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A LINHA DA BELEZA

ALAN HOLLINGHURST

ASA

Digitalização e Arranjo

Agostinho Costa

Este livro foi digitalizado para


ser lido por Deficientes Visuais

"Tenho a certeza de que nunca usei a expressão "obra-prima" na


crítica a um romance e hesito em fazê-lo agora, mas é um termo
muito difícil de evitar quando me encontro face a tanto
brilhantismo"

The Observer

"Um romance arrebatador, tal é o fulgor fin-de-siècle de que


Hollinghurst o imbuiu"

The Sunday Telegraph

"Se daqui a cem anos alguém quiser saber como é que as


pessoas eram, como falavam, como se avaliavam e julgavam a
elas próprias e aos outros, o melhor que tem a fazer é ler este
romance"

Evening Standard
"Uma leitura que é puro prazer"

New Statesman

A Linha da Beleza
Um admirável romance sobre a perda da inocência, galardoado
com o Man Booker Prize de 2004.

A vida do jovem Nick Guest muda irreversivelmente quando


aceita passar uma temporada em casa de Toby, seu colega de
faculdade e objecto da sua vã paixão. Oriundo de uma família da
classe média, Nick vai ser iniciado então no mundo dos ricos e
poderosos. Vivem-se os impetuosos anos 80, e no círculo do
poder da Grã-Bretanha de Margaret Thatcher, onde a ganância é
glorificada, Nick, o puro esteta, é um forasteiro, um intruso
movido por algo bem diferente. Mas Nick adopta e é adoptado
pela extravagante família de Toby, com quem embarca nos vícios
da década: dinheiro, poder, sexo e cocaína; e a sua estadia na
casa de Notting Hill parece prolongar-se indefinidamente. São
tempos inebriantes e Nick rapidamente se adapta ao ritmo
vertiginoso das festas e das viagens e à amoral sensação de
nada lhe ser vedado. De facto, tudo parece ser possível; a
decadência nunca fora tão divertida. Mas esta interminável
busca da auto-satisfação tem um preço, e Nick apercebe-se
demasiado tarde de que lhe vai custar tudo o que possui.

Estamos já suficientemente instalados no novo milénio para


permitir que a década de 1980 se assuma como uma era
histórica distinta. Neste sentido, A Linha da Beleza é um marco
no que de hábitos e costumes do século XX vai ficar para a
História. Enquadrado por dois processos eleitorais que
reforçaram a liderança de Margaret Thatcher, foca quatro
extraordinários anos de euforia, mudança e tragédia.
Emocionalmente denso, desarmantemente diver' tido, é um
trabalho de fôlego da autoria de um dos mais brilhantes
escritores de língua inglesa.
ALAN HOLLINGHURST

A LINHA DA BELEZA

TRADUZIDO DO INGLÊS

JOSÉ VIEIRA De LIMA

ASA

TíTULO ORIGINAL The LINE OF BEAUTY

© 2004, Alan Hollinehurst

Este livro foi composto por

Maria da Graça Samagaio, Porto,

e impresso e acabado por

GRAFIASA,

Rua D. Afonso Henriques, 742 - 443S-006 Rio Tinto

PORTUGAL

Primeira edição: Junho de 2005

Reservados todos os direitos

ASA Editores, S.A.


SEDE

Av. dí Boavista, 3265 - Sala 4.1

Apartado 1035 / 4101-001

PORTO - PORTUGAL

Tel. 22 6166C30
Fax 22 6155346

E-mail: edicoes@asa.pt
Internet: www.asa.pt

Paginação - Rodapé

Para Francis Wyndham


Estou muito grato à hospitalidade da Yaddo, onde escrevi uma
parte deste romance.

A.H.

- Que sabes tu deste caso? - perguntou o Rei a Alice.


- Nada - respondeu Alice.
- Nada de nada? - insistiu o Rei.
- Nada de nada - disse Alice.
- Isso é muito importante - disse o Rei, virando-se para os
membros do júri. Os jurados tinham começado a escrever tais
palavras nas suas lousas quando o Coelho Branco interrompeu: -
Claro que Vossa Majestade queria dizer desimpor-tante - disse
ele num tom muito respeitoso, embora franzindo o sobrolho e
fazendo caretas para o Rei enquanto falava.
- Desimportante, claro, era isso que eu queria dizer - corroborou
apressadamente o Rei, após o que continuou a dizer para si
mesmo em voz baixa: «importante... desimportante...
desimportante... importante...», como se estivesse a ver qual era
a palavra que soava melhor.

Aventuras de Alice no País das Maravilhas, capítulo 12

o TEMA DO AMOR (1983)

1.

A obra de Peter Crowther sobre as eleições já tinha chegado às


livrarias. Intitulava-se Landslide!(1) e o engenhoso decorador da
montra da Dillon's transformara-a numa réplica, claro que em
escala reduzida, desse desastre natural. A imagem da triunfante
pri-meira-ministra, toda em tons de dourado pálido, precipitava-
se sobre a clientela num reluzente deslizamento. Nick parou na
rua e entrou para dar uma vista de olhos ao livro. Cruzara-se
certa vez com Peter Crowther e ouvira a seu respeito duas
descrições antagónicas - um mercenário das letras, para alguns;
um «analista cáustico», para outros; o meio sorriso de Nick,
enquanto folheava as páginas do livro, encobria a sua incerteza
face a essa questão. De facto, qual das duas versões andaria
mais perto da verdade? Era indubitável que havia qualquer coisa
de mercenário na celeridade com que o livro fora publicado, não
mais que dois meses após o evento; e na escrita propriamente
dita, claro. Pelos vistos, o analista reservara toda a sua
causticidade para os esforços da oposição. Nick examinou
atentamente as fotografias do livro, mas Gerald só aparecia
numa delas, uma foto colectiva dos «101 novos deputados do
Partido Conservador»; porém, o novel deputado revelara
esperteza ou rapidez bastante para se introduzir na primeira fila.
Posava sorridente e compenetrado, como se, intimamente,
estivesse já

*1. Em inglês, landslide designa tanto um desabamento de terras


como uma vitória política esmagadora. (N. do T.)

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sentado na bancada da frente do parlamento. Um dia, aquele


sorriso, o colarinho branco usado com uma camisa escura, o
lenço que pendia do bolso do casaco, tornar-se-iam seguramente
famosos; um dia, os sujeitos das filas de trás não passariam de
uma série de carrancas e sorrisos esquecidos. Ainda assim, o
texto referia-o apenas duas vezes. Da primeira vez, dizia que era
um «bon vivant»; da segunda, que era um dos elementos da
«minoria cada vez mais reduzida» de deputados conservadores
que haviam passado - «como Gerald Fedden, o novo deputado
eleito por Barwick, de uma forma tão óbvia, passou» - pelas mais
dispendiosas escolas privadas e por Oxbridge(2). Nick
abandonou a livraria com um encolher de ombros; na rua, porém,
ainda que com algum atraso, não deixou de se sentir orgulhoso
por ter encontrado, em página impressa, uma pessoa que
conhecia.
Tinha um blind date(3) às oito da noite e aquele dia quente de
Agosto era uma reverberação de nervos, interrompida, uma vez
por outra, por uma breve brisa de lúbricos devaneios. O encontro
não era totalmente cego - «apenas muito míope», como disse
Catherine Fedden quando Nick lhe mostrou a fotografia e a carta.
Catherine parecia ter gostado do aspecto do homem, que se
chamava Leo, e que, disse ela, fazia mesmo o seu tipo; contudo,
a caligrafia de Leo deixou-a apreensiva. Era simultaneamente
rebuscada e impetuosa. Catherine tinha um livro de bolso
intitulado Grafologia: A Mente na Mão, que lhe dava toda a sorte
de avisos acerca das tendências e dos recalcamentos das
pessoas («Artista ou Louco?», «Um cachorrinho querido ou um
touro selvagem?»). - São estes enormes traços ascendentes,
querido - disse ela. - Vejo um ego imenso. - E voltaram a
concentrar-se naquele pequeno rectângulo de papel de carta
azul, manifestamente barato. - Não achas que isso significa
apenas um impulso sexual muito forte? - perguntou Nick. Não,
pelos vistos ela não achava. Ele ficara todo excitado, e mesmo
particularmente comovido, por ter recebido aquela carta de um
desconhecido;

*2. O termo Oxbridge engloba as universidades de Oxford e


Cambridge, vistas como uma unidade separada das outras
universidades britânicas. (N. do T.)
3. A letra, «encontro cego». Ou seja, um encontro (romântico,
espera-se) com um(a) desconhecido(a). Manteve-se a expressão
inglesa, não só porque a sequência o impunha, mas também
porque, não havendo uma expressão portuguesa equivalente
satisfatória, blind date entrou nalguma gíria do português. (N. do
T.)

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mas o texto, por si só, não era de molde a alimentar grandes


expectativas. «Nick - OK! Ref. à tua carta, estou nos Recursos
Humanos (município de Brent, Londres). Podemos encontrar-nos,
discutir Interesses e Ambições. Diz quando. Diz Onde.» - e depois
o enorme e exuberante L de Leo estirando-se até meio da página.
Nick tinha-se mudado algumas semanas antes para a imponente
casa branca dos Fedden, em Notting Hill. O seu quarto ficava nas
alturas do telhado, naquela que, com a sua persistente
atmosfera de segredos e rebeliões adolescentes, continuava a
ser, sem sombra de dúvida, a zona das crianças. O quarto de
Toby, um primor de arrumação, ficava ao cimo das escadas, o
quarto de Nick logo a seguir, mais ou menos a meio do corredor
iluminado pela clarabóia, e o de Catherine no outro extremo;
Nick não tinha irmãos nem irmãs, mas, no seio daquela família,
não lhe era difícil imaginar-se um filho do meio desaparecido e
entretanto reencontrado. Fora Toby que, em férias anteriores, o
levara para a casa de Notting Hill, proporcionando-lhe assim
umas quantas «temporadas» londrinas, longas e excitantes fugas
à sua própria família, muito menos glamorosa que a família
Fedden; e era a presença de Toby, sempre meio vestido, que
continuava a assombrar o corredor do sótão. Toby talvez nunca
tivesse percebido por que razão eram amigos, mas aceitara de
bom grado a evidência de o serem. Naqueles meses depois de
Oxford raramente aparecia em casa e Nick fora passado como
um amigo à irmã mais nova e aos seus hospitaleiros pais. Era um
amigo da família; e havia nele qualquer coisa em que confiavam,
uma gravidade, um certo refinamento tímido, algo que o próprio
Nick, por muito que tentasse, não conseguia enxergar, mas que
contribuíra decisivamente para que a família o acolhesse como
locatário. Quando Gerald vencera as eleições em Barwick, o
distrito eleitoral onde Nick nascera, o contrato fora jovialmente
saudado como tendo a lógica da poesia, ou do destino.
Gerald e Rachel encontravam-se ainda em França e Nick deu-se
conta de que o seu regresso, previsto para o final do mês,
suscitava nele uma espécie de azedume. A empregada aparecia
cedo todas as manhãs para preparar as refeições do dia, e a
secretária de Gerald, com os óculos de sol espetados no
penteado, passava lá por casa para tratar do imponente volume
epistolar. O jardineiro anunciava

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a sua presença com a barulheira da máquina de aparar relva, de


preferência perto de uma janela aberta. Mr. Duke, o factótum da
casa (Sua Alteza, como lhe chamava a família), entregava-se a
diversas tarefas de manutenção. Nick, por seu lado, entregava-se
à tarefa de residir ali - e por pouco não se sentia o proprietário
da casa. Adorava voltar para Kensington Park Gardens ao fim da
tarde, quando o sol varria a ampla rua sem árvores e as duas
filas de casas brancas se fitavam com a tolerância polida de
vizinhos abastados. Adorava abrir a porta verde da frente, dar as
três voltas à chave, e, depois, fechá-la de novo atrás de si, e
sentir a silenciosa segurança da casa enquanto se perdia a
apreciar a sala de jantar com as suas paredes vermelhas, ou
subia as escadas até à sala de estar dupla e, um pouco mais
acima, até aos quartos brancos, até ao corredor dos quartos com
as portas meio abertas. O primeiro lanço de escadas, abrindo-se
em leque para a sala de entrada, era de pedra; os lanços
superiores tinham o rangido íntimo do carvalho. Via-se
conduzindo alguém pelas escadas, mostrando a casa a um novo
amigo, a Leo talvez, como se a casa fosse realmente sua, ou
viesse a ser, um dia: os quadros, as porcelanas, o mobiliário
francês com as suas generosas curvas - tudo tão diferente do
cenário em que crescera. Na madeira escura polida, era
acompanhado por reflexos tão vagos como sombras. Aproveitara
a oportunidade para explorar toda a casa, desde os armários em
cunha do sótão até à arrecadação da cave onde a família
guardava os trastes velhos (por si só um museu, ainda que sem a
luz) e a que Gerald chamava o trou de gloire(4) Por sobre a
lareira da sala de estar, destacava-se uma pintura de Guardi, um
capriccio de Veneza com uma moldura dourada rococó; na
parede em frente, havia dois amplos espelhos com molduras
igualmente douradas. Tal como o seu herói Henry James, Nick
sentia-se capaz de «suportar uma profusão de dourados».
Por vezes, acontecia que Toby voltava e, então, ia para a sala de
estar e punha a música bem alto; ou instalava-se no gabinete do
pai.

*4• Em francês, no original: «buraco da glória». Neste caso, o


uso do francês (e de uma expressão que, cremos, é de uso
raríssimo em francês) remete para a tradução da expressão do
calão inglês glory hole, que pode ser usada, na gíria doméstica,
com o significado de «arrecadação». No entanto, em calão,
também pode significar os genitais femininos. Por outro lado, na
gíria gay, designa um buraco feito nas divisórias de casas de
banho ou vestiários públicos (e usado para satisfazer apetites
voyeuristas ou outros). (N. do T.)

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que ficava nas traseiras da casa, e fazia chamadas


internacionais enquanto bebericava um gin tónico - e, se fazia
tudo isso, não era por rebeldia em relação aos pais; não, Toby
limitava-se a imitar, com toda a legitimidade, os privilégios de
que os pais gozavam naquele espaço. Ia para o jardim, despia
impacientemente a camisa, deitava-se numa espreguiçadeira e
punha-se a ler a página de desporto do Telegraph. Nick via-o da
varanda e descia para lhe fazer companhia, um tanto ou quanto
ofegante, sabendo que Toby adorava que apreciassem o seu
corpo de remador. Era a caridade fácil da beleza. Bebiam uma
cerveja e Toby perguntava: - Como é que tem estado a minha
irmã? Bem ou nem por isso? Não demasiado louca, espero - e
Nick respondia: - Não, tem estado bem, tem estado bem -
enquanto protegia os olhos do impiedoso sol de Agosto e
retribuía o sorriso do amigo com ternura, entre outras emoções
imprevisíveis.
Os altos e baixos de Catherine faziam parte da mitologia que
Nick fora construindo em torno da casa. Certa noite, em Oxford,
sentaram-se num banco junto ao lago e Toby, numa prova clara
da sua confiança, contou-lhe os problemas da irmã. - Sabes, ela é
muito volátil - disse ele, tranquilamente impressionado com a
escolha da palavra. - Pois é, ela tem essas variações de humor... -
Para Nick, toda aquela casa, então somente imaginada, ganhou a
luz e a sombra dos humores humanos, e a vida que lá se vivia
surgiu tão impregnada de emoção como o ar de Oxford era
impregnado pelo cheiro das águas do lago. - Sabes, ela
costumava cortar os braços com uma lâmina de barbear. - Toby
estremeceu e pôs-se a dar à cabeça. - Graças a Deus, agora, já
ultrapassou tudo isso. - O caso parecia não se reduzir a meras
alterações de humor e, da primeira vez que viu Catherine, Nick
deu por si a olhar de relance, nervosamente, para os braços dela.
Num antebraço, havia umas linhas paralelas bem nítidas, com
alguns centímetros de comprido, e, no outro, um padrão de
cicatrizes que faziam entre si ângulos rectos; quem olhasse para
aquilo, não escaparia à tentação de ler as cicatrizes como letras;
sim, talvez Catherine tivesse tentado escrever a palavra elle. Mas
as feridas estavam curadas havia muito tempo e, agora, não
passavam de um indício de algo que, de outro modo, acabaria
esquecido; por vezes, Catherine, com um ar ausente, percorria-as
com um dedo.

