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APRESENTAÇÂO

D~cobri as mem6rias de Emma Goldman numa


resenha de revista.
Desde entao, fascinada, fui juntando livras e
biografias, auxiliada pela gentileza de amigas e amigos:
de Helena Hirata, de Leni Silverstein, de Evelina
Dagnino, de Pilla Vares, Paulo Paranagua e, especial-
mente, de Michael Hall.
0!-lando pensei em escrever este trabalho, pareceu-
me coisa facil. Mas aos poucos fui sendo envolvida pelas
exigências da historia: o nihilismo, a Amerika dos
imigrantes, a era progressista, a grande revoluçao de
outubro. Valeram-se as indicaçoes bibliograficas de
Marco Aurélia, as conversas corn Beth Higgs.
Pelas mâ'os de Mariza Zanata, do Arquivo Edgard
Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas,
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APRESENTAÇÂO EMMA GOLDMAN

recebi emocionada alguns preciosos numeros da Anna Brandtner, a Regina Marcondes, a Jany Chiriac.
revista Mother Earth, publicada por Emma Goldman. Espero ter sida fiel às muitas faces, aos mûltiplos
Nessa época, fora lançado o filme Reds, em que encantos, aos sonhos de Emma Goldman. Aos de
Emma Goldman é personagem. Demasiado séria Ruth, Regina e Jany. Resgatados para aqueles (as)
para a versao que eu fazia dela. Logo depois encontrei que, coma Lean Garcia, sonharao no ano 2000.
a personagem rocambolesca de Emma no romance
Ragtime de E. L. Doctorow. Finalmente, graças ao
incansavel professor Hall, descobri a Emma er6tica
das cartas a Ben Reitman, reproduzidas num artigo
de Alice Wexler.
Nao era tudo, mas jâ havia material para muito
estudo.
Mais diff cil foi redigir.
Era preciso traduzir geffulte fish ou nao? Consultei
amigas e amigos de origem judaica. Deveria incluir
no texto as cartas er6ticas? Professor Hall acusava-me
de estar (auto) censurando. Mas coma traduzir
linguagem er6tica vitoriana para o português?
Estabeleceu-se entao uma conexao telefônica
Sao Paulo-Rio-llha de Santa Catarina, cujo tema
teria feito a alegria de poss(veis interferências. E
a traduç§o de Rosaura Cynthia Eichenberg ficou
perfeita.
No prefâcio às suas mem6rias, Emma Goldman
escreveu: "A viqél qu_e eu vivj ~ feita daquèles que
fjzeram parte dela, -què- ficaram po-r um -poüco--oû
por rnuito tempo, que passaram. _§~u amor;- tan.~Q
quanta seu 6dio, fizeram minha vid~ valer él pèna'~,
A versao que fiz deve muito a muitas mulheres,
amigas, (re)encontradas ou perdidas. A Ruth Sant'
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CAPfTULO 1 EMMA GOLDMAN

DO GHETIO A NOVA IORQUE: em 1887, quando foram executados os anarquistas


TRAJETÔRIA DE UMA MOÇA JUDIA acusados pelo atentado de Haymarket, o que fez
Emma decidir-se pelas lutas sociais. Ou no ano de
1889, quando chegou sozinha a Nova lorque, cenario
futuro de grande parte de sua vida.
Durante 30 anos, foi agitadora profissional, ativista
sindical, propagandista da liberdade, da contracepçao
e do amor livre. Ficou conhecida como "Rainha dos
Anarquistas" e a mais perigosa mul~er do mundo.
Anarquista e, também, feminista, Emma foi
mulher e militante. A mulher, sua vida, seus senti-
mentos, sao freqüentemente matéria de sua militância
e de seus discursos.
Suas idéias sobre a liberdade, a igualdade, a impor-
De que matéria se taz uma rebelde, uma · mulher tância da sexualidade, o ciume, o casamento ou a
rebelde? maternidade se forjaram numa vida intensamente
5ao Petersburgo, 1884, uma tam (lia judia. 0 pai, vivida, trazem marcas de seus proprios conflitos.
Abraham Goldman, quer que a tilha Emma, 15 anos, Foi assim que ela se viu quando escreveu: "( ... )
abandone os estudos para casar. Faço rneu trabalha porqua nâo posso ver o que est~.
Emma resiste. errado sem prot~~tar . ( ... ) sou uma anarquista,
Abraham; colérico, joga na lareira a gramatica ·nasci · assim". "( ... ) As circunstâncias às vezes
francesa da filha e grita: "Meninas nâ'o têm muito nos desgastam, destroem nossas boas intençoes,
que aprender. Tudo o que uma filha judia precisa paralisam nossas energias e nos obrigam a tazer o
saber é preparar um geffulte fish, tazer uma massa inversa do que desejamos. Mas acredito, também,
bem leve e dar ao homem muitos filhos". que quem tem força de canher e perseverança,
lmpossfvel, Emma repetiu para si mesma seus supera suas circunstâncias."
sonhos mais caros: estudar, conhecer a vida, viajar Suas circunstâncias foram o ghetto de Kovno na
e s6 casar por amor. _ Lituânia, onde nasceu em 1869, nos tempos do
A historia de Emma - a vermelha, russa, judia e tzar de todas as Russias. Nessa época, os judeus
anarquista - poderia começar aqui. Ou em Chicago, gozavam de relativa tranqüilidade, sob a proteçao de
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DO GHETTO A NOVA IOROUE EMMA GOLDMAN

Alexandre 11. Podiam locomover-se fora dos limites marcas do epi5.'.>dio, maso professor desapareceu.
da reserva judaica e ter as atividades que quisessem. Apesar de tudo. Emma gostava de estudar. A
Mas a famflia Goldman enfrentava dificuldades. professora de al~mâ'o, gentil e romântica, iniciava-a
Taube Biendvitch, viuva corn duas filhas, casara-se na cultura germânica, musica e literatura. Emma
corn Abraham Goldman porque assim deveria ser. venerava a famllia real alema, Frederico o Grande, a
A ma sorte fez Abraham perder, nos neg6cios, a graciosa e linda rainha Maria Luiza, "tao cruelmente ·
herança que Taube trouxera de seu primeiro casa- maltratada pelo carniceiro Napoleao". Juntas mestra
mento. Pouco depois, nasceu Emma, quando e aluna choravam as infelizes hero(nas das novelas.
Abraham esperava um varao. Estimulada, conseguiu ser aprovada no exame para
Aos oito anos, Emma foi morar corn a av6 e tias freqüentar o Gymnasium. Necessitava apenas de
em Kônigsberg, para estudar numa escola alema. um certificado de boa conduta do orientador
A avô adoeceu e, na sua ausência, tios e tias fizeram religioso. Nâ'o conseguiu. 0 santo homem declarou
da sobrinha uma espécie de escrava doméstica. tratar-se de uma menina de péssimo carater, certa-
Passau trio, fome, foi espancada, até que vizinhas mente fadada a tornar-se uma mulher ainda mais
penalizadas avisaram os pais do que estava aconte- imoral, pois nao respeitava os mais velhos nem
cendo. Voltou para casa e conseguiu, afinal, ir para as autoridadtJ, e terminaria, corn certeza, os seus
a escola. dias na forca, por ameaça à sociedade.
As circunstâncias pareciam decididas a domina-la, Restou a Emma a esperança de poder estudar em
mas ~la resistia. 0 professer de religiao batia corn a SHo Petersburgo, para onde fugira a famllia Goldman
régua nas maos dos alunos, Emma em represalia depois do assassinato de Alexandre 11, em 1881.
enchia-lhe os boisas de carac6is. 0 professor de Nessa época, a repressao atingiu duramente os
geografia costumava forçar duas ou três ·alunas a judeus. lmpedidos de trabalhar nas comunidades
ficarem na sala depois da aula, sentava-as nos joelhos, rurais e expulsas das terras, foram proibidos de
bolinava-as e prometia boas notas em troca do ultrapassar os limites da reserva, de freqüentar escolas
silêncio. Ouando chegou a vez de Emma, ela agarrou-se e universidades,' de trabalhar no serviço publico e
à barba do professer galante e conseguiu escapar. de participar nas Assembléias Comunais.
A vingança nao tardou - o professor em aula Foi nesse clima de opressâ'o e miséria dos ghettos
cravou-lhe as unhas no braço até que Emma, aos que nasceu o anarquismo russo, fruto da revolta de
gritos, conseguiu chamar a atençâ'o de toda a escola. estudantes, operarios e camponeses contra o despo-
Semanas depois, o braço de Emma ainda tinha as tismo dos tzares. Sonhavam corn "uma sociedade
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DO GHETTO A NOVA IORQUE CAPrTULO 2

libertaria, descentralizada, construfda através de "UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM"


uma revoluçao social que aboliria toda autoridade
polltica e econômica". Profundamente enraizados
nas revoltas camponesas, eram terroristas e propa-
gandistas do relâmpago negro, cuja apariç§o nos
céus da Russia marcaria o infcio de uma grande
tormenta, como no poema de Gorki.
Na capital cosmopolita e agitada, Emma descobriu
o nihilismo, mas nâ'o pôde estudar por muito tempo.
Para ajudar as. finanças familiares, foi ser costureira
numa tabrica de espartilhos. Mesmo assim, conseguiu
escapar às circunstâncias. As leituras pusi:iram-na em
contato corn o pensamento nihilista e as personagens
de Turgueniev em Pais e Filhos e de Tchernichevski
em Que Fazer? foram seus novas mode los. Corno
Vera, a herofna de Que Fazer?, amaria um compa- "No convés, apertadas uma à outra, as irmas
nheiro de ideal, organizaria uma cooperativa de cos- Goldman contemplavam extasiadas o porto, a estatua
tura e viveria sua pr6pria vida. da Liberdade, sfmbolo da esperança, da liberdade,
Quando a irmâ' Helena decidiu juntar-se à outra da oportun idade."
irma nos Estados Unidos da América, Emma nao
hesitou. Teve de enfrentar a resistência dos pais, Milhares de judeus, russos, lituanos, romenos,
ameaçou jogar-se no rio Neva e venceu. Em dezer:nbro chegavam entao à Amerika. Famflias numerosas,
de 1885, embarcou junto corn a irma no navio Elba muitas mulheres jovens fugiam da fome e dos
rumo à América. Pensava estar deixando para trâs pogroms. Encontravam jâ instalados judeus alemâ'es,
"os três fantasmas que acorrentam homens e mulhe- proprietârios de fabricas de tecidos e de roupas,
res: a religiao que nos domina a mente, a propriedade dispostos a absorver esses vastos contingentes de
privada que nos faz escravos e o governo que nos mao-de-obra barata e desprotegida.
oprime". Habituados à vida nos ghettos, os judeus nao
perderam sua vitalidade cultural: circulavam jornais
em alemao, i fdiche, organizavam palestras e discussoes
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"UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

umca diversao para quem vivia comprimido entre


a fâbrica e os cortiços.
Emma e Helena instalaram-se em Rochester, onde
jâ mürava a outra irmâ', Lena. Trabalhar nâ'o era
diffcil, diffcil era viver. Emma voltou a ser operâria.
Na fâbrica, a disciplina era r(gida: as moças nao
podiam falar nem cantar coma em Sâ'o Petersburgo.
A cadência esgotava as forças das mais resistentes, o
salaria nâ'o sobrava para um teatro ou um concerto,
o patrâ'o cantava as operarias e propunha chantagem
por um aumento de salaria.
Pouco tempo mais tarde, a famflia Goldman
juntou-se às três filhas. Emma viu-se entre três peças
e uma cozinha, corn o pai, a mâ'e, Helena e os dois
irmâ'os.
Sufocava.
Tinha quinze anas quando conheceu o operario
russo Jacob Kershner. Era bonito, gostava de musica
e de dançar. Para ajudar a familia Goldman, Kershner
tornou-se pensionista na casa de Emma.
Era preciso escapar: da casa apertada, das brigas
familiares. Emma casou-se corn Kershner. Corno
Vera, sua herofna literâria, prometera casar-se por
amor. Percebia que Kershner, pouco a pouco, perdia
o entusiasmo pelas idéias, pela teatro, convertia-se
ao jogo de cartas, às bebedeiras, "faltava-lhe espfrito
e calor".
Corno num melodrama, o desencanto consumou-se
/migrantes europeus navegam para a "Amerika", Terra na noite de nupcias. Kershner, trêmulo, confessou-se
Prometida, nos anos de 1890. impotente e adormeceu, deixando Emma imersa
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"UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

nos seus sonhos frustrados de um grande amor


romântico.
A vida entao se tornou insuportâvel.
Na sexta-feira 12 de novembre de 1887 - a sexta-
feira negra -, foram enforcados em Chicago os
lideres operârios Parsons, Fischer, Engel, Spies e
Lingg. Eram acusados de responsâveis pelo atentado
a bomba ocorrido na praça de Haymarket, durante
as greves e lutas pela jornada de oito haras.
Nessa mesma noite, na casa da famrtia Goldman,
uma vizinha observou que, afinal, nada havia a
lamentar, pois os enforcados eram também assassinas.
Emma, indignada, avançou sobre a mulher, agarrou-a Alexander Berkman
pelo pescoço e jogou-lhe um jarro de âgua, gritando: (Sacha) na época
"fora ou te mato". em que conheceu Emma.
Logo depois, abandonou Rochester e o marido,
para trabalhar em New Haven, onde encontrou
um ativo ambiente de anarquistas e socialistas.
Mas ficou doente e foi obrigada a voltar para casa.
Novamente tentou viver corn Kershner. Nao par
muito tempo. Decidida a fugir das circunstâncias,
viajou sozinha para Nova lorque.
Tinha vinte anas, uma mala e uma maquina de
costura. "Um nova mundo estava diante de mim, era
estranho e assustador. Mas eu era jovem, corn boa
saude, e estava apaixonada por um ideal."

