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Introdugao Da importancia do dialogo ao desafio da interculturalidade De que falamos quando evocamos a “comunicacio intercultural”? Importa ter presente, desde logo, que estamos perante uma realidade dinamica que escapa a qualquer tentativa de definicio demasiado fechada. Deste ponto de vista, mais do que substantivo, o intercultural deve ser visto como adjectivo, desta forma reforcando 0 que nesse conceito existe de processual. Em contraponto a este entendimento dindmico e desafiador, assiste-se, por vezes, & emergéncia de um discurso mais plano e simplificador. Nele, a dimensio de desafio tende a ser substituida por uma espécie de complacéncia com a certeza do rumo € das metas € nessa simplificagao que se deseja operativa ha sempre o isco de que algo se perca. Da nossa parte propomo-nos contribuir para um debate mais acidentado mas também mais estimulante. E necessario salientar que ao falarmos de inter- culturalidade como processo falamos nao s6 de algo onde se cruzam varios participantes, mas também que estes transportam consigo, como marca pro- funda ¢ indelével, uma enorme desigualdade. Do mesmo modo, é igualmente importante perceber com clareza que os lugares que habitamos e as fronteiras que nos separam constituem realidades que em boa medida sao irremoviveis, transcendendo assim qualquer ret6rica multicultural. Convém, finalmente, pondo de lado qualquer desejo de exaustividade, no confundir este mundo mais pequeno que a globalizagao nos oferece, no qual as pessoas, os produtos eas ideias, podem circular de forma mais acelerada e eficaz, com uma efectiva convergéncia econémica, politica, social de quem nele vive. Bem sabemos que todas estas observacées, entre outras possiveis, nao sio sendo formas diferentes de enunciar desigualdades, mas também neste ponto € essencial uma clarificagao. A desigualdade é, sem diivida, uma realidade tan- givel, facilmente identificada e frequentemente denunciada. Ela ndo pode, no entanto, ser reduzida a um esquematismo simplificador, pois se 0 fizermos cor remos 0 risco de reduzir a irrelevancia a complexidade de todo um universo de significagées, que é em si mesmo difuso mas, ao mesmo tempo, absolutamente determinante na configuragao do sentido que damos ao mundo. A desigual- dade decisiva que marca a relacao entre diferentes grupos deve ser perceb:da de um modo multifocal. Na sua persisténcia e reprodugio interferem miltiplos ¢ diversos factores, que vau desde a ordem econémica internacional até a dife- rente experiéncia hist6rica, factores permanentemente cruzados com o campo das representagdes sociais, isto é, com 0 modo como pensamos e imaginamos © mundo e as relagdes sociais. Quando nos propusemos organizar a conferéncia que esteve na origem desta obra, fizemo-lo a pretexto da celebragio do Ano Europeu do Didlogo Intercultural. Talvez o uso da palavra celebracao deva ser cauteloso neste con- texto. Estamos, sem dtivida, mais habituados a celebrar actos ou acontecimen- tos consumados, como pode ser a fundacao da Unido Europeia ou a chegeda de algum esforcado navegador a terras desconhecidas em séculos ja distantes. © didlogo intercultural néo pode celebrar-se do mesmo modo. Imaginamos que o sentido que se pretendeu atribuir a celebracdo deste Ano Europeu do Dialogo Intercultural fosse o de louvar e promover a ideia de didlogo, inten¢io em si mesma muito meritéria, mas que contém também um perigo em que con- vém nao incorrer. No podemos, de facto, reificar a ideia de didlogo intercul- tural nem fazer dela uma espécie de panaceia para os desequilibrios estruturais que marcam as nossas sociedades. A diversidade cultural que as caracteriza é uma evidéncia e dizer que a essa diversidade correspondem formas de diélogo € quase um trufsmo, A questo sé se torna analiticamente relevante quando Procuramos entender e descodificar a natureza desse didlogo. Nao tendo a ambigao de desbravar novos caminhos, atrevemo-nos, ainda assim, a aler- tar para o risco de confundir didlogo com simetria e interculturalidade com igualdade das partes. Risco, uma vez mais, de uma simplificagdo grosse:ra mas