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«Tomar conta da Ghata(5) - fora assim que Gerald pusera a


questão antes de partir, com a sugestão de que a tarefa era tão
simples como isso, mas também exigente. A casa era de
Catherine, mas seria Nick o responsável por tudo o que se
passasse por lá. A filha dos Fedden acampava nervosamente
naquele cenário, como se o locatário fosse ela e não Nick. Não
escondia a sua perplexidade perante a admiração que ele nutria
pelos pomposos espaços da casa e troçava do seu interesse de
connaisseur pelas pinturas e pelo mobiliário. - Mas que snob que
tu me saíste - dizia ela, com um riso provocador; vindo da família
em relação à qual se cria que ele adoptara uma atitude snob, o
comentário tinha um não sei quê de bofetada. - Não, snob, snob,
não serei - disse Nick, como se um reconhecimento mitigado
fosse o melhor desmentido. - O que se passa é que eu adoro tudo
o que seja belo. - Catherine mirou à sua volta com um ar cómico,
como se não encontrasse outra coisa senão lixo. Na ausência
dos pais, os seus instintos eram modestamente transgressores
e, no essencial, envolviam fumar e levar desconhecidos lá para
casa. Certa noite, ao chegar a casa, Nick encontrou-a a beber na
cozinha com um velho taxista negro; a beber e a esclarecer o
homem quanto ao valor do seguro que cobria o conteúdo da
casa. Aos dezanove anos, Catherine averbava já um longo
catálogo de namoros fracassados e, a cada namorado, atribuíra
um epíteto muito pouco abonatório, de tal forma que, por vezes,
Nick apenas os conhecia pelas alcunhas: «Chatos» ou «Não
precisa de passar a ferro» ou «Controlador de quantidade».
Muitos desses namorados pareciam ser escolhidos, de uma
forma quase consciente, tendo em conta que tudo neles seria
inaceitável em Kensington Park Gardens: um galês na casa dos
quarenta, com ar de vagabundo, que ela conhecera numa loja de
discos usados em Notting Hill; um atraente punk com um foda-se
tatuado no pescoço; um rastafári que morava perto dali e que
não se cansava de carpir profecias sobre a Babilónia e a queda
de Thatcher. Outros eram estudantes de escolas privadas só
para ricos e untuosos profissionais livres em princípio de
carreira que, confrontados com a crise e o desemprego da era
Thatcher, se desunhavam para subir na vida. Catherine podia

*5. No original, «Looking after the Cat». Cat é um diminutivo de


Catherine, mas também significa gato(a). (N. do T.)

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ser franzina, mas era fisicamente impetuosa; muitas vezes,
aquilo que levava os homens a sentirem-se atraídos por ela era
também o que os afugentava. Nick, na sua secreta inocência,
sentia um certo respeito pela experiência dela com os homens:
para acumular tantos fracassos, era preciso ter uma alta taxa de
êxitos preliminares. Sentia-se incapaz de avaliar se ela era muito
ou pouco ou nada atraente. No caso de Catherine, a mistura
genética de dois progenitores bem-parecidos produzira algo que
nada tinha a ver com a beleza indolente de Toby: a boca grande
de Gerald, uma daquelas bocas que parece destinada a
conquistar a confiança dos outros, fora desajeitadamente
esborrachada na esguia elipse do rosto de Rachel. As emoções
de Catherine precipitavam-se sempre para a sua boca.
Adorava tudo o que fosse satírico e era uma boa imitadora de
vozes. Quando ela e Nick se embebedavam, Catherine fazia
divertidas imitações dos outros membros da família, de tal forma
que se tinha a estranha sensação de que eles estavam lá. Havia
Gerald, com o seu vozeirão jocoso, a sua queda para tudo o que
fosse esplêndido, as suas citações favoritas dos livros de Alice.
«Francamente, Catherine», protestava Catherine, «darias cabo
da paciência até a uma ostra». Ou: «Lembras-te dos ramos da
Aritmética, Nick? Ambição, Distracção, Enfiiação e
Derrisão...?»(6) E Nick participava na festa, abandonando-se a
uma insidiosa deselegância. Aquilo que mais o atraía era o estilo
de Rachel, um estilo assente num código ao mesmo tempo
aristocrático e vagamente estrangeiro. Na sua boca, a palavra
group quase soava alemã é o género de coisa a que ela nunca
pertenceria; quando pronunciava philistine como se de uma
palavra francesa se tratasse, parecia deixar implícito que
qualquer pessoa que a pronunciasse de um modo diverso só
podia ser isso mesmo - um filisteu. Nick experimentou imitar
essas singularidades de Rachel; Catherine riu-se, mas talvez não
tivesse ficado impressionada por aí além. Ninguém conseguia
convencê-la a imitar Toby; e não havia dúvida de que o irmão era
difícil de «apanhar». Um dos seus melhores números era a
imitação da madrinha, a Duquesa de Flintshire, que, enquanto
Sharon Fungold, fora a
*6. Duas citações de Alice no País das Maravilhas; ao longo do
livro, a personagem do deputado Gerald Fedden citará por
diversas vezes o texto de Lewis Carroll. (N. do T.)

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melhor amiga de Rachel na Cranborne Chase School, e cuja


presença nas vidas dos Fedden emprestava uma malícia muito
especial às suas piadas sobre Mr. Duke, o empregado para todo o
serviço. O duque com quem Sharon se casara tinha a coluna
torta e um castelo em ruínas e a fortuna do vinagre Fungold
viera mesmo a calhar. Nick ainda não conhecia a duquesa, mas,
depois da imagem que Catherine traçara dela - um verdadeiro
dínamo social, mas muito oca de cabeça - sentia que tivera o
prazer sem a concomitante expectativa.
Nick nunca falou a Catherine da sua paixão por Toby. Temia que
ela achasse o caso cómico. Mas falaram muito de Leo durante
aquela semana de espera, uma semana cujos dias ora se
arrastavam, ora passavam num ápice. O material de que
dispunham não dava para grandes efabulações, mas bastava
para que duas imaginações férteis extraíssem uma personagem:
o papel de carta azul pálido, os dúbios traços ascendentes; a voz
de Leo, que só Nick ouvira, na conversa, tão afável quanto
formal, em que tinham combinado tudo, e que era londrina sem
excessos e dificilmente identificável como negra, ainda que Nick
se apercebesse de que havia nela uma ironia muito particular,
bem como uma ausência de expectativa; e a fotografia a cores,
onde se podia ver que Leo não era tão atraente como dizia,
embora também não fosse nada de se deitar fora. Estava
recostado num banco de um parque e a câmara só o apanhara da
cintura para cima, pelo que não era fácil saber que altura teria.
Vestia um blusão de aviador e olhava fixamente para um ponto
qualquer que não a câmara e o sobrolho franzido parecia lançar
uma sombra sobre os seus traços, ou ser uma sombra que
ameaçava devorá-los. Atrás dele, podia ver-se a travessa
cinzenta prateada de uma bicicleta desportiva que ficara
encostada ao banco.
A substância do anúncio («Homem negro, vinte e tais, mto
atraente, interesses cinema, música, política, procura homem
inteh-gente mesmos interesses 18-40») fora em boa medida
obliterada pelas subsequentes fantasias de Nick e pelas
premonições de Catherine, as quais tinham arrastado cada vez
mais Leo para um território que era só dela e onde a má-fé
dominava e o sexo implicava sempre um desconforto. Por vezes,
Nick precisava até de se assegurar de que era ele e não
Catherine que ia encontrar-se com Leo. Na tarde em causa,
correu para casa e deu mais uma vista de olhos

20

aos requisitos mencionados no anúncio. Não conseguia deixar de


sentir que não estaria à altura dos padrões do seu novo
namorado. Era inteligente, tinha um diploma de Oxford novinho
em folha - e com a melhor nota possível -, mas música e política
podiam significar coisas tão diversas para as pessoas... Bom,
nesse particular, o seu convívio com os Fedden seria sem dúvida
muito instrutivo. O tolerante intervalo de idades era para ele um
bálsamo. Nick tinha apenas vinte anos, mas, ainda que tivesse o
dobro, nunca seria um candidato sumariamente eliminado. De
facto, era até possível que ficasse com Leo vinte anos: as
entrelinhas do anúncio pareciam conter essa promessa.
O correio da tarde ainda estava espalhado pela entrada e, dos
pisos superiores, não vinha nenhum som; ainda assim, Nick
sentiu que não estava só; por coisa nenhuma, ou melhor, só
porque havia uma carga qualquer no ar. Pegou nas cartas e
verificou que Gerald lhe enviara um postal. Era uma imagem a
preto e branco de um portal românico, flanqueada por santos e
com um vigoroso Juízo Final no tímpano: Église de Podier, XII
siècle. Gerald tinha uma caligrafia avantajada, impaciente, que
engolia a maior parte das letras e que, com o aparo muito grosso
que ele usava, corria sempre o risco de se tornar indecifrável. O
autor da Grafologia poderia ter diagnosticado um ego tão imenso
como o de Leo, mas a principal impressão era de uma pressa
quase evasiva. Despedia-se com uns gatafunhos que podiam ser
«Beijos», mas também «Saudações», ou ainda uma coisa tão
absurda como «Olá» - de maneira que era impossível saber ao
certo em que termos se estava com ele. Tanto quanto Nick
conseguia adivinhar, Gerald e Rachel estavam a ter umas férias
muito agradáveis. Gostou de receber o postal, mas, por causa
deste, uma ligeira sombra insinuou-se no seu espírito; o postal
fê-lo lembrar-se de que o idílio de Agosto terminaria em breve.
Dirigiu-se para a cozinha, que Catherine (só podia ter sido ela)
transformara num caos depois da muito matinal visita de Elena.
As gavetas dos talheres, escancaradas, inclinavam-se
perigosamente. Havia um vago ar de intrusão. Disparou para a
sala de jantar, mas o relógio, com uma decoração ao estilo de
Boulle, continuava a tiquetaquear no consolo da lareira e o cofre
prateado permanecia como sempre, isto é, impenetrável. Os
retratos de Lenbach - saturados de castanhos - dos
antepassados de Rachel fitavam-no tão

21

gravemente como o próprio Leo. No piso superior, na sala de


estar, as janelas da varanda das traseiras estavam abertas, mas
a lagoa azul de Guardi continuava a reluzir e a faiscar por sobre o
consolo da lareira. Um armário baixo da estante - uma daquelas
estantes com a parte inferior saliente - tinha a porta aberta.
Curioso como o simples acto de se viver numa casa como aquela
podia ganhar a aparência de um assalto. Foi à varanda e
esquadrinhou o jardim, mas não, não havia ninguém no jardim.
Subiu com mais calma os três lanços de escadas seguintes e os
seus nervos por causa de Leo voltaram a dominá-lo; eram quase
um alívio, se comparados com a inquietação constante que era
tomar conta da casa. Viu Catherine às voltas no seu quarto e
chamou por ela. Uma brisa fechara a porta do quarto de Nick. Lá
dentro, o ar estava sufocante e os livros e os papéis que deixara
na secretária junto à janela estavam quentes e com as pontas
encurvadas. Disse: - Por um momento, pensei que tinham
assaltado a casa - mas o medo de que isso tivesse acontecido já
se havia dissipado.
Escolheu duas camisas que lhe pareciam adequadas, tirou-as do
roupeiro montadas nos cabides e estava a ver-se ao espelho
quando Catherine entrou e se plantou atrás dele. Apercebeu-se
imediatamente de que ela queria tocar nele, mas que era incapaz
de o fazer. Não o olhava nos olhos ao espelho, olhava
simplesmente para ele, para o seu ombro, como se ele soubesse
o que tinha de fazer. Catherine exibia o sorriso desmaiado,
desconcertado, de alguém que se limitava a enfrentar a dor. Nick
respondeu com um sorriso mais largo, só para ganhar alguns
segundos, como se aquilo que se estava a passar pudesse ser,
apesar de tudo, mais uma das suas brincadeiras. - Azul ou
branca? - disse, cobrindo-se de novo com as camisas, como duas
asas. Depois, baixou os braços e as camisas ficaram a arrastar-
se pelo chão. Deu-se conta de que a noite começava a cair e viu
Leo na sua bicicleta desportiva correndo para casa em
Willesden. - Não estás bem? - perguntou.
Ela deu uns passos e sentou-se na cama, onde se curvou para a
frente e olhou de relance para ele, com aquele arremedo de
sorriso, com aquele trejeito sinistro nos lábios. Vira-a com
aquele conjunto florido dia após dia, era com aquilo que ela
andava pelas ruas, qualquer coisa que comprara em Portobello
Road e que parecia adequado para a zona onde vivia ou para a
sua fantasia dessa zona,

22

mas que, agora, sem mangas, sem costas, sem pernas, fazia
lembrar tudo menos roupa. Nick sentou-se ao lado dela, abraçou-
a e afagou-a como que para a aquecer, embora ela estivesse tão
quente como uma criança febril. Ela deixou-se abraçar e afagar,
mas, depois, afas-tou-se um pouco. - O que é que eu posso fazer?
- perguntou Nick e apercebeu-se de que também ele queria ser
confortado. No profundo e luminoso espaço do espelho,
encontrou dois jovens mergulhados numa crise ainda obscura.
- Podes tirar as coisas do meu quarto - pediu ela. - Sim, leva tudo
lá para baixo.
- Está bem.
Nick avançou pelo corredor e entrou no quarto dela, onde, como
de costume, as cortinas estavam fechadas e o ar empestado de
tabaco. A densa gaze vermelha que envolvia o abajur desprendia
um cheiro perigoso e coava a luz por sobre um caos de roupa de
cama, roupa interior, LPs. Gavetas e armários estavam todos
revolvidos - o assalto imaginário podia ter atingido ali o seu
clímax frustrado. Nick perscrutou o espaço à sua volta e, apesar
de estar só, mimou, com algum exagero, uma presteza jovial para
controlar a situação. Embora a sua cabeça estivesse a funcionar
de um modo rápido e responsável, Nick apegava-se aos seus
últimos e escassos momentos de ignorância. Emitiu um som
baixo e grave de concentração enquanto percorria com os olhos
a mesa, a cama, o lixo que se acumulava sobre a velha e
encantadora arca de nogueira. Deu com uma bacia de rosto no
armário do canto e com uma meia dúzia de objectos que
Catherine espalhara pela tijoleira à volta do armário como se
fossem instrumentos antes de uma operação: uma pesada faca
de trinchar, um cutelo recurvado com cabo duplo, um par de
facas bem amoladas para cortar filetes e os dois pequenos e
sólidos espetos que Nick vira Gerald usar para prender e
arrancar um pedaço de uma carne qualquer, quase como se esta
pudesse, ainda assim, escapar-lhe. Juntou desajeitadamente os
objectos e, armado de cuidados, levou-os para baixo, com um
novo e deprimido respeito por eles.
Quanto a ligar para quem quer que fosse, Catherine mostrou-se
categórica: sugeriu que aconteceriam coisas muito piores se ele
o fizesse. A incerteza de Nick quanto a esta ameaça deixou-o
sem rumo certo. Limitava-se a deambular. A sua ignorância
quanto ao

23

que havia de fazer era sinal de uma ignorância muito mais vasta
acerca do mundo a que recentemente chegara. Imaginou o
choque e a aflição dos pais quando descobrissem e viu a mancha
no cadastro da sua vida, ainda incipiente, com os Fedden. No fim
de contas, Nick não era digno de confiança: coisa que ele
sempre suspeitara, mas eles não. Temia estar a proceder mal,
mas, ao mesmo tempo, receava agir. E se tentasse encontrar
Toby? Mas Toby, para Catherine, era uma nulidade, alguém que,
quando muito, ela tratava com uma polidez desatenta. Nick
estava a moldar a história na sua cabeça. Persuadiu-se de que o
desastre fora uma possibilidade, ou mesmo quase uma certeza,
mas que acabara por ser rejeitado. Houvera um ritual de
confrontação que durara uma hora, um minuto, toda a tarde - e
talvez tivesse sido apenas isso, um ritual. Agora que Catherine
caíra num silêncio e numa passividade quase totais (limitava-se
a bocejar, e o que ela bocejava), Nick perguntava-se se o
episódio não teria já sido levado para longe e escondido e
isolado por um qualquer mecanismo particularmente eficaz. Era
possível que o seu próprio regresso a casa tivesse, desde o
primeiro instante, desempenhado um papel de relevo na trama
que ela urdira. Do que não havia dúvida era que, agora que
estava de volta, ser-lhe-ia muito difícil rejeitar os pedidos dela. -
Por amor de Deus, não me deixes só. - Ao que retorquiu - Claro
que não - e sentiu a ocasião a fechar-se sobre ele, como quatro
paredes que, vindas de muito longe, se contraíam cada vez mais,
ameaçando sufocá-lo. E isso por causa de uma outra coisa de
que Toby lhe falara, naquele dia junto ao lago: há alturas em que
ela não pode estar só, em que ela tem de ter alguém a seu lado.
Nessa altura, Nick não desejara outra coisa senão partilhar os
deveres fraternais de Toby, mergulhar a fundo no difícil romance
da família. E, agora, ali estava ele, com o seu romance pessoal
prestes a desenrolar-se no bar das traseiras do Chepstow Castle,
e não é que ela o escolhera precisamente a ele para lhe fazer
companhia? Catherine não era capaz de explicar porquê, mas a
verdade é que só ele é que servia.
Nick levou-a para a sala de estar e ela escolheu uma música. Ou
melhor, foi até ao armário do gira-discos, tirou um disco sem ver
o que era e pôs o disco no prato. Parecia querer dizer que era
capaz de agir, mas que ainda não estava em condições de
reflectir e decidir. A música surgiu com um desagradável
rangido. O braço descera no

24

sítio errado, como se estivesse à espera de um single. - Ah sim...!