Aqui, o ritmo em suas mem6rias lembra um velho


filme; rapidamente as imagens se sucedem: o burbu-
rinho das ruas de Nova lorque o café Sach's, onde se Emma por volta de 1890.
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"UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

reuniam "os radicais, socialistas e anarquistas, vazio. Vivi muitos anas em pouces meses."
escritores e judeus e poetas, falando i (diche e russo". A mulher que viajava num trem para Rochester
Levada par um conhecido de New Haven, Emma era agora a militante anarquista Emma Goldman,
chegou ao café e logo foi apresentada a um jovem nâo mais a moça revoltada em busca dos ideais
anarquista russo, Alexandr Berkman, Sacha, que lhe românticos. Mas, entre as duas, havia laças profundos
arranjou um quar_to no apartamento de amigas e uma era matéria da outra. 0 anarquismo de Emma
e, na mesma noite, convidou-a para ouvir o mais (lâo era apenas um sistema de idéias que explicava
importante lfder anarquista na América - Johan as leis da historia, era a expressâ'o de seu amor pela
Most, editor do jornal Die Freiheit, que Emma vida e pela humanidade, do seu desejo de igualdade,
começara a Ier ainda em Rochester. de beleza, de justiça, de sua vontade de viver livre-
Os pianos se confundem: a vida, o ideal, o amor, o mente, da "revolta visceral" à experiência da pobreza,
anarquismo. Sacha era o "amor puro e dura", entre da opressâ'o quotidiana na fam(lia, na escola, no
revolucionârios dedicados à Causa e à Açâo. Fedya, o casamento.
pintor, o refûgio de beleza, de quem amava as flores Os "indivîduos revoltados", de que fala o anarquista
e cores e de "dançar até a morte". Most, o Mestre, Daniel Guérin, confundem paixâ'o e pol ftica. Vivem
introduziu-a ao pensamento anarquista, levou-a à e sonham idéias, sentimentos e sonhos. Sâo humanos.
Opera e aos teatros. Trabalhava na redaçâ'o de Die Talve:z d~masiado humanos.
Freiheit, lia Lassalle e preparava, corn Sacha, o Emma vivia o ideal de uma sociedade natural,
com(cio pela aniversario do massacre de Chicago. "baseada na libe~dade nâ'o limitada pelas leis dos
Vivia três pianos, amava três homens. Era poss(vel? homens, porque todos os governos repousam na
Clara, quando o amor significava liberdade, e a passe violência, na igualdade econômica que permita o
e o ciume deviam ser combatidos coma v(cios florescimento do que existe de barn e verdadeiro
burgueses. Mas nâo era facil. nos homens e mulheres, no acesso ao prazer da virja,
Algum tempo depois, Most propoe-lhe fazer uma conforme os des~jos, o gosto e as inclinaçoes de.
tournée de conferências sobre a jornada de oito ç~da um e de cada uma". ·
horas. Emma hesita, o Mestre termina convencendo-a. Na luta secular entre· o Velho e o Novo, o lndivfduo
Conf iava no entusiasmo e na dramaticidade da e a Sociedade, o anarquismo seria o pacificador.
discf pula. A primeira conferência seria em Rochester. Cada nova geraçâ'o tem. de ramper as malhas em que
"O trem partiu. Apenas seis meses haviam passade o passade nos envolve, dessacralizar as heranças
desde que eu cortara as amarras de meu passade legitimadas: a religiâ'o, o Estado, a propriedade, que
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EMMA GOLDMAN
"UM NOVO MUNDO OIANTE DE MIM"

organizada de baixo para cima, através da livre


regulam nossa vida e corroem nossa liberdade. Oue
associaçao, e nao de cima para baixo, através de
instauram o medo e a servidao.
alguma autoridade qualquer.
A militante Emma Goldman vivia dois mundos e
Mais tarde, seu disclpulo Kropotkin, nascido na
duas culturas. Por um lado, seu pensamento mergu-
lhava profundamente no messianisme anârquico nobreza russa, cientista eminente, desenvolveu a
russo, por outro, sua 19râtica estava moldada ao idéia de uma organizaçao social baseada em comu-
movimento operârio e à boêmia radical americana nidades naturais autônomas, que combinassem
atividades industriais e agdcolas, trabalho manual
do começo do século.
0 anarquismo russo retomara a tradiçao das e intelectual, e fossem uma alternativa "à forma
revoltas camponesas contra a servidâ'o e as lutas dos Estado, necessariamente centralizadora e opressora".
operârios e estudantes contra a fome e o despotismo, 0 progresse social "seria uma aproximaçao contf nua
reinstaurados ap6s o assassinato do -tzar Alexandre 11 da supressâ'o de toda autoridade governante, do
pleno desenvolvimento do contrato livre, da livre
em 1881.
iniciativa dos individuos e das coletividades".
A essa tradiç§o haviam-se somado as idéias e a
Kropotkin insistia na necessidade de abolir o
figura lendâria de Bakunin, "amante fanâtico da
trabalho assalariado, porque "o trabalhador assala-
liberdade", "partidârio da igualdade econômica e riado permanece escravo", pouco importa se de um
dè um socialismo instintivo". "A guerra de classes
patrao ou do Estado.
total libertaria a humanidade e restabeleceria a As condiçëes de desenvolvimento do anarquismo
harmonia natural na sociedade", dizia Bakunin.
na Russia foram sempre dif fceis, sob a repressao do
· Essa revoluç§o social seria obra de todos os deser-
regime tzarista. Por isso mesmo, e também na
dados, dos camponeses primitives do lumpemprole- tradiçao do populisme (movimento de oposiçao
tariado · dos suburbios, dos desempregados, dos
ao autoritarismo do regime tzarista), seu precursor, e
vagabu ndos, dos sem-lei. das revoltas camponesas, a violência revol ucionaria
· Para chegar a · revoiuç§o, seria necessâria uma
se impôs para os anarquistas como método de açao
organizaç§o secreta, disciplinada e submetida a uma
combinado à propaganda.
direç§o, que atuasse junto às massas sem pretender
A reaçao se abateu sobre o império dos tzares a
ser sua vanguarda.
partir de 1876. Mas Kropotkin, no ex flio, manteve
Cr ftico de Marx, que considerava "um autoritârio
dos pés à cabeça", e do "socialisme autoritario" vivo o sonho dos anarquistas. Em Genebra e Londres,
marxista, Bakunin sonhava corn uma sociedade cîrculos de exilados russes publicâvam panfletos,
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"UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

organizavam discussoes. Logo, o exflio anarquista do Estado.


chegou também à América. Para Emma, Kropotkin Em 1881, corn a chegada de Most, discfpulo de
era ·o pai do anarquismo moderno, "seu porta-voz", Bakunin e fundador da lnternacional Negra - a
"uma personalidade acima de todos seus contempo- dissidência anarquista da 1 lnternacional de Marx e
râneos, pela sua humanidade, pela sua té nas massas". Engels -, as varias tendências anarquistas se unifi-
Naquele momento, quando Emma iniciava sua caram, inclusive o importante grupo de Chicago,
primeira tournée coma propagandista, o anarquismo liderado por August Spies e Albert Parsons.
americano ja vivera seus anas de ouro. A Associaçâo lnternacional do Povo Trabalhador,
Em 1877, eclodi ram nos Esta dos Un id os grandes fundada por eles em Pittsburgh em 1886, apoiou o
greves de ferroviarios. Desde entâ'o, o movimento movimento dos Cavaleiros do Trabalho. Organizou-se
operario encontrara um fértil terreno para se desen- uma greve geral nacional. Mas a força do movimento
volver: os trabalhadores reagiam à exploraçâ'o foi brutalmente cortada pela tragédia de Haymarket
selvagem imposta pela industrializaçâ'o, aos baixos em Chicago, alguns dias mais tarde. Ao final de uma
salarios, à jornada de trabalho exaustiva, às sucessivas concentraçâo pac(fica dos operarios, explodiu uma
crises econômicas. Essa reaçâ'o vinha, freqüentemente, bomba matando varias policiais. Os 1fderes anarquis-
marcada por divisoes internas: os trabalhadores tas foram responsabilizados pela acidente, cuja
qualificados se organizavam de forma corporativa, em autoria nunca foi realmente apontada. Pouce tempo
"fraternidades que exclu{am a crescente massa de depois, Fischer, Engel, Spies e Parsons foram
trabalhado,res nâo-qualificados, ·quase sempre estran- enforcados.
geiros, discriminados e recebendo salarias de tome". A tragédia de Haymarket seria, para Emma, o
Em 1876, os operarios nâo-qualificados começaram ponta de ruptura corn o passado de moça judia
a se organizar par ramas industriais e nâ'o por oHcios. bem-comportada. Anos depois, quando iniciava sua
Surgiram entâ'o os Cavaleiros do Trabalho (Knights vida militante, os anarquistas ainda nâ'o se haviam
of Labor). recuperado da repressâ'o que se seguira a Haymarket.
Por outro lado, reproduziam-se também as diver- Dos sete mil libertarios, organizados em 80 grupos,
gências existentes no interior da 1 lnternacional, pouce restava. Um pequeno grupo em torno a Most
entre "economicistas", que defendiam a prioridade e seu jornal Die Freiheit defendia a açâ'o direta como
das lutas operarias pela revoluçâ'o social, e os "poH- forma principal de propaganda revolucionaria e
ticos", que, coma Lassai le, defendiam a açâ'o parla- criticava as ilusoes e o desgaste das lutas pela jornada
mentar, a participaçâ'o dos trabalhadores na pol ftica de oito horas.
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A defesa dessas idéias era a tarefa de Emma, em sua majoritârias, freqüentemente impostas pela misti-
tournée. Apesar das leituras atentas, sentia-se pouco ficaçâ'o do poder, e as minoritârias, testemunhas da
à vontade, "um papagaio capaz apenas de reproduzir resistência e do gênio dos indivfduos.
frases alheias". Hâ uma coerência entre esse élan libertârio e
Terminado o primeiro discurso na Associaçâ'o a valorizaçâ'o da revolta individual. 0 pensamento
Germânica de Rochester, alguém observou que fora se recusa a criar regras, a açâ'o deve ser, como tudo
uma palestra inspirada, mas que, afinal, nâ'o tratara na vida, um ato de vontade apaixonada.
da jornada de oito horas. Na escala seguinte, em Emma defende um anarquismo sem regras. em que
Buffallo, repetiu os argumentas de Most, numa a açao pot ftica nasce das necessidades particulares
apresentaçao clara e 16gica, mas que ainda nâ'o era a cada lugar e a cada época, das exigências inte-
sua. Pensou em desistir, mas recusou a derrota. Em lectuais e psico16gicas do indivfduo. Rejeita toda
Cleveland, ûltima etapa, fez um discurso sarcâstico disciplina militar, a maquinaçâ'o parlamentar, a
contra o servilismo, capaz de levar os trabalhadores, burocracia. 0 voto nao é sua arma, mas a violência
tao rapidamente, a abandonarem os grandes ideais revolucionâria, manifestaçâ'o do espfrito de revolta
em troca de pequenas vitôrias. que esta nas origans do indivfduo.
Mas, terminado o exercfoio de ret6rica, se con- A liçao do operârio de Cleveland nâ'o s6 reforçou
frontou corn uma realidade bem diferente. Um velho a visao humanista da polftica am Emma; provocou
operârio, cabelos brancos, pâlido, observou a impa- também rupturas. A discf pula descobriu-se pensando
ciência dos jovens. Pensavam que 1 dôlar a mais por diferente do mestre Most. Para a. revoluçao, nao
semana, alguns minutas a menas de trabalho eram havia receituârio. Aprendeu que as relaçoes pol fticas
ganhos mesquinhos diante da grandeza do ideal passavam, muitas vezes, pelas relaçoes pessoais, para
revolucionario, mas ele, velho operârio, certamente o bem e para o mal. A paixao de Most lançara-a na
nâ'o viveria o suficiente para ver o final apote6tico militância, a divergência afastou-a do seu fdolo, para
do, capitalisme e precisava de alguns minutas a mais quem a ex-discf pula era duplamente traidora.
na vida para poder Ier um livra ou respirar ar puro. Outra ·descoberta importante: a vertigem do
Emma compreendeu. Antes de tudo, acreditava palco - "um circo em que ela era o palhaço", "que
na liberdade do corpo para escolher o prazer, o dominava as pessoas apenas corn palavras que flu fam
lazer, protegido das necessidades e do trabalho de profundezas ignoradas". A idéia da prâtica polftica
obrigatôrio. Liberdade do pensamento para que as coma um desempenho, aqui esboçada, esta presente
idéias possam florescer na sua multiplicidade, as na trajet6ria de Emma, conferencista que todas as
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noites repetia no palco o ritual da conquista, a as companheiras a participarem na greve. Organizava


vertigem, a recompensa do aplauso. comfcios, concertos, bailes.
No palco surgiu a personagem Emma Goldman e o "Revivi. Nos bailes era uma das mais alegres e nâ'o
mita de "Emma, a Vermelha", sacerdotisa dos anar- me cansava nunca." lnevitavelmente, surgiram crfticas:
quistas, sempre cercada de uma carte de admiradores/ uma militante revolucionaria se permitia dançar?
seguidores, propagandista do amor livre, da violência "- Era uma prova de frivolidade!" A frfvola Emma
que ameaçava a sociedade americana. reagiu aos gritos, em plena testa! ''.Ouero liberdade, ()
Outras papéis lhe foram oferecidos. Most quis direito de cada um se expressar, amar as coisas belas
fazer dela uma musa inspiradora, alguns quiseram-na e radiosas." 0 incidente terminou corn caras amarra-
companheira d6cil. Para os inimigos, era uma bruxa das e olhares de reprovaçâ'o.
que arengava multidôes pregando a revolta e despre- Junto corn Berkman, Fedya e as duas irmâs Mink,
zando a moral. que a haviam hospedado quando chegara a Nova
Fora do palco, era uma mulher loura, de olhos lorque, Emma formou uma comunidade. 0 objetivo
azuis, pèquena e forte, que se deixava arrastar pela era juntar recursos para dedicarem "à Causa", viver
musica tanto quanta pelas palavras. E que se orgu- e trabalhar pela "ldeal", oferecer-lhe, se necessario, a
lhava de ~r e.~c~lente cozinheira..... 56 nâo quis ser pr6pria vida. Montaram uma cooperativa de costura,
mâ'e. Recusou submeter-se à operaçâ'o que lhe coma a hero(na.Vera do Que fazer?, em New Haven.
permitiria engravidar, porque achava que a materni- Mas a cooperativa se desfez, Emma e Sacha voltaram
dade limitaria sua liberdade, que ela quis absoluta. a Nova lorque e juntaram-se ao grupo Die Autonomie,
E claro que, na opiniâo dos bi6grafos, estendeu aos rival de Most. Novo projeta ocupou o trio Goldman-
amigos o seu sentimento maternai frustrado. Nâo Berkman-Fedya: montaram um estudio de fotografias
imagina quai seria sua opiniâo sobre isso, mas pres- em Worcester, Massachusets. Mas a populaçâo local
sinto que certamente teria uma resposta irônica para nâo parecia interessada em guardar sua imagem para
mais essa tentativa de enquadrar o que lhe era mais a posteridade, e preferiu experimentar os dotes
proprio: a rebeldia. culinârios de Emma, que passou a servir tortas e
OuandÔ -voltoÜ·- da excursao como propagandista, ice-cream num salâ'o de cha. Os lucrns se destinavam
Emma foi absorvjda por suas novas atividades de a financiar a volta de Sacha à Russia, onde a revo-
militante. 0 movimento pela jornada de oito haras luçâ'o sonhada se aproximava.
continuava. Em Nova lorque, explodiu uma greve nas Era maio de 1892. Em Homestead, perto de
fabricas de confecçôes. A ex-costureira foi convencer Pittsburgh, explodiu um conflito entre a grande
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"UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

empresa metalùrgica Carnegie Steel Company e os morto, apunhalou-o.


