma
leiteria. Mas se o recolhimento do leite era fácil, custava muito
mais vendê-lo. A falência reduziu-o à extrema miséria. Tentou
ainda captar o favor do público com algumas traduções e
compilações. Mas em vão. Em 1853, a sociedade lembrou-se
dele, mas para o mandar duas vezes para a cadeia. Nem mesmo
na morte escapou ao ridículo. Uma mosca envenenada picou-o
na nuca e venceu a resistência do único. O Registro Civil
anota secamente acerca de seu falecimento, ocorrido em 1856:
Nem mãe, nem mulher, nem filhos”.21
Assim, com o desaparecimento de William Godwin e Max
Stimer, desaparecem também aquelas idéias precursoras do
20COLE, G.D.H. Op. cit. pJ225.
21ARVON, Henri. Op. cit. p.42.
24
anarquismo desvinculadas do novo movimento social que já
começava a se afirmar, sepultadas as ilusões nas promessas
liberais da Grande Revolução Francesa. A liberdade, a igual­
dade e fraternidade se fragmentavam diante do muro erguido
pela burguesia, a nova classe dominante, com o seu modo
de produção capitalista e o seu estado. O novo movimento
social não era mais simplesmente plebeu como nas grandes
jornadas de 1789. Entrava em cena o movimento operário
vivo, com reivindicações próprias, afirmando-se a cada passo.
E as idéias dos precursores teriam de ceder lugar àqueles pensa­
dores que procuravam tirar as conclusões necessárias das novas
lutas de classe. E entre estes ocuparam os primeiros lugares,
antes do marxismo se afirmar, os socialistas anarquistas, os
libertários. Começa uma nova era na longa história das lutas
sociais da humanidade.

25
PROUDHON: A PROPRIEDADE É UM ROUBO
Alguns ensinam que a propriedade é um direito civil originado
da ocupação e sancionado pela lei; outros sustentam que é um
direito natural, tendo sua fonte no trabalho: e essas doutrinas,
por opostas que pareçam são fomentadas, aplaudidas. Sustento
que nem o trabalho, nem a ocupação, nem a lei podem criar
a propriedade; ela é um efeito sem causa; deverei ser repreendido
por isso?
PIERRE-JOSEPH PROUDHON

Agora as idéias de liberdade, igualdade e fraternidade pas­


savam para o lado da classe operária, dos trabalhadores, e
deixavam de ser uma questão meramente teórica para se tomar
uma reivindicação eminentemente prática. E, a rigor, é aqui
que começa verdadeiramente o anarquismo, como tendência
atuante e viva no movimento operário, disputando com os
“ autoritários” reformistas ou não, a defesa do verdadeiro socia­
lismo. E o primeiro — e um dos mais importantes —represen­
tantes da tendênda anarquista é, sem dúvida alguma, Pierre-Jo-
seph Proudhon, que iria marcar, com sua imensa e discutida
obra, o pensamento e a ação dos libertários. É uma obra contra­
ditória também, onde coexistem e sucedem-se momentos extre­
mamente revolucionários e outros de um conservadorismo irri­
tante. Entretanto, tanto mais passa o tempo, mais se observa
a atualidade de sua teoria revolucionária, particularmente no
que diz respeito à autogestão. Já mergulhado na luta dos traba­
lhadores franceses, Proudhon é “o primeiro a propor uma con­
cepção anti-estatal da gestão econômica” .22
Mas é preciso salientar que Proudhon forma as suas concep­
ções políticas, sociais e econômicas quando se aproxima o
22GUÉRIN, Daniel. L’anarchisme. Op. cit. p.52.
26
ano da Revolução de 1848, quando, pela primeira vez, o prole­
tariado parisiense entra na cena da história com reivindicações
próprias, como classe. Não se trata, portanto, de um vago
socialismo utópico, apesar de suas leituras de Charles Fourier.23
Proudhon já faz propostas concretas para a transição do capita­
lismo e participa ativamente das lutas, conhecendo por diversas
vezes a prisão e o desterro.
Pierre-J oseph Proudhon nasceu em Besançon, na França,
a 15 de janeiro de 1809, trabalhando, ainda menino, juntamente
com o pai na fabricação de cerveja. Sua primeira infância
transcorre no campo, da qual ele próprio dá um retrato, mesmo
confessando-se avesso às autobiografias, ressaltando a existên­
cia “mais contemplativa e realista, mas oposta a este absurdo
espiritualismo que fundamenta a educação e a vida cristã”,
em uma autêntica apologia da vida camponesa.24 Viu-se, porém,
obrigado, durante toda a vida a lutar contra as duras necessi­
dades materiais para a existência. Ao contrário de Karl Marx,
que pôde ter uma proveitosa vida universitária, Proudhon foi
sempre um autodidata, o que explica a maior profundidade
teórica do primeiro em relação ao segundo. Mas é inegável
que esta deficiência de Proudhon em relação a Marx, por outro
lado, proporcionou-lhe uma vantagem: a de estar sempre ligado
à vida e propor uma doutrina da ação, jamais se esquecendo
ou colocando em segundo plano o lado prático da construção
teórica. É dele a idéia de que o anarquismo não se pretende
o sinônimo da desorganização.25 Foi o primeiro a proclamar
que a anarquia não 6 a desordem, mas a ordem natural, em
oposição à ordem artificial imposta de cima, é a unidade real
em contraposição à falsa unidade que engendra a coação. Para
Proudhon, a anarquia “é a sociedade organizada, viva, o mais
22RESENDE, Paulo Edgar A. & PASSETT1, Edson (org.). Proudhon.
São Paulo, Ática, 1986. p.9.
24GUÉRIN, Daniel. Ni Dieu, Ni Maître: anthologie de Fanarchisme. Op.
cit. p.39.
25ARVON, Henri. Op. cit. p.48.
27
alto grau de liberdade e ordem que a humanidade poderá atin­
gir”. Vê-se, portanto, que a “revolta visceral” do anarquismo,
como a classifica Guérin,26 não conduz Proudhon a um niilismo
à la Stimer, mas a uma perspectiva revolucionária, embora
muito ligada às tradições francesas, o que faz depreenderem-se
de seu pensamento, tal como em Hegel, duas tendências, uma
conservadora e outra nitidamente esquerdizante e revolucio­
nária. O gênio de Karl Marx percebeu as duas, considerando-o
na Sagrada família,27 como o mais importante socialista francês,
para, alguns anos depois, na Miséria da filosofia — obra, aliás,
decisiva na formulação do materialismo histórico — criticá-lo
sem piedade. Entretanto, a leitura de Proudhon por Marx seria
extremamente mais benéfica para a própria teoria do materia­
lismo histórico se este procedesse da mesma forma como proce­
deu em relação a Hegel e a Feurbach, buscando o que havia
de racional e verdadeiro em Proudhon e rejeitando o seu aspec­
to conservador. Ocorre, porém que Pierre-Joseph Proudhon
elaborou a sua teoria em íntima ligação com a vida, a prática
e as lutas do povo francês. Mas Marx viu apenas o lado teórico-
especulativo do pensamento proudhoniano e não foi compla­
cente com as limitações do tipógrafo que se elevou à altura
da abstração teórica, embora, mais tarde, diante da Comuna
de Paris de 1871 os próprios fatos viessem a impregnar seus
conceitos de alguns elementos contidos no pensamento de
Proudhon, como a questão do Estado e a própria questão,
tão discutida hoje em dia, do autogoverno e da autogestão.
Mas, como dizia, Proudhon viveu uma juventude pobre
e até mesmo, por vezes, miserável. Aos 18 toma-se tipógrafo
em Besançon. Estuda hebreu, latim e grego por sua própria
conta e até 1829 prossegue trabalhando como tipógrafo em
Neuchâtel. Em 1830 vai para Paris onde, concluindo a leitura
da Bíblia e de outras obras teológicas, reforça definitivamente
26GUÊRIN, Daniel. Uanarchisme. Op. cit. p.50-1.
^ M A R X , Karl. La question juive. Paris, UGE, 1968. Miséria da fllosofla.
R io de Janeiro, Leitura, 1965.

28
o seu anticlericalismo e a sua aversão pelas religiões. Jean
Bancai o define como “ semicamponês, semi-operário, semi-
classe média” , uma espécie de “microcosmo do povo fran­
cês” .28 E isso talvez venha a explicar as contradições contidas
em sua obra. Em 1833, volta à terra natal para dirigir a tipogra­
fia Gauthier, e três anos depois monta, com um sócio, a sua
própria. O empreendimento fracassa, o sócio comete suicídio
e Proudhon vai se refugiar no campo, onde escreve seu Ensaio
de gram ática geral, pelo qual recebe menção honrosa da Acade­
mia de Besançon. Retoma a Paris e freqüenta cursos na célebre
Sorbonne, no Collége de France e na École des Arts e de
Métiers. Com 29 anos faz o bacharelado e recebe uma bolsa.
Mas não esquece os seus tempos difíceis: “Eu sei o que é
a miséria, escreveu, eu vivi nela” . E, assim, foi até o fim,
publicando obras sobre obras, fundamentalmente destinadas
a mudar o mundo e o destino dos homens, todas escritas
com um estilo e numa linguagem que provocaram a admiração
de Saint-Beuve, para o qual Proudhon era “um filósofo comba­
tente, que quer ser, antes de tudo, um homem de pensamento
de luta e de audácia”. O grande poeta Baudelaire também
era um admirador de seus escritos.
Como Marx, mas sem a profundidade deste, Proudhon inte-
ressou-se basicamente pela economia política. Em 1840, publi­
ca a obra que vai lhe marcar para sempre como um dos princi­
pais representantes do socialismo francês do século XIX, obra,
aliás, que não perdeu até hoje a sua atualidade e que se lê
às vésperas do século XXI com avidez e paixão, pois os proble­
mas e as questões ali colocadas ainda não foram resolvidos:
O que é a propriedade?, na qual ele dá a célebre resposta:
“ A propriedade é um roubo” .29 A obra O que é apropriedade?
recebeu de Karl Marx os mais rasgados elogios. Com efeito,
Marx chama Proudhon de o “pensador mais audacioso do socia­

2^BANCAL, Jean. Proudhon: pluralismo e autogestão. Op. cit. p.30.


2^PROUDHON, Pierre-Joseph. Qu’est-ce que la propriété? Paris, Garnier-
Flammarion, 1965.
29
lismo francês” e referindo-se a O que ê a propriedade? afirma
que seu autor havia submetido a propriedade privada a uma
crítica científica. Muitos anos mais tarde o grande socialista
francês Jean Jaurés vai elogiá-lo como um “ grande liberal
ao mesmo tempo que um grande socialista”.
Mas a vida de P.J. Proudhon, como, aliás, a de todo o
revolucionário, nunca foi fácil, embora tenha, ainda em vida,
gozado da notoriedade e de muito prestígio entre os operários
e intelectuais de esquerda da época, muitos dos quais já o
consideravam um gênio. Em 1843, foi obrigado a assumir as
funções de amanuense no escritório de um amigo de infância
em Lyon, justamente quando vinha a ser publicada sua obra
Da criação da ordem na humanidade. Por causa de seu empre­
go, era obrigado a ir constantemente a Paris, o que não lhe
desagradava, evidentemente, pois mantinha seus contatos polí­
ticos e revolucionários. Foi numa dessas ocasiões, em 1844,
que manteve relações com um grupo de refugiados políticos,
entre os quais Kari Marx, com quem estabeleceu correspon­
dência. A ruptura definitiva com Marx dar-se-á, porém, dois
anos depois, em 1846, quando surge a sua obra em dois volumes
Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria,
que recebeu a impiedosa, e por vezes injusta, crítica arrasadora
de Marx intitulada A miséria da filosofia.
Nesse ano, fixa-se em Paris e vive a Revolução de 1848,
cuja orientação era completamente diferente das idéias que
vinha expondo em suas obras, particularmente no que diz res­
peito ao Estado. Mesmo assim, para se ter uma noção do
prestígio que desfrutava entre a classe trabalhadora e um setor
da intelectualidade gauchiste foi eleito deputado a 4 de junho
de 1848, com cerca de 80 mil votos. Seu discurso na Assem­
bléia provocou escândalo, pois ele apresentava o povo como
a “ vítima da burguesia”. No Parlamento, era o terror dos
conservadores e bem-pensantes e por suas críticas ao regime
capitalista e ao Estado burguês foi condenado, no ano seguinte,
a três anos de prisão e a cinco mil francos de multa, mas
conseguiu fugir para a Bélgica. Voltou, porém, à França e
30
foi preso, onde escreveu as Confissões de um revolucionário,
uma obra-prima literária na opinião de Saint-Beuve.
Foi libertado em 1852, mas sua atitude em relação a Luís
Bonaparte, o piíncipe-presidente, lhe valeu muitas críticas da
esquerda, especialmente de Marx, que não lhe perdoou. Ele
dirigiu-se a Luís Bonaparte na obra A revolução social demons­
trada pelo golpe de estado, pedindo-lhe uma chance para a
realização de suas idéias. Mas o seu trabalho como legislador
e suas tentativas de ganhar o ditador para a realização de
suas idéias, especialmente a do Banco do Povo, durou pouco.
Em seguida, no jornalismo, outra de suas paixões, estava de
novo batalhando contra o Estado e a sociedade dividida em
classes. Morreu em 1865, pobre como viveu sempre, entre
os seus, os da classe la plus nombreuse et la plus pauvre,
para usar a frase de Saint-Simon.
É importante que nos detenhamos um pouco nas diferenças
entre Marx e Proudhon, especialmente pelo fato de se constituí­
rem, ambos, nos mais importantes escritores das duas principais
correntes socialistas do século XIX. Já nos referimos à admira­
ção inicial de Marx por Proudhon, especialmente após o apare­
cimento de O que é a propriedade? e o desentendimento final,
em 1847, quando sai a obra de Marx A miséria da filosofia
em resposta ao Sistema das contradições econômicas. Mas
a ruptura já se delineava claramente em 1846, quando Marx
escreve a Proudhon, pedindo a sua ajuda para a correspondência
impressa que deveria servir de ligação entre as diversas corren­
tes revolucionárias. Proudhon, em carta datada de 17 de maio
de 1846, de Lyon, prometeu o auxílio, embora ressaltando
que não poderia se comprometer a escrever muito, nem com
freqüência definida.30 Nesta carta, Proudhon aproveita a opor­
tunidade para fazer uma declaração de antidogmatismo, espe­
cialmente nas questões econômicas. Dizia Proudhon: “Não
vamos dar novo trabalho à humanidade com novos desvarios,
brindemos ao mundo o exemplo de uma sábia e sagaz tolerân­
MEHRING, Franz. Carlos Marx: historia de su vida. Máxico, Grijalbo,
1965. p.137.
31
cia, não queiramos passar por apóstolos de uma nova religião,
ainda que esta venha a ser a religião da razão e da lógica”.
E acrescentava: “ E já que falamos disso, vos direi acreditar
que as idéias da classe operária francesa coincidem com a
minha posição; nossos proletários sentem uma sede tão grande
de ciência que não sair-se-á bem quem não lhes oferecer outra
coisa para beber que não seja sangue” .
No ano seguinte, com o lançamento de Miséria da filosofia,
os fundamentos do materialismo histórico marxista estavam
lançados. Assim, involuntariamente, com a polêmica aberta,
Proudhon proporcionou a Marx a oportunidade de lançar a
“pedra angular” do materialismo histórico. Aqui também ficam
claras as diferenças entre os dois pensadores socialistas, espe­
cialmente na questão da dialética, cujo manejo e compreensão
Marx demonstra incontestável superioridade. Na verdade, ape­
sar de seu talento indiscutível, com rasgos de genialidade,
Proudhon nunca chegou a compreender verdadeiramente a dia­
lética hegeliana, desfigurando-a. Mais do que isto: “fixava-se
em seu lado reacionário, segundo o qual o mundo da realidade
se deriva do mundo da idéia, negando o lado revolucionário
da doutrina: a autonomia e liberdade de movimentos da idéia,
que passa da tese à antítese, até chegar ao longo desta luta
àquela unidade superior em que se harmoniza o conteúdo subs­
tancial de ambas as posições, eliminando-se tudo o que havia
de contraditório em sua forma. Proudhon, por seu lado, distin­
guia em toda categoria econômica um lado bom e um lado
mau, desejando chegar a uma síntese, a uma fórmula científica
que acolhesse o bom e 'eliminasse o mau”.31
A resposta de Marx às fórmulas proudhonianas é dura
e enérgica: “O senhor Proudhon jacta-se de nos oferecer ao
mesmo tempo uma crítica da econom ia política e do comunismo
e não percebe que fica muito abaixo de uma e de outro. Dos
econom istas porque, considerando-se com o filósofo, na posse
de uma fórmula mágica, acredita-se desobrigado de entrar em

31Idem, ibidem. p .142.