- disse Nick. Era o meio do scherzo da Quarta Sinfonia de
Schumann. Mantinha-se atento a Catherine e julgava entender o
modo como ela deixava que a música tomasse conta dela; viu-a
flutuando ao sabor da música, sem saber ao certo onde estava,
mas grata e meio interessada. Sentia-se agitado pela indecisão,
mas, por um bocado, deixou-se, também ele, levar pela música. O
trio voltou, mas apenas para uma breve digressão, antes da
mágica transição para o final... baseado, de um modo muito
óbvio, no final da Quinta de Beethoven: poderia ter-lhe dito isso e
mais, que aquela era afinal a segunda sinfonia, e que todo o
material derivava do motivo de abertura, excepto o inesperado
segundo tema do final... Afastou-se e decidiu, à luz gélida, mas
correcta, da responsabilidade, que desceria imediatamente e
telefonaria para os pais de Catherine. Porém, ao sair da sala,
pensou de súbito em Leo e teve a certeza de que ia perder a sua
única hipótese com ele: de maneira que ligou para Leo e adiou o
telefonema para França. Não sabia como explicar-lhe o que
acontecera: os factos nus e crus pareciam demasiado privados
para serem contados a um desconhecido, e uma versão suave
teria todo o ar de uma desculpa inventada. Uma vez mais, via-se
a si mesmo a proceder mal. Não parava de tossicar enquanto
marcava o número.
Leo respondeu muito rapidamente, mas só porque estava a
comer e ainda tinha de se arranjar para sair - factos que Nick
considerou reveladores. A voz dele, com a sua pequena reserva
de troça, era exactamente igual àquela que Nick ouvira, mas
que, entretanto, perdera, de tanto a evocar. Tinha apenas
começado a desfiar as suas desculpas quando Leo foi direito ao
assunto e disse, num tom amistoso, que para ele era um alívio, e
não pequeno, visto que também estava tremendamente ocupado.
- Ah bom - disse Nick, e sentiu, quase de imediato, que Leo
poderia ter ficado mais aborrecido. - Se tens a certeza de que
não te importas... - acrescentou.
- Não há problema, meu amigo - disse Leo baixinho, o que levou
Nick a pensar que ele não estava só.
- Mas continuo a querer conhecer-te. Gostaria imenso...
- Houve uma pausa antes de Leo retorquir: - Absolutamente.
- Bom, nesse caso, que tal o fim-de-semana?

25
- Não. No fim-de-semana, não vai dar.
Nick queria perguntar-lhe «Porque não?», mas sabia qual era a
resposta, Leo tinha encontros marcados com outros candidatos;
aquilo devia ser género audições para o teatro. - Na próxima
semana? - perguntou, com um encolher de ombros. Queria
encontrar-se com ele antes que Gerald e Rachel regressassem,
queria usar a casa.
- E... Vais brincar ao Carnaval? - disse Leo.
- Talvez no sábado, nós vamos estar fora no feriado. É melhor
encontrarmo-nos antes disso. - Nick ansiava pelo Carnaval, mas
sentia, não sem alguma humildade, que esse era o elemento de
Leo. Viu-se a si mesmo perdendo Leo logo no primeiro encontro,
uma rua inteira que se movia numa sólida corrente e uma pessoa
nem sequer conseguia virar-se para trás.
- O melhor será tu ligares para a semana - disse Leo.
- Mas é claro que ligo - disse Nick, fingindo que achava que tudo
aquilo era positivo, mas sentindo-se inopinadamente infeliz e
com uma sintomática rigidez facial. - Ouve, peço-te imensa
desculpa por esta noite, mas prometo que depois te compenso.-
Houve uma nova pausa e Nick teve a clara noção de que a sua
sentença estava a ser decidida, todo o seu futuro, talvez. Até que
Leo retorquiu, num sussurro gutural:
- Ah, mas não tenhas dúvidas! - e no momento em que Nick
rompeu num risinho espremido, Leo desligou. Portanto: aquela
fora uma pausa conspiratória, uma conspiração de
desconhecidos. Não era mau de todo. Não, até era uma
maravilha. Nick desligou também e foi ver-se no amplo arco
dourado do espelho da entrada. Com o súbito júbilo resultante da
descompressão, disse para si mesmo que estava bem, muito
bem, tão atraente, um homem pequeno, é certo, mas sólido, a
pele límpida, luminosa, o cabelo encaracolado. Sim, podia ver
Leo a apaixonar-se por ele. Até que reparou que a cor se escoara
das suas faces. Então, deu meia-volta e subiu as escadas.
Quando começou a ficar mais fresco, Nick e Catherine desceram
até ao jardim da casa, passaram o portão e dirigiram-se para os
jardins comunais. No romance de Londres que Nick ia
escrevendo,
26

os jardins comunais eram tão importantes como a própria casa:


tão grandes como o principal parque de uma velha cidade
europeia, embora, ao mesmo tempo, com um claro toque de
privacidade, e densamente cercados em três dos seus lados por
azevinhos e arbustos vários que acompanhavam o elevado
gradeamento vitoriano. Havia um ou dois sítios, nas ruas
circundantes, onde alguém que não dispusesse da chave poderia
vislumbrar uma clareira no meio dos plátanos e dos imponentes
castanheiros-da-índia - ao longo da qual passearia talvez um
casal ou uma velha senhora esperaria pelo seu cão, ainda mais
lento do que ela. E, por vezes, naqueles fins de tarde de Verão,
com os tordos e os melros cantando por entre as folhas, Nick
entrevia um rapaz passando do lado de fora e sentia uma
surpreendente inveja desse rapaz que passava, se bem que não
fosse nada fácil saber como é que um sorriso vindo de dentro
seria recebido lá fora. Havia locais ocultos, mesmo do lado de
dentro, o caminho que se enroscava sinuoso, como que
conduzindo a uma discreta casa de banho pública, mas que
afinal levava à arrecadação dos jardineiros, por detrás de uma
cerca de ripas; o recinto com o escorrega e os quadrados cheios
de areia para as crianças brincarem, onde amas de verdade, com
uniforme e tudo, ainda se encontravam para, numa vaga exibição
de ociosidade, trocarem mexericos; e, no extremo do jardim, os
courts de ténis, cujos ritmos sobrepostos de serviços e rallies e
chamadas insinuavam na penumbra de Agosto uma tranquilizante
lembrança dos enérgicos esforços dos outros.
De uma ponta à outra, mesmo por detrás das casas, estendia-se
o amplo caminho de pedrinhas, com a sua notória inclinação a
meio e os regos revestidos de metal onde a bola de uma criança
de quando em quando ia pousar e onde as primeiras folhas dos
plátanos, poeirentas, mas ainda verdes, caíam já, pois o Verão
fora, do princípio ao fim, muito quente e seco. Nick e Catherine
passeavam calmamente por esse caminho, de braço dado, como
um velho e vagaroso casal; Nick sentia-se ligado a Catherine de
um modo novo, quase formal. A intervalos regulares, viam-se
bancos vitorianos, de ferro forjado, construídos sem a menor
preocupação com o conforto e, entre eles, na relva, havia umas
quantas pessoas sentadas ou fazendo piqueniques, gozando,
enfim, aqueles primeiros momentos do cálido crepúsculo.

27

Ao fim de um minuto, Nick disse: - Sentes-te um pouco melhor? -


e Catherine acenou que sim e encostou-se mais a ele enquanto
caminhavam. O sentido da responsabilidade voltava a apossar-se
dele, um peso cinzento no seu peito, e Nick via-se a si mesmo e a
Catherine com os olhos das pessoas que faziam piqueniques ou
de um jogger que se aproximava: não um velho e simpático
casal, não, de maneira nenhuma, antes um par de miúdos, uma
rapariga magrizela com uma boca grande e nervosa e um solene
rapazito louro fazendo de conta que não perdera o pé naquele
mar agitado. Claro que teria de telefonar para França, e fazia
votos para que fosse Rachel a atender, já que Gerald não era
grande coisa a tratar daqueles assuntos. Gostaria muito de
dispor de mais dados sobre os factos e os porquês, mas a
verdade é que também sentia algum melindre em investigar. -
Vais ficar bem - disse ele. Pensou que, provavelmente, perguntar-
lhe coisas sobre o sucedido só serviria para reavivar o horror, e
acrescentou: - Só gostava de saber o que é que se teria passado
- como se estivesse a referir-se a um mistério já distante. Ela
olhou-o com uma expressão de dolorosa incerteza, mas não
respondeu. - Não és mesmo capaz de dizer? - disse Nick, e ouviu,
como por vezes ouvia, o tom de evasiva solidariedade do seu
próprio pai. Era assim que a sua família contornava as diversas
crises; nada era nomeado e uma pessoa nunca sabia ao certo se
o tom era subtilmente compreensivo ou apenas uma forma de
cobardia.
- Não, de facto não sou.
- Bom, tu sabes que podes sempre contar-me - disse ele. No fim
do caminho, surgia a casa do jardineiro, aninhada, de
um modo tão gracioso quanto servil, sob o penhasco creme dos
edifícios lá fora. Por detrás da casa havia um portão que dava
para a rua e Nick e Catherine pararam a ver o esporádico
trânsito do entardecer através das suas espirais de ferro. Nick
esperou e, enquanto esperava, desesperou de tanto pensar em
Leo, que estaria livre naquele mesmo entardecer de Verão.
Catherine disse: - É quando tudo fica negro e brilhante.
- Hum.
- Não é como quando uma pessoa está deprimida, aí é tudo
castanho.
- Certo...

28

- Oh, tu nunca compreenderias.


- Não, por favor continua.
- É como aquele carro - disse ela, apontando para um Daimler
preto que parara do outro lado da rua para deixar um velho de ar
distinto. O amarelo das primeiras luzes da rua reflectia-se no
tejadilho e, quando o Daimler se afastou, os reflexos ondearam e
cintilaram nas janelas e nos lados do carro, escuros e cheios de
curvas.
- Parece quase belo.
- É belo, num certo sentido. Mas a questão não é essa.
Nick sentiu que lhe fora dada uma explicação que, por excesso
de estupidez ou grave carência de imaginação, não conseguia
entender. - Mas também deve ser horrível - disse -, obviamente...
- Bom, é uma coisa venenosa, não sei se estás a ver. E brilhante,
mas, ao mesmo tempo, é letal. Uma coisa que não quer que tu
sobrevivas a ela. É isso que ela nos faz compreender. - Afastou-
se de Nick, a fim de usar as mãos. - É o mundo inteiro tal e qual
como ele é - disse ela, esticando os braços como que para o
envolver ou para o conservar à distância. - Tudo igualzinho sem
tirar nem pôr. E é totalmente negativo. Uma pessoa não pode
sobreviver nele. É como se estivéssemos em Marte ou coisa
parecida. - Tinha os olhos fixos, mas nublados. - Aí tens, melhor
do que isto não consigo - disse ela, e desandou.
Nick seguiu-a. - Mas depois volta a mudar... - disse ele.
- Sim, Nick, depois volta a mudar - disse ela, no tom ofendido que,
por vezes, sucede a um momento de auto-exposição.
- Estou só a ver se compreendo. - Nick pensou que as lágrimas
dela pudessem ser um indício de recuperação e pôs-lhe um braço
por cima do ombro, embora, ao fim de breves segundos,
Catherine fizesse um outro gesto que significava o seu desejo de
se soltar. Nick sentiu uma sugestão de repúdio sexual, como se
ela pensasse que ele estava a aproveitar-se dela.
Mais tarde, na sala de estar, Catherine virou-se para ele e disse-
lhe: - Deus do céu, esta era a tua noite com o Leo...!
Nick não podia acreditar que ela só então se tivesse lembrado
disso.

29

Mas disse: - Não há problema. Adiei o encontro para a semana


que vem.
Catherine pôs um sorriso pesaroso. - Bom, para dizer a verdade,
ele também não fazia o teu tipo - disse.
Schumann dera lugar aos The Clash, os quais, por sua vez,
tinham conduzido a um silêncio, fatigado, mas turbulento, entre
eles. Nick pedia a todos os deuses para que Catherine não
pusesse mais música - a maior parte das coisas de que ela
gostava provocavam nele uma acirrada resistência. Olhou para o
relógio. Era mais uma hora em França, o que significava que já
era demasiado tarde para lhes telefonar, e acolheu esta racional
e sensata protelação com uma sensação de obscuro alívio.
Sentou-se ao piano, vítima de negligências várias,
designadamente o uso da tampa como pódio para uma série de
velhos livros de arte e um pequeno busto de bronze de Liszt, que
por sua vez parecia comentar com uma expressão de profunda
mágoa a sua leitura à primeira da partitura de Mozart que se
encontrava na estante. Para Nick, as notas em que tropeçava
eram como gotas de chuva num caminho arenoso e, enquanto
tocava, sentia agudamente aquilo que o seu fim de tarde poderia
ter sido e não fora. No seu espírito, o simples andante
transformou-se num expressivo diálogo entre optimismo e
sofrimento recorrente; para dizer a verdade, esse simples
andante ampliou ambos os sentimentos, fazendo-os atingir um
grau desnecessário. Mas não foi preciso muito tempo para que
Catherine se levantasse e dissesse: - Por amor de Deus, querido,
não estamos na porra de um funeral!
- Desculpa, querida - disse Nick, e por uns segundos brincou com
aquilo a que chamavam música do Waldorf, antes de se levantar
e de, num passo lento, errante, se dirigir para a varanda. Havia
pouco tempo que se tratavam por «querido» e «querida» e
parecia-lhe que esse era um elemento simpático da mais ampla
conspiração da vida em Kensington Park Gardens; lá fora, porém,
no fresco da noite, Nick sentiu que estava a representar e que
Catherine era, para ele, uma criatura assustadoramente
desconhecida. A miragem de Catherine, aquela miragem de um
universo belo e venenoso, tremeluziu de novo diante dele, por um
momento, e Nick não conseguiu agarrá-la e ela depressa lhe
escapou.