operarios organizados na Amalgamated Association Frick sobreviveu. Berkman foi preso e tornou-se
of Iron and Steel Workers. 0 magnata do aço, a besta negra da sociedade americana. Foi o começo
Andrew Carnegie, colocara na direçâ'o da empresa de um longo pesadelo. Muitos companheiros de
Henry Clay Frick, um "duro especialista em re- Causa, instigados pela jornal de Most, acreditaram
pressâ'o". Os operarios pediam melhores salarias, o que Sacha era um agente provocador. A repressâ'o
patrâ'o recusou-se a negociar. 0 conflito se estendeu. sufocou o movimento de Homestead. Na prisao,
A empresa perseguia as famflias alojadas na vila Sacha tentou suicidar-se mas sobreviveu. Num julga-
operaria, e canvacou uni corpo especial para sufocar mento apressado, sem condiçoes sequer de explicar
o movimento. Houve mortes. os motivas de seu ato, foi condenado a 22 anas
No salao de cha, Emma e Sacha sentiram que era che- de prisao.
gado o momento. "O tempo das palavras terminou," Se o ato de Sacha permaneceu incompreendido,
disse Sacha. 0 pafs inteiro estava contra Frick e a tragédia de Homestead repercutiu profundamente
uma centelha bastaria para desencadear a revolta. no movimento operario americano. Eugene Debbs,
Tratava-se de preparar "O ATENTADO". entao Ifder sindical e anas mais tarde candidato
0 salao de cha foi fechado. Sacha viajou para socialista à presidência dos Estados Unidos, escreveu,
Pittsburgh para preparar a aç§o. Precisavam dinheiro. na época, que o exempla de Homestead "servira
Emma relembrou a Sonia, de Crime e Castigo, que para unir as organizaçoes operarias mais estreitamente,
salvara a famflia prostituindo-se. Por que nâ'o faria despertando-as para os perigos que ameaçavam
o mesmo? Gastou seus ultimos recursos comprando os trabalhadores".
sapatos de salto alto e lingerie .. Vestiu o melhor 0 ano de 1893 trouxe o desemprego e a miséria.
vestido, corn gala bordada, e num sabado à noite Debbs jogou-se na tentativa de arganizar sindicatos
percorreu a Fourteenth Street, tentando parecer de massa, que se contrapusessem aos sindicatos de
igual às outras mulheres que circulavam. Um miste- offcio, . exclusivamente reivindicativos e apol fticos,
rioso protetor, no melhor estilo de Dostoievsky, da American Federation of Labor (AF L), sob a.
ofereceu-lhe uma cerveja e dez d61ares. Visivelmente liderança de Gompers.
nao tinha vocaçao para o métier, mas conseguiu Mas a repressâ'o barrou os avanças do sindicalismo
parte do dinheiro necessario para a campra das armas. de massa, quando da grande greve dos ferroviarios
No sabado, 23 de julho, Sacha entrou no escrit6rio contra o magnata dos vagoes p·ullmann.
de Frick, deu-lhe dois tiros e, venda que nao estava Para Emma, foi uma época diHcil. Nâ'o fora formal-
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"UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

mente envolvida no processo de Sacha, mas passara Nesse mesmo ano de 1893, Emma foi acusada de
a ser vigiada. Teve, entâ'o, de viver num hotel de incitar à desordem, durante um movimento de
prostitutas, onde encontrou, en'fim, solidariedade. greves. Presa e condenada a um ano de prisao, foi
A incompreensao e os ataques contra Berkman, transferida para Blackwell's Island - onde antes
da parte de muitos companheiros e, especialmente, estivera Most.
de Most, magoaram-na. Mas nunca deixou de Era uma nova escola. Conheceu de perte a violência
defender o Atentado. e a brutalidade da vida carcerâria. Para fugir dela,
Nâ'o se tratava de uma escolha tatica, mas da estudou inglês, leu muito,. tornou-se enfermeira. A
reaçâo de alguém sensivel e desesperado contra a experiência forneceu-lhe material para novas reflex5es.
injustiça, a desigualdade, a miséria. "A vida na prisao faz dos homens e mulheres seres
"O que acontece quando um homem, refletindo anti-sociais. E as portas cerradas que os aguardam,
intensamente sob o fermenta de novas ideais, vê no quando sao libertados, nâ'o diminuem a amargura que.
horizonte a esperança, compreende que seu sofri- acumularam", escreveu mais tarde. Tinha razâ'o
mento e o de seus irmâ'os nâ'o é obra da crueldade do Havelock Elli!>· cada sociedade tem os criminosos
destina, mas da injustiça de outras seres humanos, o que merece.
que acontece quando vê os que lhe sao mais caros Um ano depois estava livre. Sacha continuava sendo
morrerem de fome, quando ele proprio morre · o centra de suas preocupaçéSes, mas a vida continuava.
de fome ?" A "dace companhia" de Ed Brady, um revolucionârio
Alguns seres humanos, nâ'o os menos sociâveis austrfaco, um cozinheiro refinado, recriava-lhe o
nem os menos sensiveis, tornam-se entâo violentas. ambiente perdido da literatura e da mûsica. Mas o
Ë uma violência social, e nâ'o anti-social, que golpeia suave Ed acreditava, também, que a mulher é antes
como e quem pode, nâ'o age individualmente mas em de tudo mâ'e e quis um filho de sua pequena Emma,
nome da condiçâo humana, ultrajada, pisoteada. uma tfpica mâ'e de corpo e de alma.
Comparada à violência do capital, a violência politica Emma resistia. A maternidade preferia a paixâ'o
é apenas uma gota no oceano. 1nevitâvel ante a pela Causa. Observara que os homens podiam ser
tirania. Tao inevitâvel quanta respirar. pais sem renunciar à revolùçâ'o. Mas esse nâ'o era o
Anos mais tarde, Emma escreveu a Sacha que de~tino das mulheres. Anos e anos eram absorvidas
gostaria de adotar as idéias de Tolstoï e Gandhi, pelas filhos e excluidas do resta da humanidade.
porque sentia que, finalmente, nenhuma das formas Aceitou viver corn Ed, mas nâ'o abdicou nem de
da violênCia jamais tivera resultados positivas. suas atividades de propagandista nem da nova
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"UM NOVO MUNDO Dl ANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

profissao de enfermeira. mesas, escada abaixo, rolavam pelo chao, bebiam


Decidida a aperfeiçoar-se num trabalho que lhe poçôes asquerosas, usavam instrumentas agudos,
fornecia matéria constante de ref lexao sobre as para provocar um aborto.
mulheres, passou um ano em Viena, para conseguir Emma nâo conhecia métodos contraceptivos, e
um diploma. os médicos a quem recorria faziam-lhe discursos
Viena do fim do século. Lia-se Nietzsche, assistia-se conservadores: "Ouando as mulheres usarem mais
às aulas do jovem Sigmund Freud. Professores fala- o seu cérebro, seu aparelho reprodutor funcionara
vam sobre temas estranhos, "assistidos por estranhos menos", diziam. Ela, ao contrario, estava convencida
auditôrios". Ouvia-se Wagner. de que as mulheres e as crianças carregam o fardo
Entre deveres e aulas, Emma, aluna insaciavel, mais pesado de um sistema econômico cruel. Por
dormiu pouco e absorveu tudo o que se passava. isso mesmo, nao podiam ficar esperando por uma
Amou Nietzsche e Freud. Encontrou, neste, uma revoluçao social. Era preciso mudar a sua situaçao.
explicaçâo sobre os efeitos da repressao sexual no As feministas americanas chamam hoje o perlodo
pensamento e na vida das pessoas. lsso "ajudou-me entre 1830-1920 de "a primeira revoluçâo sexual".
a compreender minhas prôprias necessidades". Em 1848, a "Proclamaçâ"o dos Direitos da Mulher",
Enquanto isso, nos Estados Unidos, o anarquismo de Seneca Falls, marcara a revolta feminina contra
revivia. As palavras de Spies diante da forca se reali- a fam Ilia, a lgreja e o Estado. No final do século, em
zavam: "Dia vira em que o nosso silêncio sera mais busca da emancipaçao, as mulheres se precipitaram
poderoso do que as vozes que agora sao sufocadas". sobre as profissôes: foram ser professeras, quase
Emma, ao voltar, tornou-se parteira, entrava nas sempre solteiras e sujeitas à rigidez da moral puritana,
casas miseraveis de homens e mulheres acusados, secretarias e operarias.
crianças sujas e famintas. As mulheres pariam deses- Emma rejeitava "a panacéia do voto". Nem a
peradas, era seu destino. humanidade nem as mulheres jamais chegariam à
A submissao das mulheres na famflia desde sempre liberdade pelo voto, dizia. Servas da lgreja, do
a impressionara. Observara sua mae, suas irmas. Estado e do lar, adorariam ao novo senhor - o
Revoltara-se contra as leis de ferro que pareciam voto -, corn a rnesma cegueira, o mesrno puritanismo
amarrar a mulher à servidao, enquanto filha, esposa em .Que haviam sido formadas e que transmitiarn a
e mâ'e. Agora, a experiência de parteira colocavçi-a seus filhos. Na sociedade, as mulheres eram servas,
diante das tragédias da gravidez forçada. As mulheres, ~ua liberaçâo--sô poderia vir delas prôprias, no dia
cegas de desespero, impotentes, atiravam-se de E!ffi que se afirrnassem coma. seres humanos e nao
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"UM NOVO MUNDO Dl ANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

como objetos sexuais - recusando a obrigaçâ'o de encontrou novas formas, talvez um pouco menas
criar filhos, enfrentando a opiniâ'o publica que as chocantes mas igualmente eficazes, violentas e
condenava ao puritanismo. hum il hantes.
As mulheres eram servas em suas mentes, pensava .D feminismo de Emma parece muito atual, na
Emma. De nada adiantaria a emancipaçâ'o polftica, medida em que rejeita a armadilha de restririgir a
nem mesmo a igualdade econômica, se nâ'o rom- opressâ'o das multieres a uma questâ'o de Ëstado, e
pessem corn essa servidâ'o ideol6gica que a sociedade ataca seus fundamentos nas praticas da sc;icieqade,
lhes impunha. Por medo, continuariam solitârias na sexualidade como na divisâ'o do trabalho e na
numa falsa libertaçâ'o profissional, afastadas dos reproduç§o familiar. Analisa a opressâ'o feminina
homens, nostâlgicas de um marido e muitos filhos. a partir da questao" sexual - "a principal arma da
0 ceticismo, quanto aos efeitos do voto e de todas sociedade contra as mulheres" -, pois, na medida
as medidas legais e formais de igualdade, era pr6prio em que sâ'o reprimidas na sua sexualidade, educadas
ao pensamento anarquista. Essa posiç§o permitiu a para o casamento mas nao para o amor, as mulheres
Emma, como observa Alix Shulman, distinguir a se fazem escravas.
•giferenç~ ~ntre ~ liberaçao das mulheres e os direitos Nela pr6pria, a lembrança das primeiras sensaçoes
das mulheres. Essa nâ'o é uma distinçâ'o freqüentë de prazer se confundiam corn a repressâ'o: o campo-
no feminismo, muito menos na época em que ela nês que tocava flauta e a carregava nos braços foi
viveu. Emma foi muitas vezes cr.iticada pelas feminis- despedido pela famma; a mâ'e, quando a encontrou
tas, acusada de ser mulher "corn .cabeça .de homem", tocando-se, esbofeteàu·a; quando lhe vieram as
inimiga da liberdade feminina, tudo isso porque primeiras regras, aos 11 anos, recebeu novamente
desconfiava dos efeitos libertarios do voto ou da uma bofetada, "que toda menina necessita ao se
igualdade de direitos, e dava ênfase aos "tiranos tornar mulher para se proteger da desgraça".
internos" da servidâ'o feminina: a ideologia e a 0 casamento era apenas um arranjo econômico,
opressâ'o sexual. um seguro de vida que nada tinha a ver corn o amor
A historia deu-lhe, em parte, razao. Se hoje, - que desabrochava entre dois seres livres, sem
l?assados quase 50 anos das primeiras conquistas d'! necessidade de rabinos ou sacerdotes. Legalizava as
direito ao vota e à igualdade jur(dica, vamos às. mulheres como um objeto sexual, parasitas, prisio-
urnas, qµando nos permitem, a igualdade para a neiras do Mbito e do · conformismo, mantendo-as
maioria das mulheres é ainda um direito formai. em completa ignorância sobre seu (mico atributo
A opr~ssâ'o na famflia, no trabalho, na ~ocieda® na competiçâ'o social, o sexo. E "grande parte da
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"UM NOVO MUN DO DIANTE DE MIM" EMMA GOLDMAN

infelicidade, da miséria, do sofrimento no casa- punidas quando ficavam grâvidas, quando cometiam
mento deve-se à ignorância criminosa sobre os adultério, quando praticavam a prostituiçâ'o? Sob
temas sexuais, mistificadoramente transformada em pretextos varios, é sempre uma mesma puniçâ'o
grande virtude". contra o exercîcio da sexualidade feminina, estabe-
A vida na famflia que conhecera, o seu casamento lecida pela moral puritana.
juvenil haviam sido marcados por essa miséria, pela lnsistia em que a prostituiçâ'o nao era apenas uma
violência que denunciava. Vira a mae, as irmas e a conseqüência da miséria econômica, mas também
si pr6pria como seres mutilados. lsso a canvencera da moral sexual, que exclufa as mulheres da vida
da necessidade de romper corn a opressâ'o sexual, sexual e do prazer, objetalizando o sexo na prostituta.
para que uma verdadeira igualdade, sem conquis- Entre o casamento e a prostituiçaa, dizia, ha apenas
tadores nem conquistadas, pudesse se estabelecer uma diferença de grau: no primeiro, a mulher que
entre os sexos. se vende a um homem, na segunda, a varios. Em
0 tema era polêmico e Emma nâ'o hesitou em ambos, ela utiliza esse atributo (mico que a iden-
confrontar-se corn seu mestre mais amado. Em Paris, tifica: o sexo.
de passagem para Viena, discutiu corn Kropotkin, Par outra lado, as conseqüências do puritanismo
que defendia outra posiçâ'o: "Ouando a mulher sobre as mulheres vâ'o mais longe do que o moralismo.
for igual ao homem intelectualmente, partilhando Tecem as malhas de um pensamento canservador,
seus ideais sociais, sera tao livre quanto eles". A res- alimentado por superstiçoes religiosas, pelo medo de
posta de Emma foi de que esse era o argumenta cair na desgraça da opiniao pùblica.
de um velho, para quem a sexualidade nâ'o mais se Sua conclusâ'o era cl ara: 1radiçoes secLjlares nâ'o
colocava_ Kropotkin ficou abalado. ~â'o varridas por reformas superficiais. Por isso mesmo,
Mas mesmo enfrentando resistências, a questâ'o "o direito ao voto ou à igualdade civil podem ser
sexual encontrou espaço privilegiado na imprensa reivindicaçoes justas, mas a verdadeira emancipaçâ'Ô
anarquista, nas suas experiências de vida em comu- nao começa na cabine de voto nem nos tribunais.
nidade, nas teorias sobre uma educaçao libertaria. Começa na cabeça de cada mulher. A historia nos
Emma, par seu turno, contini.Jou derrubando ensina que toda classe oprimida s6 se liberta de seus
barreiras. 1nvestiu contra o puritanismo, que tentava senhores por suas pr6prias forças. Ë preciso que as
impor às mulheres uma "castidade artificial à natu- mulheres aprendam essa liçâ'o, que comprendam que
reza", que "provavelmente provocava a desigualdade os limites para sua liberdade estâ'o nas suas forças.
mental dos sexos". Por que apenas as mulheres eram ·oaf por que é muito mais importante começar em
38 39
"UM NOVO MUNDO DIANTE DE MIM" CAP(TULO 3
i