32
detalhes econômicos; dos socialistas porque carece da penetra­
ção e do valor necessário para elevar-se, ainda que somente
no terreno da especulação, sobre os horizontes da burguesia.
Pretende ser a síntese e não é mais do que um erro sintético;
pretende flutuar sobre burgueses e proletários como homem
de ciência e não é mais do que um pequeno-burguês, que
oscila constantemente entre o capital e o trabalho, entre a
Economia Política e o socialismo”. Mas Franz Mehring, um
dos mais brilhantes marxistas alemães, camarada de Rosa Lu-
xemburg, e avesso ao dogmatismo, coloca uma justa advertên­
cia que passa despercebida a muitos que se dizem “marxistas”
ao abordar a obra e o significado das teses de Proudhon:
“ Não se deve ler ignorante onde Marx diz pequeno-burguês,
pois não é o talento de Proudhon que está colocado em questão,
porém, sim, a sua incapacidade de passar por cima das frontei­
ras da sociedade pequeno-burguesa”.32
Na verdade, no que diz respeito à dialética hegeliana ou
à sua formulação materialista, Marx tinha razão contra Prou­
dhon. O método deste era precário, pois, dividido o processo
dialético em um lado bom e outro mau e concebida uma das
categorias como antídoto da outra, a idéia ficava exangue,
morta, sem forças para se transpor a si mesma e descompor-se
em categorias. E Mehring acrescenta: “Como autêntico discí­
pulo de Hegel que era, Marx sabia perfeitamente que o lado
mau que Proudhon queria extirpar era precisamente o que
fazia a história. As categorias econômicas não são, para Marx,
mais do que outras tantas expressões teóricas, abstrações da
situação social e a divisão do trabalho não é uma categoria
econômica, como Proudhon pretende, mas uma categoria histó­
rica que assume as formas mais variadas através dos diversos
períodos históricos”.
Ainda sobre a polêmica Marx-Proudhon, é indispensável
que nos detenhamos um pouco nas opiniões de Mikhail Baku-
nin, um dos maiores revolucionários do século XIX e um pensa­
dor brilhante, embora pouco profundo, com intuições geniais
Idem, ibidem.
<5 0

33
a respeito do futuro da humanidade e do socialismo, que viu,
apesar de suas nítidas simpatias proudhonianas (ele definia
o anarquismo como “o proudhonismo amplamente desenvol­
vido e levado às suas conseqüências extremas”) com muita
lucidez o conflito teórico entre os dois pensadores.
“Marx — diz Bakunin — é um pensador sério e profundo
dos problemas econômicos. Tem sobre Proudhon a imensa van­
tagem de ser um verdadeiro materialista. Proudhon, apesar
de todos os esforços que realizou para se livrar das tradições
do idealismo clássico, foi durante toda a sua vida um idealista
incorrigível, influenciado às vezes pela Bíblia, e às vezes pelo
Direito Romano, como eu próprio tive de dizê-lo dois meses
antes de sua morte, e metafísico sempre e em tudo até a
medula. Sua maior desgraça foi não ter estudado nunca as
ciências naturais e nem jamais ter assimilado os seus métodos.
Era um homem de instinto e este lhe traçava uma que outra
vez o caminho correto, mas, levado pelos maus hábitos, isto
é, pelos hábitos idealistas de seu espírito, voltava a reincidir
nos velhos erros. Assim se explica que Proudhon fosse, durante
toda a sua vida, uma contradição constante, um gênio poderoso,
um pensador revolucionário que nunca cessava de se revoltar
contra os fantasmas do idealismo, sem conseguir vencê-los
jamais.”
E, em seguida, referindo-se a Karl Marx, afirma Bakunin:
“ Como pensador, Marx vai pelo caminho certo. Proclama como
princípio fundamental que os movimentos religiosos, políticos
e jurídicos da história nunca foram as causas, mas os efeitos
dos movimentos econômicos. É esta uma idéia grande e fecun­
da, que Marx não foi o primeiro a descobrir; já antes haviam
atinado com ela e muitos outros a proclamaram, mas o que
não se pode negá-lo (a Marx) é a honra de tê-la desenvolvido
cientificamente, colocando-a como base de todo um sistema
econômico. Por outro lado, a liberdade foi muito melhor com­
preendida e sentida por Proudhon do que por Marx; apesar
de que sua doutrina e imaginação não fossem tão grandes,
Proudhon possuía o verdadeiro instinto do revolucionário. É
muito provável que Marx se eleye a um sistema ainda mais
34
racional da liberdade do que Proudhon, mas falta-lhe o instinto
deste. Como alemão e judeu que é (Marx), é um autoritário
dos pés à cabeça”.
Longe dos espíritos sectários e dogmáticos, é evidente,
a polêmica vem ganhando nos tempos atuais novos contornos,
especialmente após Maio de 1968, quando os velhos conteúdos
foram questionados e aquele instinto anarquista recobrou atua­
lidade, e alguns pensadores chegam a afirmar que uma transição
real do capitalismo ao socialismo nas sociedades contempo­
râneas não poderá ser feita sem Marx e Proudhon juntos. Obvia­
mente, sem reincidir no erro proudhoniano do lado bom e
do lado mau da dialética, ou seja, extirpando de um e de
outro pensador aquilo que não presta e conservando o que
é válido e perene. Nada disso. O que se requer é uma leitura
crítica tanto de Proudhon como de Marx, situando-os em seu
tempo para que se formule uma teoria da transformação social
mais completa e abrangente. O sociólogo Georges Gurvitch,
por exemplo, afirma: “Cem anos volvidos após a morte de
Proudhon, a atualidade do pensamento deste impõe-se a Leste
como a Oeste... Enquanto sociólogo e doutrinador social, Prou­
dhon não é apenas um traço de união importante entre Saint-
Simon e Marx, sem o qual Marx não seria possível. É muito
mais do que isso. Os pensamentos de Proudhon e Marx comple­
tam-se e corrigem-se mutuamente. Nunca se excluem, mesmo
quando se contradizem. As diversas tentativas de síntese têm
falhado até aqui, por não se terem elevado ao nível destes
dois irmãos inimigos. Mas ainda não houve quem pronunciasse
a última palavra. Esta síntese está muito mais adiantada na
realidade dos fetos do que na teoria. Tenho a certeza de que
uma nova concepção, superando, ao mesmo tempo, Proudhon
e Marx, a fim de os unir, não tardará a ser formulada”.33
Pessoalmente, creio que Gurvitch está certo. O autorita­
rismo das sociedades contemporâneas estava germinando no
momento mesmo em que as revoluções do século passado forta­
leciam cada vez mais o Estado, tão negligenciado por Marx.
33GURVITCH, George. Op. c it p.166.
35
Na verdade, as explosões sociais contemporâneas, quando
acontecem, têm um conteúdo nitidamente autoritário e sobre
esta questão Proudhon tem muito a dizer em sua obra longa
e tão rica. Aliás, é o próprio Proudhon quem afirma: a Revolu­
ção Francesa proclamou o advento da liberdade e da igualdade,
mas, sob o manto dos formalismos de participação, deixou
como legado efetivo a autoridade: não consolidou a sociedade,
antes esmerou-se em seu govemo. A potencialidade dos movi­
mentos revolucionários esterilizou-se nas constituições políti­
cas. Foi tão-só uma revolução política, que repôs a autoridade
em outros termos.34
Em uma de suas obras póstumas — talvez tão importante
como a célebre O que é a propriedade? — Proudhon traça
um perfil da burguesia que revela todo aquele instinto percebido
nele por Bakunin, um perfil que provavelmente seja até mais
adequado aos dias atuais do que em seu próprio tempo: “ En­
quanto a plebe operária, pobre, ignorante, sem influência, sem
crédito, fala de sua emancipação, de seu futuro, de uma trans­
formação social que deve mudar sua condição e emancipar
todos os trabalhadores do globo, a burguesia, que é rica, que
possui, que sabe e que pode, não tem nada a dizer de si
mesma», parece sem destino, sem papel histórico: carece de
pensamento e de vontade... é uma minoria que trafica, que
especula, que agiota, uma confusão”.35

34RESENDE,
O^
Paulo Edgar A. & PASSETTI, Edson. Op. cit. p .17.
J J PROUDHON, Pierre-Joseph. Da capacidade política das classes operá­
rias. In: RESENDE, Paulo Edgar A. & PASSETTI, Edson. Op cit.
p .107.

36
BAKUNIN: A REVOLTA PERMANENTE
Quem diz Estado, diz automaticamente dominação e, conseqüente­
mente, escravidão; um Estado sem escravidão, confessada ou masca­
rada, ê inconcebível. Por isso, somos inimigos do Estado.
Liberdade sem socialismo ê privilégio, injustiça; socialismo sem
liberdade ê escravidão e brutalidade.
MKHAIL BAKUNIN

Certamente, Mikhail Bakunin é o mais importante anarquis­


ta da história. Não teve, como Proudhon, uma obra enorme
e sistematizada, mas possuía um cérebro privilegiado, como
demonstram as suas centenas de folhetos revolucionários. Era,
acima de tudo, um homem de ação que renunciara voluntaria­
mente tomar-se um filósofo, embora levasse em alta conta
as teorias sociais e políticas de sua época. Mesmo assim, suas
concepções sobre o socialismo e a sociedade futura elevaram-se
acima de seu tempo e, após Maio de 1968, seu retrato e
suas frases passaram a ser vistas nas grandes manifestações
dos jovens que buscavam novos caminhos.
Bakunin, filho de um aristocrata, nasceu em Premukhino,
na Rússia, a 30 de maio de 1814, e morreu em Berna, na
Suíça, em 1876. Tomou-se, desde logo, um “jovem hegeliano”
de esquerda e percebeu de imediato a importância da negação
no processo dialético, afirmando que “ a paixão pela destruição
é também uma paixão criativa” . De início, como tantos outros
russos, era um democrata-revolucionário, mas acabou influen­
ciado pelas idéias do comunista alemão Wilhelm Weitling e
por Pierre-Joseph Proudhon. Guérin traça um interessante para­
lelo entre o mestre Proudhon e o discípulo Bakunin: “ Assim,
Proudhon, na segunda parte de sua carreira, dá a seu pensa-

37
mento um tom mais conservador. Sua prolixa e monumental
Justiça na revolução e na igreja (1858) é sobretudo consagrada
ao problema religioso e a conclusão é muito pouco libertária...
Com Bakunin, o fenômeno é inverso. É a primeira parte de
sua carreira agitada de conspirador revolucionário que não
tem relação com o anarquismo. Ele somente vai aderir às idéias
libertárias a partir de 1864, após o fracasso da insurreição
polonesa, da qual foi um dos participantes”.36 A tese de Prou-
dhon de que “ a democracia não é nada mais do que o arbítrio
constitucional” exerceu uma forte impressão sobre ojovemhege-
liano exilado que logo em seguida rompeu seus laços com a
democracia revolucionária para se tomar um anarquista muito
mais radical do que o próprio Proudhon.
No início de sua vida revolucionária, porém, suas idéias
se expressam fundamentalmente no apoio aos povos eslavos
em suas lutas contra a dominação autocrática da Rússia, da
Alemanha e da Áustria. Sua reputação como revolucionário
cresceu imensamente pela participação pessoal que tomou em
várias insurreições nos turbulentos anos de 1848-49.37 Foi pre­
so após o fracassado levante de Dresden, permanecendo encar­
cerado durante sete anos e depois enviado para a Sibéria,
de onde escapou em 1861. No entanto, foi na derrota da
revolução nacional-democrática polonesa de 1863 que Bakunin
deixou de ver qualquer possibilidade realmente revolucionária
nos movimentos de libertação nacional. Então, já definitiva­
mente anarquista, passa a se preocupar em promover a revolu­
ção social em escala internacional.
Em 1864, voltou à Itália, passando por Londres, onde
encontrou Marx, e Paris, onde reviu Proudhon já perto do
fim. Na Itália, ele se fixou até 1867, principalmente em Flo­
rença e em Nápoles e seus arredores. James Guillaume, o
historiador (e militante) anarquista conta que por essa época
36GUÉRIN, Daniel. U anarchisme. Op. cit. p.8.
37BOTTOMORE, Tom (org.). A dictionary o f marxist thought. Op. cit.
p.40.
38
as suas idéias já estavam amadurecidas plenamente e Bakunin
estava decidido a lutar pela formação de uma organização
secreta de revolucionários, que se concretizou com a ajuda
de militantes italianos, espanhóis, franceses, escandinavos e
eslavos, tomando-se conhecida como Fraternidade Interna­
cional- ou Aliança dos Revolucionários Socialistas,38 Na luta
contra os republicanos autoritários de Mazzini, Bakunin e seus
companheiros fundam, em Nápoles, o jornal Liberdade e Justi­
ça, onde desenvolve e aprimora o seu programa. Mas não
se define como comunista: “ Detesto o comunismo porque trata-
se da negação da liberdade e eu não posso conceber nada
humano sem a liberdade. Não sou comunista ainda porque
o comunismo concentra e absorve todas as forças da sociedade
nas mãos do Estado, enquanto eu quero a abolição do Estado
— a extirpação radical da autoridade e da tutela do Estado,
que, sob o pretexto de moralizar e civilizar os homens, até
hoje só os aviltou, oprimiu, explorou e depravou. Quero a
organização da sociedade e da propriedade coletiva ou social
de baixo para cima, pelo caminho da livre associação, e não
de cima para baixo, por meio de qualquer autoridade seja
ela qual for. á nesse sentido que eu sou coleüvista e de
nenhuma maneira comunista”.39
No entanto, verifica-se nos textos de Bakunin para a Fra­
ternidade Revolucionária Internacional, uma certa ambigüi­
dade no tratamento dado por ele ao Estado. É certo que ele
se pronuncia categoricamente pela destruição dos estados: “O
Estado, afirma, deve ser radicalmente demolido”. Porém, a
palavra “ Estado” é reintroduzida em sua argumentação, defi-
nindo-a como “ a unidade central do país”, como um órgão
federativo. Verifica-se, portanto, em Bakunin, a mesma ambi­
güidade encontrada em Proudhon, especialmente o último Prou-
dhon, o do Princípio federativo, livro escrito em 1863, dois
3®BAKUNIN, Mikhail. Textos escolhidos. Porto Alegre, L&PM, 1983.
p. 12.
39GUÉRIN, DanieL Op. cit. p.26.
39
anos antes do Programa de Bakunin, onde a palavra “ Estado”
assume o mesmo sentido federativo e anticentralista.
Quando Bakunin entra em cena, como anarquista-coleti-
vista ou socialista, o movimento operário europeu já tinha
dado passos gigantescos para o seu pleno amadurecimento.
Tanto é assim que, a 28 de setembro de 1864, é criada em
Saint Martin’s Hall, em Londres, a célebre AssociaçãoInterna­
cional dos Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional, cu­
jos Manifesto, Mensagem Inaugural e Estatutos foram redigidos
por Kari Marx, com várias tendências, abarcando desde os
lassaleanos e marxistas alemães até os mazzinistãs italianos,
passando, evidentemente, pelos sindicalistas ingleses e pelos
anarquistas proudhonianos e bakuninistas. Aliás, é o discípulo
de Bakunin, James Guillaume, que se tomou o autor da melhor
história da Primeira Internacional. Foi também na AIT que
se criou o cenário para a luta teórica e programática entre
Maix e Bakunin, uma luta não concluída e cujos problemas
colocados ainda perduram, em nossos dias, sem resposta. Luta
reavivada nas últimas décadas num sentido extremamente posi­
tivo, pois, aos poucos, foi-se descobrindo que entre Bakunin
e Marx as distâncias não eram intransponíveis. François Munoz,
por exemplo, não hesita em afirmar com todas as letras: “ Baku­
nin é marxista”. E argumenta: “ Quando ele evoca a querela
ideológica e livresca entre Marx e Proudhon é para dizer que,
como pensador, é Marx que estava no caminho certo. A respeito
de O capital, ele (Bakunin) apenas falará bem. Mas certamente
ele faz as suas objeções. Estas, que se seguem, entre outras:
OS comunistas alemães vêem na história humana apenas reflexos
dos fatos económicos. Este é um princípio profundamente ver­
dadeiro quando se examina concretamente, isto é, de um ponto
de vista relativo, más que encarado e colocado de uma maneira
absoluta, como o único fundamento e a fonte original de todos
os outros princípios, como faz esta escola, toma-se completa­
mente falso... O estado político de cada país... é sempre o
produto e a expressão fiel de sua situação econômica; para
mudar o primeiro é preciso simplesmente transformar esta últi­
ma. Todo o segredo das evoluções históricas, segundo o senhor
40
Marx, está lá. Ele não leva em conta outros elementos da
história, tais como a reação, que é evidente, das instituições
políticas, jurídicas e religiosas sobre a situação econômica.
Ele (Marx) afirma: a miséria produz a escravidão política,
o Estado; mas ele não permite a reversão desta frase e afirma:
a escravidão política, o Estado, por seu turno, reproduz e
mantém a miséria, como uma condição de sua existência...
Com efeito, o senhor Marx desconhece igualmente um elemento
muito importante no desenvolvimento histórico da humanidade:
é o temperamento e o caráter particular de cada raça e de
cada povo, temperamento e caráter que são naturalmente os
produtos de uma multidão de causas etnológicas, climatoló-
gicas e econômicas, assim como históricas, mas que uma vez
dadas, exercem, mesmo fora e independentemente das condi­
ções econômicas de cada país, uma influência considerável
sobre seus destinos, e mesmo sobre o desenvolvimento de
suas forças econômicas”. E François Munoz, após este longo
exame das restrições de Bakunin a certos aspectos do pensa­
mento marxista, prossegue: “ As debilidades em Marx que Ba­
kunin indica serão descobertas por Jean-Paul Sartre por sua
própria conta 80 anos após Bakunin e ele escreverá, por exem­
plo, que Marx desconhecia a existência de um processo circular
e que o Estado, produzido e sustentado pela classe dominante
e ascendente, constitui-se como o órgão de coesão e integração.
E certamente esta integração se dá através das circunstâncias
e como totalização histórica; não impede que ela se faça por
ele, ao menos em parte”.
Assim, as objeções de Bakunin não são feitas por fora
do marxismo, tal como as de Sartre. O próprio Marx, aliás,
ultrapassa o marxismo e Sartre demonstrou ter encontrado
em Marx algumas destas objeções.40
Mas Munoz não está isolado nesta aproximação póstuma
entre os dois revolucionários. Muitos anos antes, Franz Meh-
^^MUNÕZ, François. La Liberté. Paris, J J . Pauvert, 1965. p.10-2. Prefá­
cio a BAKUNIN, Mikhail.

41
ring, da ala esquerda da social-democracia alemã, também faz
uma apreciação semelhante. Diz Mehring: “ Bakunin era um
caráter fundamentalmente revolucionário e possuía, como Marx
e Lassalle, o talento de ouvir os homens... Marx e Bakunin
viam a revolução aproximar-se com passos enormes, mas en­
quanto Marx havia estudado o proletariado da grande indústria,
que tinha os seus principais centros e efetivos na Inglaterra,
França e Alemanha, Bakunin fazia os seus cálculos com os
batalhões da juventude sem classe, das massas camponesas
e do lumpemproletariado. E, embora reconhecendo diretamente
que, como pensador cientista, Marx lhe era muito superior,
não cessava de incorrer, uma e outra vez, nos seus erros do
passado... É uma torpeza e uma injustiça, que atinge igualmente
a Marx e a Bakunin, pretender julgar as suas relações apenas
pela discórdia irremediável em que acabaram... Muito mais
importante, desde o ponto de vista político, e sobretudo sob
o aspecto psicológico, é observar como, durante 30 anos, estes
dois homens nunca cessaram de se atrair e repelir mutuamen­
te”.41 E mais adiante, Franz Mehring conclui que apesar de
tudo, Marx conservou sempre o afeto pelo velho revolucionário
e se opôs aos ataques que pessoas chegadas a ele (Marx)
dirigiram ou pretendiam dirigir contra Bakunin.42
A Primeira Internacional, porém, era uma realidade e, nela,
tanto os marxistas como os bakuninistas exerciam um papel
importante, tão importante quanto constituíam os pólos diver­
gentes da nova organização dos trabalhadores. O atrito decisi­
vo, que acabou minando completamente o relacionamento dete­
riorado entre Marx e Engels de um lado e Bakunin de outro
foi a formação no interior da AIT da organização secreta baku-
ninista, Aliança para a Democracia Socialista. Na Interna­
cional, como vimos, coexistiam as mais diversas tendências
e não seria o fato dos bakuninistas se organizarem como ten­
dência que provocaria a ira de Marx. O que este não tolerava
^ 1MEHRING. Franz. Op. cit. p.428-9.
42Idem, ibidem. p.432.