30

Havia uma ceia num jardim próximo e o ar parado trazia- lhe


fragmentos de conversas e de um ligeiro tumulto. Um homem
chamado Geoffrey fazia toda a gente rir e as mulheres estavam
sempre a dizer «Geoffrey...!», num excitado protesto entre os
parágrafos semi-audíveis da sua história. Um pouco mais longe,
nos jardins comunais, alguém passeava um pequeno cão branco,
que parecia quase luminoso enquanto se meneava e corria no
crepúsculo que se despedia. Por sobre as árvores e os telhados,
o clarão sujo do céu de Londres desmaiava em débeis pináculos
violeta. No Verão, quando havia janelas abertas por todo o lado,
a noite parecia feita de sons tanto como de sombras, o sussurro
das folhas, o ruído do trânsito que ignorava o sono, distantes
buzinadelas de carros e guinchos de travões; vozes, gritos
esbatidos, uma confusão de músicas porque alguém mexia nos
botões de um rádio. Nick desejava ardentemente Leo, que estava
longe, para norte, a uns cinco quilómetros dali pelas longas
estradas mais directas, mas que também podia estar em
qualquer outro lugar, movendo-se com invisível velocidade na sua
bicicleta prateada. Perguntou-se uma vez mais em que parque a
fotografia teria sido tirada; e, claro, que pessoa, assiduamente
íntima de Leo, a teria tirado. Sentia-se vazio, de tanta frustração
e tanto adiamento. A rapariga com o cão branco voltava agora
pelo caminho de pedrinhas e Nick perguntou-se como é que ela o
veria caso olhasse de relance para cima, se o veria como uma
figura invejável, pairando contra o pano de fundo reluzente,
perfeito, da sala iluminada. Ao passo que, enquanto mirava a
noite, debruçado sobre o parapeito de ferro da varanda, Nick
sentiu que fora arrastado até à beira de uma qualquer nova
promessa, uma perfumada vista ou visão da noite, e que, depois,
aí ficara, perto, muito perto, mas encalhado, preso.

31

2.

Há coisas para toda a gente! - disse Gerald Fedden, avançando


vigorosamente pela cozinha com um saco de compras de papel
castanho que não parava de chocalhar. - Todos devem receber
um prémio!(7) - Estava bronzeado e incansável, e uma energia
perdida regressava a casa com ele, o fulgor da sua vaidade e
confiança, era quase como se as palavras do porta-voz da
Comissão Nacional de Eleições estivessem ainda frescas nos
seus ouvidos e ele estivesse a reagir aos aplausos com aquelas
exuberantes promessas. Num dos lados do saco, via-se o
emblema de uma famosa especialidade de Périgueux, um ganso
azul com a cabeça enfiada no que parecia ser uma bóia de
salvação, o bico recurvado, ao jeito dos patos de Disney, num
sorriso complacente.
- Que nojo, espero que não seja foie gras - disse Catherine.
- E não é. De facto, esta geleia de marmelo é para a nossa
Ronrom - disse Gerald, que logo tirou do saco um frasco com um
chapeuzinho de riscado, adornado com um lacinho também de
riscado, a cobrir a tampa, e o fez deslizar pela mesa da cozinha.
Catherine disse «Obrigada», mas deixou o frasco onde estava e
afastou-se na direcção da janela.
- E qual era a prenda de Tobias?
- O... hum... - balbuciou Rachel, gesticulando. - O carnet.

*7. Nova citação de Alice. (N. do T.)


32

- Claro. - Gerald esquadrinhou discretamente o conteúdo do saco


antes de passar ao filho um pequeno bloco de notas,
encadernado numa cheirosa camurça verde.
- Obrigado, pai - disse Toby, que estava todo escarrapachado, em
calções, no comprido banco da cozinha e lia obliquamente o
jornal enquanto escutava as novidades da mãe. Por detrás dele,
a parede era uma extensa e hilariante página da história familiar,
com numerosas fotografias emolduradas de férias e apertos de
mão aos famosos, bem como duas venenosas caricaturas de
Gerald, que ele fizera questão de comprar aos respectivos
autores. Quando o deputado estava na cozinha, os convidados
acabavam sempre a compará-lo com o Gerald dos cartoons,
cujos traços mais notórios eram um sorriso arreganhado e um
nariz adunco; claro que a comparação era sempre favorável ao
retratado, embora não deixasse de instilar a suspeita de que a
sua atraente máscara de todos os dias poderia muito bem
ocultar aquele rufia de ar predatório.
Agora, de calções de linho e espadrilles, numa constante
azáfama entre o carro e a casa, Gerald desfiava um sem-número
de historietas sobre a vida no manoir e mencionava
determinadas personagens locais com a intenção de divertir os
filhos ou de os deixar consternados, conforme os casos. - É uma
pena não termos podido estar todos juntos em França. E sabe,
Nick, tem mesmo de ir até lá um destes anos.
- Bom, eu adoraria - disse Nick, que estivera rondando a cena
com uma expressão encorajadora, se bem que discreta. Claro
que teria sido magnífico passar o Verão com os Fedden no
manoir, mas menos maravilhoso, isso, ele não podia deixar de
sentir, do que ficar em Londres sem eles. Quão diferente parecia
aquele espaço, agora que, ruidosa e descontraidamente, todos
eles voltavam a ocupá-lo! O regresso dos Fedden marcava o fim
dos seus deveres de guarda e zelador da casa e o inegável prazer
que sentia em voltar a vê-los era manchado por uma espécie de
tristeza que associava à adolescência, uma tristeza que tinha a
ver com a noção de que o tempo voava e de que muitas
oportunidades acabavam perdidas. Estava ansioso por uma
palavra de gratidão, capaz de mitigar a misteriosa dor. Claro que,
sobre a sua principal proeza, por ocasião da crise de Catherine,
nem uma palavra. Parecia uma omissão susceptível ainda de ser
redimida, por um rápido e firme gesto de boa consciência,

33

e a própria Catherine parecia estar nervosamente consciente do


assunto que ambos calavam; porém, na presença dos pais dela,
que de nada suspeitavam, Nick percebeu que tomara de algum
modo o partido de Catherine, e que o caso nunca veria a luz do
dia.
- No entanto, para nós - disse Gerald -, foi simplesmente
extraordinário que pudesse ficar aqui, a cuidar da Gata que
passeia sozinha(2). Não houve problemas com ela, espero...
- Bom... - Nick sorriu e baixou os olhos.
Sendo alguém de fora, Nick não tinha nenhuma alcunha e estava
isento da pesada pilhéria do jargão familiar. A sua prenda era um
pequeno e nodoso frasco de uma água-de-colónia chamada/e Pro-
mets. Cheirou apreciativamente a colónia e encontrou nela uma
série de simpáticas discriminações por parte dos ofertantes;
uma coisa era certa: os seus pais nunca lhe teriam dado nada de
tão fragrante ou ambíguo. - Espero que seja do seu agrado - disse
Gerald, quase deixando subentendido que fizera um generoso
esforço num domínio que não era da sua competência.
- É óptimo, muitíssimo obrigado - disse Nick. Sendo alguém de
fora, deu por si flutuando de novo numa agradável atmosfera de
charme social e bom humor. Toby e Catherine podiam franzir o
sobrolho e amuar e exercer a sua prerrogativa de não se
impressionarem nem se divertirem com os pais. Nick, porém,
conversava com os seus anfitriões num idioma de extrema
concordância. «E o tempo? Glorioso, imagino.» «Ah, sem
dúvida... Tivemos um tempo glorioso!» «Espero que o trânsito
não estivesse um horror...» «Mas é que estava mesmo... Um
horror!» «Adoraria ver a capela de Podier.» «Sim, creio que
adoraria a capela de Podier.» E assim iam tricotando as suas
conversas. Mesmo as discordâncias, era o caso da pronunciada
queda de Gerald Fedden pela música de Richard Strauss,
possuíam um brilho de harmonia social, de praze-rosa liberdade,
e quase se confundiam com concordâncias transpostas para um
tom mais excitante.
Havia imenso vinho na traseira do Range Rover e Nick ofereceu-
se para ajudar Gerald a trazê-lo para dentro. Não pôde deixar

*2. Para variar, Gerald cita Kipling, The Cat Who Walks by
Himself. (N. do T.)

34

de reparar na firmeza, quase irritante, das nádegas do deputado,


sem dúvida bombeadas pela prática diária do ténis e da natação
em terras de França. As pernas bronzeadas constituíam outra
sugestão de potencial sexual que Nick, por norma, teria
considerado impossível num homem de quarenta e cinco anos,
pensou que, provavelmente, andava tão excitado com a
perspectiva de conhecer Leo que, agora, reagia aos outros
homens com uma vivacidade indiscriminada. Transportada a
última caixa, Gerald comentou: - Fomos positivamente esfolados
na alfândega... Cobraram-nos montes de direitos por causa dos
vinhos.
- Se levantassem as barreiras alfandegárias na CE - ripostou Toby
-, não terias de te preocupar com esse género de coisas.
Gerald sorriu apenas o suficiente para mostrar que não ia morder
o isco. Havia umas quantas garrafas para Elena, que estava
envolvida numa ansiosa transferência dos poderes domésticos
para Rachel, e que logo as guardou no seu saco de compras
preto para depois as levar para casa. Tendo em conta que Elena,
uma viúva na casa dos sessenta, era tratada pela família com
afeição e um empenhado simulacro de igualdade, não deixava de
ser revelador ver o seu nervosismo enquanto prestava contas
pelo que fizera na ausência dos patrões. Com ela, Nick nunca
conseguia libertar-se de uma sensação de constrangimento que,
como uma sombra, acompanhava uma cortesia sem mácula,
embora desajustada. Na sua primeira visita a Kensington Park
Gardens, fora recebido por Toby que, depois, o deixara sozinho,
com o aviso de que a mãe não tardaria a chegar. Mal ouviu a
porta da frente a abrir-se e a fechar-se, Nick desceu e
apresentou-se à mulher bem-parecida, com cabelo preto asa de
corvo, que estava a separar o correio na mesinha da entrada.
Discorreu num tom excitado a propósito do quadro que estivera a
apreciar na sala, e só muito lentamente, ante a risonha
deferência e os murmúrios prenhes de sotaque da mulher, é que
Nick se deu conta de que não estava a falar com a aristocrática
Rachel, mas com a empregada italiana. Claro que não havia nada
de errado em brindar a empregada com todo o seu charme, e as
opiniões de Elena acerca de Guardi eram provavelmente tão
interessantes como as de Rachel e mais do que as de Gerald,
mas, ainda assim, o momento que ela parecia recordar pelo seu
encanto, lembrava-o Nick como um insignificante erro de
etiqueta.

35

Não obstante, enquanto, deslizando por entre o banco e a mesa,


se sentava ao lado de Toby e aspirava aquele seu cheiro a
sabonete e café e comprimia o joelho contra o joelho nu do
amigo, ao mesmo tempo que se esticava para pegar no
açucareiro, Nick considerou o êxito que então tivera. A sua
entrada na cena dos Fedden ocorrera um ano antes e, agora,
tudo se apresentava prenhe, saturado, de associações. Pegou no
bloco de notas, que não suscitara mais que umas fugazes
olhadelas, e afagou a lanugem macia da sua capa para
compensar o desinteresse de Toby e também, de uma forma
remota, como se estivesse a percorrer com os dedos uma parte
quente e peluda do corpo de Toby. Nos últimos tempos, Toby
vinha falando da possibilidade de seguir a carreira de jornalista,
e, por isso, a prenda tinha qualquer coisa de vagamente
insultuoso; revelava não mais que uma preguiçosa tentativa de
adequação ao destinatário; da parte de quem a dera, o
sentimento de que estavam a cumprir um mero dever fora
disfarçado pela repulsiva opulência do produto. Não era nada
fácil manusear o bloco de notas, já que, para o manter aberto,
quase era preciso espalmá-lo com um murro, além do que era tão
pequeno que meia dúzia de moradas ou «ideias» bastariam para
o encher. Era seguramente difícil imaginar Toby a usar o bloco
numa reportagem sobre um piquete de greve ou quando tivesse
de disputar com os colegas a resposta de um ministro cercado
de câmaras por todos os lados.
- Ouviram por certo falar do caso Maltby - disse Toby.
Imediatamente, Nick sentiu o ar da cozinha começar a formigar,
como se estivesse à beira de uma reacção alérgica. Hector
Maltby, um funcionário intermédio do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, fora apanhado com um prostituto no seu Jaguar,
em Jack Straw's Castle, e resignara rapidamente ao seu posto e,
ao que parecia, ao seu casamento. A história constituíra o prato
forte de todos os jornais da semana anterior e era um disparate
Nick sentir-se tão constrangido como de súbito se sentiu,
corando como se também ele tivesse sido apanhado num Jaguar.
Tal reacção era frequente quando ouvia falar de
homossexualidade e, mesmo na tolerante cozinha dos Fedden,
todo ele se eriçou de apreensão perante aquilo que poderia ser
descuidadamente dito - um qualquer insulto indirecto que teria
de engolir, uma piada a que reagiria com um meio sorriso. Aos
olhos de Nick, mesmo o caso do gordo e absurdo Maltby,

36

um cartoon, na vida real, do «novo» e ganancioso Tory(1)


parecia aludir ao seu próprio e muito discreto caso e, num breve
acesso de paranóia, levantar suspeitas sobre o facto de a sua
perna estar tão colada à bela perna morena de Toby.
- O pateta do Hector... - disse Gerald.
- Não se pode dizer que tenhamos ficado terrivelmente
surpreendidos - disse Rachel com o seu característico tremor de
ironia na voz.
- Vocês devem ter privado com ele, não? - perguntou Toby, no seu
novo estilo «entrevista», a que não faltava gravidade.
- Um pouco - disse Rachel.
- Nem por isso - disse Gerald.
Catherine continuava à janela, os olhos fixos num ponto
qualquer, entregando-se ao seu sonho de um corte total com a
família.
- Francamente, não percebo porque é que o homem tem de ir
para a prisão - disse.
- Ele não vai para a prisão, sua bichaninha tonta - disse Gerald. -
A menos que saibas alguma coisa que eu não sei. Maltby foi só
apanhado com as calças na mão. - Por via de alguma associação
meio consciente, olhou para Nick como que a pedir uma
confirmação.
- Sim, tanto quanto sei - disse Nick, fazendo o possível para que
as quatro pequenas palavras soassem simultaneamente
despreocupadas e judiciosas. Era horrível imaginar Hector
Maltby de calças na mão; e, no fim de contas, o funcionário do
ministério caído em desgraça não parecia merecer grande coisa
em termos de solidariedade. O gosto de Nick ia para imagens
esteticamente radiosas de pujança gay, prenúncios de um futuro
dourado para ele, como a imagem de nadadores numa praia
banhada de sol.
- Bom, não percebo porque é que o homem teve de se demitir
- disse Catherine. - Qual mal é que tem apetecer-lhe um broche
de vez em quando?
Gerald tratou de compor a situação, mas era evidente que estava
chocado. - Não, não, ele tinha mesmo de se demitir. Não havia
alternativa. - O seu tom era áspero, mas responsável, e o facto
de a

*1. Membro do Partido Conservador britânico. (N. do T.)

