Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
COMPLICAÇÕES DA DIABETES
Complicações agudas
da diabetes mellitus
ROSA GALLEGO,* JORGE CALDEIRA**
RESUMO
Introdução: As complicações agudas da diabetes (hipoglicemia, cetoacidose diabética, síndrome hi-
perglicémico hiperosmolar e lactoacidose) são causa de recorrência à urgência e internamento e es- uma complicação aguda cuja rapidez de
tão associadas, na maioria dos casos, a intercorrências médicas e/ou falhas terapêuticas. São pre- evolução e agravamento até ao coma é,
veníveis pela educação terapêutica continuada da pessoa com diabetes e seus cuidadores, mas man- ainda hoje, causa evitável de morte.4
têm-se um problema actual, sobretudo nas crises de hiperglicemia com vómitos e desidratação, A prevenção destas complicações
pela sua elevada incidência e mortalidade. O Médico de Família deve estar preparado para efectuar passa, sobretudo, pela educação tera-
o diagnóstico e o tratamento atempados e contactar, o mais breve possível, para eventual referen- pêutica, com a capacitação da pessoa
ciação, a equipa dos cuidados secundários, assim que suspeitar de qualquer uma das situações.
com diabetes para tomar as decisões
Objectivos: Rever a patofisiologia, prevenção e tratamento das complicações agudas da diabetes
adequadas ao seu controlo, em particu-
mellitus, de forma a fornecer uma base para a construção de orientações técnicas a utilizar na
lar durante doenças intercorrentes,5 e
prática da Medicina Geral e Familiar.
pela identificação de pessoas de maior
Métodos: Foi realizada uma pesquisa em bases de dados electrónicas («Pubmed, Cochrane data-
base of systematic reviews” e “Medline”), complementada com pesquisa manual em livros de tex-
risco (exemplo, idosos em lares).
to. Os limites temporal (últimos cinco anos) e de idioma (idiomas que os autores dominam) resul-
taram na leitura de 18 artigos e posteriormente em mais seis, a partir de referências dos primeiros. CRISES HIPERGLICÉMICAS AGUDAS
Palavras-chave: Diabetes Mellitus; Diabetes Ketoakidosis (DKA), Non Ketotic Hyperglycemic Hyperosmolar
Síndrome (NKHHS), Hypoglycemia (HYPO), Lactoacidosis (LAK) e Family Practice. A Cetoacidose Diabética (DKA) e o Sín-
drome Hiperglicémico Hiperosmolar
(NKHHS) são duas complicações agu-
das graves da diabetes, cuja morbili-
INTRODUÇÃO dade e mortalidade se mantêm eleva-
das, apesar dos avanços terapêuticos
s complicações agudas da actuais, e para cuja prevenção e detec-
QUADRO I
Sintomas Sinais
• Astenia progressiva até letargia • Temperatura normal ou baixa (se alta suspeitar
• Anorexia de infecção subjacente)
• Náuseas e vómitos (DKS) • Polipneia profunda (Kussmaul) (DKS)
• Presença de «Polis» (poliúria e polidipsia) • Desidratação:
• Dor abdominal – também torácica ou outras – 5%, se perda do turgor, mucosas secas e taquicardia
localizações – (DKS) – 10%, se revascularização capilar ≥ 3'' e olhos encovados
• Boca seca (sem saliva) – > 10%, se prega cutânea, hipotensão, oligúria e choque
• Alterações da consciência
• Perda de peso
QUADRO II
1. Cetoacidose alcoólica – neste caso a história de jejum prolongado e de vómitos intensos, com valores normais ou
moderadamente elevados de glicemia, associada à ingestão aguda ou crónica de álcool, fará a suspeita diagnóstica;
2. Cetoacidose da fome – em geral ligeira, pode ocorrer após fome prolongada;
3. Outras causas de acidose metabólica com aumento da produção de ácido láctico
1. Acidose láctica secundária a falência respiratória ou circulatória
2. Acidose láctica associada a outras alterações
3. Acidose láctica induzida por drogas e toxinas
4. Acidose láctica devida a defeitos enzimáticos
5. Acidose pós envenenamento por salicilatos, metanol e glicol de etileno.
QUADRO III
• Administração inadequada de insulina (défice absoluto ou relativo) - causa mais frequente nos adolescentes e nas classes
sociais mais baixas;
• Infecções (pneumonia, tracto urinário, gastroenterite, apendicite, colecistite, abcessos, sepsis);
• Enfarte isquémico (miocárdio, cerebral, mesentérico, periférico);
• Drogas (cocaína);
• Fármacos que agravam a diabetes (corticoterapia, psicotrópicos atípicos);
• Gravidez.