42
era o fato de que a Aliança agia secretamente, com base nos
trabalhadores relojoeiros do Jura, na Suíça, para dominar a
Internacional e colocar esta sob sua orientação, diante da revo­
lução que se aproximava segundo calculavam os partidários.
Mesmo assim, os historiadores anarquistas da AIT, honrada­
mente colocam em realce o trabalho de Marx na Internacional.
Victor Garcia, por exemplo, diz que “negar a contribuição
de Marx, após seu ingresso na Internacional já criada, 6 faltar
com a verdade. A presença de Maxx no Conselho Geral de
Londres foi valiosa, embora quando chegou o momento tenha
sido ele quem a matasse e a sepultasse”.43 O erudito e minu­
cioso historiador do anarquismo, Max Nettlau, também afirma
que Marx produziu um “trabalho ótil na Associação”.
Mas, além das divergências Marx-Bakunin, é inegável que
este tíltimo também exerceu um papel fundamental na conscien­
tização revolucionária no sentido libertário. Para George
Woodcock, “ Bakunin foi, entre todos os anarquistas, o que
desempenhou seu papel de forma mais coerente” .44 Até o seu
aspecto ffsico contribuía para isso. Era um verdadeiro gigante,
sempre em desalinho, apesar das maneiras refinadas que traíam
a sua origem aristocrática. Praticamente esteve envolvido em
todas as conspirações de esquerda da segunda metade do século
XIX. Mas a sua intuição superava a todos os grandes pensado­
res de seu tempo, inclusive Proudhon e Marx. No início dos
anos 60 do século passado, por exemplo, compreendeu com
muito mais acuidade do que Proudhon que estava mais do
que na hora de levar as teorias do anarquismo e do socialismo
libertário para formar a consciência revolucionária dos descon­
tentes operários e camponeses dos países latinos. E foi na
Itália onde ele encontrou o seu segundo lar e foi lá onde amadu­
receram plenamente as suas idéias, inclusive no que diz respeito
à associação, germe da teoria anarcossindicalista, que se toma­
ria na Espanha a principal força da classe operária. Nesse
^GARCIA, Vitor. La internacional obrera. Madri, Jucar, 1977. p.27.
^WOODCOCK, George. Op. cit. p.127.
43
aspecto, aliás, Bakunin diferia de Proudhon, que aceitou apenas
com muita relutância a idéia das associações. Com Bakunin,
a principal corrente do anarquismo afasta-se do individualismo
à la Stimer definitivamente, sendo que, inclusive, no seio
da Primeira Internacional, os discípulos coletivistas de Bakunin
acabariam se opondo aos herdeiros “mutualistas” de Proudhon.
Mas, como vimos, apesar de seus inúmeros folhetos, Baku­
nin não nos legou sequer um livro completo. Era visceralmente
um homem de ação e, em toda a sua carreira, Woodcock
o acentua bem, está presente a idéia da ação revolucionária
como força purificadora e reformadora, tanto para a sociedade,
como para o indivíduo. A seus amigos, ele costumava repetir
uma das frases preferidas de Proudhon: “ Vamos revolucionar!
É a única coisa boa, a única realidade da vida”.
O seu instinto revolucionário ficaria mais uma vez compro­
vado logo que sobreveio a Guerra Franco-Prussiana de 1870.
Ele exultava com as seguidas derrotas de Napoleão m , mas,
ao mesmo tempo, manifestava o seu temor de uma Alemanha
imperial vitoriosa. E no meio dessas contradições vislumbrava
uma outra possibilidade que não passou pela cabeça de nenhum
dos grandes revolucionários e teóricos da esquerda daqueles
tempos: a de que a guerra entre a França e a Alemanha acabasse
se transformando em nova edição da Revolução Francesa, agora
com os proletários na cabeça. Ele afirmava: “Como Estado,
a França está acabada. Ela já não pode salvasse através de
medidas administrativas regulares. Agora, a França natural,
a França do povo, deve entrar no palco da história, deve
salvar sua própria liberdade e a liberdade de toda a Europa,
através de um levante imenso, espontâneo e totalmente popu­
lar, fora de qualquer organização oficial, de todo o centralismo
governamental”. Bakunin conclamava, em plena guerra, o povo
francês paia um “levante elementar, poderoso, apaixonada­
mente enérgico, anarquista, destrutivo e ilimitado”. E não
ficou nos apelos: arregaçou as mangas e com seus amigos
tratou de preparar a ação revolucionária nas cidades do vale
do Rhone, escrevendo para os seus partidários de Lyon, quando
estes o chamaram, convidando a unir-se a eles: “ Decidi arrastar
44
meus velhos ossos até aí para jogar o que será provavelmente
a minha última cartada”. A República fora proclamada em
Lyon, em seguida à derrota de Sedan, mas quando lá chegou
Bakunin, a 15 de setembro de 1870, viu que estava diante
da república burguesa, com o Estado reconstruído e um Conse­
lho Municipal devidamente eleito. Mas a grande revolução
sonhada por ele estava por vir e iria eclodir alguns meses
depois, em março de 1871, em Paris, com tal radicalidade
que obrigou o próprio Marx a revisar algumas de suas posições,
particularmente no que diz respeito ao Estado e seu papel
na sociedade revolucionária. Sem a Comuna de Paris de 1871,
a Revolução dos Soviets, na Rússia de 1905-17 teria sido
impensável.
Após a derrota da Comuna de Paris, consumou-se a cisão
na Internacional. O Conselho Geral transferiu-se para Nova
Iorque e, usando os poderes que lhe tinham sido conferidos
no Congresso de Haia, decidiu a 5 de janeiro de 1873 suspender
da AIT a Federação Jurassiana, onde se encontravam os mais
dedicados bakuninistas, inclusive o professor James Guillaume.
Mas estes não aceitaram a decisão e reuniram-se a 1! de setem­
bro de 1873, em Genebra, como o VI Congresso Geral da Inter­
nacional, com representações da Bélgica, Holanda, Itália, Espa­
nha, França, Inglaterra e o Jura suíço. Até mesmo um setor
lassaleano de Berlim enviou uma moção de simpatia. O VI
Congresso revisou os estatutos da AIT, extinguiu o Conselho
Geral e fez da Internacional uma federação livre, sem autori­
dade dirigente de qualquer espécie. As idéias de Bakunin,
que sempre insistiu na estrutura federativa, baseada em sessões
autônomas, estavam plenamente vitoriosas. Mas o velho revo­
lucionário estava entoando o seu canto de cisne. Cansado
e sem forças, sabia que seu tempo havia passado, sem que
o problema da revolução social fosse resolvido. As lutas contí­
nuas, a clandestinidade quase permanente, as prisões, as fugas,
os levantes fracassados, haviam alquebrado o seu corpo de
gigante. Era justo que agora ele pretendesse a aposentadoria
e o descanso que nunca teve, desde quando jovem aristocrata
russo rompera os laços que o prendiam à classe dominante
45
e se jogara com todo o ímpeto, primeiro na revolução democrá­
tica, depois na revolução social.
A reorganização da Internacional segundo os princípios
federativos, que sempre defendera, proporcionou-lhe o mo­
mento e a 12 de outubro de 1873 escreverá a seus fiéis camara­
das da Federação Jurassiana, pedindo que aceitem a sua demis­
são como membro da Federação e da Internacional: “ Não me
sinto mais com as forças necessárias para a luta: seria, pois,
no campo do proletariado, um estorvo, não uma ajuda. Retiro-
me, portanto, caros companheiros, cheio de simpatia por esta
grande e santa causa, a causa da humanidade... Continuarei
seguindo com ansiedade fraterna todos os vossos passos e
saudarei com alegria cada um dos vossos novos triunfos. Até
a morte serei vosso”. Três anos depois Mikhail Bakunin morre­
ria, em Berna, Suíça. Não sem antes envolver-se em mais
uma tentativa revolucionária.
Carlos Cafiero, revolucionário italiano que fez o resumo
de O capital, de Marx, hospedou-o perto de Lucamo e ali
Bakunin passou, até meados de 1874, talvez os dias mais
tranqüilos de sua vida adulta. Mas não resistiu aos apelos
de seus instintos revolucionários. Nem o cansaço, nem a doença
que já minava as suas resistências, conseguiram impedi-lo de
juntar-se aos revolucionários que preparavam uma sublevação
em Bolonha, muito mal organizada e que, obviamente, fracas­
sou. Bakunin, então, teve de abandonar a vila que Cafiero
carinhosamente lhe reservara para, pela última vez, fugir clan­
destinamente de um país. Disfarçado, tomou o rumo da Suíça.
“ Bakunin era, em 1875, apenas uma sombra dele mesmo.
Em junho de 1876, na esperança de encontrar algum conforto
para seus males, deixou Lucamo para ir a Bema, onde chegou
no dia 14 de junho. Disse a seu amigo, doutor Adolf Vogt:
“ Venho aqui para que me cures ou morrer”. Expirou no dia
n de julho, ao meio-dia”.45

45GUILLAUME, James. Bakunin, In: BAKUNIN, Mikhail. Textos escolhi•


dos. Porto Alegre, L&PM, 1983. p.25-6.
46
James Guilhaume perguntava em sua época: “ Chegará o
dia em que a posteridade irá apreciar a personalidade e as
conquistas de Bakunin que sempre teremos direito a esperar?
Além disso, podemos esperar que os desejos expressos por
seus amigos diante de sua sepultura recém coberta cheguem
a realizar-se algum dia?”46
De certa forma, as esperanças de Guillaume se realizaram.
Mikhail Bakunin pelo menos para aqueles que esperam ver
a humanidade livre, já não é mais o “ Satã” e muitas de suas
idéias foram plenamente resgatadas com o passar do tempo.
As posições claramente materialistas e revolucionárias de Ba­
kunin lhe colocaram em desvantagem diante de Proudhon, o
qual poderia ser estudado, analisado e comentado nas universi­
dades e academias sem conseqüências maiores, bastando para
isso que se colocasse entre parênteses o aspecto revolucionário
de sua doutrina. Com Bakunin era impossível realizar esse
“ corte”: sua teoria e sua prática conduziam diretamente às
conclusões revolucionárias mais extremas. Entretanto, a pró­
pria história trouxe para a luz do dia a questão revolucionária
em seus múltiplos aspectos. Ora, nessas circunstâncias certa­
mente Bakunin assume o seu lugar. Será impossível, por exem­
plo, falar sobre a Revolução Espanhola sem uma referência
explícita e básica a Bakunin, de onde se origina o sindicalismo
revolucionário. As próprias lutas sociais no Brasil nas duas
primeiras décadas do século estão impregnadas do anarcossindi-
calismo. Além disso, as questões colocadas no interior da pró­
pria transformação socialista na prática deixaram de ser proble­
mas teóricos como nos tempos da Primeira Internacional para
se tomar desafios concretos e atuais. Como acentua Daniel
Guérin, ele (Bakunin) teve o mérito de lançar, desde os anos
1870, um grito de alarma contra certas concepções de organiza­
ção do movimento operário e do poder “proletário” , que, muito
mais tarde, desnaturaram a Revolução Russa. No marxismo,
ele acreditava perceber, às vezes injustamente, às vezes com
46GUILLAUME, James. Apuntes biográficos de Bakunin. In: La anarquia
según Bakunin. Baroelona, Tusquets, 1977. p.55.
47
razão, o embrião daquilo que se tomaria o leninismo, e depois
seu câncer, o stalinismo.47 E quando se aborda de frente esses
problemas que se tomaram atuais, de uma atualidade impressio­
nante, nunca é demais lembrar novamente que Bakunin tinha
uma grande admiração pelas capacidades intelectuais de Marx,
do qual ele traduziu para o russo a obra principal, O capital,
e, além disso, aderiu plenamente à concepção materialista da
história, Ele apreciava mais do que ninguém a contribuição
teórica de Marx para a emancipação do proletariado. Entre­
tanto, o que Bakunin não aceitava era que a superioridade
intelectual — e em Marx era ela inegável — pudesse garantir
o direito de direção do movimento operário.
Na verdade, nas críticas por vezes violentas que ele dirigia
às “pretensões” autoritárias do marxismo, é possível perceber,
hoje, por trás da enorme figura de Marx, a sombra sinistra
de Stálin.
É nesse sentido que deve ser destacado o talento de Baku­
nin. Como homem de ação, profundamente ligado a todos
os movimentos revolucionários de sua época, ele percebia com
notável agudez as tendências e os riscos das organizações
e processos revolucionários. E isso o situava adiante de sua
época, fazendo críticas e alertando para perigos que poderiam
em seu tempo dar-se apenas na imaginação, mas que se mostra­
ram concretos desde o momento em que a transformação socia­
lista se tomou uma questão real da história. E quando isso
ocorreu ficou impossível passar por cima de Bakunin e a história
já lhe faz justiça. Inclusive porque ele ainda tem muito a
dizer sobre os problemas de nosso tempo. Não é gratuito o
fato de que os jovens revolucionários da Europa e dos Estados
Unidos de hoje colocam o seu enorme retrato ao lado dos
de Marx e Rosa em suas ruidosas manifestações. E, sem se
referir expressamente a seu nome, quando os sindicalistas polo­
neses reivindicam uma sociedade autônoma, a autogestão, estão
resgatando, talvez sem o saber, as idéias defendidas há mais
de um século por Mikhail Bakunin.
47GUÊRIN, Daniel. L’anarchisme. Op. eit. p.27.
48
Mas não nos enganemos. A espontaneidade das massas
é essencial, prioritária mesmo, mas não basta. Para que ela
se tome consciente, é fundamental a existência das minorias
revolucionárias capazes de pensar a revolução. Por isso, Baku­
nin não dispensava a necessidade da vanguarda consciente
e afirmava: “ Para o triunfo da Revolução contra a reação
é necessário que, no interior da anarquia popular que consti­
tuirá a própria vida e a energia da revolução, a unidade de
pensamento e de ação revolucionária tenha um órgão” . Na
Espanha, isto foi confirmado na prática, através da ação e
da teoria da CNT, a grande confederação sindical anarquista,
e a FAI, a Federação Anarquista Ibérica, o organismo de van­
guarda dos anarquistas espanhóis.
Para ele, o problema das “ autoridades revolucionárias”
(o termo é do próprio Bakunin) não 6 o de impor a revolução
às massas, mas provocá-la em seu interior, não submeter as
massas a qualquer tipo de organização, mas estimular a organi­
zação autônoma de baixo para cima. Não é precisamente isso
que discutem em todo o mundo as vanguardas que se reivindi­
cam do socialismo?
Além disso, antecipando-se ao tempo e, particularmente,
à polêmica sobre a questão da organização entre Rosa Luxem­
burg e Lênin, Bakunin pensava que a contradição entre a
espontaneidade e a necessidade de intervenção das vanguardas
conscientes somente pode ser resolvida quando se opera a
fusão da ciência com a classe operária. Nesse momento, a
massa tomando-se plenamente consciente, não tem mais a ne­
cessidade de “ chefes” , mas apenas de “órgãos executivos”
que expressam a sua “ ação consciente” .

49
KROPOTKIN, O PRÍNCIPE ANARQUISTA
Somente a Revolução que, depois de colocar os instrumentos,
as máquinas, as matérias-primas e toda a riqueza social nas mãos
dos produtores e reorganizar a produção de modo a satisfazer
as necessidades daqueles que produzem tudo, poderá colocar um
fim nas guerras pelos m ercadosC ada um trabalhando por todos
e todos para cada um, eis a única condição para chegar à paz
entre as nações.
Foi um mundo em ação. (Sobre a Grande Revolução Francesa
de 1789.)
PIERRE KROPOTKIN

Pierre Kropotkin nasceu em Moscou, em 1842, filho de


uma das mais antigas famílias da aristocracia russa. Ficou
conhecido na história justamente por essa origem na alta nobre­
za como o Príncipe Anarquista, aliás o título de uma excelente
biografia sua escrita por George Woodcock.48 O próprio Kro­
potkin escreveu sua autobiografia — fascinante, por sinal —
onde relata as suas origens aristocratas e a ruptura com a
família para se tomar um dos grandes anarquistas do século
XIX.49 Seu nome completo era Pierre Alexievitch Kropotkin
e estava destinado a seguir as tradições familiares da alta
nobreza russa, a carreira militar, entrando no corpo dos pagens
do Czar, onde recebeu instrução militar e científica de 1857
a 1862. Desde cedo, porém, manifestou um incoercível desejo
de independência e, em vez de escolher, utilizando a influência
de sua família, um lugar perto da capital para prosseguir seus
estudos, preferiu a Sibéria, onde permaneceu de 1862 a 1867.
48WOODCOCK, George & AVAKUMOVIC, Ivan. El príncipe anarquista.
Madri, Jucar, 1978.
4%CRO PO TKIN, Pierre. Autour tfune vie. Paris, Stock, 1913.