1 si pr6pria, libertando-se do peso dos preconceitos EMMA, A VERMELHA,


i e das normas seculares".
Modificar a cabeça das mulheres queria dizer,
NA ERA PROGRESSISTA
il para Emma, rejeitar o casamento e a maternidade
coma destina, escolher a liberdade no amor e no
prazer, "viver sua vida". Sao os seus temas o amor
1. livre - escolher o companheiro (a) .sem necessitar
:1
de injunçoes religiosas ou familiares -, o casamento
- forma de opressâ'o -, a maternidade livre, esco-
lhida. A tragédia da emancipaÇâo feminina é o tftulo
1
de um dos seus artigos.
1
Sem se proclamar feminista, Emma forneceu
pistas para problemas que até ho je nos desaf iam.
'1! Se, par um lado, sao as contradiçoes concretas da
vida quotidiana que reproduzem a servidao feminina,
i por outre, é o medo de derruba-las e o tabu que as "Em 1902, Teddy Roosevelt ocupava a presidência e
! envolve que a reforça. Nâ'o sao apenas barreiras
isoladas. Ligam-se umas às outras e tecem a teia em
o patriotisme era um s61ido sentimento. Em Nova lorque,
navios desembarcavam migrantes vindos da lt~lia e do
l que nos debatemos. A dupla jornada de trabalho Leste da Europa. Enveredavam pelas ruas, eram absorvidos
~ nâ'o desapareceu corn a independência econômica; pelos cortiços, nâ'o se sabia como. Os nova-iorquinos despre-
l
,j
a dependê'ncia afetiva e sexual persiste mais além
do casamento.
zavam-nos. Eram sujos e analfabetos. Cheiravam a peixe
e alho. Ostentavam feridas abertas. Nâ'o tinham amor-
~ "Devo escolher que esta certo, a sociedade ou pr6prio e trabalhavam por quase nada. Roubavam. Bebiam.
1, eu", diz Nora, a heroina de Ibsen em Casa de Bonecas Violentavam as préprias filhas."
- drama que Emma muito amou. Nao ha respostas "A populaçâ'o costumava reunir-se maciçamente ao ar
prontas. Apenas fechar a porta da gaiola dourada e livre para concertos publicos, paradas, peixadas, pique-
sair pela mundo experimentar a liberdade, é a niques pol<ticos, passeios, ou entâ'o dentro de casa, em
conclusao de Emma. saloes, teatros de variedades, 6peras, bailes. Parecia nâ'o
existir lazer que exclulsse enxames de pessoas. Trens,
vapores e bondes transportavam-nas de um lugar para outro.
40 41
EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA
1 EMMA GOLDMAN

Era moda, era assim que. se vivia. As mulheres eram mais Mas no palco e para a imprensa s6 existia "Emma,
robustas entao. Visitavam a armada empunhando guarda-s6is a Vermelha", a "Rainha dos Anarquistas", uma
brancos. Todo mundo andava de branco no verao." espécie de bruxa sanguinâria, louca e demon(aca,
(E. L. Doctorow, Ragtime) cujos olhos lançavam chamas e a boca cuspia fogo.
Ocasionalmente, um jornalista honesto observava:
Era o novo século. 0 anarquismo renascia e Emma "Miss Goldman nao tem a aparência corrompida
atravessava o pafs expondo suas idéias sobre o amor que lhe atribuem. Ninguém a imaginaria preparando
livre, a homossexualidade, o voto feminino, o casa- bombas ou fazenda discursos incendiârios. Parece
i 1 mento, a escola moderna, o drama. Q1ÇI_is uma profe.ssora, imbuf da de suas convicçôes.
Em Detroit, fez uma palestra a convite de um Ouand() fala, seu rosto se ilumina de inteligência
:j pastor. Prudente, tentou restringir-se aos fundamentos entusiasmo".
econômicos do anarquismo. Mas as perguntas foram Mas nem todos pensavam assim. Pouco tempo
! 1 provocadoras: acreditava em Deus, defendia o amor depois, em setembro de 1901, um homem atirou
livre? " - Nâ'o acredito em Deus, porque acredito no presidente McKinley, em Buffallo. Tinha ligaçoes
i1 no homem. Quaisquer que sejam seus erros, os corn o anarquismo e Emma foi apontada coma
homens estâ'o ha milênios remendando o trabalho mandante do crime. Nova onda de repressâ'o e histeria
malfeito do Deus de vocês." abateu-se sobre os radicais; Emma foi presa. 0 assas-
! 1 "- Blasfêmia, herética, pecadora." Armou-se um sina, Lean Gzolgoz, • era apenas um adolescente
: l '
pandemônio na sala e na comunidade. E o pastor solitârio e desajustado, quase um marginal. Freqüen-
il
;Il~ renunciou a seu pulpito, para ir trabalhar numa
cidade mineira. De alguma forma, a convidada peca-
tara os circulas anarquistas, assistira a uma palestra
de Emma e pedira-lhe conselhos· de leituras. Seu

,H dora convencera o ministro de Deus. comportamento provocara suspeitas, Emma sa Ira


lj,, Entre viagens e discursos, as relaçoes de Emma corn em sua defesa. Diante da tragédia, a anâlise de Emma
·.1
1
Ed Brady eram diffceis. Ed continuava sonhando era a mesma corn que sempre compreendera a
corn uma Emma caseira e dedicada à maternidade. violência pol itica - um ato de desespero de alguém
. Emma vivia num turbilhâ'o, onde se sucediam "os marcado pela injustiça, estigmatizado coma espiâ'o,
misteriosos sons da noite e as dissonâncias da luz contra um slmbolo do poder e da reaçâ'o.
do dia". Ao mesmo tempo, uma parte sua permanecia Nada foi provado contra Emma, que depois de um
encarcerada corn Sacha, que coma um fantasma mês na prisâ'o foi libertada. Convencida de que Gzol-
irrompia freqüentemente nos seus sonhos e na sua vida. goz nao a incriminara, tentou uma campanha contra
42 43
!' EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA EMMA GOLDMAN

1 sua execuçao. lnutilmente. Gzolgoz foi executado e literatura, ciência e filosofia num tom superficial,
i Emma, constantemente vigiada, viu-se novamente
li falsamente tolerante, cinicamente pessimista.
l J
forçada ao anonimato. A "Rainha dos Anarquistas" Nem Sacha reencontrou sua pequena marinheira,
I' se metamorfoseou em Miss E. G. Smith, enfermeira nem Emma a revolucionario puro e dura do amor
jl ! eficiente.
A perda da identidade coincidia corn o desejo de
aos 20 anas. Mas foram fiéis às suas lembranças e
aos ideais comuns.
l! retirar-se, de se reconstruir. Logo estavam envolvidos pelas crises sociais dos
H ~ anos 1907-08. Milhares de trabalhadores nas grandes
l 1905. A primavera da revoluçâ'o russa provocava a cidades mergulharam na miséria. As autoridades, em
i 1
i
delirio entre os radicais do East Side. Nos comîcios,
nos cafés abarrotados, as diferenças pollticas eram
vez de buscarem meios para alimentar os famintos,
reprimiram até mesmo as intençoes de discutir as
l esquecidas e a imigraçâ'o russa preparava-se. Muitos causas da crise.
11)
revolucionarios passavam pela América em busca 0 movimento sindical sobrevivia enfraquecido pela
de solidariedade. Miss E. G. Smith transformou-se sindicalismo corporativista. Em Chicago, 1905,
em empresaria da troupe de Orleneff. Afinal, o reuniram-se, entâ'o, sindicalistas de varias origens,
teatro era uma de suas paixoes. Esse foi, também, decididos a construir um sindicalismo de massas,
o ponto de partida para a realizaçâ'o de seu velho capaz de defender os interesses de todos os traba-
sonho - uma revista. Foi lançada no dia 1Ç> de ma.rço lhadores. Fundava-se uma nova organizaçâ'o, a IWW -
de 1906, tinha 64 paginas e se chamava Mother lndustrial Workers of the World. Dela faziam parte
Earth. figuras lendarias: William Haywood, dirigente de um
Um ano depois, Alexandr Berkman foi solto. sindicato mineiro, Mother Jounes, também mineira
Ficara 14 anas preso e ela pudera vê-lo apenas duas que se formara entre os Knight of Labor, e o socia-
vezes. Na plataforma, Emma viu surgir um estranho, lista Daniel de '-eon.
o rosto de uma palidez mortal, 6culos grossos, as 0 manifesta de fundaçâ'o da IWW denunciava o
roupas grandes, sobrando, patético. sindicalismo de of îcio, a burocracia e a colaboraçâ'o
A ressurreiçâ'o de Berkman foi lenta e dolorosa. de classes, e propunha "um sindicalismo de massas,
Sa fdo de um mundo im6vel, transformara-se num construido na base da solidariedade operaria na
espectro. Tuda lhe era estranho. Também aquela luta de classes".
mulher, eternamente rodeada de amigos e admira- Os sindicalistas - wobblies, liderados par Bill
dores, num salâ'o mundano onde se falava de arte, Haywood, fizeram da IWW uma minoria ativa, uma
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EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA
EMMA GOLDMAN

equipe volante que apoiava cada nova luta surgida, dançarina da espontaneidade, Mabel Dodge, cujo
organizava os trabalhadores nâ'o-qualificados, espe- salâ'o reunia toda a boêmia do Village, e Emma
cialmente os trabalhadores rurais migrantes - os Goldman, a Vermelha.
hoboes. A redaçâ'o de Mother Earth era um centra de
Em todo o pals, a IWW organizou as lutas pela agitaçâ'o intelectual e feminista. Emma organizava
"liberdade de expressâ'o", as free speech fights. Emma ocasionalmente "Festas Vermelhas" para portadores
e o grupo Mother Earth estavam pr6ximos a Haywood, de sangue vermelho e revolucionario, dispostos a
que ela apreciava particularrnente. Nâ'o é um anar- esquecer por alguns momentos crimes e injustiças
qu ista - costumava dizer -, mas nâ'o é sectârio. e dançar em torno a uma mesa de tortas e daces, um
Ela respeitava, também, Elizabeth Gurley Flyn, uma samovar russo. E valsava fantasiada de freira.
das primeiras revolucionârias americanas de origem Na opiniâ'o de Mabel Dodge, companheira de
proletaria. John Reed, Emma Goldman mais parecia uma profes-
As greves em Lawrence, Massachusets, e em Pater- sorinha simpatica, servindo cha e bolos aos amigos
son, New Jersey, sacudiram a intelectualidade radical. na redaçâ'o.
Um jovem jornalista, John Reed, escreveu: "Ern Mas era também uma mulher escandalosa: fumava
Paterson é a guerra. Uma guerra bizarra. A violência em publ ico, sendo às vezes, por isso, convidada a
vem apenas de um lado, dos patroes das fabricas. retirar-se de restaurantes; freqüentava bares e criti-
Seus empregados, seus policiais espancam homens cava abertamente o usa de espartilhos - que sufo-
e mulheres indefesos e atropelam a cavala as massas, cavam o corpo das mulheres. E, é claro, defendia
que permanecem respeitosamente nos limites legais". o amor 1ivre.
Os avanças do movirnento operario reforçavam Para a boêmia radical do Village, esses eram habitas
a idéia de progressa, de evoluçâ'o, que se generalizava. e temas quotidianos. Hostil aos valores marais do
Progressa era tudo: desde a formaçâ'o da consciência puritanismo e à ideologia do business, os jovens
operaria, a revoluçâ'o produtiva, até Henry Ford. rebeldes, coma John Reed, tornaram-se testemunhas
Era o tempo da Nova Poesia, do Novo Drama, das das lutas sociais no pafs, da revoluçâ'o mexicana.
peças de Eugene O'Neill, da Nova Arquitetura de Em 1911, surgiu o jornal The Masses, uma das mais
Frank Lloyd Wright, e também da Nova Mulher. interessantes manifestaçôes da cultura radical da era
Em Nova torque e no Village, centra iluminador progressista. Espelhava a efervescência intelectual
da modernidade, havia três sfmbolos dessa Nova que dominava os radicais: marxisme, anarquismo,
Mulher, diz Richard Drinnon. Eram Isadora Duncan, sindicalismo, revoluçâ'o, controle da natalidade, amor
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EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA EMMA GOLDMAN

livre, cubismo, Freud, Nietzsche, futurismo e terro-


rismo. Tuda cabia no visual arrojado do jornal.
Em 1912, o clima de otimismo se viu reforçado
pela significativa votaç8o de Eugene Debbs, coma
candidato do Socialist Party à presidência dos Estados
Unidos. 0 socialismo parecia estar no horizonte.
Na verdade, o sentido da historia era outro. A
votaçao de Deb~s significava muito mais o fim das
lutas sociais do século XIX. Pouco depois, diante
do militarismo e do patriotismo desencadeados pela
guerra, o radicalismo americano sofria sua grande
derrota.
Mas, no fulgor do radicalismo, Emma Goldman
encontrava novas audit6rios entre aqueles que ela
chamava de a "boêmia respeitavel". E Mother Earth,
sob a direçao de Sacha, desempenhava um papel
importante coma jornal de agitaçao, apesar da falta
de senso de humor, criticada par Max Eastman,
editor de The Masses.
Emma continuava suas conferências através do
pals. Numa delas, em Chicago, conheceu o dr. Ben
L. Reitman, um médico excêntrico e de reputaçao
duvidosa, rei dos hoboes.
Emma também o descreveu: "Uma figura exôtica 1
e pitoresca, corn um imenso chapéu de cOwboy,
cabelos negros e crespos, que evidentemente ha
muito nao eram lavados, olhos castanhos, grandes 1
e sonhadores". · !
lnevit13velmente, tornaram-se amantes: ·o rei dos t
hoboes · e a rainha dos anarquistas. Contada assim, a ! Ben Reitman.
48 t 49
!
EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA EMMA GOLDMAN

historia parece um romance de circo, visto à distância, mais tempo, algo vai acontecer à c-t. E eu preferiria
ao som de um raggy. Foi realmente uma grande que nâ'o, ja que ela vai ter de ficar esfomeada. Mas a
paixao, nas palavras de Emma: "Você amou-me imaginaçao faz estragos dentro de mim. Cada nervo
coma mulher, rompeu as grades que aprisionavam esta tenso, minha c-, quente e queimando corn o
minha feminilidade, fez explodir toda a paixao desejo de se esfregar em W. para cima e para baixo,
contida e reprimida em mim, violenta e infinita para cima e para baixo. Minhas m- gritam de prazer,
coma o r'nar". e o cérebro arde em chamas. Quero f- você ...
Alguns bi6grafos de Emma Goldman passam Ben Reitman, você é meu tesouro precioso, minha
rapidamente sobre o tema. Nao assim as bi6grafas, alegria, o êxtase de minha vida. Espero por você
especialmente as feministas. Emma foi praticamente cheia de amor e paixao. Venha. Mamiie". *
redescoberta nos anas 70, assim coma suas mem6rias Ao mesmo tempo, descobria os conflitos da
e artigos, publicados em Mother Earth, e a vasta relaçâ'o amorosa - os tiranos internas da servidâ'o que
correspondência corn amigos, Sacha e corn Ben ela mesma apontara, o ciume, o desejo de proteçâ'o.
Reitman. Essas cartas desvendam uma historia de
amor que se confunde corn o conflito classico entre "Vagabundo querido. Que pequenino você é, tao ingê-
a paixao e a imagem da militante. Ben foi o amor nuo, tao que nem uma criança. Realmente nâ'o deveria me
maldito, que fez aflorar as sensaçoes mais profundas, zangar corn você. Se ao menos nao tivesse despertado a
dilaceradas às vezes, outras vezes radiosas: "Despeje mulher em mim, a selvagem mulher primitiva, que anseia
a sua preciosa essência de vida dentro da minha pelo amor e carinho do homem acima de tudo o mais no
e deixe-me esquecer, que eu nâ'o tenho nem lar, nem mundo. Tenho um grande e profundo instinto materno por
pa Cs. Se tenho você, tenho o Munda. Que mais você, meu bebê querido, esse instinto tem sido o lado
desejar? . . . Se ao menas pudesse me enrolar ao redentor de nossa relaçao . . . Mas meu amor maternai é
redor desse seu corpo, se ao menas pudesse beber apenas uma parte de meu ser, as outras 99 partes sao da
da fonte da vida. Céus, mas hei de beber cada gota mulher, a intensa, apaixonada e selvagem mulher, a quem
do suco de W. Querido amado meu bem, agüente o você deu vida como nenhum outro antes de você. Acho
desejo mais 4 dias apenas, e entao, e entao! 56 de
pensar, fico tonta. As vezes isso me apavora, mas
• Nas suas cartas, Emma e Reitman usavam um c6digo nâo de todo
me fascina tanto, um fasclnio tao embriagador ... incomum no discurso er6tico vitoriano - "caixa do tesouro" ou "c-t".
Ha luar agora, e estou planejando a orgia mais "montanhas" ou "m-", "pétalas da rosa", a "fonte da vida". "Willie"
assombrosa de nossa vida. Se pensa nela por muito e assim por diante.