37

sua voz se ter submetido, para o efeito, ao discurso e às


fórmulas comuns na política, não deixava de ser vagamente
perturbador, apesar de Catherine se ter rido da intervenção
paterna.
- Pode ser que tudo isso lhe faça bem - disse ela. - Que o ajude a
encontrar-se a si mesmo.
Gerald franziu o sobrolho e tirou uma garrafa da grade de cartão.
- Tens umas ideias muitíssimo estranhas quando ao que pode ou
não fazer bem às pessoas - disse ele, num tom ponderado, se
bem que não isento de indignação. - Mas, mudando de assunto,
creio que podíamos beber o Podier Saint Eustache ao jantar.
- Hum, que bom... - murmurou Rachel. - A questão, minha querida,
é muito simples, o que Maltby fez, além de inseguro, é ordinário -
disse ela, numa das suas súbitas e violentas formulações.
- Janta connosco esta noite, Nick? - perguntou Gerald.
Nick sorriu e desviou o olhar porque a generosa pergunta
levantava uma nova incerteza quanto ao seu estatuto em noites
posteriores. Quanto, e com que frequência, partilharia ele com
os Fedden? Eles tinham referido em tempos que, por vezes,
poderia ser chamado caso faltasse algum convidado. - Sinto
muito, mas esta noite não posso - disse ele.
- Oh... Que pena, logo na noite do nosso regresso...
Nick não sabia ao certo como explicar o caso. Catherine
observou a sua hesitação com um sorriso fascinado. - Não, Nick
não pode jantar connosco porque tem um encontro - disse ela.
Era francamente irritante ouvi-la referir os seus ternos planos em
termos tão brutais, e um pérfido prémio para quem encobria as
aventuras dela. Nick enrubesceu e sentiu um novo estalido de
estática social passando pela cozinha. Um zunzum silencioso
parecia ter-se apoderado dos Fedden. Um zunzum de dúvida, de
encorajamento, de constrangimento - Nick não conseguia
decifrá-lo.
Nick nunca tinha saído com um homem e era muito menos
experiente do que Catherine imaginava. Durante as suas longas
conversas sobre homens, Nick deixara que uma ou duas das suas
fantasias assumissem o estatuto de factos, mentira um pouco e
não contestara algumas das conjecturas que Catherine elaborara
a seu respeito.

38

Confessara uma actividade sedutora que era inteiramente


imaginária, mas que ganhara - em parte, graças ao invulgar
esforço necessário para a inventar e para a repetir de um modo
consistente - a qualidade de memórias verdadeiras. Por vezes,
uma sugestão de reserva nos seus interlocutores provocava nele
a sensação de que as pessoas, embora não acreditassem nele,
se apercebiam de que ele começava a acreditar em si mesmo. Só
assumira inteiramente a sua homossexualidade no último ano em
Oxford e usara essa nova liberdade sobretudo para flertar com
rapazes hetero. Entregara o seu coração a Toby, mas flertar com
Toby teria sido impróprio, quase sacrílego. Não se sentia
realmente preparado para aceitar o facto de que, se ia ter um
amante, esse amante não seria Toby, ou qualquer outro rapaz
heterossexual que, intoxicado pelo álcool, passasse
momentaneamente para o outro lado, mas sim um amante gay -
essa solução de compromisso, esse meio-termo em que ele
próprio então se tornaria. Pelos vistos, os gays mais
exuberantemente efeminados, aquilo a que se poderia chamar
bichas consumadas, que Nick aplaudia e temia e, de uma forma
hesitante, imitava, achavam amiúde que, apesar de todos os
seus atractivos físicos e intelectuais, havia qualquer coisa de
errado nele. Fosse como fosse, não queriam ir para a cama com
ele, o que lhe permitia regressar, com uma sensação que
associava sempre alívio e desalento, ao seu teatro secreto de
faz-de-conta sexual. Aí, o espectáculo nunca acabava e os
actores nunca se cansavam e o único perigo era um certo
marasmo resultante das muitas representações. Por isso, o
encontro com Leo, desejado e perseguido apesar de todos os
obstáculos do mesmo sistema que o tornava possível, era tão
importante para Nick. Parou para uma última e esperançosa
olhadela ao arco dourado do espelho da entrada, que
monitorizava todas as idas e vindas, e sentiu-se relutante em
manifestar a sua aprovação; quando fechou a porta e se fez à
rua, achou-se vertiginosamente só e teve de recordar a si mesmo
que estava a fazer tudo aquilo por prazer. E que a coisa estava a
ficar com o aspecto de um conflito perfeitamente sem sentido.
Enquanto descia apressadamente a encosta, concentrou-se uma
vez mais nos seus Interesses e Ambições, o tópico, sem dúvida
muito singular, proposto para o encontro. Deu-se conta de que os
interesses nem sempre eram uma coisa sexy. Uma paixão
partilhada

39
por um determinado tema, capital ou insignificante, podia
rapidamente deixar dois desconhecidos num estado muito
particular de moderado arrebatamento e emulação, algo que só
remotamente se assemelhava a amor; mas era preciso que o
acaso ajudasse e que os dois desconhecidos se tivessem
apaixonado pelo mesmo tema. No que tocava às ambições,
sentia que era difícil anunciá-las sem parecer que estava a
enganar-se a si mesmo ou a mostrar-se timorato e, de facto,
muito pouco ambicioso. Gerald poderia dizer «Eu quero ser
Ministro da Administração Interna»; quem o ouvisse sorriria, mas
admitiria uma tal possibilidade. Ao passo que a ambição de Nick
era ser amado por um atraente homem negro com vinte e tais e
uma bicicleta desportiva e um emprego numa autarquia local.
Essa era a única coisa que ele não conseguiria admitir perante
Leo.
Pela centésima vez, centrou os seus pensamentos no bar das
traseiras do Chepstow Castle, que escolhera por causa da sua
atmosfera obscura e razoavelmente privada - um espaço para o
qual os clientes do bar mais popular espreitavam sem grande
curiosidade, mas que era muito pouco frequentado nas noites de
Verão, quando toda a gente ia para a rua. Havia uma luz âmbar
naqueles recantos, no meio dos velhos espelhos com anúncios
de whisky e das fotografias de carroças puxadas por cavalos.
Viu-se a si mesmo sentado ao lado de Leo, ombro contra ombro,
as mãos furtivamente enleadas na alcatifa poeirenta.
Já perto do pub, deu por um homem negro que se encontrava
logo a seguir a um grupo de bebedores; um momento depois,
teve a certeza de que era Leo; um momento depois desse, fez de
conta que não o vira. Afinal era bastante pequeno; e deixara
crescer uma espécie de barba. Mas por que raio é que ficara na
rua? Nick estava já perto de Leo; nervoso, muito nervoso, voltou
a olhar para ele e viu o seu sorriso inquiridor.
- Se não me queres conhecer... - disse Leo.
Nick hesitou e riu-se e, num repente, estendeu a mão. - Pensei
que estivesses lá dentro.
Leo acenou com a cabeça e olhou pela rua abaixo. - É que,
assim, podia ver-te chegar.
- Ah... - Nick riu-se de novo.
- Além disso, não me sentia muito tranquilo por causa da
bicicleta, aqui sozinha, nesta zona. - E lá estava a bicicleta,
requintada.

40

uma pluma, um tesouro, a bicicleta do futuro, presa ao candeeiro


público mais próximo.
- Oh, tenho a certeza de que não vai haver problema. - Nick
franziu o sobrolho, os olhos fixos algures. Surpreendia-o que Leo
achasse aquela zona perigosa. Claro que ele próprio a
considerava particularmente perigosa; e, a três ou quatro
quarteirões dali, havia pubs onde sabia que nunca entraria, tão
medonhos eram os seus nomes e tão intensa a aura que se
desprendia dos seus interiores, apenas entrevistos. Mas ali... Um
rastafári muito alto passou por eles e bamboleou a cabeça numa
saudação para Leo, o qual retribuiu o aceno para logo desviar os
olhos; aos olhos de Nick, aquela reacção confundia-se com um
comedido reconhecimento de parentesco.
- Que tal uma conversinha cá fora? - propôs Leo.
Nick foi buscar as bebidas. Do balcão, espreitou o bar das
traseiras - onde, afinal, havia uma quantidade de pessoas em
animada conversa, talvez um daqueles grupos que se
encontravam em pubs; por outro lado, a sala tinha mais luz do
que ele se lembrava ou do que teria desejado. Tudo parecia um
pouco diferente. Leo ia só beber uma Coca-Cola, mas Nick
precisava de coragem para a noite e a sua bebida, embora de
aparência idêntica, continha um rum duplo. Nunca tinha bebido
rum e ficava sempre espantado com o facto de alguém gostar de
Coca-Cola. A sua mente fixava a fugaz imagem do homem que
tanto desejara conhecer, em que tocara apenas por um breve
momento e que deixara lá fora em toda a sua desconcertante
realidade. Esse homem era demasiado sexy, era demasiado
aquilo que ele queria, com aqueles jeans descaídos na cintura e
aquela camisa azul bem justa. Havia nesse homem algo que
inquietava Nick: a sua óbvia intenção de seduzir, ou, pelo menos,
de mostrar a sua capacidade de sedução. Tremiam-lhe um pouco
as mãos quando levou as bebidas para a rua.
Não havia nenhum sítio para se sentarem, de modo que ficaram
de pé e encostaram-se ao parapeito de uma montra, revestido
com ladrilhos castanhos; na metade inferior, opaca, da montra,
as palavras bebidas espirituosas haviam sido gravadas com
elegantes maiúsculas vitorianas cujos remates subiam ou
desciam em espirais de gavinhas entrelaçadas. Leo olhou-o bem
nos olhos, visto que era

41

para isso que ali estava, e Nick sorriu e corou, o que fez com que
Leo sorrisse também, por um momento.
- Vejo que estás a deixar crescer a barba - disse Nick.
- E... peles sensíveis... é um banho de sangue sempre que me
barbeio. Literalmente - disse Leo, com um rápido relance que
mostrava a Nick que ele gostava de deixar as coisas bem claras.
- Depois, quando não me barbeio, fico com pêlos encravados, e
então é que é uma porra que só visto, tenho de puxar as pontas
dos malditos pêlos com um alfinete. - Com a sua mão pequena e
fina, afagou o restolho que lhe cobria o queixo e Nick viu que ele
tinha aquelas minúsculas espinhas provocadas pelo
escanhoamento diário e que já havia entrevisto noutros homens
negros. - Normalmente, não faço a barba durante uns dias,
durante quatro dias, por exemplo, ou, digamos, cinco, e só depois
é que me barbeio como deve ser: sempre é uma maneira de uma
pessoa evitar problemas.
- Pois... - disse Nick, e sorriu, em parte porque estava a aprender
algo de interessante.
- Mesmo assim, a maior parte dos homens ainda me reconhece -
disse Leo, e piscou-lhe o olho.
- Não, não era disso que eu estava a falar - disse Nick, que era
demasiado tímido para explicar a sua própria timidez. O seu olhar
deslizava num vaivém entre a braguilha folgada de Leo e a
impecável almofada rasa do cabelo e tendia a evitar o seu
atraente rosto. Dava toda a razão a Leo quando dizia que era
atraente, mas a palavra não cobria, não, de modo nenhum, o
contínuo choque provocado por aquilo que nele havia de belo, de
estranho, e até de feio. No espírito de Nick, a expressão «a maior
parte dos homens» foi ganhando lentamente sentido. - De
qualquer modo... - disse, e bebeu um gole rápido que lhe deixou
na boca uma tranquilizante sensação de ardor. - De qualquer
modo, imagino que tenhas recebido montes de respostas. - Por
vezes, quando estava nervoso, fazia perguntas cujas respostas
preferiria não conhecer.
Leo deu um pequeno e cómico assopro de exaustão. - E... pois,
mas sucede que eu não respondo a algumas delas. Para certas
pessoas, isto não passa de uma brincadeira. Não mandam foto
ou, se mandam, têm um ar horrível. Ou então têm noventa e nove
anos. Recebi mesmo uma carta de uma mulher, lésbica, sem
dúvida, pro-pondo-me que fosse o pai do filho dela. - Leo franziu o
sobrolho,

42

indignado, mas, na sua expressão, havia também alguma malícia


e a confissão de que se sentia lisonjeado. - E algumas das coisas
que escrevem...Um nojo! Porque isto não é género como aqueles
tipos que só andam à procura de uma cambalhota, não é? Quer
dizer, isto é uma coisa um bocadinho diferente.
- Claro - disse Nick, ainda que a palavra cambalhota exprimisse,
de uma maneira perturbantemente informal, algo que o
preocupava e muito.
- É que este teu amigo já deu algumas voltas ao quarteirão da
vida e, por isso, conhece-o bem... - disse Leo e olhou pela rua
abaixo como se pudesse ver-se a si mesmo acabando com as
voltas ao dito quarteirão e regressando ao aconchego da casa.
-De qualquer modo, tu tinhas um ar simpático. E tens uma letra
bonita.
- Obrigado. Tu também.
Leo agradeceu o elogio com um aceno da cabeça. - E escreves
sem erros - disse.
Nick riu-se. - Sim, eu nisso sou bom. - Receara que a sua cartinha
parecesse pedante e virginal, mas, pelos vistos, acertara em
cheio. Não se lembrava de que a carta tivesse exigido um grande
virtuosismo ortográfico. - Tenho sempre problemas com a
palavra «moccasin» - disse.
- Ah, estás a ver... - disse Leo, com um risinho prudente, antes de
mudar de assunto. - Vives num sítio muito agradável - disse.
- Ah... sim... - disse Nick, como se já não se lembrasse muito bem
onde é que ficava esse sítio.
- Passei por lá um dia destes, de bicicleta. Por pouco não tocava
à campainha.
- Hum... devias ter tocado. Tenho tido a casa praticamente só
para mim. - Ficou doente só de pensar na oportunidade perdida.
- Ah sim? Eu vi uma rapariga a entrar...
- Ah, devia ser Catherine.
Leo acenou que sim. - Catherine. É a tua irmã, não?
- Não, eu não tenho irmãs. É irmã do meu amigo Toby. - Nick
sorriu e, com um olhar fixo, acrescentou: - E aquela não é a
minha casa.
- Oh... - disse Leo. - Oh.

43

- Santo Deus, o meio onde eu nasci é completamente diferente.


Não, eu só estou a viver lá. A casa é dos pais de Toby. Eu tenho
apenas um quartinho minúsculo no sótão. - Nick ficou
verdadeiramente surpreendido ao ouvir-se a si mesmo deitando
pela janela toda a sua fantasia de pertencer àquele mundo.
Leo parecia um pouco desapontado. - Certo... - disse, e abanou
lentamente a cabeça.
- Quer dizer, eles são bons amigos, muito bons amigos, são uma
espécie de segunda família para mim, mas provavelmente não
vou ficar lá muito tempo. É só uma ajuda para os primeiros
tempos na universidade.
- E eu a pensar que tinha engatado um rapazinho bonito e rico... -
disse Leo. E, quem sabe, talvez estivesse a falar a sério; Nick
não podia ter a certeza, no fim de contas eram perfeitos
desconhecidos, ainda que, um minuto antes, se tivesse
imaginado com Leo, os dois nus na cama, tamanho imperador,
dos Fedden. Teria sido por isso que a sua carta funcionara? Teria
sido por causa da morada, do luxuoso papel de carta?
- Sinto muito - disse ele, com um traço de humor. Bebeu um
pouco mais daquela doce e forte mistura de rum e Coca-Cola
que, muito claramente, não era o seu género de bebida. O
imaculado azul do céu crepuscular anunciava já o seu sohtário
fim de todos os dias.
Leo desatou a rir-se. - Estava só a brincar contigo...!
- Eu sei - disse Nick com algo que se assemelhava a um sorriso, e
Leo estendeu o braço e apertou-lhe o ombro, mesmo ao pé do
colarinho, até que, lentamente, afastou a mão. Nick retribuiu com
uma palmadinha rápida por altura das costelas. Sentia-se
absurdamente aliviado. Um agradável choque penetrara no seu
corpo através dos dedos de Leo e Nick viu-os aos dois beijando-
se apaixonadamente, num ímpeto de imaginação que era tão
palpável como aquele desajeitado encontro no passeio.
- Ainda assim, os teus amigos devem ser ricos - disse Leo. Nick
teve o cuidado de não negar os factos. - Oh, eles nadam
em dinheiro...
- Pois... - sussurrou Leo, com um sorriso fixo; podia estar a
saborear o facto ou a condená-lo. Nick percebeu que podiam vir
aí outras perguntas e decidiu de imediato que não lhe contaria
nada acerca de Gerald.