apaziguadora, mais propria de um imaginério imperial reciclado em tons Pés-modernos, que de uma visio desafiadora ¢ que pretenda, de facto, criar renovados sentidos e modos de vida mais justos. “Juntos na diversidade” foi o lema escolhido para a campanha de promocio do Ano Europeu do Dilogo Intercultural, apelando a importancia do dialogo intercultural na construcao de uma sociedade mais justa e inclusiva, Mais do que a simples aceitagao do ‘outro’, propde-se 0 “acolhimento do ‘outro’ ¢ a transformagao de ambos com esse encontro”, como refere Rosario Farmhouse, Alta Comissaria para a Imigragio e Didlogo Intercultural no textv que abre esta obra, E consensual que a diversidade contribui para o enriquecimento da sociedade © é reconhecido que a diversidade é fundamental para o desenvolvimento e até para a prépria sobrevivéncia da sociedade. No entanto, muitas vezes a diver- sidade € encarada como algo meramente folcl6rico, colorido, que nos permite fazer turismo dentro de portas (como observamos frequentemente em reporta- gens sobre a Cova da Moura ou sobre o Natal Ortodoxo em Lisboa, por exem- 8 plo). Todos achamos muito bem e ficamos muito contentes por ter na cidade onde vivemos restaurantes chineses, indianos, mexicanos, etc.; gostamos de ouvir mtisica ao vivo brasileira, cabo-verdiana, angolana, etc.; gostamos de praticar capocira, dangar cu-duro, danga do ventre, ete. Mas o didlogo com o ‘outro’ vai muito além desta dimensao folclérica. A abertura ao outro significa transformagao reciproca. Ora, frequentemente esperamos que essa transfor- macao seja assimétrica: 0 outro deve pensar como nés, porque nés pensamos melhor. E todos os dias somos confrontados com noticias sobre conflitos entre pessoas, alegadamente devidos a diferencas de religides, valores ou estilos de vida, De facto, a diversidade gastronémica é bem mais facil de ‘digerie’ e‘gerir’ do que a diversidade religiosa, s6 para dar um exemplo. Na inteng’o da conferéncia “Comunicagao Intercultural: Perspectivas, Dilemas e Desafios”, que teve lugar na Universidade do Minho em Abril de 2008, pesou a vontade de cruzar olhares em torno dos modos de comunicar dentro de um mundo assumidamente plural. Esta pluralidade, tornada objecto de estudo e reflexao, nada tem a ver, bem entendido, com a diversidade exotica e distante que tanto fascinio causou durante décadas. Trata-se, sem diivida, de uma realidade tangivel e muito prxima, que podemos perspectivar a partir do cultural, do econémico ou do politico, mas diferentemente da diversidade exética ~ de algum modo domesticada por processos de folclorizagao e outros = estamos, neste caso, perante uma realidade que faz parte integrante daquilo gue somos. Algo que nos recaracteriza a0 mesmo tempo que se abre ela pré- pria A recaracterizacao. Produtos e produtores de um mundo plural, marcado pelo incremento de fluxos de pessoas e de ideias, o que procurémos propor a reflexdo nesta conferéncia foi precisamente esse entendimento do mundo. Tentamos fazé-lo recorrendo a diferentes contributos, privilegiando os dis- tintos enquadramentos disciplinares dos convidados, ao mesmo tempo que misturdvamos contributos de natureza predominantemente teérica com inves- tigagdes de cardcter mais empirico. Acreditamos que esta é a forma mais ade- quada para a discuss de um objecto que, afinal, no tem verdadeiramente unidade, antes se fragmenta e estilhaca em miltiplas configuragées. Na ceriménia de encerramento desta conferéncia, foi declarado por Rosario Farmhonse, Alta Comissaria para a Imigracao e Didlogo Intercultural, que a opcdo portuguesa perante a diversidade cultural passa pelo principio da inter- culturalidade, Estas palavras, que podem ser lidas no texto com que abrimos esta obra, revelaram-se adequadas ao encerramento dos nossos trabalhos, mas teriam sido igualmente adequadas se tivessem sido proferidas na abertura, Desde logo pela intengdo em que parece assentar essa op¢do — nao 6 acolher © outro mas também o apelar a transformacdo miitua a partir do encontro de diferentes povos. Por outro lado, a intengo de interculturalidade encerra, como

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