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EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA EMMA GOLDMAN

que af se encontra a chave de nosso sofrimento e também arcaica do casamento burguês, ao se confrontar
de nossa grande felicidade, por mais rara que seja. Arno corn as freqüentes infidelidades de Reitman: "ferida,
você corn uma loucura que nâ'o conhece limites, nem atormentada pelo ciûme, ao mesmo tempo furiosa
desculpas, nern rivais, nem paciência, nem lôgica. Ouero · corn Ben e consigo mesma por abandonar-se à raiva
seu amor, sua paixao, sua devoçâ'o, seu carinho. Ouero ser e ao ciume". Fora capaz de seguir Reitman coma um
o centra de seus pensamentos, de sua vida, de cada um câchorro, dizia, enquanto ele perseguia uma mulher.
de seus segundos. Oualquer coisa que afasta você de mim, Depois, escreveu-lhe longas cartas onde lamentava-lhe
mesmo que por um momento, me deixa louca e toma a a crueldade. "Meu trabalho, meus princlpios nunca
minha vida um perfeito inferno. É porque amo você tanto permitirao fazer algo que me envergonhe diante de
que anseio pelo seu carinho. Ouero realmente que cuide mim mesma. Devo permanecer forte, mesmo se
de mirn. Ninguém jamais cuidou, coma sabe. Sempre tomei destroçar m~u coraçâ'o, mas prefiro nunca mais vê-lo
conta dos outras e fiz tudo par eles. Nunca quis que nin- do que passar nova mente pela experiência de ontem."
guém tomasse conta de mim. Mas corn você desejo isso, Emma sempre se distanciara das ilusoes sufragistas,
oh tâ'o intensamente ... Estive pensando que ha algo mais assim como da hostilidade que transparecia muitas
profundo no fato de uma mulher se agarrar ao homem vezes no discurso da emancipaçâ'o feminina. lnsistia
que ama. É o sentimento confortador de segurança, de em que "se a emancipaçâ'o parcial evoluir para uma
se ter alguma pessoa que encontra prazer em fazer você emancipaçao completa e verdadeira da mulher,
feliz e nâ'o julga nenhum esforço por você diffcil demais. deverâ afastar a idéia ridfcula de que a mulher que é
Nunca senti falta disso, nunca me importei corn isso, nunca amada, que é mâ'e, é sinônimo de escrava e subordi-
imaginei que pudesse vir a ter necessidade disso, até que nada". Mas, ao mesmo tempo, sentia que os limites
você entrou na minha vida, até que despertou esse lado entre a relaç§o amorosa e a relaçâ'o possessiva sao
da minha natureza, esse lado da minha psicologia. Olhe, fluidos, inconstantes e exigem estar permanente-
meu precioso, você deu vida a uma força que nâ'o sabe mente em guarda.
coma rnanejar, como enfrentar, dai os conflitos, dai a Anos mais tarde, escreveu: "A luta para manter
falta de harmonia e paz." minha pr6pria individualidade e liberdade foi sempre
mais importante para mim do que o mais selvagem
Num artigo - Emma Goldman in Love -. Alix dos amores". Estava provavelmente pensando em
Wexler observa as dificuldades de Emma, defensora Ben Reitman. Mas a frase jâ soa como o resultado
do amor livre, que denunciara sempre a monogamia de um ajuste de contas em que desapareceram os
obrigat6ria e o ciûme coma uma sobrevivência sentimentos quotidianos, as emoçoes, e em que
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EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA EMMA GOLDMAN

ficaram s6 as conclusoes. que fora recolhida, para enfrentar-se corn seus sanhos
0 que é atual e visionario em Emma, no entanto, românticas de eterno êxtase e a que lhe parecia
esta nessa negativa em absolutizar as conquistas miserâvel e indigna naquele amar. Ben havia dedicado
da igualdade legal, da "emancipaçâ'o", e reconhecer anos de sua vida a ela, invertendo a tradiçâ'a de que
as contradiçoes da 1iberaçâ'o. Aprendemos, de nossas as mulheres sacrifiquem seu talento e criatividade
maes, que o destina das mulheres é amar e sofrer, aa homem amada. Eram de um rr:esmo ;mundo
e, tratando de ramper corn o destina, reencontramos er6tico, mas estavam culturalr.iente> separados.
uma nova servidao. E. a trajetôria de geraçëes de Na sol idaa da cela, feitas as contas,· oâ'o restou nem
mulheres que, muito depois de Emma, se lançaram amor nem 6dio, apenas um sentimenta fraternal.
no desafio da igualdade, dos tiranos internas que Foi também nesse começo de século louco e
nos exigem esse permanente estar em guarda e auto agitado que Emma desenvolveu uma intensa luta
(re)canstruir a cada passa. pela maternidade livre. Ela pr6pria escolhera nao
Ambigua e atarmentada, a relaçâ'o de Emma e ter filhos. Sabia que por ter o ùtero retrovertida
Reitman prolongou-se par quase 10 anas. As dife- necessitava de uma operaçâ'o cirùrgica para engravidar.
renças se acumulavam: os amigos de Emma desgos- Muitas vezes sofrera pressoes nesse senti do: de Ed,
tavam de Ben, que, par sua vez, declarava que a coma antes de Most, de Ben Reitman. Nunca quis
(mica mulher a quem seria eternamente fiel era sua ser mâ'e, porque acreditava que a maternidade a
mâ'e. T entaram viver juntos, os três. Obvia mente, a obrigaria a modificar sua vida, a abdicar de sua
experiência fracassou. liberdade. A maternidade lhe parecia coma uma
Alix Wexler observa que Ben sempre chamou Emma força cega e surda que gastava a força e a juventude
de mam§e - Mammy - e que ela assinava assim suas das mulheres, e fazia delas, na velhice, um farda para
cartas e o chamava de Baby boy - a relaçâ'o maternai si pr6prias e para seus filhos.
teria sido. um traço marcante entre os dois, "apenas A impressâ'a que a maternidade lhe deixara come-
uma parte entre outras 99", dizia Emma. çara na vida em fam ma, no sofrimento de sua mâ'e,
Em 1916, depois de rupturas e reencontros, Ben que se consumira em partos sucessivos e indesejados.
afastou-se definitivamente da vida de Emma, casou-se Encontrara a mesma cena quando, enfermeira e
e instalou-se em Chicago. "Fui seduzido pela deseja parteira, via as mulheres desesperadas tentando
de tado hamem comum de ter uma casa, uma mulher abortar ou revoltadas no momenta do parto, maldi-
e um filha." Para Emma, os dois ùltimos anas haviam zendo a triste sina.
sido amargas. Aproveitau a isolamento da prisâ'o, a Para ela, a maternidade era muito menas a relaçâ'o
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EMMA, A VERMELHA, NA ERA PROGRESSISTA EMMA GOLDMAN

mâ'e-filho do que a carga social que vem embutida riqueza. Numa sociedade de escravos, as mulheres e
e disfarçada no "instinto maternai" - cuidadosa- as crianças sao as principais vltimas. "Durante séculos
mente preparado pela ideologia da dedicaçâ'o, da (as mulheres) permaneceram ajoelhadas no altar do
resignaçao e do sacritlcio inerente às alegrias da dever, diante de Deus, do Capitalismo, do Estado e
maternidade. da Moral. Hoje, despertam do seu longo sono e
Em 1900, de passagem por Paris, Emma assistiu negam-se ao crime de pôr no mundo crianças que
entusiasmada ao primeiro congresso neomalthusiano, serao esmagadas pelo capitalismo." A maternidade
e tratou de informar-se sobre métodos contraceptivos. forçada é uma escravidao imposta às mulheres, disse
Mais tarde, incorporou .o tema em suas palestras e, Emma, leva-as a reprimirem sua sexualidade para
quando a campanha pelo Birth Contrai foi desen- evitarer.n filhos, toma-as frias pelo terror à gravidez,
cadeada, participou dela intensamente, junto corn exaure suas forças nos partos sucessivos. Par isso, o
Ben Reitman. direito de escolha deveria ser, para a mulher e para a
Em 1913, Margaret Sanger, uma socialista, inte- humanidade, uma conquista social.
ressara-se pelo tema na Europa e publicara uma Os argumentas de Emma diferem dos de Malthus.
revista, Woman Rebel, e um panfleto sobre o plane- Sua preocupaçâ'o é muito mais corn as conseqüências
jamento da famrna. Começou assim o movimento. da maternidade forçada sobre as mulheres, a denùncia
Quando Sanger foi presa, Emma solidarizou-se corn da hipocrisia que defende a maternidade mas a
ela. Suas conferências, sobre "O controle da -nata- estigmatiza fora do casamento e discrimina as maes
1idade" e "O direito da criança a nao nascer", no mercado de trabalho.
despertavam muito interesse nas grandes cidades Nesse tema, também ela aparece como visionaria.
da costa Leste. Segundo ela, o auditôrio masculino Entendeu a importância para as mulheres do direito
era sério e atento, mas as mulheres eram imposs(veis. de escolher a maternidade, sem transforma-Io numa
Davarn risadinhas, cochichavam e f ingiam estar panacéia para todos os problemas sociais.
chocadas ... Logo, uma nova luta a envolveu. Em 1917, a
Logo chegou avez de Emma e Ben serem presos e enfrada dos Estados Unidos na guerra desencadeou
julgados. Emma teve entao oportunidade de expor uma onda patriôtica e militarista no pafs. 0 exerclcio
suas idéias. lnfluenciada por Malthus, denunciou a da violência do Estado contra o indivlduo nao poderia
crescente desigualdade social entre ricos e pobres, deixar Emma impassfvel; ela e Berkman participaram
como conseqüência nao do esgotamento dos recursos do movimento contra o alistamento militar. Foram
naturais, mas do capitalismo monopolizador da novamente presos, julgados e libertados sob fiança,
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EMMA, A VERMELHA. NA ERA PROGRESSISTA CAPITULO 4

mas o clima "antivermelho," alimentado pela vit6ria RÜSSIA 1920/ESPANHA 1938:


da revoluçâ'o na Russi~, dominava os Estados Unidos. MEMÔRIAS DE TEMPOS SEM PERDÂO
0 governo preparava a deportaçâ'o dos Reds, e Emma
Goldman e Alexandr Berkman eram dois dos mais
perigosos anarquistas do pals, segundo J. Edgar
Hoover e o FBI.
Corno Emma observara em 1917, o militarismo e
a reaçâ'o se expandiram na Europa e nos Estados
Unidos. 0 fantasma ameaçador da revoluçâ'o russa
rondava; as greves, os atentados terroristas serviram
de pretexto para o medo vermelho. Emma Goldman
e Berkman foram entâ'o enquadrados entre os 60 000
estrangeiros que ameaçavam a paz americana. Mon-
tau-se um processo. Documentas alterados invocaram
a participaçâ'o de Emma no atentado contra "Penetrâvamos num mundo mortalmente gelado. A
McKinley e o passade terrorista de Berkman. Emma estaçao da Finlândia vazia, sob os retlexos da neve. A praça
e Sacha, cidadâ'os do mundo, nâ'o eram cidadâ'os de onde Lenin falara à multidao do alto de um carra
americaoos. Junto corn 247 outras anarquistas, blindado era um deserto branco, rodeado de casas mortas.
foram embarcados no velho navio de guerra Buford, Parecia uma cidade abandonada. As largas avenidas, as
na madrugada de 21 de dezembro de 1919, corn pontes s9bre o Neva, rio de geJo, coberto pela neve. Espar-
destina à Rûssia. sos, um magro soldado de capote cinzento, uma mulher
transida sob um xale passavam como espectros no silêncio
" ( ... ) E a essa altura, o ragtime esgotara-se corn o do esquecimento. Na direçao do centro havia uma animaçao
pesado arquejar da maquina, coma se a hist6ria nao passasse suave e fantasmagôrica. Trenôs puxados por cavalas famin-
de uma cançao tocada numa pianola. Lutamos na guerra e tos deslizavam lentamente na brancura. Ouase nao havia
vencemos. A anarquista Emma Goldman foi deportada." automôveis. 56 raros transeuntes de rosto 1fvido." (Victor
(E. L. Doctorow, Ragtime) Serge, Mémoires d'un Révolutionnaire)

"Venho servi-la, Matushka Rossya, terra sagrada.