44

A sua coragem não dava para tanto, para aquela noite, chegaria;
para falar do deputado, é que nunca. Um deputado Tory
ensombraria o encontro como um pau-de-cabeleira indesejado e
Leo pegaria na sua bicicleta e deixá-los-ia, a ele e ao pau-de-
cabeleira, pespegados no passeio. Talvez pudesse dizer qualquer
coisa sobre a família de Rachel, caso fosse necessário dar
alguma explicação. Na realidade, porém, Leo esvaziou o seu
copo e disse: - Posso oferecer-te outra?
Nick acabou apressadamente a sua bebida e disse: - Obrigado.
Outra Coca-Cola, talvez não. Se calhar, vou pedir para
misturarem um pouco de rum.
Meia hora depois, Nick caíra numa espécie de transe
desinquieto, provocado não só pela presença do seu novo amigo,
mas também pelo sentimento, enquanto o céu escurecia e os
candeeiros da rua passavam do rosa ao ouro, de que a noite ia
ser um êxito. Sentia-se nervoso, um tanto esbaforido, mas, ao
mesmo tempo, eufórico, como se lhe tivessem tirado de cima dos
ombros uma responsabilidade solitária. Uns quantos lugares
ficaram livres na ponta de uma mesa de piquenique com bancos
fixos e eles sentaram-se, inclinados um para o outro como se
estivessem a jogar a um qualquer jogo invisível de que se tinham
em parte esquecido. Para Nick, o à-vontade e o conforto que o
rum lhe proporcionava eram elementos indissociáveis da
intimidade que, sentia, estava a tornar-se tão profunda como a
penumbra.
Deu por si a perguntar-se como é que eles pareceriam e soariam
aos olhos e ouvidos das pessoas à sua volta, do casal ao lado
deles, por exemplo. Com a chegada da noite, tudo estava a ficar
mais barulhento, com uma vaga sensação de ameaça
heterossexual. Nick imaginava que os outros encontros de Leo
teriam decorrido em bares gays, mas ele rejeitara
categoricamente uma tal hipótese - seria uma batalha, uma
provação mais. Agora, lamentava não dispor da liberdade que
teria tido num sítio desses. Queria acariciar o rosto de Leo e
beijá-lo, com um suspiro de rendição.
Não disseram nada de muito pessoal. Nick sentiu que as suas
actividades não interessariam a Leo, o qual também não pegou
nas diversas e discretas pistas que ele foi lançando acerca da
sua família e antecedentes.

45

Havia coisas que tinha preparado e aprimorado e transformado


em gracejos, mas que não seriam ouvidas - pelo menos nessa
noite não. Por uma ou duas vezes, conseguiu atrair toda a
atenção de Leo: quando, num jeito falsamente animado, negou a
ideia de que Toby, apesar de bastante atraente, suscitasse nele
algum interesse (Leo acharia que só uma criatura muito bizarra
seria capaz de amar outra durante tanto tempo e sem o menor
resultado prático); e quando fez um rápido retrato da família de
banqueiros de Rachel, que Leo interrompeu com um sorriso
amarelo, como se tudo aquilo fosse a prova clara de uma
iniquidade generalizada. Apercebeu-se de que havia nele uma
certa preocupação cáustica face ao dinheiro; e quando disse a
Leo que o pai negociava em antiguidades, as duas palavras, com
a patine do dinheiro antigo e o brilho dos negócios, pareceram
juntar-se para produzir um vago clarão de privilégio. No seu
elegante círculo de amigos de Oxford, Nick usara de todo o
engenho para transformar o pai, com as suas camisolas de lã
remendadas nos cotovelos e a sua carrinha Volvo cheia de
cadeiras Windsor e espelhos embrulhados em cobertores, numa
figura mais luminosa, um erudito que mantinha relações de
amizade com a aristocracia local. Agora, sentia uma tímida
necessidade de dar uma imagem mais humilde do seu velhote. E
fazia mal, visto que Pete, durante muito tempo namorado de Leo,
negociara em antiguidades em Portobello Road. - Peças
francesas, sobretudo - disse Leo. - Ormolu. Boulle. Era a primeira
vez que se referia de uma forma clara ao seu passado íntimo. E,
um segundo depois, mudou de assunto.
Leo era seguramente um egotista consumado - a análise
grafológica de Catherine acertara em cheio. Mas não revelava os
seus sentimentos mais íntimos. Fazia uma coisa que Nick não
conseguia imaginar-se a fazer e que consistia em emitir
declarações acerca do género de pessoa que ele próprio era. «Eu
sou aquele género de pessoa que precisa de montes de sexo»,
disse Leo a certa altura, e noutra: «Eu sou assim, digo sempre o
que penso.» Por um momento, Nick perguntou-se se,
inadvertidamente, não o teria contradito. «Eu não guardo
ressentimentos», disse Leo num tom grave: «Não, eu não sou
esse género de pessoa.» «Estou certo de que não», replicou Nick
com um rápido e desconcertante estremecimento. E, quem sabe,
talvez isso fosse uma habilidade útil, ou uma táctica, no universo
dos blind dates,

46

ainda que a discrição e o espírito naturalmente crítico de Nick o


impedissem de retorquir no mesmo estilo («Eu sou aquele género
de pessoa que gosta mais de Pope do que Words-worth», «Sou
louco por sexo, mas ainda não provei»). Era um elemento que, se
possível, contribuía ainda mais para a excitação da noite. Ele não
estava ali para partilhar intuições, rapidamente ecoadas, com
um amigo de Oxford. Adorava a vigorosa autoconfiança do
homem que tinha engatado; e, ao mesmo tempo, no seu jeito
silencioso e superior, parecia-lhe encontrar em cada pequeno
excesso, em cada pequena bravata, a denegação exterior de uma
dúvida íntima.
Com a terceira bebida, Nick sentiu-se ainda mais quente e meio
entesado e desatou a olhar descaradamente para os lábios e o
pescoço de Leo e imaginou-se a desabotoar-lhe a reluzente
camisa azul de mangas curtas que, de tão justa, toda se
arrepiava sob os seus braços. Com a mão a fazer de pala, Leo
protegeu os olhos por um segundo, um sinal secreto e irónico, e
Nick perguntou-se se aquilo significava que Leo já se tinha
apercebido da sua bebedeira. Não tinha a certeza se devia
responder de algum modo ao sinal, de maneira que pôs um
sorriso arreganhado e bebeu mais um gole rápido. Tinha a
sensação de que Leo bebia Coca-Cola desde criança e de que,
para ele, beber Coca-Cola era simplesmente um facto da vida -
um dos muitos factos da vida que passam praticamente
despercebidos e que são impermeáveis à escolha e à crítica. Em
contrapartida, na sua família, beber Coca-Cola era uma das mil e
uma coisas que suscitavam uma veemente reprovação - nunca
naquela casa houvera uma lata ou uma garrafa de Coca-Cola. Leo
nunca poderia ter adivinhado, mas o copo na mão de Nick era um
sinal secreto de submissão e, ao fim de algum tempo, a doçura
acidulada da bebida, como um sabor artificial num medicamento,
parecia fundir-se com as outras experiências da noite numa
complexa impressão de escuridão e liberdade. Leo bocejou e
Nick olhou de relance para aquela boca, para aqueles dentes
brancos cintilantes que nenhuma sacarina conseguiria
corromper e que marcavam - imaginava humildemente Nick - um
desdém quase racial pelos seus chumbos e dentes demasiado
inclinados. Por um momento, pousou a mão no antebraço de Leo
e, depois, desejou não o ter feito - o gesto levou Leo a olhar para
o seu relógio.

47

- Está a fazer-se tarde - disse ele. - Não posso voltar muito tarde.
Nick baixou os olhos e murmurou: - E tens de voltar? - Tentou
sorrir, mas sabia que uma súbita ansiedade se cravara no seu
rosto. Pôs-se a mexer no copo húmido, a movê-lo em círculos
sobre o tampo grosseiramente aplainado da mesa. Quando
ergueu de novo os olhos, verificou que Leo o fitava com um ar
céptico, uma sobrancelha arqueada.
- Queria dizer, voltar para a tua casa, claro - disse.
Nick sorriu e enrubesceu com a perfeição da emenda, como uma
criança que, depois de muito implicarem com ela, se vê de súbito
livre de tormentos e premiada. Mas, depois, teve de dizer:
- Não creio que possamos...
Leo olhou-o bem nos olhos. - Não tens espaço que chegue lá em
casa?
Nick estremeceu e aguardou, a verdade é que não se atrevia,
não, não podia fazer isso a Rachel e Gerald, além de inseguro era
ordinário, as consequências desfilavam já à sua frente, toda
aquela feliz rotina, assente numa consonância risonha, efusiva,
definharia para sempre. - Não creio que seja possível. Não me
importo de ir para a tua casa.
Leo encolheu os ombros. - Não é prático - disse.
- Eu posso apanhar o autocarro - disse Nick, que estudara o A-X
de Londres em absortas conjecturas sobre a rua de Leo, o bairro,
as igrejas históricas, os acessos aos transportes públicos.
- Não... - Leo desviou o olhar com um sorriso relutante e Nick viu
que ele estava embaraçado. - A minha velha está em casa. - Este
primeiro toque de timidez e vergonha, e a ironia que tentava
encobri-lo, claramente londrina, mas também antilhana, fizeram
com que Nick desejasse atirar-se a ele e enchê-lo de beijos.
- Ela é profundamente religiosa - disse Leo, com um breve risinho
desolado.
- Estou a ver... - disse Nick. De maneira que para ali estavam
eles, dois homens numa noite de Verão sem sítio nenhum a que
pudessem chamar seu. Havia nisso uma espécie de romance. -
Tive uma ideia - disse ele, hesitante. - Se não te importares...
hum... de passar um bocado ao ar livre...
- Não estou interessado - disse Leo, olhando, num jeito indolente,
por cima do ombro.
48

- Nem penses que vou baixar as calças na rua.


- Não, não...
- Não sou esse género de rameira.
Nick riu-se ansiosamente. Não sabia ao certo o que queriam
dizer as pessoas quando falavam das experiências sexuais que
tinham tido «na rua» - inclusive «na Oxford Street», como ouvira
certa vez. Daí a seis meses, talvez já soubesse, talvez já fosse
capaz de separar os factos das figuras de retórica. Observou Leo
girando e erguendo um joelho para se libertar do banco - parecia
interessado em levar aquilo por diante e, obviamente, agia como
se Nick soubesse o que era preciso fazer. Nick seguiu-o com um
sorriso pregado no rosto e, intimamente, com uma muito fértil
visão das circunstâncias. Deixava-se levar, impotente, pela força
dos acontecimentos, pelo magnífico e inevitável desfecho da
meia hora que os esperava: e o seu coração corria disparado
com a ousadia e a originalidade desses momentos que se
avizinhavam, embora, enquanto Leo se agachava para
desprender a bicicleta, também os achasse corriqueiros e
inevitáveis. Tinha de dizer a Leo que era a sua primeira vez;
depois, pensou que Leo podia achar uma seca, fazer amor com
um tipo sem nenhuma experiência, ou, quem sabe, até mudar de
ideias. Contemplou a sua nuca primorosamente aparada, a nuca
de um desconhecido, na qual, a qualquer momento, lhe seria
permitido tocar. A etiqueta da apertada camisa azul de Leo
estava virada para cima no colarinho e revelava a assinatura
padronizada de Miss Selfridge. Era um pequeno segredo
confessado, uma vaidade exposta - Nick sentia-se tonto, tudo
aquilo era tão divertido e comovente e sexy. Viu os longos
músculos das costas de Leo deslizando sob o lustroso tecido que
só muito a custo os continha e depois, enquanto Leo se
agachava sobre os calcanhares e os jeans folgados se afastavam
ainda mais da cintura, viu a luz do candeeiro brilhando no vale
castanho das suas nádegas e no elástico retesado dos slips.
Abriu o portão e deixou que Leo fosse à sua frente. - Não é
permitido andar de bicicleta nos jardins, mas atrever-me-ia a
dizer que podes levá-la desde que vás a pé.
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Leo ainda não conhecia o seu tom ironicamente pomposo. - Pois


eu atrever-me-ia a dizer que levar no cu também não é permitido -
retorquiu. O portão fechou-se atrás deles com um clique bem
oleado e viram-se juntos na escuridão quase total dos arbustos.
Nick queria abraçar e beijar Leo imediatamente; mas não estava
lá muito certo. «Levar no cu» era uma expressão sem nada de
ambíguo, e sem dúvida muito encorajadora, mas não
propriamente romântica... Avançaram com toda a cautela,
encostando-se um ao outro para darem alguns passos enquanto
viravam na direcção do caminho. O tempo refrescara apenas um
pouco, mas Nick tremia desalmadamente num constante
espasmo de excitação. Sentia uma rigidez estranha nos dedos,
como se tivesse posto umas luvas muito apertadas. Mesmo
naquele negrume, queria ocultar o seu bizarro sorriso de
apreensão. Esperava, ansiava, que fosse ele a dar e Leo a levar,
mas não sabia como é que essas coisas se arranjavam, se
resolviam, talvez no momento ficasse tudo claro. Se calhar
tinham de levar os dois, cada um à vez. Conduziu Leo até um
amplo relvado interior, a bicicleta saltitando a seu lado,
controlada apenas por uma mão no selim - parecia que vibrava, a
bicicleta, que explorava o terreno à frente deles. À direita,
erguia-se um semicírculo formado por velhos plátanos e uma faia
de folhas acobreadas cujos ramos mergulhavam até ao chão e
faziam uma ampla tenda em forma de sino que, mesmo ao meio-
dia, era fresca e sombria. Para a esquerda, ficava o caminho de
pedrinhas e, para lá dele, as imponentes silhuetas dos edifícios e
o longo e descontínuo ritmo das janelas iluminadas. Enquanto
contornavam o relvado, Nick contou confusamente, procurando a
casa dos Fedden. Encontrou a varanda do primeiro andar, a
orgulhosa cintilação da sala para lá das janelas abertas da
varanda.
- Ouve lá, ainda é longe? - disse Leo.
- Ah, não, é já ali... - Nick riu-se porque não sabia se a rabugice
de Leo era a sério ou a brincar. Foi à frente por um bocado, cheio
de uma responsabilidade ansiosa. A medida que os seus olhos se
iam habituando à semi-escuridão, parecia-lhe que não havia
privacidade bastante em nenhum sítio, havia mais claridade por
causa das luzes da rua, as vozes no passeio soavam
irritantemente próximas. E é claro que, numa noite de Verão,
mesmo àquela hora, ainda havia gente nos jardins: pessoas que
tinham a chave, claro,

50

que tinham ido fazer piqueniques e que, entregues a um sem-


número de recordações, se deixavam ficar até tarde, já para não
falar dos donos ou donas de cães brancos que resolviam levá-los
a passear. Curvou-se sob a faia acobreada, mas os ramos eram
duros e emara-nhavam-se uns nos outros e as glandes
crepitavam sob os seus pés. Voltou para fora da tenda de ramos
e chocou contra Leo e, por um instante, agarrou-se à cintura dele
para se equilibrar. «Desculpa...» Sentir o seu corpo rijo e quente
sob a seda da camisa era quase inquietantemente belo, uma
promessa demasiado generosa para que se pudesse acreditar
nela. Pediu a todos os deuses para que Leo não achasse que ele
era um tontinho. Os outros homens na vida de Leo, parceiros
anónimos, tipos que respondiam aos anúncios, antigos
namorados, o velho Pete, aglomeravam-se impacientemente
atrás dele, como se alguém tivesse acendido um fósforo, Nick via
os olhos e os bigodes predatórios desses homens, a sua sólida
confiança sexual. Conduziu rapidamente Leo na direcção do
pequeno recinto onde ficava a cabana dos jardineiros.
- OK, este sítio aqui serve - disse Leo, encostando a bicicleta à
cerca de ripas. Por um momento, pareceu que ia prendê-la de
novo, mas depois deteve-se e, com um risinho pesaroso, deixou-a
onde estava. Nick empurrou a porta da cabana, para ver se abria,
apesar de estar fechada a cadeado. Ao lado da casinha, havia
uma área mais escura, com um banco partido, onde os
jardineiros costumavam deixar um carrinho de mão alto, com o
fundo chato; vários loureiros e um teixo erguiam-se em torno
dessa área; o cheiro acre e bafiento do teixo misturava-se com a
doçura contida de uma enorme pilha de adubo, toda a relva
cortada numa estação e amontoada num recinto fechado com
tela de arame. Leo voltou para junto de Nick e hesitou por um
segundo, evitando olhar para ele, passeando os dedos pela relva
quente. - Sabes - disse -, estes montes de adubo ficam quentes
que se farta por dentro.
- Sim... - Aí estava uma coisa que Nick sempre soubera.
- Tão quentes, tão quentes, que é melhor uma pessoa não pôr lá
os dedos, à volta de cem graus ou lá o que é.
- A sério...? - Nick estendeu os braços como uma criança
cansada.
- Seja como for... - disse Leo, deixando que a mão de Nick
deslizasse à volta da sua cintura, pondo o seu braço, o seu
cotovelo.