50
No seu período de instrução, desde logo ficou evidente a
inclinação para a ciência, em detrimento da formação militar:
Kropotkin viria a ser um geógrafo renomado mundialmente.
Esta vocação para o estudo da Geografia sedimentou-se na
Sibéria, onde ele fazia expedições para a elaboração de mapas
e o estudo da geografia de regiões desconhecidas naquela épo­
ca. Mais tarde, já revolucionário e anarquista, Kropotkin tam­
bém se revelou um historiador de indiscutível mérito, sendo
o autor de uma magnífica história da Revolução Francesa de
1789,50 na qual, de forma pioneira, faz a análise e a crítica
da Revolução de 1789 do ponto de vista das massas em oposi­
ção aos estudos tradicionais.
Entretanto, esse período da Sibéria também ofereceu ao
príncipe Kropotkin a oportunidade de discussões sobre temas
filosóficos e sociais e de reformas políticas. “Foi especialmente
no contato com a dura realidade siberiana que ele se convenceu
da necessidade do federalismo e da ajuda mútua entre os seres
humanos”.51
Em 1867, deixa o exército e volta a Moscou para se dedicar
aos estudos científicos, mas rompe financeiramente com a sua
aristocrática família, tomando-se, em 1868, membro da Socie­
dade Russa de Geografia. Seu primeiro gesto revolucionário,
conta Martin Zemliak, foi a recusa da função de secretário
da Sociedade de Geografia que lhe tinha sido oferecida. Em
1872, parte para a Suíça. Durante a viagem, passa grande
parte do tempo ouvindo as discussões dos refugiados russos
das várias facções revolucionárias em Zurique e Genebra. Pos­
teriormente, passou alguns dias na região do Jura suíço, conhe­
cendo pessoalmente a James Guillaume, filiando-se à Interna­
cional, que ainda não estava cindida, como um dos partidários
de Bakunin. No verão, retoma à Rússia, ingressando no coleti­
vo Tchaikovsky, que reunia jovens partidários do socialismo,
5®KROPOTKIN, Pierre. A grande revolução (1789-1793). Salvador, Pro­
gresso, 1955. 2v.
51ZEMLIAK, Martin. Traits principaux de la vie de Pierre Kropotkin.
In; KROPOTKIN, Pierre. Oewvres. Paris, Maspero, 1976. p.7-8.

51
e escreve o seu primeiro ensaio revolucionário Devemos nos
ocupar da realização futura do Ideal?, redigido em novembro
de 1873 e apreendido pela polícia czarista: o ensaio só foi
publicado na íntegra quase um século depois, em 1964, No
entanto, ali já estão as teses fundamentais que Pierre Kropotkin
defenderia o resto de sua vida, tais como a negação do Estado,
a comuna como a base da sociedade futura, a necessidade
de satisfazer o máximo das reivindicações populares desde
os primeiros dias da revolução e a recusa dos revolucionários
profissionais.
Kropotkin tentava conciliar seu trabalho de cientista com
a sua militância revolucionária, trabalhando na Sociedade Rus­
sa de Geografia e, dois dias depois de apresentar para esta
mesma sociedade uma comunicação sobre geologia polar, foi
preso pela polícia, a 23 de março de 1874, juntamente com
outros camaradas e encarcerado, sem julgamento, na triste­
mente célebre fortaleza Pedro e Paulo, de Petrogrado, de onde
escapou algum tempo depois de forma espetacular, considerado
um dos episódios mais fascinantes da história do movimento
revolucionário russo. Assim, a partir de 1876, ele inicia a
sua vida de exilado. Seus conhecimentos de várias línguas,
como o francês, o inglês, o alemão e o sueco, porém, tomaram-
lhe menos dolorosas as agruras do exílio, já que podia se
integrar com mais facilidade nos diversos países por onde andou
sempre fazendo a propaganda anarquista-comunista.
Curiosamente, Kropotkin e Bakunin jamais se encontraram,
apesar da identidade de pontos de vista.
George Woodcock, notável biógrafo de Kropotkin, acredita
que este “ desencontro” deve-se em grande parte à diferença
entre estas duas personalidades marcantes do anarquismo. Com
efeito, “Kropotkin acreditou durante toda a sua vida que a
revolução era algo desejável e inevitável, mas jamais foi um
revolucionário atuante, como fora Bakunin. Jamais chegou a
lutar numa barricada e preferiu o debate aberto à obscuridade
romântica da conspiração. Embora pudesse admitir a necessi­
dade da violência, opunha-se por temperamento, ao seu empre­
go. As visões destruidoras de fogo e sangue que tão lugubre­
52
mente iluminavam o pensamento de Bakunin não o atraíam.
O que o atraía era o aspecto positivo e construtivo do anarquis­
mo, a visão cristalina de um paraíso terrestre reconquistado
e contribuiu para a sua elaboração através de seu treinamento
científico e de seu invencível otimismo”.52 Bemard Shaw,
que o conheceu, dizia que “pessoalmente Kropotkin era amável
a ponto de ser quase um santo” e acrescentava: “Com sua
abundante barba vermelha e sua expressão bondosa, bem pode­
ria ter sido o pastor das Deleitáveis Montanhas”.
Há outras diferenças, porém, entre a vida dos dois anarquis­
tas que tinham pontos de vista tão próximos. Enquanto a
carreira de Bakunin foi sempre uma vida ininterrupta de conspi­
rações, prisões, novas conspirações e novos exílios, Kropotkin
viveu mais de 30 anos em Londres e, para os ingleses progres­
sistas, ele não era o incendiário e irreconciliável inimigo da
sociedade burguesa, mas o que havia de melhor entre os exila­
dos que lutavam contra a autocracia do Czar russo.
Mas não se faça uma imagem idílica de Kropotkin. Certa­
mente, sua personalidade diferia muito da de Bakunin. Mas
ele estava longe de ser um pacifista. Seus folhetos revolucio­
nários eram um constante apelo à revolta dos oprimidos e
deserdados e sua vida vai se ligar a jornais que nada tinham
de conciliadores, como La Révolíe e Le Revolté, editados na
França, onde foi publicada grande parte de seus escritos, e,
posteriormente, Freedom, editado na Inglaterra. Na França,
Pierre Kropotkin chegou a estar preso de 1883 a 1886, mas
o clima liberal da Inglaterra permitiu que ele dividisse seu
tempo entre as atividades de propaganda revolucionária e a
científica. Em 1893, ele se tomou membro da Associação Cien­
tífica Britânica, mas recusou a oferta de ensinar na Univer­
sidade de Cambridge porque a cátedra tinha como condição
a abdicação de suas atividades políticas.
A Rússia, porém, não safa de suas preocupações, especial­
mente depois que seu irmão Alexandre, que pertencia também
ao mesmo coletivo socialista Tchaikovsky, foi preso e enviado
52WOODCOCK, George. Anarquismo. Op. cit. p.163.
53
à Sibéria, onde, em 1886, após mandar sua mulher e filhos
para Moscou, cometeu suicídio. A partir de 1903, Kropotkin
e outros emigrados russos fundam um jomal anarquista para
ser enviado clandestinamente à Rússia e que teve evidente
influência nas correntes libertárias russas que participaram ati­
vamente tanto dos acontecimentos de 1905, como dos de
1917.53
A guerra de 1914, porém, foi um momento doloroso para
este pensador intemacionalista. Ele, como tantos outros, acre­
ditou tratar-se de um conflito em que era preciso se posicionar
contra o espírito militarista-germânico. Em nome do anarquis­
mo, pretendeu que era seu dever ficar ao lado das potências
que lutavam contra a Alemanha, isto é, a França e a Inglaterra,
principalmente, não se excluindo o eslavismo latente tanto
em seu espírito como no do velho Bakunin. O surpreendente
belicismo de Kropotkin abalou profundamente os demais anar­
quistas e libertários e não foram poucos os que se insurgiram
contra ele. Com a Revolução de 1917, Kropotkin, já enfraque­
cido, retoma à Rússia, sendo acolhido com imenso respeito
e até com entusiasmo. Recebeu propostas para participar do
Governo Kerenski, mas recusou-as. Lênin também fez o mesmo
quando os bolcheviques chegaram ao poder em outubro, mas
teve a mesma negativa. De 1917 a 1921, ano de sua morte,
Kropotkin, em plena Rússia soviética, continuou a propaganda
anarquista ao lado de seus camaradas Voline e Makhno. Seus
funerais, realizados no dia 13 de fevereiro de 1921, em Moscou,
apenas 20 dias antes do Levante de Kronstadt, que teve sua
nítida influência, serviram de pretexto para a última grande
manifestação de massas anarquistas na jovem Rússia soviética.
Apesar de sua oposição aos rumos tomados pelo govemo bol­
chevique Kropotkin teve reconhecimento póstumo da União
Soviética, onde as suas Memórias de um revolucionário. Autour
d une vie foram publicadas em 1966. Na apresentação da obra
V.A. Tvardoskaia escreve: “ O nome do autor deste livro soa

^ A V R IC H , Paul. L e s a n a r c h ls te s r u s s e s . P a ris , M asp ero , 1979, p .102-6.

54
familiar: ele está presente na nossa vida quotidiana. Em Mos­
cou, é uma estação de metrô, uma praça, uma avenida, uma
rua, um bairro. Na Sibéria, é uma cadeia de montanhas e
uma colônia operária no departamento de Bodaibo. EmKouban
cresce a cidade de Kropotkin, antigamente Khoutor”. Kropotkin
é evidentemente apresentado como anarquista e criticado de
acordo com os postulados marxistas, mas ele surge também
como geógrafo de reputação, propagandista da literatura russa,
historiador apreciado por Lênin, biólogo que corrigiu Darwin
e sobretudo como uma personalidade rica, de notáveis qualida­
des de inteligência, bondade, compreensão do belo, e com
senso de justiça.54
Talvez antes do final deste século Kropotkin ainda tenha
muito o que dizer na União Soviética contemporânea, onde
começa a ocorrer uma série de mudanças da mais alta sig­
nificação.
Kropotkin foi, contudo, o último dos grandes teóricos anar­
quistas e chega a ser surpreendente o descaso de Henri Arvon
com sua obra no livro História breve do anarquismo. O objetivo
de Kropotkin era a unidade da teoria e da prática e é nesse
sentido que devem ser estudados os seus folhetos e artigos
para os jornais anarquistas, especialmente Le Revolté, e os
seus livros como A grande revolução, O anarquismo, A con­
quista do pão, Ajuda mútua, Fábricas, campos e oficinas,
O anarquismo e a ciência moderna, etc. Ele entende a revolu­
ção como um fato concreto, para o qual os operários, sujeitos
do processo, precisam estar conscientes da ação que empreen­
dem, a fim de que a destruição inevitável da velha sociedade
não faça nascer novos mecanismos de poder que venham cer­
cear a liberdade de iniciativa e o desenvolvimento natural
da sociedade liberta de todos os seus órgãos de coação. Na
base desta revolução, segundo Kropotkin, está a comuna e,
em conseqüência, a federação, e a economia será comunista.55
54ZEMLIAK, Martin, Op. cit. p.ll.
55KROPOTKIN, Pierre. A conquista do pão. Rio de Janeiro, Simões,
1953.
55
O Príncipe anarquista, durante toda a sua vida militante, pro­
curou sempre demonstrar o nexo lógico e profundo que existe
entre a filosofia das ciências naturais e o anarquismo. Em
outras palavras, seu objetivo era o de proporcionar uma base
científica ao anarquismo.56
Para Kropotkin, portanto, a ajuda mútua, que faz parte
da natureza humana, &um elemento essencial para a construção
do comunismo. Sem dúvida, estamos diante de um pensamento
rico e profundo, mas, sob certo aspecto, limitado pelo excesso
de “cientificismo” que impregna todo o seu desenvolvimento
e que, aliás, é uma das características do próprio “ espírito
do século XIX”. Não há, na teoria kropotkiniana, qualquer
resquício de dialética, no sentido hegeliano do termo, como
se pode perceber em Proudhon, mesmo mutilada, e certamente
em Bakunin, obcecado filosoficamente durante toda a sua vida
militante pela negatividade, como um elemento essencial da
dialética destruição-construção da sociedade. Para Bakunin,
a negação radical da ordem existente era um momento da
totalidade dialética, necessário e imprescindível, sem o qual
seria sem sentido e impossível a revolução social. Em Kropot­
kin, ao contrário, o que se verifica é a tendência evolutiva
das ciências, que permite aos homens descobrir a ajuda mútua
e construir o comunismo a partir do império da razão e da
ciência.57 A sua conclusão comunista decorre, pois, não de
uma interpretação dialética do desenvolvimento da sociedade,
mas de uma tentativa de aplicar à evolução social os conheci­
mentos extraídos das ciências modernas. “O que ele faz, na
verdade, diz corretamente Woodcock, é escolher uma série
de problemas sociais que nos afligem no momento e considerar,
experimentalmente, como seriam solucionados num mundo on­
de a produção seria para o consumo e não para o lucro e

56z e m l ia k , Martin. Op. cit. p,15.


57KROPOTKIN, Pierre. Humanismo libertário e ciência moderna. Rio
de Janeiro, Mundo Livre, s/d. O anarquismo. São Paulo, Unitas, 1933.
56
onde a ciência estaria dedicada a descobrir meios para conciliar
e satisfazer as necessidades de todos”.58
Mas se o cientifidsmo parece-me um aspecto extremamente
limitador nas teorias de Kropotkin, por outro lado a leitura
de seus livros nos abre perspectivas imensas, especialmente
no que diz respeito às relações entre o comunismo-libertário
por ele pregado e a vida quotidiana dos trabalhadores da cidade
e do campo. Creio que Woodcock apanha muito bem esta
questão quando ele sugere que a verdadeira contribuição de
Kropotkin “foi, na verdade, promover a humanização do anar­
quismo, estabelecer constantemente relações entre a teoria e
os detalhes da vida real, o que emprestava a esta teoria um
aspecto concreto e uma pertinência com a vida quotidiana
que raramente observamos em Godwin, Proudhon ou Bakunin”.
Mas não era o cientificismo naturalista que lhe conduzia sozi­
nho por esta estrada tão rara para os revolucionários de todas
as tendências. “ Esses aspectos concretos eram uma conse­
qüência de sua personalidade. Kropotkin acreditava fervorosa­
mente na solidariedade humana porque toda a sua natureza
sentia-se atraída por essa idéia. Era um homem irrepreensi­
velmente honrado, bondoso e consciente das necessidades dos
outros, generoso e hospitaleiro, corajoso e incomodamente de­
dicado à verdade. Sua bondade equilibrada parece quase dema­
siadamente branda e inocente na nossa época, quando facilmen­
te se pressupõe que todo gênio nasce da frustração e a santidade
de alguma profunda mácula dostoievskiana. Entretanto, essa
bondade era real e a ela devemos a especial benevolência
com que Kropotkin encarava a natureza humana e, de forma
menos direta, aquela visão tão complexa e, ao mesmo tempo,
tão simples, de uma Cidade de Deus mundana e agnóstica
com a qual coroava o tortuoso edifício do pensamento anar­
quista”.59

^WOODCOCK, George. Op. cit. p.180.


59Idem, ibidem. p.195.
57
O ANARQUISMO NA PRÁTICA

COMEÇA A REVOLUÇÃO
A Comuna no momento atual está pronta para a História.
LOUISE MICHEL
Seria um equívoco imenso pensar que as idéias libertárias
permaneceram em pequenos círculos de intelectuais desajus­
tados, sem qualquer conexão com os movimentos sociais. Maior
equívoco ainda seria fazer o teste de sua viabilidade através
de fracassos, conspirações abortadas e ações terroristas isola­
das. Houve tudo isso de fato. Pequenos círculos intelectuais
de origem burguesa, rejeitando a ordem, mas sem mover uma
palha para destruí-la. Houve fracassos, como as tentativas in­
frutíferas de Proudhon e as lutas nunca vitoriosas de Bakunin
e os seus. Houve a loucura de Nechaev e o seu Catecismo
revolucionário, que trouxeram descrédito e amargura a Baku­
nin. Houve dezenas de rebeliões isoladas, logo esmagadas e
esquecidas. Houve o terrorismo e as bombas que, com Reva-
chol, contribuíram para a versão caricata do anarquista. Mas,
como vimos, houve também um poderoso arsenal de idéias
novas cujas origens remontam à própria Revolução Francesa,
que renovaram as esperanças e reviveram o conteúdo das pala­
vras liberdade, igualdade e fraternidade. Houve o desgastante,
mas enriquecedor debate na Primeira Internacional, quando
o movimento operário do século XIX já caminhava sobre os
seus próprios pés.
Houve, em março de 1871, a Comuna de Paris. Depois
de tantos fracassos e derrotas, de tantas esperanças perdidas,
o sonho tomava corpo. Tomava-se verdade. Em março de 1871,
58
como afirmaria Karl Marx, o proletariado tomava o céu de
assalto.® Na Internacional, como vimos, polarizou-se o debate
entre os socialistas libertários e os chamados autoritários, entre
os quais se encontrava Marx. A Comuna de Paris surpreendeu
a todos. A população operária de Paris se levantara de armas
na mão. Os revolucionários vinham de todas as tendências:
jacobinos de esquerda, blanquistas, proudhonianos, bakuninis-
tas e marxistas. A revolução, porém, tinha a sua própria lógica
e não aceitava rótulos. A Comuna foi derrubando, um por
um, todos os dogmas teóricos e dando vida nova ao que,
em todas aquelas teorias socialistas e semi-socialistas, incorpo­
rava o movimento social real, de Blanqui e Proudhon a Bakunin
e Marx. Muito mais do que a Revolução de 1848, a Comuna
de Paris trouxera o proletariado ao poder. Poder? Sim, no
sentido de que uma classe social nova desarmava e desapro­
priava as antigas classes dominantes, formava as suas próprias
milícias em lugar de um exército regular, declarava a sua pró­
pria autonomia e determinava que qualquer funcionário, ocu­
passe o cargo que ocupasse, poderia ser destituído de suas
funções a qualquer momento.61 O que se via não era mais
o Estado no sentido tradicional do termo, mas um Estado
em processo de extinção: foi o que Karl Marx soube perceber
de imediato, sem vacilar em revisar suas próprias opiniões
anteriores acerca do problema do Estado, que, aliás, nunca
chegaram a ser aprofundadas. Na sua obra clássica, A guerra
civil na França, Marx detecta de imediato que estava diante
de um novo problema colocado pela revolução proletária, isto
é, o Estado. Marx concluía — e ele nunca esteve tão próximo
de Bakunin e dos libertários como em suas conclusões sobre
a Comuna — que não bastava ao proletariado revolucionário
assumir a máquina do Estado e reorganizar a sociedade segundo
os seus próprios interesses. A Comuna de Paris lhe revelara
60mARX, Karl. A guerra civil na França. In: MARX, Karl & ENGELS,
Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, s/d, v.2. p.39-103.
^M IC H E L, Louise. Mis recuerdos de la comuna. México, Siglo XXI,
1973.
59
que a lógica da revolução proletária conduz necessariamente
à destruição da máquina estatal burguesa, como durante anos
e anos os anarquistas afirmaram. Marx, porém, preocupado
ainda com as questões da economia política, não aprofundou
nunca a questão do Estado (que até hoje continua problemática
no interior da teoria marxista), referindo-se apenas a um vago
período de transição, no qual, como diria Engels, o Estado
não é abolido, mas se extingue. Entre os marxistas, será Lênin
que, às vésperas da Revolução de 1917, retomará as teses
de Marx sobre a Comuna de Paris, num livro, O Estado e
a revolução, com certo dogmatismo que lhe prejudica a percep­
ção aguda dos ensinamentos de 1871.62
Os libertários, por outro lado, não tiraram igualmente todos
os ensinamentos da Comuna, inclusive o fundamental: quando
uma verdadeira revolução, como o foi a Comuna, tem início,
não pode se deter a meio do caminho. E enquanto prossegue
a luta, de uma ou de outra forma, coloca-se a questão do
poder, mesmo que esse poder seja exercido no sentido de
uma sociedade autônoma, como era o caso da Comuna de
Paris, que ficou isolada e acabou permitindo a reorganização
da classe dominante e de suas forças armadas no resto da
França. Acabou esmagada, com toda a selvageria de que são
capazes os conservadores destronados que sentem-se com força
para recuperar o poder. Mesmo derrotada em poucos meses,
porém, a Comuna de Paris ofereceu enormes ensinamentos
a todo o conjunto da esquerda daquela época, a começar pelo
próprio Marx, que reviu sua posição, como vimos, em sua
obra A guerra civil na França. Assim, salienta James Guillau-
me: "A guerra civil na França é uma declaração surpreendente,
segundo a qual Marx parece ter abandonado seu próprio progra­
ma e passado para o lado dos feder alistas (os anarquistas,
nota de LPV). Foi esta uma conversão sincera por parte do
autor de O capital, ou uma manobra temporária ditada pelos
62LêNIN, V. El estado y la revolución. In: LÊNIN, V. Obras escogidas.
M oscou, Progresso, 1969. v .l. p.272-365.