Povo magico, slmbolo da esperança humana. Permita-
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RÛSSIA 1920/ESPANHA 1938 EMMA GOLDMAN

me penetrar no seu seio, misturar meu sangue, encon- seu nome.


trar meu lugar nessa luta her6ica." Emma e Sacha tentaram inserir-se na sociedade
A cidade branca e glacial recebeu os filhos pr6digos soviética em construç§o e trabalhar. Emma ofereceu-
corn caler, musica e lagrimas. A esperança renasceu. se corne enfermeira ou como educadora junto ao
lnstalada no lendario hotel Ast6ria, em Petrogrado, comissârio de Cuttura, Lunatcharsky. Em vao.
quartel-general dos revolucionarios de todo o mundo, 0 depoimento de Angelica Balabanova, a quem
Emma Goldman foi pouco a pouco descobrindo as procurou entao, testemunha sua angustia. "Ouando
grandezas e misérias da grande revoluçao. veio me encontrar", escreveu Angelica, "ainda que
Foi uma tenta e dolorosa descoberta. John Reed, o desgostosa e indignada, nao perdera a fé na revoluçao,
sempre charmoso e entusiasmado Jack, que mais do mas apenas começara a falar, explodira em lâgrimas".
que ela pr6pria se formara nos sonhos da boêmia Balabanova partilhava as mesmas inquietaçoes, mas
radical, dizia, realista, que Emma s6 conhecia o lado tratava de compreender as distorçoes do processo
te6rico da revoluç§o. Agora vivia a revoluçao real, revolucionario como efeitos passageiros das dificul-
contemporânea de si mesma. A imagem libertâria da dades impostas pela grandeza da revoluç§o. Confiava
sociedade natural tinha pouco a ver corn a guerra ainda em Lenin e estava certa de que ele reconheceria
civil, a sabotagem, a fome. Mas também era 1lcito o trabalho de Emma e Berkman; que ele seria capaz
pensar que os caminhos escolhidos para enfrentar de explicar as intençoes escondidas na realidade
problemas tao graves e profundos nao eram os confusa. Tratou de promover um encontro entre
melhores: "34 tipos diferentes de raçao sob a igual- Emma, Sacha e Wladimir llitch .
.dade comunista!". A Cheka, polCcia poHtica, assas- Foi uma estranha aventura através dos gélidos e
sinava anarquistas e socialistas revolucionârios corne suntuosos corredores e saloes do Kremlin,, até a
se fossem inimigos c.Ja Revoluç§o. Tude em nome da presença de um par de olhos penetrantes e infinita-
ditadura do Proletariado. mente curiosos, atrâs de uma simples e meticulosa-
Emma escrevia: "Corno um coelho numa gaiola, eu mente ordenada escrivaninha. Lenin elogiou os
me debato contra as grades, prisioneira de contradi- verdadeiros anarquistas e explicou a luta mortal da
çoes terrrveis". ditadura do proletariado pela sobreviência da revo-
Se a revoluçao sonhada significava fome e miséria, luçao e a necessidade de apoio internacional. Os
ambiçoes mesquinhas e vingança, indiferença pela escrupulos de Emma quanto à repressao e à onipre-
vida e pelo sofrimento humano, nlio era mais a sença da Cheka e o centralisme pareciam-lhe senti-
revoluçao, mas um imenso crime cometido em mentalismo burguês. Era preciso trabalhar para
60 61
·" 1

!J1) EMMA GOLDMAN


•1!1 RÛSSIA 1920/ESPANHA 1938
~I~ l
~I paz e nas sinagogas rezava-se por Lenin.
fül recuperar o equillbrio revolucionârio, aconselhou.
,::1' A entrevista convenceu-a de que nada do que se Em Kiev, Emma encontrou Gallina, companheira
~\ de Nestor Makhno, guerrilheiro anarquista que
(1j passava escapava aos olhos implacâveis de Lenin,
fj. reforçando suas duvidas sobre a correçao dos métodos liderava um grupo de camponeses. Makhno propunha
bolcheviques. simular um rapto de Emma e Berkman para enviar,
!I111 Emma e Berkman percorrem entao as fâbricas e através deles, uma mensagem explicando seu pro-
]li
1:: escolas de Moscou, servindo de intérpretes para grama para a revoluçao e as crfticas ao regime bolche-
1·11
visitantes estrangeiros. As fâbricas estavam em pés- vique. Mas, além da simpatia pela anarquista Makhno,
1,i,!
simo estado, semiparalisadas; em sua maioria, eram Emma e Sacha julgaram ainda nâ'o ser o momento
1·:1,, os membres do partido que constitufam a direçao: para ramper corn os bolcheviques. lntelectualmente,
! discordavam dos métodos da ditadura do proleta-
1 "os trabalhadores mostravam-se descontentes corn a
riado mas, emocionalmente, se sentiam ainda ligados
'1 1
arrogância e os métodos arbitrarios da burocracia".
Decidiram entao deixar Moscou. à revoluçao bolchevique.
De volta a Petrogrado. Emma e Sacha receberam a 0 trem da mem6ria chegou ao Norte. Lâ havia
:11 incumbência de organizar uma caravana para coletar igualdade, a especulaçao fora evitada distribuindo-se
i documentas para o Museu da Revoluçao, através de raçoes justas para todos. Of iciais bran cos e freiras
~
•I
toda a Rûssia. Prepararam corn entusiasmo a viagem, colaboravam nas escolas e hospitais. As instituiçoes
! num trem especialmente equipado, corn alguns funcionavam. Em outras regioes, a presença da
companheiros de trabalho, visas e licenças para ter Cheka, a centralizaçâ'o exagerada, o mercado negro
acesso às autoridades locais. e a fome compunham o quadro revolucionârio.
111
Nesse final do ano de 1920, a desesperanc;a parecia
ll
lJ ~
Il'
A viagem à Rùssia profunda proporcionou-lhe uma
visao mais rica e complexa da revoluçâ'o. Os caminhos
revolucionârios eram muitas vezes diferentes e origi-
ter se apoderado de Emma. Apenas um ano antes, a
borda do Buford, apesar do frio e dos perigos, haviam
sonhado corn Matushka Rossya. Era novamente Natal.
l'i nais. Nas provlncias onde as lideranças locais haviam
! ·:.1·!
1.1 1:, conseguido se organizar no poder, havia mais liber- No trem que atravessava a Russia soviética, ela
: 11
dade, menos sabotagem e a populaçâ'o vivia melhor. sentia-se deixando para trâs as cinzas de seus sonhos
11.!
'fi·.•. :. Na Ucrânia, encontraram cidades inteiras traumati- ardentes.
\1V zadas pelos pogroms dos generais brancos: mulheres 1920 foi um ano diflcil em Moscou e Petrogrado.
'tli;
\ .1
!
violadas, velhos torturados e mortos diante das John Reed, o radioso porta-voz dos novas tempos,
marrera de tifo voltando de Baku, aos 32 anos.
1 I"•
jl '
crianças. Os bolcheviques haviam restabelecido a
63
ill;i
1.1'
62
~!1
fi/,
RÛSSIA 1920/ESPANHA 1938: EMMA GOLDMAN

Corn ele pareciam extinguir-se o charme e o brilho


da revoluçâo. 0 frio e a fome assolavam o pa fs.
A Cheka perseguia os anarquistas. Todos eram sus-
peitos. Foi quando morreu Kropotkin. Emma e
Sacha, junto corn outros anarquistas, organizaram
seu enterro. Nê'io haveria honrarias oficiais. Nas
prisëes, anarquistas fizeram greve de fome pedindo
para assistir aos funerais do mestre. A Cheka res-
pondeu que nao havia anarquistas presos em Moscou.
Mesmo assim, a alguns foi permitido sair da prisê'io
e acompanhar a cerimônia.
Um longo cortejo atravessou Moscou. Parou duas
vezes: diante do Museu Tolstoï e da prisê'io de Butirky.
Pela ultima vez, as bandeiras negras anarquistas
apareciam em publico. No cemitério, Emma despe-
diu-se do mestre.
Nesses meses, Petrogrado foi sacudida por rumores
de greves. A atmosfera estava pesada, faltava comida,
habitaçao, aquecimento. Rapidamente, reivindicaçoes
polfticas também apareceram: "os trabalhadores e
camponeses querem liberdade, querem controlar
seu prôprio destino".
Para o governo, eram todos contra-revolucionarios
e a unica resposta era a repressê'io. Emma e Berkman
tentaram, inutilmente, convencer os dirigentes
bolcheviques da cidade - Zinoviev e Zorin - de que
mudassem de tatica. Acreditavam que essas manifes-
taçoes representavam o verdadeiro espfrito da
revoluçao de Outubro: a decisê'io dos trabalhadores
de governarem sem repressao, sem centralismo, sem Camponeses russos durante a grande fome de 1920 e 21.
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uma nova elite dirigente. tempos recentes em que também Lenin, Trotski e
Os grevistas estavam condenados à derrota, quando Zinoviev, chamades de espioes alemaes pelo governo
explodiu a revolta do Kronstadt, a fortaleza vermelha de Kerenski, tinham sido levados ao poder por eles,
que tantas vezes defendera Petrogrado dos ataques marinheiros do Kronstadt, junte ao povo.
brancos. Numa ultima tentativa de mediaçao, Berkman e
Entre os marinheiros do Kronstadt, havia certa- Emma levaram um comunicado a Zinoviev.
mente anarquistas, mas eram todos revolucionarios
fiéis a Outubro e sua assembléia conservava o dinamis- "Silenciar é nesse momento impossfvel e até criminoso.
mo dos sovietes nos primeiros tempos da revoluçao. Os acontecimentos recentes forçam-nos, anarquistas, a
Os marinheiros do Kronstadt queriam pouco: falar e explicitar nossa atitude diante da situaçâo que
maior autodeterminaçao, liberdade para o sindicato vivemos.
e assembléias de trabalhadores, liberdade para os "O espfrito de agitaçâo e insatisfaçâo que se manifesta
prisioneiros pol fticos. entre os trabalhadores e os marinheiros é o resultado de
Os laços entre Emma e Sacha e os marinheiros causas que merecem muita atençâ'o. 0 frio e a tome provo-
eram antigos, deles chegara aos Estados Unidos o caram a insatisfaçâo, e a ausência de qualquer oportunidade
primeiro proteste contra a ameaça do governo ameri- de discussâo e crftica estâ forçando os trabal hadores a
cano de deportar Sacha. Por isso, os dois procuraram trazerem suas reivindicaçêies a publico.
estabelecer uma ponte entre os amigos fiéis e o "A guarda branca quer e pode tentar 'explorar o descon-
governo. tentamento em seu interesse proprio. Ocultos atras dos
Mas a resposta do governo foi violenta. Os mari- trabalhadores e marinheiros levantam slogans de uma
nheiros foram acusados de cumplices de uma conspi- Assembléia Constituinte, de liberdade de comércio e outras."
raçao tzarista e contra-revolucionaria. "Nos, anarquistas, desde hâ muito criticamos o vazio
Emma e Sacha reagiram corne todos naquela desses slogans e declaramos ao mundo que combateremos
época, era impossfvel que Lenin e Trotski estivessem corn armas na mâo toda tentativa contra-revolucionâria,
bem informados. Seria necessario chegar até eles e lado a lado corn nossos companheiros socialistas revolucio·
desfazer o equ_ivoco. nârios e bolcheviques.
Enquanto isso, a lei marcial foi decretada e, no "No que diz respeito ao conflito entre o governo sovié-
soviete de Petrogrado, Zinoviev mais uma vez conde- tico, nos, os trabalhadores e marinheiros, insistimos que
nou a insurreiçao como contra-revolucionaria, apesar esse deve ser implantando nâo pela força das armas, mas
dos depoimentos de marinheiros q\Je lembravam os através da solidariedade, de um acordo fraternal e revalu·
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cionario. Se o governo soviético recorrer ao derramamento era mais assutador do que o bombardeio incessante
de sangue nesse momento, nao intimidara nem silenciara das noites anteriores, escreveu Emma. .
os trabalhadores. Ao contrario, servira apenas para agravar 0 epis6dio representou o ponta de ruptura de
os problemas e fortalecer a entente e a contra-revoluçao Emma e Sacha corn a revoluçâ'o bolchevique. Logo
interna. em seguida, a repressâ'o contra os anarquistas se
"Ainda mais, o uso da força pelo governo dos operarios intensificou, enquanto florescia a Nova Pol ftica
e camponeses contra os trabalhadores e marinheiros tera Econômica.
um efeito negativo no movimento revolucionârio interna- Emma sentia-se, entao, duplamente desesperada
cionaf e resultarâ num prejufzo incalculavel para a Revo- diante das desigualdades crescentes que a NEP esti-
luçao Social. mulava. 0 povo continuava faminto e novas lojas
"Camaradas bolcheviques, reflitam antes que seja dema- de comestrveis finos abriam, freqüentadas por uma
siado tardé. Nao brinquem corn fogo, diante de uma decisâ'o burguesia especuladora.
tao séria e definitiva. Quando os anarquistas prisioneiros iniciaram uma
"Submetemos-lhes as seguintes propostas: que seja greve de tome, Emma e Sacha organizaram um comitê
escolhida uma comissao de cinco pessoas, incluindo dois de apoio e tentaram conseguir solidariedade no
anarquistas. Essa comissao deve ir ao Kronstadt para Congresso da lnternacional Sindical, que se realizava
resolver o conflito por meios pacfficos. Na situaçao pre- em Moscou.
sente, esse é o método mais radical e tera uma significaçao Os velhos amigos da IWW se afastavam temerosos.
revolucionâria internacional. Parecia imposslvel que o governo dos operarios e
Petrogrado, 5 de março de 1921 camponeses prendesse outras revolucionarios.
Alexandr Berkman Seguiram-se prisoes e execuçoes de anarquistas.
Emma Goldman Entre os mortos estava Fanya Baron, amiga e compa-
Park us nheira ainda da América.
Petrovsky" Depois disse, o governo decidiu extraditar os
anarquistas presos. Berkman recusou-se a assinar a
0 apelo nâ'o foi levado em consideraçâ'o. 0 Krons- negociaçao. Era por princfpio contrario a toda
tadt, "orgulho e gloria da Revoluçâ'o", nas palavras extradiçao.
de Trotsky alguns anos antes, foi bombardeado sob Para Emma nao havia nada mais a fazer senao
as ordens do mesmo Trotsky, durante 10 dias e partir também. Solicitaram passaportes ao governo
10 noites. Ouando o silêncio se fez sobre Petrogrado, e depois de infindaveis dificuldades, ela, Sacha e
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um companheiro viajaram a Riga e dar a Estocolmo. grande tragédia que apenas se iniciava, testemunhas
No trem, Emma cerrava os dentes tentando abafar frageis de um acontecimento cuja grandeza ofuscava
os soluços. Nao vivia apenas um fracassa individual. a todos. Acusados de traidores, escreveram livras e
A ruptura entre libertarios e bolcheviques teria artigos, tentaram ser ouvidos pela intelectualidade
conseqüências funestas, observava Victor Serge, que européia, organizaram comitês de ajuda aos presos
na época ainda procurava conciliar seus ideais corn a pol iticos na Uniac Soviética. Ainda era cedo, e os
dura realidade das tarefas revolucionarias. Para Serge, grandes processos s6 viriam anos mais tarde. Os
a formaçao americana de Emma e Berkman distan- revolucionârios nao queriam ver nem ouvir.
ciara-os dos russes. Eram herdeiros da rebeliao Emma sustentou varias polêmicas. Numa delas,
humanista do século XIX. Considerava que Emma contra uma jornalista que reproduzira o argumenta
possu ia uma grande capacidade "de organizaçao, clâssico de que toda critica ao governo soviético
sentido ·pratico, os princlpios rigidos e, ao mesmo favorecia ao fascisme e, portante, deveria ser silen-
tempo, generosos, o sentimento individualista de ciada, respondeu que nâ'o precisava provar sua
uma americana dedicada à açâ'o social. "Mas para os rejeiçâ'o ao sistema capitàlista. Combatera-o toda sua
bolcheviques, era irremediavelmente representante de vida. Mas era-lhe imposs(vel defender a liberdade na
um movimento pequeno-burguês decadente e em sua pr6pria casa e silenciar os crimes cometidos em
vias de desapariç§o." nome da liberdade pelo governo soviético. Os méto-
Seriam essas qualidades americanas incompativeis dos dos bolcheviques eram inerentes às ditaduras.
corn a realidade da revoluçâ'o? Teriam sido Emma e "Minha idéia sobre a revoluçâ'o nâ'o é a de um
Berkman, corne aqueles anarquistas de que tala exterm inio continuo das dissidências pol iticas ...
Angelica Balabanova em suas mem6rias, hipercrfticos, A vida de cada individuo é importante e nâ'o pode
ut6picos, incapazes de levar em consideraçâ'o as ser aviltada e degradada como se fora um autômato.
condiçoes e as circunstâncias objetivas? Balabanova, Essa é minh_a contradiçâ'o principal corn o estado
secretaria da lnternacional, afastada ja no processo comunista."
de monolitizaçao da polCtica bolchevique, fez a Os anos que se seguiram, um interminâvel exilio,
defesa das opçoes de Emma e Sacha: "Era imposslvel foram marcados pelas dificuldades corn as autori-
servir a revoluç§o corne haviam desejado, mas sua dades de vârios paises, problemas financeiros e
experiência na Rûssia foi marcada pela coragem e isolamento cada vez que tentava transmitir as
pela fidelidade aos ideais". angûstias de sua experiência.
Emma e Sacha foram dos primeiros atores de uma Da Suécia para a Alemanha, para a lnglaterra e
70 71
RÛSSIA 1920/ESPANHA 1938: EMMA GOLDMAN