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à volta do pescoço de Nick, para o puxar mais para si. - Seja


como for... - Enquanto sussurrava as palavras, o seu rosto foi-se
encostando de lado ao rosto de Nick e a inimaginável macieza
dos seus lábios roçou as faces e o pescoço de Nick enquanto
este suspirava violentamente e percorria com uma mão as
costas de Leo, para cima e para baixo, para cima e para baixo. A
sua boca procurou a boca de Leo e as duas bocas encontraram-
se e precipitaram-se num beijo. Nick sentiu o beijo simplesmente
como a desamparada confissão de uma necessidade e, para ele,
o que havia realmente de incrível naquilo tudo era a revelação da
necessidade de Leo, bem evidente na força e na perfeição com
que o manobrava. Afastaram-se, Leo com um vago sorriso nos
lábios, Nick arquejante e atormentado apenas pela esperança de
que voltassem a unir-se e a beijar-se.
Beijaram-se por mais um minuto, dois minutos. Nick não estava a
contar o tempo, meio hipnotizado pelo luxuriante ritmo, pela
seda generosa dos lábios de Leo e pela espessa insistência da
sua língua. Se estava tão ofegante era por causa daquela
torrente de reciprocidade, pelo facto de aquele homem estar a
acariciá-lo, a beijá-lo, a amá-lo. Nada no bar, naquela conversa
sem jeito, chegara sequer a sugerir que tal pudesse acontecer.
Nick nunca vira aquilo descrito num livro. Sentia-se
dolorosamente pronto e completa-mente impreparado. Sentiu a
persuasiva carícia de Leo na sua nuca, os dedos deambulando
pelos caracóis, e, depois, ergueu a sua outra mão para afagar a
cabeça de Leo, tão esplendidamente estranha nos seus duros e
ásperos ângulos e na seca e densa firmeza do cabelo. Pensou ter
captado todo o sentido do beijo, mas também as suas limitações
- era um instinto, um meio de expressão, de clamar uma paixão,
mas não de a satisfazer. De modo que a sua mão direita, que
prendia levemente a cintura de Leo, libertou-se e, ainda cheia de
dúvidas acerca da sua liberdade, desceu e deambulou pelas
nádegas cheias de Leo e apalpou-as e apertou-as através da
ganga, macia de tão usada. A erecção de Leo, um nada
enviesada, espetava-se contra as virilhas de Nick e parecia dizer-
lhe, de uma forma cada vez mais clara, para ele fazer o que
queria, para meter a mão dentro das calças e dentro dos
pequenos slips. O dedo do meio avançou pelo fundo vale, tão
macio como o de um rapazinho, a ponta do dedo forçou e abriu
mesmo um pequeno caminho entre as pregas secas

52

e Leo soltou um ronco feliz. - És mesmo um desavergonhado -


disse.
Afastou-se de Nick, que não queria largá-lo mas logo o deixou ir
com um risinho amuado. - Eu volto já - disse Leo e, num passo
vagaroso, deu a volta à cabana. Nick ficou quieto por um bocado,
contendo-se e suspirando, de novo só, de novo atento ao
infindável ruído surdo de Londres e a uma brisa nocturna que, de
tão débil, mal fazia bulir as folhas escuras do loureiro. O que é
que Leo estava a fazer? A tirar qualquer coisa da pequena bolsa
lateral da sua bicicleta. Leo era um espanto, ah, os hábitos que
ele tinha, Leo era fabuloso, mas, por um momento, Nick todo se
arrepiou só de pensar que estava ali, naquela escuridão, com um
desconhecido, o risco, o perigo daquilo tudo, ah, mas que pateta,
que patetinha que ele era, tudo podia acontecer numa situação
daquelas. Leo voltou quase como um cego, a tactear o caminho,
uma sombra no meio de sombras. - Acho que vamos precisar
disto - disse ele e, nesse mesmo instante, a torrente de perigo
desaguou harmoniosamente num espírito de aventura.
No dia seguinte, Nick passou muito tempo completamente
absorto, a relembrar tudo aquilo que tinha feito: quando pegara
no tubo de gel, três quartos vazio, mas com as dobras feitas com
todo o cuidado, e se pusera a examiná-lo na escuridão com alívio
e embaraço; quando fizera girar Leo nos seus braços e lhe
desabotoara os jeans como se fossem os seus próprios jeans,
baixando-os depois e permitindo que a sua categórica e abrupta
erecção se soltasse como que movida por uma mola, e o
empurrara para se apoiar no banco enquanto se ajoelhava atrás
dele e, com a língua e os lábios, lhe prestava aquela homenagem
que, durante anos, sonhara prestar a todo um catálogo nocturno
de outros homens. Adorava a escandalosa ideia do que estava a
fazer, talvez mais ainda do que as sensações reais e aquele
cheiro indefinível e tão íntimo. Baixou as suas próprias calças
até aos joelhos e sorriu ao ver a sua picha saltando liberta no ar
fresco da noite e beijou o seu sorriso no esfíncter de Leo. Depois,
quando fodeu Leo, que foi o que ele fez a seguir, uma sensação
tão interessante quanto deliciosa, não conseguiu impedir um riso
sumido. - Ainda bem que achas isto cómico - murmurou Leo. -
Não, não é isso - disse Nick; mas havia qualquer coisa de
hilariante nos choques de prazer que lhe subiam pelas costas

53

e lhe beliscavam o pescoço e lhe desciam pelos braços até aos


dedos, era como se o tivessem ligado à corrente pela primeira
vez, era isso que sentia enquanto se agarrava docemente às
ancas de Leo e, um momento depois, o ajudava a desabotoar a
camisa e a despi-la e prendia o seu corpo nu contra o dele. Era
tudo tão fácil... O que ele se consumira na noite anterior, a
pensar que talvez houvesse qualquer coisa de horrível naquilo
tudo...
- Cuidado com a camisa - disse Leo. - É da minha irmã. Não seria
capaz de dizer porquê, mas isso fez com que Nick o
amasse muito mais. - O teu cu é tão macio - sussurrou-lhe,
enquanto as suas mãos corriam, em sôfregos afagos, por entre
os pêlos duros e curtos do peito e do ventre de Leo.
- É... rapo os pêlos... - disse Leo, entre gemidos roucos, guturais,
enquanto as investidas de Nick se tornavam mais rápidas e
arrojadas - tenho montes de pêlos no cu... quase uma camisola...
é uma porra... para andar de bicicleta... - Nick beijou-o na nuca.
Pobre Leo! Com a camisola de pêlos no cu e os pêlos da barba
encravados, Leo era um mártir da sua pelagem. - Sim, assim é
bom - disse ele, num doce tom de revelação. Agora, apoiava-se
num só braço e masturbava-se numa urgência furiosa. Nick
sentia, de uma forma cada vez mais violenta, que todo ele era o
seu sexo, mas, a certa altura, apenas um instante antes de se
vir, teve uma breve visão de si mesmo, como se as árvores e os
arbustos do jardim tivessem desaparecido e todas as luzes de
Londres tivessem caído sobre ele: o pequeno Nick Guest, de
Barwick, filho de Don e Dot Guest, a foder um desconhecido num
jardim de Notting Hill à noite. Leo tinha razão, aquilo era mesmo
uma desavergonhice pegada, e era, de longe, oh, muito, muito de
longe, a melhor coisa que jamais tinha feito.
Mais tarde, Nick sentou-se por um minuto num banco junto ao
caminho de pedrinhas, enquanto Leo mijava para o relvado. Não
era certo que aquela figura alta e curvada, em mangas de
camisa brancas, tivesse visto o que se passara. Leo sentou-se ao
lado de Nick; havia no ar a sensação de que uma última parte,
mais formal, do seu encontro, estava prestes a desenrolar-se.
Nick sentiu-se bruscamente triste e pensou que talvez tivesse
sido pateta quando revelara a Leo toda a sua felicidade - não
conseguira sufocar a sensação de plenitude e o seu corpo e a
sua mente, famintos de amor,

54

só queriam uma coisa: mais e mais Leo. O ar parecia agitar-se


apenas graças à presença e aos nomes de Nick e de Leo, os
quais pairavam, num triste e penetrante travo de conhecimento,
algures no meio das azáleas e dos loureiros adormecidos. O
homem alto passou por eles, hesitou, virou-se.
- Com certeza que sabem que aqui só pode entrar quem tem
chave.
- Como disse?
A mescla de luzes que vinha das traseiras dos edifícios revelava
um rosto de traços suaves e queixo pouco saliente, avermelhado
pelas férias de Verão e empoleirado nas alturas sob um cabelo
ralo e grisalho. - O problema é que isto aqui é um jardim privado.
- Ah, sim, nós temos chave - e a resposta incluía Leo, que soltou
um breve ronco, não de prazer desta vez, mas de indignada
confirmação. Pôs as mãos nos joelhos bem afastados, numa pose
de proprietário que, apesar de insolente, não deixava de ser
sensual.
- Ah, bom... - O homem pôs um meio sorriso desconfiado. -
Pareceu-me que nunca o tinha visto por aqui. - Evitava olhar para
Leo, que era obviamente a causa daquele azedo diálogo, e essa
foi para Nick mais uma das banais revelações da noite, ou, mais
exactamente, de uma noite com um homem negro.
- Na realidade, venho até muitas vezes aos jardins - disse Nick.
Apontou para trás dele, na direcção do portão do jardim dos
Fedden. - Vivo no número 48.
- Muito bem... muito bem... - O homem deu uns passos, depois
olhou para trás, ainda desconfiado, mas, ao mesmo tempo,
desejoso de continuar a conversa. - Mas, nesse caso, deve estar
a referir-se à casa dos Fedden...
- Sim, isso mesmo - retorquiu calmamente Nick.
A novidade afectou visivelmente o homem - àquela suave meia-
luz que, por um momento, fez lembrar a Nick as peças de teatro
montadas nos jardins de uma qualquer universidade, a criatura
parecia desfazer-se numa excitada intimidade. - Santo Deus...
você vive ali... Bom, mas não é mesmo um espanto tudo o que
aconteceu? Não podíamos ter ficado mais contentes... Já agora,
eu sou Geoffrey Titchfield, número 52, embora só tenhamos o
rés-do-chão, ao contrário... ao contrário de algumas pessoas!

55

Nick acenou que sim com a cabeça e pôs um sorriso evasivo. -


Eu sou Nick Guest. - Alguma solidariedade para com Leo impediu-
o de se levantar e de cumprimentar o homem. Claro que fora a
voz de Geoffrey que ele ouvira da varanda, na noite em que
adiara o encontro com Leo; e fora o riso constante e indefectível
dos convidados de Geoffrey que o fizera sentir-se ainda mais só;
e, agora, ali estava ele em pessoa, e Nick sentiu que estava a
ganhar-lhe, pois tinha fodido Leo naquele jardim privado, e essa
era uma vitória secreta.
- Aah... aah... - prosseguiu Geoffrey. - Foi uma notícia óptima,
óptima... Nós estávamos na associação local e ficámos
excitadíssimos... O bom velho Gerald...
- Na realidade, eu sou só um amigo de Toby - disse Nick.
- Ainda uma noite destas, estivemos a falar dele e todos
concordámos: este Natal, vamos ter Gerald Fedden no governo. A
propósito, ele conhece-me, não se esqueça de lhe dar os nossos
melhores cumprimentos, da parte de Geoffrey e Trudi. - Nick
pareceu encolher os ombros para manifestar a sua aquiescência.
- Ele é mesmo o género de Tory de que nós precisamos. Um
esplêndido vizinho, sem a menor sombra de dúvida, e, imagino
eu, um esplêndido parlamentar. - Esta última palavra foi
declamada num tom orgulhoso e extremoso; a voz ondeou,
subindo para logo descer, e, em todas as quatro sílabas da
palavra, notou-se um rubato que chegava a ser extravagante.
- Gerald é sem dúvida uma óptima pessoa - disse Nick, e
acrescentou rapidamente, na esperança de pôr termo à
conversa: - Na realidade, eu sou mais amigo de Toby e de
Catherine.
Depois de Geoffrey se ter afastado, Leo levantou-se e pegou na
bicicleta. Nick receava falar, pois qualquer comentário seu
poderia piorar ainda mais as coisas, de maneira que caminharam
em silêncio até ao portão. Evitava olhar para a casa dos Fedden,
e até para a janela do seu quarto nas alturas do telhado, mas
tinha a sensação de que a casa o observava, e o veredicto de
«inseguro» e «ordinário» parecia rastejar furtivamente como
uma névoa e ensombrar o triunfo da noite.
- Bom - murmurou Leo -, tivemos duas variedades de lambe-cus
em dez minutos - e Nick desatou a rir-se e deu-lhe um soco no
braço e sentiu-se logo melhor. - Ouve, um dia destes a gente
volta a ver-se,

56

meu amigo - disse Leo, enquanto Nick abria o portão. Um tanto


furtivamente, saíram para a rua. Nick ficou na dúvida se a frase
não significaria precisamente o contrário. De maneira que
resolveu pôr as cartas na mesa.
- Eu quero ver-te - disse, e pareceu-lhe que essas três simples
palavras tinham aberto e realçado a noite, pois só então sentiu
os olhos a picarem e se deu conta daquelas estrelinhas, as luzes
dos carros que passavam por eles numa corrida e logo desciam a
longa encosta para norte, na direcção de outros bairros, e de
subúrbios cuja presença só se fazia notar pelo clarão esbatido
que erguiam para os céus.
Leo baixou-se para experimentar os piscas da frente e de trás.
Depois, encostou a bicicleta ao gradeamento. - Anda cá - disse
ele, naquela voz cockney que só usava de quando em quando,
como um escudo que protegia pequenas confissões e rendições.
- Dá cá um abraço.
Nick avançou para ele e abraçou-o com toda a força, mas sem
um resquício sequer da certeza que sentira minutos antes, junto
ao monte de adubo. Comprimiu a testa contra a testa de Leo, que
tinha mesmo a altura certa para ele, tudo em Leo era certo para
ele, e deu-lhe um beijo rápido e firme com os lábios franzidos, e
ouviu -se um grito sarcástico e uma buzinadela de um carro que
passava.
- Anormais - murmurou Leo, ainda que Nick tivesse sentido aquilo
como uma saudação de parabéns.
Leo sentou-se na bicicleta, um pé no chão, a perna tão esticada
como a de um bailarino, o outro pé no estribo. Uma espécie de
inveja da bicicleta e do seu intocável lugar no coração de Leo,
que Nick sentira a noite toda, fundiu-se com um ressentimento
novo em relação ao veículo e à facilidade com que levaria Leo
para bem longe. - Ouve, eu ainda tenho mais uns quantos para
ver, certo?
- Ao que Nick retorquiu com um aceno mudo. - Mas não te vou
largar. - Leo voltou a ajeitar-se no selim, fazendo balouçar a
bicicleta, e, depois, desatou a rodopiar em círculos denteados,
de tal forma que Nick, quando se virava para ele, virava-se
sempre para o lado errado. - Além disso - disse Leo -, és uma foda
de primeira! - Piscou-lhe o olho e sorriu e disparou rua fora e
desceu a encosta sem olhar para trás.
57

3.