QUADRO IV
DIAGNÓSTICO DA DKA
• Glicosúria e cetonúria positivas (++, +++); se o diabético não consegue urinar testar na secreção lacrimal ou, se tiver
• K+ – normal ou, mais frequentemente, elevado devido à saída do potássio celular pela acidose
• Na+ – baixo, face à modesta concentração osmolar (se marcada descida, artefacto por hipertrigliceridemia ou devido aos
QUADRO V
QUADRO VI
pela pessoa estão relacionados com a nateglinidas, com menor risco de hipo-
rapidez da descida da glicemia e os seus glicemia,20 especialmente em idosos e
efeitos no cérebro e sistema nervoso diabéticos com neuropatia autonómica.
autonómico, mediados pelas hormonas A terapêutica com insulina na diabe-
e neurotransmissores. Numa descida tes tipo 2 é muito frequentemente retar-
rápida da glicemia, a estimulação da dada pelo medo da hipoglicemia, sobre-
adrenalina e do glucagon provoca um tudo ao nível dos cuidados de saúde
síndrome vegetativo, com alterações da primários.21 A utilização de insulina
frequência cardíaca (taquicardia e pal- neutral protamina Hagedorn (NPH)
pitações), ansiedade, vasoconstrição como insulina basal associada a tera-
com palidez, sudorese fria (por vezes pêutica com antidiabéticos orais pode
profusa), tremores ou sensação de tre- ser começada em titulação lenta ao dei-
mor interior e fome intensa. Se a insta- tar com menos hipoglicemias. 22,23
lação do quadro é mais lenta predomi- Existem actualmente, para os casos
nam os sintomas neuroglicopénicos, individuais de maior risco, análogos de
como cefaleias, tonturas, parestesias insulinas (glargina e levemir) com
peribucais e da língua, alterações da menor risco de hipoglicemia.24,25
visão (turva), lentificação do raciocínio, A hipoglicemia nocturna é uma preo-
alteração da memória, do humor e do cupação para os doentes e profissionais
comportamento, alteração dos movi- devido à possibilidade daquela ser mas-
mentos finos e da fala, quadros de carada pelo sono. Este problema é de
hemiparésia, confusão mental, convul- difícil estudo e exige, por vezes, a moni-
sões e mesmo coma. O diagnóstico deve torização de valores nocturnos.
ser efectuado com rapidez assim como As hipoglicemias, quer as autotrata-
o seu tratamento. A pesquisa de glice- das quer as heterotratadas (que exigem
mia capilar deve ser posterior ao trata- tratamento por terceiros) são mais fre-
mento, na suspeita clínica. O diagnós- quentes nos diabéticos de tipo 1 com
tico diferencial deve ser efectuado entre diabetes de maior duração do que nos
as causas de hipoglicemia de jejum e diabéticos tipo 2 tratados com SUF.26
as de pós-prandial ou reactiva (Qua- As hipoglicemias devem ser assina-
dro VIII). ladas nos registos de autovigilância.
A hipoglicemia é mais comum nos Este exercício é fundamental no proces-
diabéticos tipo 1 ou nos diabéticos tipo so de aprendizagem do autocontrolo e
2 em tratamento intensivo com antidia- este deve ser analisado em conjunto
béticos orais e/ou com insulina, sobre- com a equipa de profissionais, revendo
tudo naqueles com maior duração de a alimentação (sobretudo a ingestão de
diabetes e com maior necessidade de hidratos de carbono), o exercício e as
insulina exógena para um melhor con- doses dos fármacos, para além de even-
trolo. A hipoglicemia grave é mais fre- tuais intercorrências ou interacções
quente em crianças18 e idosos, sendo medicamentosas. A base da educação
ainda causa de recorrência aos serviços terapêutica na hipoglicemia é o reforço
de urgência e internamento. A hipogli- da prevenção, reconhecimento preco-
cemia causada pelas sulfonilureias ce dos sintomas e tratamento (Quadro
(SUF), sobretudo pelas mais antigas, é XIX) atempado pelo diabético e seus
mais frequente e recidivante,19 pelo que cuidadores. Os doentes devem ser ensi-
os doentes medicados com estes fár- nados a reconhecer os seus sintomas,
macos devem ser ensinados a preveni- a tratar de imediato a situação, a iden-
la e a tratá-la com atenção. Este tipo de tificar e corrigir o factor desencadean-
antidiabético oral pode, eventualmente, te, usando o erro como factor de apren-
ser substituído por outras SUF ou pelas dizagem.27 O tratamento inicial da hipo-
QUADRO VIII
HIPOGLICEMIA DE JEJUM
1. Por subprodução de glucose
• Deficiência hormonal
1. Hipopituitarismo
2. Insuficiência adrenal
3. Deficiência de catecolaminas
• Defeitos enzimáticos (na sua maioria hepáticos e relacionados com a produção e catabolização de glicogénio)
• Deficiência do substrato
• Hipotermia
• Uremia
1. Insulinoma
2. Insulinoterapia
3. Sulfonilureias
4. Doença autoimune com produção de insulina ou anticorpos anti-receptor da insulina
5. Fármacos: quinino, disopiramida, pentamidina
6. Choque endotóxico
• Com valores normais de insulina
1. Tumores extra-pancreáticos
2. Caquexia com depleção adiposa
3. Deficiência enzimática (enzimas da cadeia oxidativa dos lípidos)
4. Deficiência de carnitina
HIPOGLICEMIA REACTIVA
1. Idiopática
2. Hiperinsulinismo reactivo alimentar
3. Intolerância à frutose
4. Galactosémia
5. Hipersensibilidade à leucina
QUADRO IX
TRATAMENTO DA HIPOGLICEMIA
1. Doente consciente – o controlo imediato faz-se com a ingestão de solução fraca de sacarose (2 pacotes de açúcar
em água) ou glicose, repetindo, se necessário, até ao desaparecimento dos sintomas.