França, Emma perambulou estrangeira. Para conseguir


a nacionalidade inglesa, fez um casamento branco
Wi
corn um velho mineiro. Voltou a fazer conferência
n
11 sobre o drama moderno, escreveu sobre sua vida na
n11
:ï Russia. Viajou ao Canada e por breves 90 dias teve
1 autorizaçao para visitar os Estados Unidos.
,,~ l '
~~ Mas a melhor parte desses tempos de ex Ilia viveu-os
H:
1.i: numa pequena casa em Saint Tropez, na costa medi-
f.:l · ~ terrânea da F rança, escrevendo suas mem6rias -
,1: ~
'" 1
1,q
f,i'1
recomeçava a que ja estava terminando, sua vida.
•,\!
Em 1935, completou 65 anas. Fazia o balança do
~n passado e escreveu para Sacha, que se instalara em
' :11i
1
1.1.
1~ 1 ! Nice: "Muitos homens passaram pela minha longa
'"l'
"l~ 1 ~
vida. Mas você, meu qÛerido, ficara para sempre".
111;
.l 1 -~ No ana seguinte, Sacha, doente, sofreu duas
operaçoes. Arruinado, sob dores constantes, planejou
ainda visita-la pela seu aniversario. As dores impedi-
ram-no. Suicidou-se. Ja vivera sua vida, escreveu, e
acreditava que quando nao se tem saude nem meios
para trabalhar por suas idéias é tempo de desaparecer.
Dizia adeus a 45 anas de camaradagem e amizade
- uma das coisas mais raras no mundo -, à imutavel
marinheira que deveria continuar corn seu trabalho
iluminando aquele mundo obscure que era o deles.
Fora Sacha quem revisara, coma um cirurgiao,
dizia, suas mem6rias. Toda sua obra estivera ligada a
ele. Era ainda o companheiro mais pr6ximo, acima
de todos os desacordos, que nao foram poucos.
Especialmente nos ultimos anas, pois Sacha vivia corn
uma companheira alemâ'., senslvel e nervosa, alheia à Fedya, Emma e Sacha em Saint- Tropez, nos anos 30.
72 73
RÛSSIA 1920/ESPANHA 1938 EMMA GOLDMAN

historia que era deles. A relaç§o era atormentada dos anarquistas espanh6is. Tinha duas restriçoes às
e Emma provocava seguidamente ferozes ciumes orientaçoes adotadas: a participaçâo em postos
em Emmie. Corn a franqueza que a caracterizava, governamentais e a aliança corn os comunistas.
muitas vezes desculpou-se junto a Emmie: andava Nas cartas, referia-se a seu "conflito interior":
particularmente nervosa, dizia. "A Espanha provou mais uma vez que nada resta de
Agora estava s6. Vendeu a casa "Bon Sprit", anarquismo quando somos forçados a fazer con-
distribuiu o dinheiro para pagar dfvidas, ajudar cessôes em detrimento do ideal pelo quai lutamos
Emmie e preparou-se para uma nova batalha. toda a vida". Criticou os erros pol fticos dos anarqu is-
Na noite escura que se seguiu à morte de Sacha, tas espanh6is, mas continuou a apoiar a CNT. Para
uma luz brïlhava: a Espanha. ela, a traiçao de Stalin era inevitavel e, mais uma
Durante anas apoiara e divulgara a pedagogia vez, denunciou as perseguiçoes contra os anarquis-
libertâria do espanhol Francisco Ferrer, assassinado tas e os revolucionarios nâ'o-comunistas, os mesmos
pela reaçâo. Era chegado o momento de participar métodos dos bolcheviques que ja criticara na Russia
também da experiência anarquista que se organizava, Soviética.
especialmente na Catalunha. Assim, quando a Confe- Viveu em Barcelona sob bombardeios constantes,
deraçâo Nacional do Trabalho (CNT), central operâria ameaçada. Sentia-se ali mais jovem e mais forte.
anarquista, e a Federaçâ'o Anarquista lbérica convi- Seu hotel, em uma esquina da grande Praça da
daram-na para visitar Barcelona, ela estava pronta. Catalunha corria perigo durante os bombardeios.
Entusiasmada, envolveu-se na vida pol ltica catalâ'. Ela entâo descia aos abrigos, junto corn mulheres,
Deveria ser possfvel construir uma revoluçâ'o em crianças e anciaos. Apenas interrompida, a vida
liberdade, preocupar-se ao mesmo tempo corn a quotidiana retomava apesar da tragédia e dos mortos
reforma agraria, a ameaça franquista, a escola depois de cada bombardeio: as crianças iam à escola,
moderna e os perigos da centralizaçâ'o. o trabalho se organizava.
De volta à lnglaterra, Emma assumiu as funçoes Em outubro de 1938, deixou a Espanha pela
de porta-voz da CNT. Tratou de organizar auxflio ultima vez. Em Londres, retomou a organizaçâ'o da
e solidariedade corn o povo em luta, levantar recursos, solidariedade. Escapara ilesa dos bombardeios para
divulgar. em Londres machucar-se seriamente ao cair de uma
Voltou varias vezes à Catalunha e à Espanha. escada. Segundo ela, o acidente provava que as
Percorreu fabricas e escolas, comunidades agrarias e pequenas coisas influem mais na vida de alguém
sindicatos. Acompanhou de perto as dificuldades do que os grandes acontecimentos.
74 75
RÛSSIA 1920/ESPANHA 1938 CAP(TULO 5

Ao final daquele ano, as circunstâncias nova mente "QUANDO DEIXARMOS A NOSSA


se abateram sobre ela. A Catalunha vencida calava-se CASA DE BONECAS"
sob as tropas de Franco. "Os acontecimentos da
Catalunha e de Barcelona foram demasiado violentas
para meus nervos de aço e me sinto completamente
incapaz de escrever uma linha."
Um ano depois, embarcou para o Canada, deter-
minada a recolher fundos para os exilados espanh6is.
Conservava a energia e a lucidez pol ftica. Em suas-
declaraçoes aos jornalistas, previa que a segunda
guerra era inevitavel. Explodiria antes que os povos
do mundo se levantassem, decididos, contra seus
governos.
Continuou a trabalhar. Pela Espanha esmagada,
pelos anarquistas perseguidos na ltalia, pela paz.
Em 17 de fevereiro de 1940, estava reunida corn De que matéria se faz uma rebelde ?. Uma mulher
seus amigos quando sofreu um derrame. Lùcida, mas rebelde?
sem poder tatar, sobreviveu ainda dois meses. Emma Goldman parece feita de muitas matérias.
Faleceu a 14 de maio do mesmo ano. De lembranças e sensaç5es da infância. De conflitos.
Morta, a velha dama indigna, a mulher mais perigosa De muitos amores feitos e desfeitos. Uma rebeldia
do mundo · deixara de ser uma ameaça à democracia constru Ida no quotidiano das injustiças individuais
americana. Seu corpo voltou aos Estados Unidos e e sociais sofridas · ao longo dos anos. Foi rebelde:
foi enterrado em Chicago, no cemitério de Waldheim, anarquista e feminista. Anarquista e feminista porque
proximo do tùmulo dos martires de Chicago, que rebelde.
lhe haviam inspirado a vida de revolucionaria. Para ela, o engajamento pol ftico nao fora uma
opçao te6rica, mas a expressâ'o de um protesta, uma
resposta. A resposta anarquista faz parte de uma
época na historia de um mundo em ruptura, em que
homens e mulheres acreditaram poder (re)construir
uma harmonia sonhada ou perdida, partindo de
76 77
"QUANDO DEIXARMOS A NOSSA CASA DE BONECAS" EMMA GOLDMAN

seus proprios desejos. Enquanto isso, inexorâveis, sonhos de felicidade. Talvez por isso, também, por
as maquinas avançavam: as maquinas do capital, as nâo ter sido séria e s6bria como convinha aos martires
maquinas da guerra, a maquina da pol ftica. da Causa social, por ter abraçado causas perdidas ou
A pol ftica, escreveu Rosa Luxemburgo, "é como malditas, talvez por isso, tenha sido tanto tempo
a adoraçâo oca do Baal, que conduz as pessoas - esquecida e silenciada, na época dos her6is e heroinas
vftimas de sua pr6pria obsessâ'o, de raiva mental - a da revoluçâo social, para surgir resgatada pela geraçâo
sacrificarem toda sua existência". iconoclasta dos anos 60.
Se, de um lado, avançavam as maquinas do capita- Seu radicalismo pol ftico esta na raiz da crltica que
lismo, de outro, o simples desejo nâ'o era capaz de fez à revoluçâo de outubro, na medida em que
destruir a 16gica infernal e terminava, ele também, rejeitou a tese de que os objetivos da revoluçâ'o
transformando-se em mâquina. Uma mâquina da justificavam os métodos desumanos, a falta de de!TIO-
vontade pol ltica disfarçada em partido. cracia e a centralizaçâo autoritaria que se instaurou
Em Emma Goldman, no princlpio, estava um na sociedade soviética. Para ela, nâo era possivel
desejo de justiça, de amor e liberdade. Foi esse desejo construir a revoluçâ'o pela ditadura, ainda que essa
que ela viveu e serviu, sempre recusando-se a submetê- ultima se autodenominasse ditadura do proletariado.
lo a regras de eficacia ou de 16gica. Nisso tentou A negaçâ'o de todo estado autoritario era incompa-
escapar à pol ltiéa cega e fanâtica, de que fala Rosa, e tfvel corn o fortaleciménto do estado. Essa foi sua
construir uma polltica humana em que ela pr6pria, crltica à revoluçâ'o soviética e aos anarquistas na
como Rosa, também vermelha, que ela nâ'o conheceu, revoluçâo espanhola, quando apontou-lhes os efeitos
"pechinchava sua porçâo diaria de felicidade corn a negativos da participaçâ'o no aparelho de governo e
teimosia de uma mula". da aliança corn os comunistas para sua tâtica revolu-
Por isso lutou pela felicidade, pela igualdade social, cionaria.
pelo direito à liberdade, pela beleza das flores e cores, Para a intelligentsia radical da época, ela nâo
pelo prazer e pelo amor, sem estabelecer hierarquias. comprendia as necessidades praticas da pol ftica
Imagina que isso significa ser radical. Recusar revolucionaria - "a revoluç§o real". Emma mesma
etapas, objetivos amblguos, meias palavras. Recusar pressentira que o tempo lhe daria razâ'o, que a revo-
a servidâ'o sob qualquer de suas formas. luçâ'o real levaria a um socialismo real, que nada mais
Porque era uma radical, nâ'o existe em Emma seria do que um arremedo de socialisme.
oposiçâ'o entre vida e obra. Ambas se confundem, Outro aspecto nâo menos fascinante de sua vida/
coincidem: o engajamento nas lutas sociais e os obra, para usar a expressâ'o de Augusto de Gampos
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"QUANDO DEIXARMOS A NOSSA CASA DE BONECAS" EMMA GOLDMAN

sobre uma mulher também iluminada, Pagu, é seu Esse era o ponta principal de sua analise, de seus
radicalismo feminista.
discursos, de suas lutas.
Nao era uma feminista "pura". Mas, coma observa
Dizia:
Alix Kates Shulman, nao existe um (mica e verda-
deiro feminismo, monolitico. Todos os movimentos
"Em nenhum lugar a mulher é tratada pelo mérito de seu
sociais trazem componentes diverses: assim, ha um
trabalho, mas sempre como sexo."
feminismo conservador, um feminismo liberal, um
feminismo radical, um feminismo socialista. Também ela sentira que todos os seus companheiros
Se o feminismo, hoje, nos aparece articulado corn tentaram fazer dela uma esposa, mae de seus filhos,
diferentes perspectivas pol fticas, corn conteudos que tentaram de alguma forma molda-la a sua vontade.
remetem muito diretamente a conjunturas nacionais Contra isso rebelara-se. Sentia que ali, nas relaçoes
e locais, a culturas de classe distintas, o mesmo entre os sexes, na relaçlio amorosa, formavam-se os
ocorreu na época de Emma Goldman. Para algumas tiranos internas que cimentavam a servidâo das
feministas de seu tempo, ela era uma inimiga, porque mulheres: o sentimento de dependência, a resignaçao,
nâo defendia o direito ao vota e era contraria às a devoçao. Sem rompê-los, nenhuma reforma social
idéias moralistas de algumas - o que lhe parecia pode dar às mulheres uma liberdade que elas nao
apenas uma nova versao do puritanismo vitoriano.
querem.
Ë certo que Emma criticou as ilusoes do voto coma
soluçào magica para resolver todas as discriminaçoes " ( ... ) Precisamos desembaraçar-nos das velhas tradi-
e desigualdades; nisso, apegava-se a sua visao anar-
çôes, dos hâbitos ultrapassados, para entao ir em trente.
quista. Mais importante, no entanto, parece-me a 0 movimento feminista deu apenas o primeiro passo nessa
sensibilidade que teve ao engajar-se em algumas das direçifo. Ë necessârio que se fortaleça para dar o segundo
lutas malditas das mulheres: o direito à contra- passo. 0 direito de voto, a igualdade civil, podem ser
cepçào, o questionamento da maternidade coma reivindicaçëes justas, mas a emancipaçâo real nâo começa
destine natural das mulheres, a opressa'o sexual. nem nas urnas nem nos tribunais. Começa na alma de cada
Sobre esses temas, é radical e visionaria, muito mulher. A historia nos ensina que em todas as épocas foi
pr6xima do feminismo revisitado dos anas 1960/70. por seu proprio esforço que os oprimidos se libertaram de
Sua reflexào parte da opressao sexua! e familiar para seus senhores. Ë preciso que a mulher aprenda essa liçao:
compreender as discriminaçoes que as mulheres que a sua liberdade se estenderâ até onde alcance seu
sofrem no trabalho, nas instituiçëes, na cultura. poder de libertar-se a si mesma. Por isso, é mil vezes mais
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81
"QUANDO DEIXARMOS A NOSSA CASA DE BONECAS" EMMA GOLDMAN