60
acontecimentos, uma adesão aparente à Comuna em beneffdo
do prestígio que possui o seu nome?”.63
Certamente não se tratava de um mero jogo oportunista
de Marx, não apenas pela sua reconhecida seriedade científica
e intelectual, inclusive na obra em questão, como se compro­
vará mais tarde nos prefácios de Engels ao Manifesto comunista
de 1848, que revisam amplamente a questão do enfoque marxis­
ta do Estado. E Aithur Müller Lehning, o editor das edições
completas dos Archivos Bakunin, diz que “é uma ironia da
história que, no momento em que o enfrentamento entre autori­
tário e antiautoritário chegasse a seu apogeu na Internacional,
Maix assimilasse o programa da tendência antiautoritária...
A Comuna não tinha nada em comum com o programa estatal
de Marx e estava mais de acordo com as idéias de Proudhon
e as teorias federalistas de Bakunin. A guerra civil na França
está em completa contradição com todos os escritos de Marx
sobre a questão do Estado”.64
A Comuna, na verdade, não se dirigiu no sentido estatal,
apesar da grande influência blanquista, jacobina e marxista
em seu interior. O proletariado parisiense impulsionava a revo­
lução no sentido bakuninista. Esta tendência, porém, também
revelou as suas debilidades, como o faria igualmente, muitos
anos mais tarde, na Espanha. O certo é que os libertários
tiveram de assumir funções estatais na própria Comuna e o
que eles não conseguiam compreender é que se tratava de
um Estado de novo tipo, um Estado em vias de extinção,
como afirmaria Marx e, depois dele, Lênin. Mas, enquanto
programa, & inegável que a Comuna de 1871 estava mais
perto dos proudhonianos e dos bakuninistas. O próprio Baku­
nin, sensível como era, salienta este aspecto: “ Sou partidário
da Comuna de Paris que, apesar do banho de sangue que
sofreu nas mãos da reação clerical e monárquica, cresceu mais
forte e poderosa nos corações e nas mentes do proletariado
63DOLGOFF, Sam (org.). La anarquia según Bakunin. Op. cit. p.309.
^Id e m , ibidem. p.310.

61
europeu. Sobretudo, sou seu partidário porque foi uma negação
direta e claramente formulada do Estado”.65 Esta tendência
antiestatal, porém, não deve ser vista apenas como um fruto
da espontaneidade do proletariado parisiense.
Em 1871, apesar de suas divisões interiores, os anarquistas
influíram de forma praticamente decisiva nos rumos da Comu­
na, particularmente na organização dos serviços públicos, não
apenas pela participação de nomes como Courbet, Longuet
e Vermorel (mutualistas), Variin, Malon e Lefrançais (coleti-
vistas libertários) e os bakuninistas Élie e Élisée Reclus e
a famosa Louise Michel, também bakuninista. O aspecto liber­
tário da Comuna foi ressaltado, como aponta George Wood-
COCk, no Manifesto ao povo francês, datado de 19 de abril
de 1871: “ A completa autonomia da Comuna estendeu-se a
todas as localidades da França, garantindo a cada uma os
seus direitos integrais e a todos os franceses o pleno exercício
de suas capacidades, como homens, cidadãos e trabalhadores.
A autonomia da Comuna terá como limite apenas a idêntica
autonomia de todas as demais comunidades que concordarem
com o contrato; sua cooperação deve assegurar a liberdade
da França”.66 O historiador anarquista George Woodcock vê
neste Manifesto uma nítida influência proudhoniana, ainda mais
do que bakuninista. Para ele, o próprio Proudhon, se vivo
fosse, poderia ser o autor da proclamação.
Dir-se-ia que a Comuna foi prematura e que estava irreme­
diavelmente condenada ao fracasso quando seus partidários
não tomaram a iniciativa de atacar Versalhes, onde se concen­
trava a reação. Mas a Guerra Franco-Prussiana havia aberto
o caminho para a revolução, da mesma forma que a Grande
Guerra de 1914 abriria a estrada para o poder soviético de
1917. O historiador inglês do socialismo, G.D.H. Cole, diz
que “ durante sua breve existência, a Comuna de Paris não
teve sequer tempo para colocar os fundamentos de uma nova
65Idem, ibidem. p.315.
^WOODCOCK, George, O movimento. A n a r q u is m o : u m a h is tó r ia d a s
idéias e movimentos libertários. Porto Alegre, L&PM, 1984. v.2. p.48.
62
sociedade. Sua tarefa era lutar, uma tarefa sem esperança,
desde o momento em que renunciou à idéia de um ataque
em massa a Versalhes, deixando Thiers em liberdade para orga­
nizar a força militar que acabaria com a revolução”.67
Mas a derrota da Comuna teve conseqüências imediatas
no movimento socialista. Em primeiro lugar, a revisão de Marx
sobre a questão do Estado, expressa em A guerra civil na
França, não teve muita repercussão entre os próprios marxis­
tas, especialmente os alemães que, de uma ou de outra forma,
continuaram a defender as antigas posições estatistas, inclusive
porque o próprio Marx nesta obra já várias vezes citada não
proclama a abolição do Estado pura e simplesmente como
os anarquistas, mas apenas um tipo de Estado, o Estado bur­
guês, e insiste em que o proletariado deve tomar o poder,
organizando uma nova sociedade, na qual o Estado não iria
desempenhar o seu papel decisivo, como na sociedade capita­
lista, mas seria, como vimos, um Estado em vias de extinção.
Além disso, os marxistas alemães estavam excessivamente im­
pregnados da influência de Lassalle, o discípulo de Marx mais
estatista do que qualquer outro. Assim, a derrota da Comuna,
apesar da reviravolta no pensamento de Karl Marx, reforçou
em muito as concepções estatistas do socialismo, que viriam
se consolidar posteriormente na social-democracia, primeiro
alemã, depois ao nível internacional, na Segunda Internacional,
baseada inteiramente nos programas de Gotha e de Erfurt do
socialismo alemão. A social-democracia havia esquecido total­
mente os ensinamentos de A guerra civil na França e o próprio
Engels passa claramente a se inclinar para um novo revisio­
nismo no sentido inverso ao que havia sido imprimido por
Marx após as lições da Comuna. A república democrática
e a luta parlamentar e sindical passam a ser as prioridades
do socialismo de tendência marxista, tendência que será abala­
da apenas no transcurso da Primeira Guerra Mundial, quando
a Revolução chega à Rússia czarista e Lênin desenterra A
67COLE, G.D.H. Marxismo y anarquismo (1850-1890). Op. cit. v.2. p.153.

63
guerra civil na França e a Comuna de Paris para a elaboração
do novo programa dos bolcheviques. Entretanto, desde a derro­
ta da Comuna de Paris, começa o declínio do anarquismo
europeu. Com exceção dos países latinos, onde os libertários
ainda conseguem manter alguma influência, o socialismo inter­
nacional se coloca quase inteiramente sob a bandeira do mar­
xismo.

O COMUNISMO DOS CONSELHOS: O PROLETARIADO RUSSO


Também o general Bonaparte serviu p a r a defender a revolução
francesa c o n t r a a reação européia, mas ao defendê-la, afogou-a.
Lênin, Trotsky e seus companheiros são, seguramente, revolucio­
nários sinceros tal como eles entendem a revolução, e não trairão;
mas preparam os quadros governamentais que servirão aos que
virão depois para se aproveitar da revolução e matá-la. Eles
(Lênin e Trotsky) serão as primeiras vítimas de seu método e
com eles. temo, cairá a revolução. Ê a história que se repete:
mutatis, mutandis; ê a ditadura de Robespierre que leva Robespirre
à guilhotina e prepara o caminho para Napoleão.
ERRICO MALATESTA (30 de julho de 1919)

Assim, o declínio anarquista após 1871 trouxe como con­


trapartida o reforço da social-democrada de inspiração marxis­
ta. Ao contrário da Primeira Internacional, a AIT, onde anar­
quistas e marxistas conviviam como facções antagônicas de
uma mesma organização, a Segunda Internacional vai se definir
claramente como marxista, procurando se livrar de todos os
resquícios libertários ou anarcossindicalistas em seu interior.
O historiador marxista Arthur Rosenberg estuda esta evolução
da social-democracia internacional: “...as profundas diferenças
entre Marx e Engels e a social-democracia alemã ficaram esque­
cidas. Marx e Engels continuaram sendo essencialmente revolu­
cionários até a morte. Não empurraram os operários para ações
aventureiras, ainda que sempre avaliassem a situação política
somente da ótica das possibilidades revolucionárias que se
apresentavam. Os partidos operários continentais (europeus),
64
pelo contrário, esqueceram de considerar a revolução como
uma possibilidade política prática. Só levaram em conta o
trabalho legal quotidiano”.68
Foi a Revolução Russa que alterou o quadro. Certamente,
o “legalismo” da Segunda Internacional não era monolítico.
Havia em seu interior correntes de extrema-esquerda que muito
se aproximavam das posições anarcossindicalistas. Mas eram
minoritárias. O fator decisivo de mudança começa na Rússia,
em 1905, quando eclode a Primeira Revolução. Há certas seme­
lhanças indiscutíveis entre o processo revolucionário russo e
a Comuna de Paris: em primeiro lugar, a espontaneidade. O
proletariado russo, em sua luta contra a autocracia czarista,
criou no próprio processo revolucionário, órgãos de poder autô­
nomos, os conselhos ou soviets de operários, nos quais estavam
representadas todas as tendências da esquerda russa, a social-
democracia (com suas duas alas, a bolchevique e a menchevi-
que), os socialistas revolucionários (não-marxistas) e os anar­
quistas, que tinham certa influência no proletariado urbano.
Mas também na derrota, a revolução de 1905 se assemelha
à Comuna: o proletariado urbano lutou praticamente sozinho
contra a autocracia, enquanto o campesinato, que era a imensa
maioria da população russa esteve ausente dos acontecimentos
de 1905. Mas ficaram, como na Comuna, os ensinamentos,
especialmente o de que quando se dá a ruptura, o proletariado
encontra novos órgãos para a transformação da sociedade. Os
conselhos, que estavam em germe na Comuna de Paris, toma­
vam a plenitude de sua forma nas duas revoluções russas,
a de 1905 e a de 1917. E os libertários estiveram presentes,
de maneira ativa e militante.
No fim do século XIX, na Rússia, conta Paul Avrich,
como alguns anos antes na Europa do Oeste, a revolução
industrial e a conseqüente transformação social foram a origem
do movimento anarquista russo.69 Tratava-se de um movimento
68ROSENBERG, Arthur. Democracia e socialismo. São Paulo, Global,
1986. p.217-8.
69AVRICH, Paul. Les anarchvstes russes. Paris, M astro, 1979. p.7-8.
65
enraizado em razão de uma longa tradição radical que vinha
desde os tempos de Stenka Razin e Emiliano Pugatchev e,
mesmo recebendo a natural influência européia, o anarquismo
russo possuía uma doutrina composta de elementos ocidentais
e autóctones. Originara-se no Ocidente, com Godwin, Stimer
e Proudhon, recebera a influência óbvia dos russos Bakunin
e Kropotkin e adquirira um tom especificamente russo com
o populismo.70 Além disso, é preciso levar em conta que o
movimento anarquista do início do século XX na Rússia tem,
como salientou Avrich, seus antecedentes na própria história
do país, inclusive o próprio Leon Tolstoi, que fazia uma simbio­
se entre o cristianismo primitivo e a doutrina anarquista, carac­
terizando-se, porém, por um pacifismo que incomodava os en-
ragés, partidários de Bakunin.
Mas é preciso que se compreenda a Revolução Russa como
um grande movimento de massas que, tanto em 1905 como
em 1917, ultrapassa em muito as tendências e correntes ideoló­
gicas. Entretanto, desde 1905, como uma revolução de baixo
para cima, trazia consigo os órgãos da democracia direta e,
com isso, se movimentava no sentido francamente libertário.
Nesse sentido, é de se destacar a sensibilidade de Lênin em
O Estado e a revolução, que percebeu o que estava contido
no movimento revolucionário de 1905, e a de Trotsky que,
mesmo sem chegar às conclusões de Lênin, igualmente com­
preendeu que os conselhos operários surgidos espontaneamente
em 1905 entravam no cenário da história como novos organis­
mos de poder, o poder dos conselhos, ou poder soviético.71
E aqui começa um novo debate entre os marxistas e os libertá­
rios. Debate que se prolongou por muitos anos, mesmo depois
da tomada do poder pelos bolcheviques em 1917. E o que
estava no centro da polêmica era novamente a questão do
Estado, Não nos referimos aqui às tendências da social-demo-
cracia e demais correntes do movimento revolucionário russo
70Idem, ibidem.
7 1 t r o t s k y , Léon. 1905 suive de bilan et perspectives. Paris, Minuit,
1976.
66
que pretendiam encerrar a Revolução em seus limites burgue­
ses. O debate que interessa é o que se trava entre os anarquistas
e os bolcheviques e as correntes intemacionalistas da social-de­
mocracia. O debate, porém, diferia no tom em relação ao que
ocorrera no seio da Primeira Internacional. Os bolcheviques
e os mencheviques intemacionalistas voltavam os olhos para
a Comuna de Paris e o livro de Marx tantas vezes citado
aqui. Para eles, os conselhos criados espontaneamente pelo
proletariado revolucionário em 1905 e renascidos em 1917
prefiguravam, ou melhor, eram os órgãos da “ ditadura do prole­
tariado”. Para os anarquistas russos eram pura e simplesmente
a negação do Estado, fosse ele qual fosse. Os sovietes, criados
de baixo para cima, eram a democracia direta, isto é, a extinção
pura e simples do Estado. Assim, em 1920, quando a polêmica
fora reacesa com vigor em todo o movimento revolucionário
europeu, o conhecido anarquista alemão, Rudolf Rocker, per­
gunta em um instigante artigo muito difundido na imprensa
libertária da época: “ Sistema dos sovietes ou ditadura do prole­
tariado?”.72
Para os marxistas de tendência bolchevique e social-demo-
crata de esquerda, os sovietes eram a própria ditadura do proleta­
riado, sua forma específica e sua essência. Para os libertários,
não: “ O ponto de partida da Revolução de 1917 foi a de
1905, no transcorrer da qual surgiram órgãos revolucionários
de um novo tipo: os sovietes. Eles nasceram nas usinas de
São Petersburgo durante uma greve geral espontânea. Em razão
de uma ausência quase completa de um movimento sindical
e de uma tradição sindicalista, eles preencheram o vazio, coor­
denando a luta das usinas em greve. O anarquista Volin partici­
pou do pequeno grupo que, em ligação estreita com os operários
e por sua sugestão, teve a idéia de criar o primeiro soviete.
Seu testemunho combina com o de Trotsky, o qual, alguns
meses mais tarde, deveria se tomar o presidente do soviete
72ROCKER, Rudolf. £Sistema de los soviets e dictadura dei proletariado?
In: ROCKER, Rudolf et alii. Los anarquistas y los soviets. Barcelona,
Anagrama, 1977.
67
e que sem nenhuma intenção pejorativa, bem ao contrário,
escreve em seu testemunho sobre 1905: “ A atividade do soviete
significa a organização da anarquia. Sua existência e seu desen­
volvimento ulteriores marcam uma consolidação da anar­
quia”.73
Mesmo depois da tomada do poder pela classe operária,
em outubro de 1917, a questão permanecia: sovietes ou “ dita­
dura do proletariado?”, como a formulou três anos depois Rudolf
Rocker. Entretanto, na esquerda russa daqueles anos, os anar­
quistas, embora não fossem inexpressivos, não constituíam a
hegemonia. Mas eram os mais ardorosos defensores do regime
dos conselhos, ao lado dos bolcheviques. Avrich conta que
“ ao longo de 1917 o movimento (anarquista) centrava-se em
Petrogrado” , sendo que a maior parte das organizações optou
pela linha “ anarco-comunista” , reagrupada em tomo da Federa­
ção dos Anarquistas de Petrogrado, que lançou os jornais,
A Comuna, Comuna Livre e O Pássaro das Tempestades. A
Federação de Petrogrado tinha como objetivo, o que fica evi­
dente pelo título dos dois primeiros jornais citados, a transfor­
mação da capital russa numa comuna igualitária, tendo por
modelo a imagem idealizada da Comuna de Paris de 1871.74
Nesse sentido, os anarquistas russos, resolvidos a uma batalha
em duas frentes, contra o govemo provisório e contra a proprie­
dade privada, decidiram atuar em conjunto com os bolchevi­
ques, seus adversários ideológicos, pois estes formavam o único
grupo, no leque da esquerda russa, que era partidário da destrui­
ção imediata do Estado “burguês”.75
A aproximação dos anarquistas com os bolcheviques teve
intensa repercussão internacional nos meios libertários (inclu­
sive brasileiros), originando uma polêmica extremamente rica,
na qual estiveram envolvidos os mais conhecidos anarquistas
da época, como Errico Malatesta, Rocker, Luigi Fabbri, Emma
Goldman, etc. Emma Goldman, aliás, esteve no próprio cenário
73GUÉRIN, DanieL L’anarchisme. Op. cit. p.97.
74AVRICH, Paul. Op. cit. p.146.
75Idem, ibidem, p .147.
68
dos acontecimentos após a Revolução de Outubro. A vida
desta mulher admirável, por tantos anos desconhecida no Bra­
sil, foi resgatada em um pequeno mas fascinante livro da profes­
sora Elizabeth Souza Lobo.76
Especialmente na Itália, a Revolução de Outubro ecoou
entre os libertários, de onde saiu um dos melhores livros sobre
a questão, Ditadura e Revolução, de Luigi Fabbri, com prefácio
de Errico Malatesta. Fabbri não chega a ser hostil com os
bolcheviques, tal como Malatesta, mas não cede ante eles,
embora perceba-se uma evolução no pensamento libertário
diante do fato da República dos Conselhos. Diz ele: “ Os sovie­
tes representam, na realidade, o poder mais amplo, mais nume­
roso, direto e popular que já houve na história; por conseguinte,
o menos absoluto e tirânico, o menos ditatorial” e acrescenta
mais adiante: “ Nos sovietes, os anarquistas e os revolucio­
nários em geral poderão desenvolver amplamente sua dupla
missão positiva e negativa: de defesa da liberdade contra qual­
quer novo poder que se forme e de reconstrução social sobre
bases comunistas. Os sovietes, juntamente com as outras orga­
nizações proletárias suficientes em si mesmas para todas as
necessidades da vida de uma sociedade sem governo, represen­
tarão diante de qualquer governo que se queira constituir,
a iniciativa livre, o espírito de independência das massas; serão
os núcleos autônomos dos produtores, federados entre si, desde
as cidades e vilas, ou aldeias, às províncias, às regiões, aos
mais vastos territórios nacionais, até as uniões internacionais,
segundo as funções, os tipos de produtores, os serviços públi­
cos, as exigências do consumo e todas as necessidades que
devam atender. Defender sua autonomia das exigências e das
invasões e explorações estatais será uma função necessária,
eminentemente revolucionária, além de anárquica, até que che­
gue o dia em que tal autonomia seja completa com a eliminação
absoluta de todo Estado ou ditadura. Apenas então se poderá
dizer que a revolução social obteve um triunfo completo e
7®SOUZA LOBO, Elizabeth. Emma Goldman: a vida como revolução.
São Paulo, Brasiliense, 1983.
69
que a emancipação do proletariado e, com ela de toda a humani­
dade, foi atingida”.77
Como se observa, Fabbri já admite um “período de transi­
ção” , no qual existe uma certa forma de poder, os sovietes,
no qual os libertários têm um papel a cumprir: o de oposição
de esquerda, buscando tomar mais rápida esta transição, ou
seja, colocando sempre na ordem do dia a completa eliminação
do poder estatal, substituindo-o pelas comunas federadas.
Entretanto, as precárias “ilusões” anarquistas em uma “re­
volução desjacobinizada” duraram pouco. As próprias condi­
ções da Revolução Russa conduziam não à comuna e ao princí­
pio federativo das associações proletárias, mas à centralização,
ao fortalecimento da “ ditadura do proletariado” e ao domínio
do partido único que, em breve se tomaria absoluto. Mas
é certo que houve um momento libertário nos sovietes e os
bolcheviques, ao invés de o frearem, impulsionaram a iniciativa
livre e espontânea das massas. As condições duras da guerra
civil contra os brancos restauradores, o isolamento da revolu­
ção no contexto internacional e as imensas dificuldades econô­
micas frustraram no nascedouro as esperanças libertárias e
as promessas de liberdade nela contidas. O próprio Lênin have­
ria de suspirar com amargor no fim de sua vida, diante do
crescimento do aparelho: “ Nós nos tomamos uma utopia buro­
crática”. Restaria aos anarquistas tentar, ainda, o que eles
chamariam de Terceira Revolução, com o objetivo de devolver
0 poder aos sovietes, acabando com o domínio do partido
único e do Estado cada vez mais centralizado.
E os libertários não ficaram nas palavras apenas. Eles tenta­
ram, através dos marinheiros de Kronstadt, em 1921, de armas
na mão, restaurar plenamente o poder soviético, a República
dos Conselhos. Até hoje, ainda não está definitivamente escla­
recida a hegemonia anarquista na insurreição dos marinheiros
77 FABBRI, Luigi. Dictadura y revoluciSn. Buenos A ires, Proyección,
1967. p.284-5.