2. Doente agitado ou negativista – administrar uma papa de açúcar feita com adição de umas gotas de água.
3. Deglutição impossível – administrar glucose hipertónica a 20 % IV até à recuperação da consciência
(na impossibilidade da sua administração fazer 1mg de glucagon im). Nota: baixo efeito do glucagon no paciente
alcoolizado ou malnutrido.
• Se após 100 cc não houver retoma da consciência fazer uma determinação da glicemia capilar
• Se ≤ 200 mg/dl, (11mmol/L) continuar administração de glicose hipertónica até obter este valor e manter em
vigilância.
• Se > 200 mg/dl, trata-se de um coma prolongado com edema cerebral que exige internamento hospitalar urgente.
• No caso de doente a fazer inibidores da alfa-glucosidase (acarbose) deve tomar glucose e não sacarose para evitar os
atrasos de absorção.
• Só depois de corrigida a hipoglicemia e a consciência deve ser ingerida pequena refeição contendo hidratos de carbono
de absorção lenta.
• Se a causa for o uso de sulfonilureias (em particular as mais antigas) o doente deve ser mantido em vigilância durante
pre que necessário e o mais breve pos- presentation and outcomes of acidotic and
sível, assim que suspeitar de qualquer hyperosmolar diabetic emergencies. Intern Med
Journal 2002 Aug; 32 (8): 379-85.
uma das situações.
7. Phillips LS, Ziemer DC, Doyle JP, Barnes
CS, Kolm P, Branch WT, et al. An endocrinolo-
gist-supported intervention aimed at providers
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
improves diabetes management in a primary
care site: improving primary care of African
1. Chung ST, Perue GG, Johnson A, Youn- Americans with diabetes (IPCAAD) 7. Diabetes
ger N, Hoo CS, Pascoe RW, et al. Predictors of Care 2005 Oct; 28 (10): 2352-60.
hyperglycaemic crises and their associated 8. Wolfsdorf J, Glaser N, Sperling MA. Dia-
mortality in Jamaica. Diabetes Res Clin Pract betic ketoacidosis in infants, children, and ado-
2006 Aug; 73 (2):184-90. lescents: a consensus statement from the Ame-
2. Kitabchi AE, Umpierrez GE, Murphy MB, rican Diabetes Association. Diabetes Care 2006
Kreisberg RA. Hyperglycemic crises in adult May; 29 (5): 1150-9.
patients with diabetes: a consensus statement 9. Powers AC. Diabetes mellitus acute com-
from the American Diabetes Association. Dia- plications. In: Kasper DL, Braunwald E, Fau-
betes Care 2006 Dec; 29 (12): 2739-48. ci A, Hauser S, Longo D, Jameson L, editors.
3. Kitabchi AE, Umpierrez GE, Murphy MB, Harrison's Principles of Internal Medicine. 16th
Barrett EJ, Kreisberg RA, Malone JI, et al. Ma- ed. New York: McGraw-Hill; 2005. p. 2158-63.
nagement of hyperglycaemic crises in patients 10. Faro T, Parreira JM. Terapêutica das
with diabetes. Diabetes Care 2001 Jan; 24 (1): descompensações agudas da diabetes: a ceto-
131-53. acidose diabética e a síndrome hiperosmolar hi-
4. Rosenbloom AL. Hyperglycemic crises perglicémica. In: Duarte R, editor. Diabetologia
and their complications in children. J Pediatr clínica. 3ª ed. Lisboa: Lidel; 2002. p. 209-17.
Endocrinol Metab 2007 Jan; 20 (1) 5-18. 11. Genuth SM, Gebhart SS, Friedman EA,
5. Booth GL, Hux JE, Fang J, Chan BT. Ti- Jovanovic L, Gerich JE, Tamborlane WV, et al.
me trends and geographical disparities in acu- Special Situations. In: Cefalu WT, Gerich JE,
te complications of diabetes in Ontario, Cana- LeRoith D, editors. The Cadre Handbook of
da. Diabetes Care 2005 May; 28 (5): 1045-50. Diabetes Management. New York: Medical In-
6. MacIsaac RJ, Lee LY, McNeil KJ, Tsala- formation Press; 2004. p. 169-220. Disponível
mandris C, Jerums G. Influence of age on the em: URL: http://www.cadre-diabetes.net/s_
ABSTRACT
Acute complications of diabetes (hypoglycemia, diabetic ketoacidosis, hyperosmolar hyperglycemic
state and lactoacidosis) are life threatning conditions, related in most cases to acute illnesses and
therapeutic failures. These complications can be prevented by patient education. The Family Physician
must be prepared to diagnose and treat them and to refer the patient immediately to a specialized
unit, especially when the patient is vomiting and showing signs of dehydration.