importante começar por sua regeneraçâ'o interior: derrubar No entanto, nâo desprezava o trabalho feminino
o farda dos preconceitos, das tradiçoes, dos habitas ( ... )." tradicional: as tarefas domésticas. Descreveu freqüen-
temente seus êxitos culinarios, seus cuidados corn a
0 individualismo de Emma obscurecia-lhe, às alimentaçao dos numerosos amigos que freqüentaram
vezes, a importância em modificar, também, algumas sua casa nas mais variadas circunstâncias: em Nova
das instituiçoes da servidâo feminina. Mas era sempre lorque, em Moscou e Petrogrado, quando fazia milagres
irredutivel contra o casamento - espécie de contrato contra a penuria e alimentava até dez pessoas corn
que sancionava a dependência das mulheres, encer- parcas raçoes.
rando-as numa "casa de bonecas". Por isso amara Rudolf Rocker, anarquista hospedado no sltio
tanto a personagem Nora da peça de 1bsen, Casa de de Bon Sprit em Saint Tropez, descreveu-a: "Habi-
Bonecas, que consegue crescer e deixar para sempre a tualmente se considera que as mulheres que levam
casa de brinquedo em que vivia encerrada. uma vida publica descuidam dos assuntos domésticos.
Defendia o amor livre, aquele que nao necessitava lsso pode ser às vezes verdadeiro, mas nâo se aplicaria
de instituiçoes para resguarda-lo, espontâneo e a Emma, nem mesmo em sua juventude. Era uma
selvagem. Para que esse amor pudesse existir, havia dona-de-casa modela, que apreciava fazer ela pr6pria
uma condiçâo: a igualdade. o trabalho doméstico. Na sua casa, imperava uma
Esses eram problemas ainda invisrveis para as limpeza irrepreensivel e um sentido de organizaçâo
feministas de seu tempo e, aqui, as intuiçoes de invejâvel para muitas donas-de-casa perfeitas. Era
Emma aproximam-na das novas geraçoes feministas, além de tudo uma boa cozinheira e se orgulhava
como na pol itica se aproximava do que hoje chama- muito de sê-lo. ( ... ) Levantava todos os dias às
mos de Nova Esquerda. 6 da manhâ. Aquecia uma xicara de café forte e
Emma viveu também as contradiçoes que apontava punha-se a trabalhar. Naquele tempo, devia estar
na condiçâo feminina. Foi supermulher, sem duvida. escrevendo suas mem6rias. Depois do café da manhâ,
Capaz de igualar-se aos homens na poHtica, na açâo, limpava cuidadosamente a casa, punha a roupa de
no trabalho, certamente deve ter sido uma figura cama ao sol no jardim, regava as flores. Em seguida,
opressora para as outras mulheres corn que conviveu, dedicava algumas haras ao trabalho literârio. As onze
menos determinadas, mais frâgeis e dependentes do preparava o almoço. Depois voltava ao escrit6rio
que ela. Nas suas mem6rias, observou que possu ia e trabalhava sem interrupçâ'o 3 ou 4 horas. Em
poucas amigas mulheres. Uma exceçao fora Voltairine seguida, dâvamos um passeio à beira-mar. Emma
de Cleyre, anarquista e feminista coma ela. deixava-nos em geral uma hora antes para preparar
82 83
EMMA GOLOMAN
"QUANOO DEIXARMOS A NOSSA CASA OE BONECAS"

aquela que, meses mais tarde, ressurgia bonita e


a comida, à que rendlamos homenagem na volta". alegre para o escândalo dos que a queriam para
A descriçâ'o provoca-nos, mais do que a admiraçâ'o sempre viuva de her6i.
revolucionaria do autor, uma profunda admiraçâ'o A mesma bela Louise, anos mais tarde, para sempre
feminista. Reproduçâ'o ilustre do quotidiano ignorado derrotada, disse num momento de lucidez a Angelica
de muitas mulheres. Balabanova: " - Por que nos tocou a nos perdermos
Mas das atribuiçôes de uma supermulher, Emma nossa fé ?" .
recusou no entanto a "mais nobre", a maternidade. Foi uma geraçao que viveu os êxtases e desgraças
Pareceu-lhe uma circunstância definitiva que limitaria das revoluçôes. Madrugadas luminosas e sombrios
sua liberdade individual. A maternidade corno opçâ'o, tempos sem perdâ'o. Muitos e muitas sucumbiram.
e nifo como destino, foi uma de suas bandeiras. Emma resistiu.
Por ela nio hesitou em sujar as ma'os nurn terna Era sem dûvida feita de matéria resistente - de
polêmico como o da contracepçâ'o, numa época vontade e desejo.
dominada pelos argumentas malthusianos. Mesmo
partindo deles, vai mais além e apreende do ponto
de vista das mulheres, da dificuldade que é delas em
dissociar sexualidade e reproduçâ'o, em se verem a
si proprias nlo como maquinas reprodutivas.
Foi também terrivelmente ciumenta. Escreveu
sobre o ciûme nos tempos em que era capaz de
seguir o homem amado "como um cachorro".
Condenou a monogam ia quando se debatia deses-
perada diante dos amores freqüentes de Ben Reitman.
A supermulher era apesar de tudo muito humana,
ainda que sempre exigente. Em suas mem6rias,
quando se refere a Louise Bryant, companheira de
John Reed, sente-se um certo toque de superioridade.
Louise nio era verdadeiramente uma revolucionaria,
apenas uma moça rica, a companheira de um revo-
lucionério. Mesmo assim, foi capaz de entender a
Louise aniquilada pela morte estûpida de Reed e
85
84
EMMA GOLDMAN

CRONOLOGIA

1869
- Emma Goldman nasce em Kovno (hoje Kaunas) na
Lituânia.
1870
Alexandr Berkman nasce em Vilna, Russia.
1881
A famma Goldman se transfere para Sâ'o Petersburgo.
1885
- Emma e a irm§ Helena chegam aos Estados Unidos.
1886
- Atentado de Haymarket, Chicago, no momento da greve
pela jornada de 8 horas de trabalho.
1887
Emma casa-se corn Jacob Kershner.
Os martires de Chicago SéÎO executados.
87
86
CRONOLOGIA
EMMA GOLDMAN

1889
- Emma Goldman e Berkman deixam a Uniao Soviética
- Emma separa-se definitivamente de Kershner e viaja rumo à Suécia, depois Berlim.
para Nova lorque.
1928
1892
Emma instala-se em Saint Tropez para escrever suas
- 0 Atentado: Berkman é preso. mem6rias.
1893
1931
- Emma é presa e levada para o carcere de Blackwell's
As mem6rias de Emma Goldman, Living my Lite, saem
Island.
publicadas em Nova lorque.
1899
1936
- Posta em liberdade, Emma viaja para Viena para estudar
Morte de Berkman em Nice, na França.
enfermagem.
- Emma parte para Barcelona e dedica-se ao apoio à
1900
Revoluçao Espanhola.
Emma Goldman volta aos Estados Unidos. 1939
1901
- Emma instala-se no Canada.
Assassinato de McKinley, presidente dos Estados Unidos. 1940
1906
Morte de Emma Goldman em Toronto, Canada. Seu
- Sai o 19 numero da revista Mother Earth.
corpo é levado para os Estados Unidos e enterrado no
- Berkman é libertado.
cemitério de Waldheim, junto·aos martires de Chicago.
1907
- Emma participa do Congresso anarquista de Amsterdam
e toma-se defensora do planejamento familiar, inte-
grando a campanha pelo Birth Contrai.
1917
- A Revoluçâ"o Russa.
1919
Emma Goldman e Alexandr Berkman, expulsas dos
Estados Unidos, sao embarcados no navio Buford rumo
à Uniao Soviética.
1921
A insurreiçâ"o do Kronstadt.
88
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EMMA GOLDMAN

INDICAÇÔES PARA LEITURA


/'Emancipation Féminine - suivi de Du Mariage et de l'Amour,
Paris, Ed. Syros, corn pretacio e comentarios das organizadoras.
Varias nûmeros de Mother Earth sâo acessfveis no Arquivo
Edgard Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas.
Mas em português encontrei apenas um texto de Emma
Goldman: 0 Fracasso da Revoluçiio Russa, publicada na
ant9logia Os Grandes Escritos Anarquistas, Porto Alegre,
LPM, 1983. Sobre o mesmo tema Emma escreveu: My Desilu-
sionment in Russia, Nova lorque, 1923, reeditado em 1970,
e My Further Desillusionment in Russia, Nova lorque, 1924.

11 - Sobre Emma Goldman


Além dos prefacios j~ indicados ha uma biografia funda-
mental de Emma, a de Richard Drinnon: Rebel in Paradise
- A Biography of Emma Goldman, Boston, Beacon Press,
1 - Obras de Emma Goldman 1970. Nela me documentei para a reconstituiçâo da vida de
As mem6rias de Emma Goldman, Living my Life (2 volu- Emma até a deportaçiio e também para a citaçâo de algumas
mes), foram publicadas pela primeira vez em 1931 par Alfred cartas.
Knopf 1ne., Nova lorque, e reeditadas pela Dover Publications, Outras artigos sâo importantes para analisar o feminismo
lnc., Nova lorque, 1970. Em francês existe uma traduçâo, de Emma Goldman. 0 de Karen Rosemberg: Red Emma
resumida, Emma <??ldman - Epopée d'une Anarchiste, New (mimeo.), o de Alix Kates Shulman: Dancing in the Revo-
York 1886- Moscou 1920, Paris, Ed. Hachette, 1979. lution - Emma Goldman's Feminism, publicado na revista
Os principais textos de Emma Goldman estao reunidos Socialist Review, Calif6rnia, 12(62), 1982, e o de Alice
no volume Anarchism and Other Essays, Nova lorque, Dover Wexler: Emma Goldman in Love, publicado em Raritan,
Publications, lnc., 1969. As citaçoes que fiz sao traduçoes vol. 1, nÇ> 4, 1982, do quai Rosaura Cynthia Eichenberg
minhas desta ediçao e de Living my Life. traduziu as duas cartas a Ben Reitman.
Algumas antologias reûnem os textos feministas de Emma: Sobre a vida de Emma na Rûssia Soviética, na Espanha e
The Traffic in Women and Other Essays on Feminism, Albion, os ûltimos anos de exmo ha o livro de José Peirats: Emma
Times Change Press, 1970, corn uma biografia de Emma Goldman - Anerquista de Ambos Mundos, Madri, Campo
escrita por Alix Kates Shulman; em francês, ha La Tragédie de Abierto Ediciones, 1978.
90 91
INDICAÇÔES PARA LEITURA
EMMA GOLDMAN

Em português ha um artigo que cita Emma Goldman,


Maspero, 1976; e Le Mouvement Ouvrier aux Etats Unis, Paris,
recentemente publicado. Ë de Elizabeth Wardwick e se chama
Ed. Ma~pero, 1970; também ha uma util antologia organizada
"Reds", 0 Estado de S. Paulo, 25.4.1982.
por Irving Louis Horowitz, Los Anarquistas, Madri, Alianza
111 - Sobre a Era Progressista e os Radicais Editorial, 1982.
do Greenwich Village V - Mem6rias, Romances
Consultei o livro de Annachiara Danieli L 'Opposizione Outras mem6rias têm Emma Goldman como uma das
Culturale in America, Milâ'o, Feltrinelli, 1975, que além de personagens. Antes de todas as de Alexandr Berkman, Prison
um estudo interessante sobre o perfodo reproduz artigos do Memoirsofan Anarchist, Nova lorque, Mother Earth Publishing
jornal The Masses. Assac., 1912, reeditadas e também publicadas em francês
Mas fascinante é a biografia de John Reed (que cito na pela Presses de la Renaissance, Paris, 1977.
traduçiio francesa) escrita por Robert Rosenstone, Paris, Ha também ·as mem6rias de Victor Serge, Mémoires d'un
Maspero, 1976. Révolutionnaire, 1901-1941, Paris, Ed. Seuil, 1951, indispen·
IV - Sobre o Anarquismo saveis para conhecer os primeiros anos da revoluçâ'o soviética, e
Em português, e um pouco à maneira de Emma Goldman, as de Angelica Balabanova: La Mia Vita di Rivoluzionaria,
ha um livro bonito: Francisco Foot Hardman, Nem Patria, Milâ'o, Ed. Feltrinelli, 1979.
nem Patrao, Sâ'o Paulo, Brasiliense, 1983. Consultei também Em português pode-se Ier o romance de E. L. Doctorow,
outros estudos: Paula Beiguelman, Os Companheiros de Sio Ragtime, Siio Paulo, Abril Cultural, 1983, onde Emma aparece.
Paulo, Sâ'o Paulo, Global, 1981; Pa1:1lo Sérgio Pinheiro/Michael E, é claro, pode-se ver e rever o filme Reds.
Hall, A Classe openJria no Brasil, 1889-1930, Sao Paulo, Alfa
Ômega, 1979; Silvia Lang Magnani, 0 Movimento Anarquista
em Sio Paulo, Sâ'o Paulo, Brasiliense, 1982. A Editora LPM de
Porto Alegre esta publicando textos de anarquistas organizados
por Daniel Guérin. Sobre a Espanha, ha Revoluç8o e Guerra
Civil na· Espanha, de Angela Mendes de Almeida, Brasiliense
(coleçiio "Tudo é Hist6ria"I.
Para quem quiser pesquisar em outras lfnguas cito minhas
fontes: Paul Avrich, Los Anarquistas Rusas, Paris, Alianza
Editorial, 1974; Daniel Guérin, L 'Anarchisme, Paris, Ed.
Gallimard, 1976; Ni Dieu ni Maftre (1, Il, 111), Paris, Ed.
92
93
y
Que pode haver de maior ou menor que um toque?
1
SOBRE A AUTORA W. Whitman
1 VOCÊ CONHECE 0 PRIMEIRO TOQUEl

~
~h,,..· .~·~.•
:j:"''•·.-

WAUl-.
w~
O BEATNIK
.......
0'8Cal
Lemin6kl

PRIMEIRO TOQUE é uma publicaçao corn crônicas,


resenhas, comentarios, charges, dicas,
Nasci em Porto Alegre, onde fiz um curso de Letras. Ouando 1968 mil atraçôes sobre as coleçôes de bolso da Editora
explodiu eu estudava sociologia da literatura em Paris. Sa( em busca Brasiliense. Saï de três em três meses.
da revoluç!o perdida. Fui parar em Santiago nos tempos de Allende e
de nova em Paris. Tive um filho e fiz uma tese. Voltai em 1979. Dei
Por que nao recebê-lo em casa? Além do mais,
aula em Piracicaba e Marflia. Hoje sou professera de sociologia na
nao custa nada. 56 o trabalho
Universidade de Siio Paulo mas nâ'o sou soci61oga. de preencher os dados ai de baixo,
recortar, selar e pôr no correio.

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END.: ..................................................... .
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