70
de Kronstadt,78 mas é inegável a sua participação. De qualquer
forma, os objetivos da Revolução de Kronstadt eram os mesmos
pelos quais lutaram os anarquistas durante todo o período
revolucionário. E ironicamente Trotsky, anos mais tarde, ins­
creverá em seu programa de oposição ao stalinismo muitas
das reivindicações expressas pelos marinheiros da comuna de
Kronstadt de 1921. A ironia da história consiste no fato de
que Leon Trotsky foi o comandante das tropas bolcheviques
que esmagaram a insurreição conselhista. No programa de
Kronstadt constava a revitalização dos sovietes e o fim do
domínio do partido único, com liberdade para todas as tendên­
cias socialistas-proletárias, exatamente o que Trotsky iria rei­
vindicar anos depois quando a burocracia vitoriosa em toda
a sua plenitude se desembaraçava de todos os seus vestígios
revolucionários e bolcheviques. Certamente Trotsky não se
inclinaria para o anarquismo. Pelo contrário, na luta contra
Stálin, ele pretendia encarnar as mais autênticas tradições do
bolchevismo e até o fim da vida seria um ardoroso e inflexível
defensor das concepções de Marx, Engels e Lênin. A tendência
que se desgarra claramente das concepções bolcheviques e
se aproxima do anarcossindicalismo é a Oposição operária,
de Alexandra Kolontai, oposição esta que perde o seu direito
de cidadania justamente por causa da insurreição de Kronstadt
sob a alegação de que “ a revolução estava em perigo”. Pela
primeira vez, na história do bolchevismo, interditava-se as
frações e seu direito de se expressar livremente no interior
do partido. O sonho dos libertários em relação ao poder dos
sovietes estava fraudado. Mais uma vez a história libertara
as energias das massas no sentido do socialismo libertário
e, mais uma vez, em vez da extinção do estado, o que se
verificara fora o aperfeiçoamento da máquina estatal.
Entretanto, é importante destacar, como o faz Eric J. Hobs-
bawm, que nos primeiros tempos do período revolucionário
Henri. A r e v o lt a d e K r o n s ta d t. São Paulo, Brasiliense, 1984.
7$A R V O N ,
METT, Ida. La commune de Crostadt: crépuscule sanglant des soviets.
Paris, Spartacus, s/d.

71
a atitude dos bolcheviques em relação aos anarquistas foi muito
mais benévola do que na era de Marx e Engels. Diz Hobsbawm
que “ a posição bolchevista em relação aos movimentos anar­
quistas e anarco-sindicalistas existentes era surpreendentemen­
te benévola, sendo determinada por três fatores principais:
a) a convicção de que a maioria dos operários anarco-sindi­
calistas era revolucionária e aliada objetiva e, dadas as circuns­
tâncias corretas, aliada subjetiva do comunismo contra a social-
democracia, assim como era potencialmente comunista; b) a
manifesta atração que a Revolução de Outubro exerceu sobre
muitos sindicalistas e mesmo anarquistas nos anos imediata­
mente posteriores a 1917; c) o declínio, igualmente inquestio­
nável e cada vez mais rápido do anarquismo e do anarcossindi-
calismo como movimento de massas em todos os seus antigos
centros, à exceção de alguns poucos”.79
Na realidade, as relações entre bolcheviques e anarquistas,
no período pós-revolucionário, não foram lineares. Entremea­
ram-se momentos de aproximação e afastamento, que podem
ser exemplificados na figura lendária de Nestor Machno, que
entra em cena, na Ucrânia, logo ao dia seguinte da Revolução.
E 6 inegável que o triunfo do socialismo na Rússia deve muito
a este camponês, filho de camponeses, que se tomou no próprio
processo revolocionário um líder militar de surpreendente capa­
cidade, tomando-se uma barreira, durante a guerra civil, aos
exércitos brancos.80 Desde o primeiro momento Machno foi
um anarquista e mobilizou militarmente os camponeses ucrania-
nos ao mesmo tempo contra os latifundiários russos e contra
as forças de ocupação alemãs e austríacas. E a mobilização
se deu através da guerra de guerrilhas, nas quais os liderados
de Nestor Machno saíram plenamente vencedores. Mas, na
medida em que ia derrotando militarmente os brancos e os
ocupantes estrangeiros, Machno colocava em prática a revolu­
70
HOBSBAWN, E J. Revolucionários. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
p.78-9.
80VOLIN. La revohtciôn dexonocida, Buenos Aires, Americalee, 1954.
72
ção de acordo com a orientação anarquista-comunista, coletivi-
zando a terra e formando sovietes camponeses. “ A honra de
ter aniquilado Denikin (um dos principais generais contra-revo-
lucionários, nota de LPV), no outono do ano de 1919, pertence
principalmente aos insurretos anarquistas”, conta Piotr Archi-
nov, participante e historiador da “machnovstchina”. Machno,
porém, nunca aceitou colocar suas foiças sob as ordens de
Trotsky, chefe do Exército Vermelho.
Mesmo assim, os dois exércitos, o bolchevique e o anar­
quista, foram obrigados pela necessidade a lutarem juntos con­
tra os inimigos comuns, pelo menos até 1920, quando os guerri­
lheiros de Machno derrotaram Wrangel. Após isto, os bolchevi­
ques exigiram submissão completa dos anarquistas da Ucrânia.
Como estes se recusaram, os bolcheviques iniciaram a repres­
são, prendendo dezenas de partidários de Machno e do anar­
quismo. Chegou a haver luta, na qual os libertários, inferiori­
zados numericamente acabaram derrotados. Machno se refugiou
primeiramente na Romênia em 1921 e, posteriormente, em
Paris, onde moireu em 1935 na mais extrema miséria.81
Acabara o sonho russo do comunismo libertário.
ESPANHA: O COMUNISMO LIBERTÁRIO
Para a CNT-FAI, enquanto vanguarda organizada dos trabalha­
dores da cidade e do campo, interessava limpar a mesa do jogo.
Sua luta era ofensiva; sua meta uma nova sociedade. Para este
objetivo, o Estado da pequena burguesia e de seus partidos,
fraco e comprovadamente inviável, precisava ser tirado do caminho.
Fiéis a seus princípios, os anarquistas tinham em vista abolir
qualquer forma de Estado e erigir na Espanha o reino da liberdade.
HANS MAGNUS ENZENSBERGER
Quando os fascistas deram o golpe de estado na Espanha,
em 1936, não esperavam encontrar pela frente a resistência
81GUÉRIN, DanieL Ni Dieu, Ni Maître: anthologie de l’anarchisme. Op.
cit. v.4.; MACHNO, Nestor. El gran octubre en Ucrania.i La hicha contra
el estado.; La concepciôn machonovista de los soviets.; Por unos soviets
libres. In; Los anarquistas y los soviets. Op. cit.
73
que tiveram. Nem sonhavam que o golpe desencadeasse uma
revolução social, com os anarquistas organizados na Confede­
ração Nacional dos Trabalhadores (CNT) e na Federação Anar­
quista Ibérica (FAI) como vanguarda. Foi em toda a sua história
o grande momento do anarquismo. Afinal, em terras espanho­
las, eram eles, os libertários, hegemônicos, firmemente enraiza­
dos na consciência dos trabalhadores da cidade e do campo.
E não esperaram um segundo sequer. Tão logo souberam da
rebelião fascista, que contava com o apoio dos governos alemão
e italiano, os libertários da CNT-FAI armaram as massas traba­
lhadoras e desencadearam a revolução social, ocupando fábricas
e desapropriando as terras dos latifundiários.
O anarquismo, na verdade, tinha uma grande tradição na
Espanha. Não tinha os teóricos do comunismo libertário de
outros países, como a França, Itália, Alemanha, Rússia. Mas
em nenhum outro lugar as idéias libertárias tiveram tanta recep­
tividade entre os trabalhadores. País de imensas contradições,
a Espanha, segundo os libertários, estava pronta para a Revolu­
ção, o que se comprovaria pela vitória eleitoral da Frente
Popular, em fevereiro de 1936, fato que, pela primeira vez,
marca a participação dos anarquistas no processo político. Diz
Daniel Guérin, “ a revolução espanhola estava, pois, relativa­
mente amadurecida tanto no cérebro dos pensadores libertários
como na consciência popular... A vitória eleitoral da Frente
Popular pode ser considerada como o início de uma revolução.
Com efeito, as massas não demoraram em ultrapassar os qua­
dros estreitos do sucesso obtido nas umas”.82
Este era o resultado de um processo longo de conscienti­
zação, do qual não podem também ser excluídas outras organi­
zações de trabalhadores, como a UGT (União Geral dos Traba­
lhadores), que havia conquistado imenso prestígio nas Astúrias,
onde os socialistas lideraram uma autêntica revolução proletá­
ria. Os comunistas constituíam ainda um pequeno grupo. Menor
ainda era a organização dos trotskistas. Mas havia 0 POUM
82GUÊRIN, Daniel. Vanarchisme. Op. cit. p.146.
74
(Partido Operário de Unificação Marxista), nem stalinista, nem
trotskista, que chegou a ser um verdadeiro partido de massas
na Catalunha e que esteve próximo da CNT nos momentos
mais dramáticos da guerra civil e da revolução.83 O POUM,
dirigido por Joaquim Maurin e Andrés Nin, sem o dogmatismo
dos stalinistas e liberto do sectarismo de Trotsky em relação
aos anarquistas espanhóis, também compreendera que a guerra
contra o fascismo só poderia ser vencida se fosse levada a
cabo paralelamente à revolução socialista, e a organização
revolucionária de massas na Espanha era, sem dúvida, a CNT
que já em 1934 contava com mais de um milhão de membros.
O Partido Socialista (PSOE) embora bastante forte, não chega­
va ao poderio da CNT-FAI. Era, além disso, extremamente
heterogêneo, contando com uma tendência de esquerda, nitida­
mente revolucionária, e uma maioria reformista na mais clássica
tradição da social-democracia européia.
A revolução espanhola de 1936 teve um período ascencio-
nal dinâmico e quase irresistível, especialmente pela decisão
da CNT-FAI em instaurar de imediato o comunismo libertário
e a autogestão no campo e na cidade. Gaston Levai salienta
que a palavra “coletivização” durante a guerra civil na Espanha
designa simplesmente a autogestão,84 A situação e o clima
era de uma autêntica revolução, especialmente na Catalunha,
no Levante e em partes do Aragão. Nessas regiões, estabele­
cia-se, de fato, o programa da CNT-FAI, o programa do comu­
nismo libertário, e estava em curso uma revolução autentica­
mente operária, a última revolução proletária nos moldes clássi­
cos ocorrida na Europa. Por isso mesmo, é de surpreender
que um dos mais brilhantes marxistas, Leon Trotsky, tenha
se equivocado tanto em relação ao que ocorria na Espanha.
Ao contrário de sua obra clássica sobre a Alemanha, onde
ele percebeu como ninguém as forças em jogo, na Espanha
83WOODCOCK, George. Anarquismo, Op. cit. v.2. p,102.
^LEVAL, Gaston. La colectivizaeién en Espana de 1936 a 1939. In:
Lm autogestion, el estado y la revolución• Buenos Aires, Proyección,
1969. p.37.
75
Trotsky simplesmente não via o que estava diante de todos,
ou seja, a revolução era conduzida pela CNT e, em parte,
pelo POUM. Trotsky, porém, num julgamento dogmático e
sectário, afirma que “os anarquistas demonstraram sua fatídica
incompreensão das leis e problemas da revolução quando tenta­
ram limitar seu trabalho a seus próprios sindicatos, presos
à rotina dos tempos de paz”.85 Ora, o que houve foi exatamente
o contrário. A revolução em curso era obra das massas em
perfeita combinação com os objetivos da CNT. E ainda mais
do que isso: a própria revolução deitava por terra o “ purismo”
apolítico dos anarquistas que não apenas votaram na Frente
Popular como, no transcurso da guerra civil, fizeram parte
integrante do governo republicano.
O próprio líder guerrilheiro Buenaventura Durruti, segura­
mente o mais popular entre todos os líderes da esquerda espa­
nhola, aceitou a participação política, juntamente com seus
amigos e companheiros da CNT, Garcia Oliver e Jover, sendo
que Oliver chegou a ser ministro da República.86 Certamente
a participação política dos anarquistas no Governo não foi
uma questão pacífica e houve dissidências, embora estas não
chegassem a afetar a unidade da CNT e da FAL Mais de
30 anos depois, será a legendária Federica Montseny quem
fará a autocrítica da participação dos anarquistas no governo
republicano. De qualquer forma, a revolução e a guerra da
Espanha demonstraram, mais uma vez, as limitações do anar­
quismo, mesmo em sua forma mais acabada que, sem dúvida
alguma, foi o anarcossindícalismo espanhol, na questão crucial
do poder e da transição. Despreparadas para enfrentar o proble­
ma do exercício do poder, a CNT e a FAI acabaram sendo
envolvidas pelos partidos políticos com experiência, prática
e vocação para o Governo. É quando isto ocorre que a revolu­
ção se paralisa, entra em estagnação, privilegiando-se apenas
85TROTSKY, Léon. Lessons of Spain. Londres, 1937.
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O curto verão da anarquia. São Paulo,
Companhia das Letras, 1987.; GUÉRIN, Daniel. Ni Dieu, Ni Maître:
anthologie de l’anarchisme. Op. cit. v.4.
76
a República e a guerra contra o fascismo. Assim, a partir
de maio de 1937, começa o declínio da revolução. Mas qualquer
historiador sério não poderá negar que os acontecimentos do
verão e do outono de 1936 revelaram as virtudes e as falhas
das organizações libertárias espanholas. A verdade é que “ du­
rante anos a FAI tinha se preparado para um tipo de situação
em que uma greve geral e um curto e intenso período de
insurreição poderiam derrubar o Estado e instaurar o milênio
do comunismo libertário”.87 Mas os anarquistas espanhóis não
eram intelectuais sonhadores e desligados do movimento de
massas. Pelo contrário, a maioria absoluta dos integrantes da
CNT e da FAI, inclusive as lideranças como Durruti, Oliver,
Ascaso, Jover e tantos outros, eram operárias. “ Eles eram
agitadores de rua e guerrilheiros experientes, e na situação
crítica surgida com o golpe militar de 19 de julho estavam
no melhor de sua forma. Em Barcelona e Valência, nos distritos
rurais da Catalunha e em partes de Aragão, e até certo ponto
em Madri e Astúrias, foi a ação imediata da elite da FAI
e dos trabalhadores sindicalizados da CNT que derrotou os
generais e preservou estas cidades e regiões para a República.
O triunfo das organizações da classe trabalhadora criou um
clima revolucionário e até uma certa situação revolucionária
temporária na Catalunha, no Levante e em partes de Aragão.
Durante vários meses as forças armadas dessas regiões foram,
em geral, milícias controladas pelos anarquistas. As fábricas
foram em grande parte tomadas pelos trabalhadores e dirigidas
pelos comitês da CNT, enquanto centenas de aldeias ou divi­
diam ou coletivizavam a terra, e muitas vezes tentavam organi­
zar comunidades libertárias do tipo defendido por Kropotkin.
A vida mudou suas feições nos menores detalhes...” 88 E que
é isso se não uma autêntica revolução em curso? Uma revolu­
ção, aliás, que tinha as suas próprias bases teóricas, como
nos conta Diego Abad de Santillán: “ Em todas as reuniões
da CNT e da FAI propicia-se o estudo das bases gerais sobre
87WOODCOCK, George. O anarquismo. Op. cit. v.2. p,103.
88Idem, ibidem.
77
as quais há de ser edificada a nova sociedade, sem capitalismo
e sem Estado”.89
O espantoso é que, decorridos mais de 50 anos da Guerra
Civil Espanhola, este aspecto daquele marcante e decisivo
acontecimento histórico (não apenas para a Espanha), ainda
permaneça em grande parte desconhecido. E o que é mais
curioso: sistematicamente relegado ao esquecimento durante
décadas, seja pelo fascismo triunfante no interior das fronteiras
ibéricas, pelo stalinismo vitorioso após a Segunda Guerra Mun­
dial, ou pelas democracias capitalistas igualmente beneficiadas
pela derrota das forças do Eixo. O que se deixa na penumbra
da história ê que o golpe fascista serviu como sinal para uma
autêntica revolução social na Espanha. São raros os historia­
dores, como Pierre Broué e Émile Teminne, com sua Revolução
e guerra na Espanha, que percebem com argúcia o processo
revolucionário espanhol. Aliás, foi esta revolução social que
levou a guerra tão longe, pois Franco e seus fascistas poderiam
ter liquidado o caso espanhol em poucos dias, não fosse a
resposta revolucionária dos trabalhadores.
Integrados na Frente Popular que sustentava a República
contra o fascismo, os trabalhadores foram muito mais além
de uma pura e simples defesa da democracia convencional.
Quando a República parecia perdida, exigiram as armas que,
de forma relutante, acabaram lhes sendo entregues. Então,
teve início um processo que poderia ter mudado o curso da
história, não fosse o abandono em que se viram atirados os
resistentes espanhóis, enquanto os fascistas recebiam todo o
apoio da Alemanha hitlerista e da Itália de Mussolini. Especial­
mente na Catalunha, no Levante e em partes de Aragão o
que se verificou foi uma revolução social. República sim, mas
não a que permita o pronunciamento dos fascistas. George
Orwell em sua maravilhosa Homage to Catolonia (no Brasil

"SANTILLÂN, Diego Abad de. Organismo econômico da revolução: a


autogestão na Revolução Espanhola. Sáo Paulo, Brasilense, 1980. p.45.
O tex to o rig in a l è de 1935.

78
traduzida como Lutando na Espanha), define bem o tipo de
resistência dos trabalhadores espanhóis: “ A classe operária
não resistiu a Franco em nome da democracia, como seria
provável que o fizéssemos na Inglaterra. Sua resistência evoluiu
juntamente com uma insurreição revolucionária. Os campone­
ses confiscaram a terra e os sindicatos se apoderam de inúmeras
fábricas e da maior parte dos meios de transporte”.
Assim, ao mesmo tempo em que resistiam ao golpe fascista,
os trabalhadores punham em prática a reconstrução da socie­
dade em novas bases. Em última análise, a luta contra o fascis­
mo e a construção do socialismo se confundiam em um único
processo. E quem estava na ftente dessa revolução? Não era
o diminuto Partido Comunista, quase inexpressivo e incondi­
cional, embora heróico, defensor da República democrática
pura e simples, com os tradicionais partidos burgueses e a
maior parte do Partido Socialista. Também não era o PSOE
(o partido socialista), igualmente defensor da democracia e
igualmente heróico no combate ao fascismo, dividido com cor­
rentes à esquerda e à direita. Também não eram os tiotskistas,
inexpressivos na Espanha quantitativamente, mesmo tendo rea­
lizado um m agnífico trabalho teórico,90 apesar das posições
dogmáticas de Trotsky. E, é claro, não poderiam ser os demo­
cratas de várias tendências que se unificaram na luta anti­
fascista.
Na vanguarda da Revolução Espanhola, os anarquistas
(CNT-FAI) e o Partido Operário de Unificação Marxista
(POUM). Estas duas forças expressavam toda a disposição
dos trabalhadores espanhóis em mudar o curso da luta e, talvez,

90O maior exemplo do alto nível teórico dos trotskistas espanhóis


no período prê-revolucionário é a revista Comunismo, publicada de
1931 a 1934 (o primeiro número è de 15 de maio de 1931). Entre
os colaboradores de Comunismo estavam Andrês Nin e Juan Andrade,
que seriam destacados dirigentes do POUM. Os principais artigos
publicados na Revista Comunismo foram reeditados na Revista Comunismo
(1931-1934): la herancia teórica dei marxismo espanol. Barcelona, Fonta-
mara, 1978.
79
da própria história mundial subseqüente. Aliás, o POUM de
Andrés Nin, Joaquim Maurin, e Julian Gorkin, cuja força se
concentrava principalmente na Catalunha, teve a sensibilidade
de se aproximar logo da CNT-FAI, sem romper com a Repúbli­
ca, para colocar em prática um programa revolucionário que
tinha como centro da reconstrução a autogestão, em um novo
tipo de socialismo não-burocrático.
Por outro lado, a CNT e a FAI, na prática, acabaram
renunciando aos seus dogmas apolíticos, não apenas pela parti­
cipação no governo republicano, mas fundamentalmente pela
necessidade de criar organismos administrativos (e políticos)
nas extensas regiões libertadas do fascismo, onde, de uma
ou de outra forma, surgia um novo tipo de Estado e de poder
que fluía naturalmente para as mãos das massas organizadas
na CNT. Apenas, mas este apenas é uma questão decisiva,
o Estado que emergia do processo revolucionário era completa­
mente diferente tanto do tipo de Estado vigente nas repúblicas
democráticas, como do Estado burocratizado que surgira das
contradições da Revolução Russa e que encontrava o seu mode­
lo no que já então era conhecido como o stalinismo. Era,
com novas características e as espedficidades da Revolução
Espanhola, o Estado-Comuna, como em 1871 em Paris e a
República dos Conselhos na Rússia de 1917. A rigor, estava
sendo colocada em prática uma nova sociedade, não-burocráti-
ca, mas que, na verdade, tomou possível durante vários anos,
a resistência efetiva contra as bem armadas tropas fascistas
de Franco. Foi este processo revolucionário extremamente rico
e original que tomou possível à República se manter por alguns
anos e, se não fosse a hipócrita política não-intervencionista
das repúblicas democráticas ocidentais, a Guerra Civil Espa­
nhola e a revolução que a impulsionava e dava-lhe sentido
teriam tido outro destino, já que Hitler e Mussolini intervinham
abertamente ao lado das tropas de Franco.
Portanto, é um erro grosseiro e não corresponde à verdade
histórica a visão simplista de se apresentar a Guerra Civil
Espanhola como um confronto entre dois princípios e duas
forgas materiais; a democracia e o fascismo. Na verdade, a
80
Guerra Civil foi uma genuína revolução, abatida pela força
das armas, pelos recursos materiais superiores do inimigo, pelo
isolamento a que as forças revolucionárias se viram relegadas
e, principalmente, pelo fato de que, no interior do próprio
bloco republicano, setores consideráveis, inclusive o PC, o
PSOE e a União Soviética (única potência que interveio aberta­
mente ao lado da República), se opunham ao desenvolvimento
do processo revolucionário colocado em prática pelas massas
com a CNT, a FAI e o POUM na vanguarda,
A república espanhola em si mesma era frágil, consumida
por profundas contradições intestinas e não tinha forças sufi­
cientes para resistir nem mesmo por alguns poucos meses ao
golpe de Franco e de seus fascistas. Foi este lado da história
que ficou marginalizado, mesmo em trabalhos extensos e minu­
ciosos como o de Hugh Thomas. A revolução, por décadas,
ficou esquecida a não ser por aqueles que dela participaram
no centro dos acontecimentos. Felizmente, hoje, já se pode
tirar algumas conclusões daquele período decisivo da história
da humanidade e, mesmo no Brasil, por exemplo, começa a
se tomar possível buscar as fontes do que houve na realidade:
além do livro de George Orwell, Lutando na Espanha, estão
traduzidos para o português a obra de Diego Abad de Santillán,
Organismo econômico da revolução — a autogestão na Revolu­
ção Espanhola, e o apaixonante “romance” de Hans Magnus
Enzensberger, O curto verão da anarquia, que se constitui
na biografia de Buenaventura Durruti através de depoimentos
de seus contemporâneos. Enfim, começa a se dissipar a penum­
bra desse período histórico, comprovando-se que os libertários
exerceram um papel decisivo e estiveram sempre na vanguarda
da revolução e da reconstrução social, simultâneas à guerra
e à resistência armada ao fascismo. O anátema que de todos
os lados caía sobre os anarquistas vai cedendo lugar à verdade
histórica, o que não & sem conseqüências para os movimentos
sociais e políticos contemporâneos.
Talvez, resgatando-se este passado criativo da Revolução
Espanhola, seja possível compreender as razões pelas quais
o primeiro-ministro da Espanha contemporânea, quando foi
81
relembrado o cinqüentenário da guerra civil, em 1986, tenha
recomendado o esquecimento daqueles anos. Certamente não
foi tanto pelo sangue derramado, mas essencialmente porque
foi possível, no meio da guerra civil, colocar em prática um
novo tipo de socialismo que não apenas não excluía, mas
que colocava como seu fundamento, a liberdade e a auto­
gestão.91
Nada indica que a Declaração de Princípios do Congresso
da CNT, em Toulouse, em 20 de outubro de 1947, em seus
aspectos fundamentais, não pudesse ser real: “ Se nós tivésse­
mos vencido a guerra, a revolução teria seguido o seu curso.
Nada, nem pessoa alguma, teria impedido que o que começara
no dia 19 de julho, viesse a se desenvolver, a se completar.
Provavelmente, esta é precisamente a razão pela qual a guerra
devesse ser perdida e a revolução assassinada”.
A CNT, como vanguarda dos trabalhadores espanhóis, te­
ve, portanto, consciência desde o início da revolução até o
seu final: se a guerra terminasse com a derrota do fascismo,
Franco não seria o único vencido.

LIBERTÁRIOS NO BRASIL;
A organizaç Ao INDEPENDENTE DO PROLETARIADO
Foi, no Brasil, inegavelmente, na curta história do movimento
obreiro, a maior, a mais solene, a mais genuína reunião proletária,
que passará para as páginas sempre rubras desta mesma história,
como um marco, como uma atalaia gigantesca, a descortinar
o Juturo, abrindo caminho largo e reto por onde passa altiva
e heróica a legião proletária em busca dos verdadeiros princípios
humanos: liberdade e justiça, em contradição à tirania e à miséria
da sociedade contemporânea. A realização do Segundo Congresso
foi a demonstração frisante da vontade, da energia proletária,
representada nas organizações de produtores existentes neste vasto

9*VARES, Luiz Pilla. Espanha: a revolução desconhecida. Zero Hora,


Porto Alegre, 21 juL1986. p.4.
82
país, que souberam, vencendo todas as barreiras, enviar seus repre­
sentantes à grande reunião oper&ria.
(A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, 1/10/1913, p.2. Sobre
o Segundo Congresso da COB — Confederação Operária Bra­
sileira.)
Respeito à lei, moralidade administrativa, liberdade, desejam os
políticos da oposição, mas quando governam, praticam os mesmos
crimes contra os quais se revoltam quando querem subir. Esta
é a verdade que ressalta, nítida, clara, insofismável.
(A Vida. Publicação mensal anarquista. Rio de Janeiro,
30/11/1914, p.2.)

Durante muitos anos foi extremamente difícil pesquisar


a história do movimento social no Brasil e, em particular,
a da classe operária. Muitas causas contribuíram para esta
dificuldade. Em primeiro lugar, o autoritarismo constantemente
presente na política brasileira, que viu sempre intenções sub­
versivas em qualquer pesquisa independente que não consa­
grasse a ordem social existente. A pesquisa se tomava impossí­
vel durante os períodos de ditadura que nunca pouparam as
instituições universitárias, mas que reprimiram sempre e funda­
mentalmente as organizações da classe trabalhadora que pode­
riam por conta própria estudar a sua própria história.
Mas, além dos problemas políticos, houve, é claro, o elitis­
mo das universidades, que durante muitos anos colocou com­
pletamente à margem de suas preocupações os movimentos
sociais em nosso país. E, finalmente, o próprio movimento
operário brasileiro tem inegavelmente a sua parcela de respon­
sabilidade no descaso com que foi tratado pela história do
Brasil.
Isto ocorreu com todo o movimento social e suas tendências
ideológicas e políticas por muitas décadas. Apenas nos últimos
15 anos começou a existir uma preocupação real com os movi­
mentos sociais brasileiros do ponto de vista histórico e uma
série de obras acadêmicas juntaram-se a alguns pioneiros não-a-

83
cadêmicos,92 como Everardo Dias, Otávio Brandão, Hermínio
Linhares, Edgar Rodrigues, Edgar Leuenroth. Mesmo com to­
dos os óbvios limites dos estudos acadêmicos no que diz respei­
to à história da classe trabalhadora no Brasil, é inegável que
houve um incontestável avanço e já se tomou possível reunir
material suficiente para pelo menos se esboçar uma trajetória
histórica que foi muito diferente das versões oficiais e tratou-se
de uma história não raras vezes subterrânea, que nada teve
da tranqüilidade dos sindicatos atrelados ao Estado através
do Ministério do Trabalho, atrelamento que permanece até
hoje.
Por outro lado, se isto é verdade em relação ao conjunto
do movimento operário, as dificuldades redobram quando se
trata de pesquisar a presença do anarquismo e do anarcossindi-
calismo no Brasil. Também aqui a própria esquerda tem a
sua parcela de responsabilidade, pois durante várias décadas
aceitou a tese simplista e dogmática de que o anarquismo
e o anarcossindicalismo representavam apenas a infância do
movimento operário brasileiro. Esta foi a tese sempre defendida
pelo Partido Comunista, mas não somente pelo PC. Em seu
conjunto, a totalidade da esquerda embalou-se nesse simplismo,
sem aprofundar tudo o que significava a presença do anarcos­
sindicalismo nos primeiros tempos do movimento operário no
país. Esta cortina de silêncio que cobria a participação anar­
quista no movimento social brasileiro começa, felizmente, a
ser levantada e já se pode reconstituir uma etapa importante
das lutas operárias, graças a uma série de obras editadas recen­
temente, mas, principalmente, pela recuperação de um material
de primeira mão, como a coleção do jomal da Confederação
Operária Brasileira (COB), A Voz do Trabalhador, pela Impren­
sa Oficial do Estado de São Paulo, e a revista A Vida, que
se intitulava Periódico Anarquista, esta última organizada pelo
Entre os pioneiros da história das lutas operárias no Brasil encon-
tram»se velhos militantes anarquistas e comunistas, como Everardo Dias,
Edgar Rodrigues, Edgard Leuenroth, Hermínio Linhares, Astrogildo
Pereira, Octâvio Brandão e outros.
84
Centro de Memória Social (CMS) e pelo Arquivo Histórico
do Movimento Operário Brasileiro de Milão, Itália (ASMOB).
Além disso, funciona na Universidade de Campinas (Unicamp),
o Arquivo Edgard Leuenroth, que passou a coletar dados pre­
ciosos sobre a história social do Brasil.
Enfim, parece estar se encerrando o período do silêncio
preconceituoso ou mal intencionado e o do simplismo em rela­
ção à presença das idéias libertárias no Brasil. Esta nova postu­
ra certamente virá favorecer o surgimento de uma visão mais
abrangente que certamente terá as suas conseqüências práticas
no interior dos próprios movimentos sociais brasileiros, espe­
cialmente o sindicalismo que ficou anos a fio anestesiado pela
sua vinculação ao Estado através, como nos referimos acima,
do Ministério do Trabalho.
E, sem dúvida alguma, olhando o seu próprio passado,
a sua infância, se quisermos chamar assim, o movimento operá­
rio brasileiro encontrará ali virtudes que perdeu no seu desen­
volvimento, podendo adquirir um novo vigor, justamente quan­
do começa a soltar as amarras que o prendem ao Estado.
Poderá descobrir que, em um tempo que já vai distante, foi
ousado e independente e que o seu ressurgimento em novas
bases, com nova mentalidade, em outra época, tem algo a
ver com o ano de 1906.
Obviamente, não se trata aqui de se realizar um resumo
do movimento operário brasileiro, o que ultrapassaria em muito
os objetivos desta obra. Mas toma-se impossível falar sobre
o anarquismo no Brasil, sem buscar as origens deste movi­
mento, já que, na prática, ambos se confundem. Era ainda
nos últimos anos do século passado um movimento operário
incipiente, como primitiva era a indústria em um país que
recém havia abolido a exploração da mão-de-obra escrava.
Em 1890, surge, pelo menos teoricamente, um Partido Operário
Brasileiro, criado pelos socialistas, que durou até 1892, ano
da realização do Primeiro Congresso Operário Brasileiro,
eleição direta para todos os postos eletivos, salário mínimo,
jornada de trabalho de oito horas e proibição ao trabalho para
os menores de 12 anos de idade, mas o Congresso recomendava
85
também a revolução social e afirmava que “a classe trabalha­
dora jamais poderá emancipar-se da tutela do capital, sem
que se aproprie dos meios de produção”,93 Em 1902, surge
o célebre Manifesto socialista, o primeiro documento marxista
brasileiro, redigido por Silvério Fontes, ano em que se realizou
em São Paulo, o Congresso Operário Brasileiro. Basicamente
influenciado por imigrantes, principalmente italianos, em meio
a imensas dificuldades (para a classe dominante a questão
social “era um caso de polícia”), começa também a surgir
uma imprensa operária que até o início da década de 20 foi
muito rica e variada, expressando não apenas a visão ideológica
dos primeiros militantes da classe trabalhadora com consciência
de classe, mas também o nível da própria luta de classes no
País. E tanto nos sindicatos, como na imprensa operária, os
anarquistas vão se tomando hegemônicos em relação aos socia­
listas de inspiração marxista ou reformista. As greves começa­
vam igualmente a fazer parte da vida urbana brasileira, apesar
da repressão. Nessas greves de início do século XX, os maiores
incentivadores eram os trabalhadores imigrantes, de tendência
ideológica libertária, os quais preparavam o período marcante
do anarcossindicalismo brasileiro.
As teses do anarcossindicalismo triunfam plenamente em
1906, no Congresso Operário Brasileiro, realizado no Rio de
Janeiro, que adota o sistema federativo de organização nos
moldes da Confederação Geral dó Trabalho francesa. A Confe­
deração Operária Brasileira (COB), porém, só surgirá em 1908
e terá no jomal A Voz do Trabalhador o seu mais eficaz
meio de divulgação e organização, com informações do movi­
mento operário de todo o país. A Voz durará de 1908 a 1915
e, relida hoje em edição fac-similar, demonstrará que a chamada
“ infância” do movimento operário no Brasil, pelo menos no
que diz respeito à imprensa, estava bem mais próxima da classe
trabalhadora do que os jornais politizados da esquerda que
ainda circulam hoje em dia.
Antônio Paulo. História do movimento operário no Brasil.
93R E Z E N D E ,
São Paulo, Ática, 1986. p.9-10.
86
Entretanto, além de A Voz do Trabalhador, os libertários
se faziam presentes com outras publicações, das quais as princi­
pais foram A Terra Livre, La Battaglia e A Plebe, além da
revista A Vida, cujo primeiro número sairia a 30 de novembro
de 1914.94 E isto para não se mencionar dezenas e dezenas
de publicações locais e jornais elaborados pelos próprios operá­
rios em seus sindicatos, exaustivamente mencionados por Her-
mínio Linhares.95
Praticamente toda a imprensa libertária no Brasil dos pri­
meiros 20 anos do século XX refletem as concepções anarcos-
sindicalistas da COB, assim descritas por Giuseppina Sferra:
“ ...a primeira contribuição dos anarcossindicalistas para o mo­
vimento operário diz respeito à maneira como conceberam as
formas de organização independente dos trabalhadores, reco­
nhecendo sua importância como instrumento de sua conscienti­
zação de classe. Um de seus maiores méritos é 0 de, entendendo
a importância da organização dos trabalhadores, nela participar,
atuando como parte das manifestações da classe operária, per­
mitindo a integração entre militantes e a própria organização
operária. Assim, esta atuação não pode ser vista como exterior
à classe, e não pretendiam os anarcossindicalistas dirigi-la ou
conduzi-la ao caminho da revolução, pois esta continua a ser
uma tarefa da própria classe”.96
A COB realizou, ainda, 0 seu Segundo Congresso, em
setembro de 1913, onde triunfaram plenamente as idéias do
anarcossindicalismo, então plenamente hegemônicas no movi­
mento operário brasileiro. Na realidade, a hegemonia do anar­
cossindicalismo e das idéias libertárias no movimento operário
só será abalada definitivamente em 1917, com a Revolução
Soviética triunfante, que tem intensa repercussão nos meios
94FERREIRA, Maria Nazareth. A imprensa operária no Brasil (1880-1920).
Petrôpolis, V ozes, 1978.
95LINHARES, Hermínio. Contribuição à história das lutas operárias no
Brasil. São Paulo. Aifa-Omega, 1977.
FERRA, Giuseppina. Anarquismo e anarcossindicalismo. São Paulo,
Âtica, 1987. p.85.
87
operários e entre os intelectuais de esquerda no Brasil. Foi
tão grande o impacto da Revolução Russa que mesmo anarquis­
tas de primeira linha, como Hélio Negro e Edgard Leuenroth
editaram um pequeno livro com o que eles entendiam ser o
“ maximismo” ou o “bolchevismo”.97 O livro reflete certamente
as posições anarcossindicalistas de ambos, Negro e Leuenroth,
mas traz inequivocamente as esperanças depositadas pela coi>
rente libertária na Revolução Soviética dois anos após o seu
triunfo. Tanto é assim que o subtítulo de O que é o maximismo
ou o bolchevismo é Programa comunista. Aliás, não foi apenas
no Brasil que a Revolução Soviética influenciou os anarquistas.
A magnífica obra de Luigi Fabbri, Ditadura e revolução, com
introdução de Errico Malatesta, mostra que também na Itália
o sucesso dos bolcheviques russos repercutiu intensamente en­
tre os anarquistas, possibilitando, inclusive, um avanço nas
próprias concepções libertárias em relação ao processo de revo­
lução social. O livro de Fabbri, nesse sentido, não envelheceu
e permanece extremamente atual quando se quer debater a
sociedade pós-revolucionária.
No Brasil, porém, a influência será definitiva. O impacto
da Revolução era poderoso demais para não criar raízes em
um movimento social jovem e que apenas começava a dar
os seus primeiros passos. Assim, será entre os antigos militan­
tes anarquistas que o marxismo em sua versão bolchevista
se implantará definitivamente no Brasil, quando em março
de 1922, é fundado o Partido Comunista do Brasil, entre cujos
primeiros integrantes estariam Astrogildo Pereira e Otávio
Brandão, ex-propagandistas intelectuais do anarquismo e das
idéias libertárias. Edgard Leuenroth, porém, não se tomará
jamais um marxista, apesar do encanto e da atração que sobre
ele exerceu a revolução bolchevique. Permanecerá até o fim
um anarquista e em obra posterior revelará a sua desilusão
com o bolchevismo, reafirmando as idéias libertárias que sem­
pre defendeu.
^N EG RO , Hélio & LEUENROTH, Edgard. O que é marxismo ou o
bolchevismo. São Paulo, Semente, s/d.
88
A fundação do Partido Comunista, porém, foi um fator
decisivo para o declínio do anarquismo e do anarcossindi-
calismo no Brasil. As tendências libertárias ainda permane­
ceriam relativamente influentes no transcurso da década de
20, mas não possuíam mais, longe disso, a hegemonia do movi­
mento operário. Na década de 30, em franco declínio, o anar-
cossindicalismo praticamente não tem mais expressão alguma
no movimento social. A hegemonia passa para o PCB, mas
este também encontrará, à sua direita, um obstáculo imenso
e que até hoje não foi transposto por nenhuma tendência da
esquerda em sua tentativa de fusão com o movimento vivo
da classe trabalhadora: o sindicalismo oficialista inaugurado
por Getúlio Vargas após a Revolução de 30.
Apenas agora, nos últimos 10 anos, o movimento da classe
trabalhadora brasileira luta por um sindicalismo livre da tutela
oficial e deu passos significativos nesse sentido, com conquis­
tas reais. Ao recuperar sua autonomia e sua própria história,
o sindicalismo brasileiro encontrará, surpreso, em seu passo
remoto, valiosas indicações para a sua afirmação como movi­
mento independente: verá na COB os insistentes apelos para
a organização independente das classes trabalhadoras, apelos
que soam com impressionante atualidade.

80
CONCLUSÃO: E HOJE?
Fora do marxismo libertário — uma experiência longa, árdua
e dolorosa já o demonstrou — não existe verdadeiro socialismo•
DANIEL GUÉRIN
A revolução poderá ser feita, repetimo-lo pela milésima vez, com
uma orientação não-anarquista, mas será tanto mais completa
quanto mais anárquica for; e satvar-se-â de um retomo ao passado,
de um salto para trás, isto ê, terá triunfado totalmente apenas
quando tiver proporcionado aos homens toda a liberdade, tomando
impossível qualquer dominação e qualquer ditadura de qualquer
espécie e sob qualquer nome que se esconda.
LUIGI FABBRI

Num dos mais importantes livros da filosofia marxista até


hoje escritos98 Kari Korsch afirma que “todas as tentativas
para restabelecer a doutrina marxista como um todo e em
sua função original de teoria da revolução social da classe
operária, são hoje utopias reacionárias”.
E acrescenta em suas Dez teses sobre o marxismo atual:
“ O primeiro passo a ser dado, a fim de reerguer uma teoria
e uma prática revolucionárias, consiste em romper com este
marxismo que pretende monopolizar a iniciativa revolucionária
e a direção teórica e prática”.
Da mesma forma, tentar restaurar o anarquismo do século
XIX, sob qualquer de suas formas, como alternativa ao “ socia­
lismo autoritário” e ao capitalismo monopolista, constitui tam­
bém uma “utopia reacionária”. Tanto o marxismo clássico
como o comunismo libertário tiveram as suas últimas chances
na revolução espanhola. Quando foi derrotado o proletariado
espanhol, como sinal para o desencadear da Segunda Guerra
98KOSCH, Karl. Marxisme et philosophie. Paris, Minuit, 1964. p.184.
90
Mundial, estava encerrada uma etapa da teoria e da prâxis
socialistas.
O anarquismo praticamente desaparecera de cena como
uma força entre os movimentos sociais. Entretanto, os anos
50 marcam o início de uma profunda revisão do marxismo,
que se acentuará na década seguinte. Mas a revolução húngara
de 1956 “desenterra” na prática a idéia da república dos conse­
lhos operários, cuja chama era mantida acesa apenas por alguns
pequenos grupos de extrema-esquerda sem grande influência
nos movimentos sociais europeus. No mesmo ano de 1956,
a crise do comunismo estatal polonês leva mais longe a revisão
teórica do marxismo ou, seria mais preciso dizer, de sua versão
ideologizada para a justificação das sociedades burocratizadas
do leste europeu. No bojo desta revisão do marxismo, duas
importantes vertentes vão oferecer as condições para o nasci­
mento de um novo pensamento libertário: a prática da autoges­
tão, iniciada pelos comunistas anti-stalinistas iugoslavos em
seu enfrentamento com a União Soviética, e a recuperação
do indivíduo no interior do marxismo, proposta pela filosofia
de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.
É a década de 60, porém, que vai acentuar a entrada
em cena de novos movimentos sociais libertários, na Europa
e nos Estados Unidos. Surge o feminismo, um dos mais impor­
tantes movimentos da segunda metade do século XX, a revolta
negra nos Estados Unidos, as greves selvagens, que passam
por cima das tradicionais direções partidárias e dos poderosos
sindicatos da classe trabalhadora. As mobilizações e os movi­
mentos pacifistas e ecológicos adquirem cada vez maior ampli­
tude nos países industrializados. Explodem as revoluções nos
países periféricos, a começar pela cubana, a guerra do Vietnã,
a Primavera de Praga e o seu trágico assassinato, as rebeliões
estudantis nos Estados Unidos, o surgimento da nova esquerda,
à margem da social-democracia e do comunismo oficial. E,
principalmente, Maio de 1968 na França, um movimento revo­
lucionário de massas, que, pela primeira vez, desde a Revolução
Espanhola de 1936 e a Húngura de 1956, coloca em xeque
as estruturas estabelecidas. Todos esses movimentos novos
91
que vão se ampliando têm em comum projetos de transformação
social não-hierárquicos. Apesar das revoluções nos países sub­
desenvolvidos criarem máquinas estatais, no mundo industria­
lizado aumentou nitidamente a consciência libertária, no senti­
do de se buscar as transformações por meio de movimentos
autônomos, que superem a tradicional relação de tutela exerci­
da pelos partidos de esquerda, leninistas ou social-democratas,
sobre as massas. A palavra autonomia passou a figurar no
léxico da esquerda nova com a mesma abrangência adquirida
pela autogestão. Na Polônia no começo dos anos 80, quando
o sindicato Solidariedade surge como uma alternativa operária
ao comunismo burocrático, autogestão e autonomia pratica­
mente se confundem.
Todos esses acontecimentos e movimentos novos natural­
mente remetem aos pensadores libertários, como Proudhon,
Bakunin, Kropotkin, aos estudos da experiência da CNT e
da FAI na Espanha. Mas remetem também a um reexame da
obra de Marx e dos marxistas. Ao pensamento libertário sempre
faltou uma preocupação de abordar cientificamente os proble­
mas sociais, econômicos e históricos. E quando o fez foi na
tentativa de usar nas ciências sociais o mesmo método das
ciências da natureza, como Pierre Kropotkin, que vai buscar
na biologia as bases para as suas teses da ajuda mútua. Nesse
sentido, o marxismo foi superior — e Bakunin o reconhece
— tanto na crítica da sociedade existente como na crítica de
sua própria prãxis. E se os marxistas muitas vezes, ou na
maior parte delas, desembocaram num dogmatismo estreito
(e não falo apenas de Stálin, mas do marxismo em geral,
stalinista ou não), souberam também desembaraçar-se dele em
ocasiões diversas e decisivas. O marxismo, na verdade, perma­
neceu como o “espírito do século XX” e como o único pensa­
mento capaz de proporcionar inteligibilidade à história, descor­
tinando o véu ideológico que sempre a cobriu, inclusive a
mística do pragmatismo contemporâneo, a nova ideologia de
uma sociedade que não tem mais valores para se justificar.
Mas se o marxismo permanece vivo com teoria crítica
da sociedade, é necessário, para continuar vivo, revisar-se a
92
si próprio, filtrar de seu corpo fórmulas e conceitos que se
revelaram não apenas ineficazes, mas, também, equivocados.
E, diante do socialismo real, onde o marxismo acabou se trans­
formando em ideologia de justificação de novas estruturas de
dominação de classe, o pensamento libertário readquire igual­
mente uma vida surpreendentemente vigorosa, especialmente
no que diz respeito às conquistas individuais da liberdade
e da questão do Estado, ambas subestimadas por Marx e por
seus herdeiros mais imediatos. O fracasso dos partidos “marxis­
tas”, em quaisquer de suas versões, também revigora as idéias
libertárias e antiestatais, não-hierárquicas. Mas as idéias liber­
tárias não se transformarão em uma práxis eficaz se não recor­
rem ao poderoso instrumento crítico legado por Marx e pelos
marxistas e, especialmente, a teoria do materialismo histórico
e a da alienação do trabalho. O sociólogo Georges Gurvitch,
encerrou um curso profundo e apaixonante sobre Proudhon
e Marx com estas palavras: “ Enquanto sociólogo e doutrinador
social, Proudhon não é apenas um traço de união importante
entre Saint-Simon e Marx, sem o qual Marx não seria possível.
É muito mais que isso. Os pensamentos de Proudhon e de
Marx completam-se e corrigem-se mutuamente. Nunca se ex­
cluem, mesmo quando se contradizem. As diversas tentativas
de síntese têm falhado até aqui, por não se terem elevado
ao nível destes dois irmãos inimigos. Mas ainda não houve
quem pronunciasse a última palavra. Esta síntese está muito
mais adiantada na realidade dos fatos do que na teoria. Tenho
a certeza de que uma nova concepção, superando ao mesmo
tempo Proudhon e Marx, a fim de os unir, não tardará a
ser formulada”.99
Creio que Gurvitch foi excessivamente otimista em relação
a essa perspectiva, mas não há dúvida que, antes da teoria,
a própria práxis dos movimentos sociais modernos reconci­
liariam Marx e Proudhon, especialmente na questão autogestio-
nâria. Mas nem só Gurvitch. Na própria prática, por exemplo.
"GURVITCH, George. Proudhon e Marx. Lisboa, Presença/Martins Fon­
tes, 1980. p.166.
93
a equipe de “ El Sindicalista”, da Espanha, procura corrigir
0 velho apoliticismo dos antigos “cenetistas” e aprofundar o
que estava em gestação nas velhas teses do sindicalismo revolu­
cionário de Georges Sorel e Hubert Lagardelle. 100Guérin também
percebe a novidade do Maio de 68 na França: “ A revolução
de Maio de 68 reatualizou minhas reflexões de 1944. Foi um
redescobrimento dos problemas do socialismo, que confirmou
as lições que eu tinha tentado extrair da longínqua Revolução
Francesa. A sociedade nova que os contestatários da Primavera
de Paris sonharam e começaram a instaurar é a herdeira em
linha reta da democracia direta de 1793. Esta sociedade, comu­
nista libertária em sua essência, tem de ser construída de baixo
para cima com o rigor revolucionário mais flexível ao mesmo
tempo que em liberdade. Os tempos do socialismo autoritário
passaram”.101
É ainda Guérin quem afirma: “Na procura de suas formas
mais eficazes se oferecem aos homens de hoje, apaixonados
pela emancipação social, os materiais de um novo exame. E,
talvez, de uma síntese, ao mesmo tempo possível e necessária
entre dois pensamentos igualmente fecundos: o de Marx e
Engels e o de Proudhon e Bakunin. Pensamentos, além disso,
contemporâneos em seu florescimento, e menos distantes entre
si do que se poderia pensar Errico Malatesta, o grande teórico
e lutador anarquista italiano, observou que quase toda a litera­
tura anarquista do século XIX estava impregnada de marxismo.
E, por outro lado, o pensamento de Proudhon e Bakunin contri­
buiu, e não com pouco peso, para o enriquecimento do mar­
xismo”.102
Entretanto, será na vida prática dos movimentos sociais
que se revelará a mais manifesta tendência para esta síntese.
Não há movimento social que se forme em nosso tempo, parti­
100EQUIPO “El sindicalista”. Movimento libertário y política. Madri,
Jucar, 1978.
101GUÉRIN, Daniel. La Revolución Francesa y nosotros. Madri, Villalar,
1976. p .ll.
10^GUÊRIN, DanieL Por un marxismo libertário. Madri, Jucar, 1979. p.14-5.
94
cularmente aqueles originados entre os jovens, que não tenha
uma característica basicamente antiautoritária, com a rejeição
de toda e qualquer ditadura, seja ela sob a forma que pretenda
se apresentar. Nesse sentido, há um resgate do pensamento
anarquista. Mas se o anarquismo contemporâneo pretender
erercer alguma influência no curso dos acontecimentos — e
já a exerce através da autogestão e da reivindicação global
da sociedade autônoma — terá necessariamente de voltar-se
para conteúdos filosóficos e científicos que continuam a fazer
do marxismo o “espírito do tempo” .
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