Nick fazia anos oito dias depois de Toby e, por um momento,


pairara no ar a ideia de transformar a festa do vigésimo primeiro
aniversário de Toby numa celebração conjunta. «Faz todo o
sentido», dissera Gerald; e Rachel chamara-lhe «uma ideia
fascinante». Como a festa decorreria em Hawkeswood, a mansão
de campo do irmão de Rachel, Lord Kessler, um tal projecto -
com toda a sua pompa social, com tudo o que lhe conferiria e
exigiria dele - quase assustava Nick. Após esse breve momento,
porém, nunca mais ninguém falou do caso. Nick sentia que não
era a ele que lhe competia falar, e, passado algum tempo, disse à
mãe que podia começar a tratar das coisas para a sua festa de
anos familiar, uma semana depois, em Barwick; e era com um
misto de resignação e confrangimento que aguardava esse dia.
A festa de Toby era no último domingo de Agosto, altura em que
o Carnaval de Notting Hill atingiria o seu clímax e em que muitos
residentes locais fechariam a sete chaves as suas casas e
partiriam, fazendo figas, para as suas segundas residências:
desde os conflitos raciais, ocorridos dois Verões antes, que o
Carnaval desencadeava uma subida em flecha de expectativas e
temores. Na noite anterior à festa, Nick passara um ror de tempo
acordado na cama, a ouvir a batida do reggae - como os passos
de uma longa caminhada - que vinha do fundo da encosta e que
se misturava, como a vibração do prazer, com o suspiro
generalizado das árvores do jardim. Era a sua segunda noite sem
Leo. Deixou-se ficar na cama,

58

de olhos bem abertos, perdido em reflexões sobre si mesmo, mas


num estado que transcendia os limites do mero pensamento,
uma espécie de mágoa fascinada, em que tudo aquilo que tinham
feito juntos surgia com uma nitidez extrema e em que a tensão
da perda era tão aguda como a excitação do sucesso.
Na manhã seguinte, às onze, reuniram-se na sala de entrada.
Vendo que Gerald pusera gravata, Nick subiu a correr as escadas
e pôs também uma. Rachel envergava um vestido de linho branco
e o seu cabelo preto, com aqueles traços grisalhos que ela fazia
questão de não disfarçar, exibia o inegável esplendor de um novo
corte e de uma nova forma. Rachel estava pronta para partir e
era com um sorriso radiante que exibia o seu desembaraço e
Nick não pôde deixar de sentir o afecto e a eficiência que
caracterizavam aquela unidade familiar. Ele e Elena empilharam
as bagagens de uma noite no Range Rover e, depois, Gerald
sentou-se ao volante e conduziu-os por ruas apinhadas, por entre
as multidões que se aglomeravam para o Carnaval. Por todo o
lado havia grupos de polícias, que Gerald saudava acenando com
a cabeça e levantando peremptoriamente a mão do volante.
Nick, sentado no banco de trás com Elena, sentia-se ao mesmo
tempo ridículo e enfatuado. Receava ver Leo na sua bicicleta e
receava ser visto por Leo. Imaginava-o deambulando pelas ruas
em festa e tinha uma ânsia imensa de se sentir como Leo no
Carnaval - como um peixe na água. Via-o todo feliz, a dançar com
desconhecidos na rua, ou à espera da sua vez nas densas e
volúveis multidões dos urinóis. O seu desejo explodiu num
pequeno gemido, que logo se transformou num pigarreio e numa
exclamação: - Oh, vejam só! Aquele carro do desfile... Não é
mesmo um espanto?
Numa rua secundária, um grupo de jovens negros com umas
enormes asas e caudas amarelas, imitando talvez as aves do
paraíso, preparavam-se para o desfile. - É maravilhoso, o que eles
fazem - disse Rachel.
- Música não muito bonita - disse Elena, com um tremor de
animação. Nick não retorquiu e, de facto, deu por si num
daqueles imprevisíveis momentos de transição interior, quando
um velho preconceito se dissolve num desejo novo. A música
chocava-o porque declarava, de uma forma clara e repetitiva,
aquilo que ele queria. Então, um monumental sistema de som
entrou em guerra,
59

uma alegre guerra, com o sistema de som mais próximo, e, nesse


instante, havia diferentes coisas que ele queria, belos e
dissonantes futuros que esperavam por ele, tudo isto em
quarenta ou cinquenta segundos, enquanto o carro se escapulia
rumo ao frenesim normal das ruas de fim-de-semana.
Fosse como fosse, já que não lhe era possível estar com Leo,
então que estivesse num sítio completamente diferente. Gerald
levava-os já pela A40, quase sempre - vá-se lá saber como - a
uma velocidade elevada; dir-se-ia que, à sua frente, seguia uma
escolta policial invisível. Pouco depois, porém, estacaram diante
de umas obras gigantescas e de um longo e impassível
engarrafamento, como acontecia por todo o lado naqueles
tempos. Ali, estavam a acabar com as últimas e saudosas
rotundas e respectivos semáforos e a abrir uma imensa e
desimpedida auto-estrada no meio de uma miserável planura
vagamente campestre. Nick contemplou polidamente o deserto
de buracos e cimento e, para lá dele, um campo onde alguns
miúdos da zona rodopiavam em ruidosos círculos nas suas
bicicletas baratas, manifestando um perigoso desprezo pela ideia
de que, em qualquer viagem, haveria necessariamente um
destino. Aqueles miúdos estavam-se marimbando para o
Carnaval, não sabiam nada sobre Hawkeswood e tinham
escolhido aquilo que mais lhes agradava: passar o dia naquele
campo. Não muito longe deles, cerca de quilómetro e meio de
compacto trânsito permanecia parado na auto-estrada do futuro.
Como sempre, Nick sentiu necessidade de compor as coisas. -
Onde será que estamos? - disse. - Suponho que no Middle-sex,
não?
- Sim, julgo que sim - disse Gerald. Odiava empecilhos e
começava a dar mostras de impaciência.
- Não muito bonito - disse Elena.
- Não... - disse Nick, num tom hesitante, não isento de humor,
como que pondo a hipótese de sustentar o seu ponto de vista só
para passar o tempo. Sabia que Elena estava ansiosa por causa
da festa e do papel que lhe fora atribuído para aquela noite. Já
tinha feito umas quantas perguntas acerca de Fales, o novo
mordomo de Lionel Kessler, com o qual, poucas horas depois, se
veria obrigada a manter um relacionamento cujas coordenadas
desconhecia.

60

- Se Lionel está à nossa espera para almoçar - disse Gerald -,


será melhor pararmos num sítio qualquer para lhe telefonarmos.
Vamos chegar atrasados.
- Oh, Lionel não vai importar-se - disse Rachel. - Não é nenhum
almoço formal, vamos só comer umas coisas simples e mais
nada.
- Hum... - disse Gerald. - Por norma, o nome «Lionel» e a
expressão «comer umas coisas simples» nunca se encontram na
mesma frase. - O tom era irónico, mas sugeria uma certa
ansiedade em relação ao cunhado, uma qualquer noção de dever.
Rachel recostou-se no seu banco com um ar satisfeito.
- Vai tudo correr bem - disse ela. E, de facto, o trânsito mexeu um
pouco e, ainda que com alguma cautela, os passageiros do
Range Rover permitiram-se uma atitude optimista, o único
género de atitude que Gerald era capaz de suportar. Nick pensou
naquele nome antiquado, Lionel. Claro que havia uma relação
entre Lionel e Leo; mas Lionel era um pequeno leão heráldico, ao
passo que Leo era um enorme animal vivo.
Cinco minutos depois, estavam de novo parados.
- Mas que porra de trânsito! - disse Gerald; ao ouvir tal
comentário, Elena pareceu ficar um pouco aturdida.
- Estou ansioso por ver a casa, bem como tudo o mais - disse
Nick, num tom decididamente animado.
- Bom... e vai ter mesmo de vê-la - disse Gerald.
- Ah, a casa... - disse Rachel, com um risinho suspiroso.
- Se calhar não gosta da casa - disse Nick. - Deve ser diferente
para si, visto que foi lá que cresceu. - Sentiu que havia no seu
tom uma excessiva adulação.
- Não sei - confessou Rachel. - Nem sei muito bem se gosto dela
ou não.
- Parece-me indiscutível, creio - disse Gerald - que, em
Hawkeswood, aquilo que conta é o conteúdo. A casa
propriamente dita é uma verdadeira monstruosidade vitoriana.
- Mmm... - No discurso de Rachel, um «mmm» murmurado ou um
«Eu sei...» ironicamente prolongado podiam veicular uma nota de
surpreendente cepticismo. Nick adorava a economia tipicamente
classe alta do seu discurso, o seu jeito de se pronunciar sobre as
coisas recorrendo tão-somente a matizes muito diluídos

61

de concordância e discordância; Nick daria tudo para conseguir


dominar essa técnica. Era tão diferente da enérgica exuberância
do discurso de Gerald que, por vezes, Nick duvidava que Gerald
entendesse o que a mulher dizia.
- Creio que vou gostar da casa, tal como do conteúdo - disse.
Rachel reagiu com uma expressão grata, mas manteve-se muito
vaga quanto à casa e ao resto e Nick sentiu isso como uma
ligeira desconsideração. Talvez fosse impossível descrever um
local que se conhecera toda a vida. Rachel não subestimava o
interesse de Nick, mas, ao mesmo tempo, deixava claro que não
se podia esperar dela que sentisse grande interesse. Tivera a
sorte não de descrever, mas de desfrutar. - Sabe com certeza
que temos arte moderna, bem como os Rembrandts - disse ela; o
seu breve sorriso devia-se por certo ao facto de ter conseguido
lembrar-se de um pormenor digno de nota.
Hawkeswood fora construída na década de 1880 para o primeiro
Barão Kessler. Ficava no cimo de uma colina artificialmente
nivelada, rodeada pelos bosques de faias de Buckinghamshire, os
quais, entretanto, se haviam transformado numa mancha que, de
tão imponente, só não ocultava as mais altas flechas da mansão.
A chegada, depois de se terem arrastado pela longa corrente de
aldeias próximas e entrado na propriedade e passado pela
guarita do porteiro e um mata-burro e subido quase um
quilómetro de caminho, no meio de cervos que calmamente
pastavam, constituiu para Nick um complexo clímax; mal
vislumbrou as reluzentes janelas da casa, deu por si com um
sorriso desmesurado, enquanto os seus olhos corriam
criticamente, entusiasticamente - não saberia dizer como - pelos
íngremes telhados de lousa e pelas paredes de pedra da cor da
mostarda francesa. Tinha lido a descrição que vinha no
Pevsner(1), formal, mas não desprovida de humor; segundo tal
descrição, Hawkeswood seria uma mansão do século XVII
reimaginada em termos de uma luxuosa modernidade, com
janelas de vidro laminado, aquecimento central sob o soalho,
numerosas casas de banho

*1. The Pevsner Architectural Guides, da autoria do historiador


de arquitectura Sir Nikolaus Pevsner (1902-83), cuja publicação
teve início em 1951. O objectivo destes guias é proporcionar uma
descrição dos edifícios mais importantes da Grã-Bretanha. (N. do
T.)

62

e águas quentes correntes; o problema é que a leitura não o


preparara para aquela presença simplesmente assombrosa.
Gerald arrumou o carro em frente da porte cocbère(1) e todos
saíram do carro e entraram na mansão, Nick em último lugar e
sempre a olhar para tudo, enquanto Fales, um mordomo de
verdade, com calças listradas e tudo, aparecia para os receber.
Ali estavam eles, já, no salão central, a grande atracção da casa,
com dois pisos de altura e uma galeria com arcadas no piso
superior e uma gigantesca cornija de lareira construída com
fragmentos de um túmulo barroco. Nick sentia que tinha entrado
na estranha e sedutora fusão de um museu de arte com um hotel
de luxo.
As «coisas simples» de que Rachel falara eram afinal um
requintado almoço servido numa mesa redonda, numa sala com
as paredes revestidas de boiseries(2) rococó, que haviam sido
removidas por atacado de uma majestosa residência parisiense e
pintadas num tom azul pálido. No tecto, numa elipse floral, duas
mulheres nuas seguravam uma grinalda de rosas. Nick
identificou imediatamente a paisagem sobre a lareira: era um
Cézanne. O quadro permitiu-lhe compreender, não sem uma
gargalhada interior, até que ponto se encontrava socialmente
deslocado naquele cenário. Estava perante um daqueles
momentos que só os ricos poderiam criar, e que, aos olhos de
Nick, surgia completamente embrulhado na sua própria
descrição, de tal forma que, um segundo depois, estava já a
redes-crevê-lo a uma outra pessoa tão impressionável como ele.
Não sabia se deveria referir-se ao quadro, mas Lord Kessler
disse, ao sentar-se: - Como vêem, mudei aquele Cézanne.
Rachel examinou a pintura por um breve momento e disse: - Ah
sim. - Todo o seu comportamento era confortável, quase
indolente; com um encantador meneio de ombros, um gesto de
boas-vindas, de apagamento de toda e qualquer formalidade,
indicou a Nick o seu lugar à mesa. Gerald apreciou a pintura de
uma forma mais crítica, no jeito penetrante que ele tinha de
examinar todo e qualquer documento que, mais tarde, pudesse
revelar-se útil.
Nick pensou que podia dizer: - É muito belo. - E Lord Kessler
disse: - Sim, é de facto uma peça interessante.

*1. Em francês, no original. (N. do T.)


2. Em francês, no original. (N. do T.)

63

Kessler tinha uns sessenta anos, era mais baixo e robusto que
Rachel, calvo, com um rosto vivo e não propriamente simétrico.
Vestia um fato cinzento-escuro que não fazia a menor concessão
à moda, nem tão-pouco à estação; com aquele fato vestido, tinha
todo o ar de sofrer com o calor, mas, ao mesmo tempo, parecia
dizer que não havia outra maneira de uma pessoa se vestir.
Comeu o seu salmão e bebeu o seu vinho branco do Reno,
particularmente doce, com um indefinível ar de prazerosa rotina,
que apontava para toda uma vida de almoços em salas de
conselhos de administração e casas de campo e festivos
restaurantes por toda a Europa. - Então quando é que Tobias e
Catherine vêm? - perguntou ele a certa altura.
- Preferiria não indicar uma hora demasiado precisa - disse
Gerald. - Toby vem com uma namorada, Sophie Tipper, que por
acaso é filha de Maurice Tipper e uma jovem actriz muito
prometedora. - Olhou para Rachel, que logo retorquiu:
- Não, ela é de facto uma grande, uma imensa promessa... - um
comentário que hesitava em incluir algo que ela parecia ver num
futuro não muito distante, mas que, como tantas vezes sucedia,
tinha a amabilidade de calar. Por vezes, Nick sentia que o facto
de serem «filhos de» era o único trunfo de que alguns dos seus
amigos dispunham para atraírem as atenções da distraída
geração dos seus pais. Observou a reacção de Lord Kessler ao
ouvir o nome de Maurice Tipper, uma fungadela e um murmúrio,
não mais que a expressão de uma ironia, uma entre as inúmeras
ironias com que as diferentes categorias de pessoas ricas se
brindavam. Aquele caso com Sophie Tipper vinha-se arrastando
sem o menor sentido desde o segundo ano em Oxford, como se
Toby, ao sair com a filha de um magnata, estivesse, muito
docilmente, a satisfazer as expectativas alheias.
- Quanto a Catherine - prosseguiu Gerald -, vem com um suposto
namorado de cujo nome não me lembro e que, disso estou certo,
nunca vi nem mais gordo nem mais magro. - Sorriu
generosamente do seu próprio comentário. - Mas estou à espera
de que cheguem bastante tarde e a toda a velocidade. Na
realidade, Nick deve conhecer esse capítulo melhor do que nós.
Nick não sabia quase nada. - Está a falar de Russell? - disse. -
Sim, é muito simpático. E um fotógrafo muito promissor - numa
imitação bem-sucedida dos modos e pontos de vista do meio em
que se encontrava.

64

Catherine anunciara que namorava com Russell apenas um dia


antes, numa reacção desesperada, foi o que Nick sentiu, ao seu
êxito com Leo, um êxito que, evidentemente, tivera o prazer de
descrever a Catherine, sem nunca, em momento algum, faltar à
verdade. De facto, nem sequer vira Russell, mas achou melhor
reforçar o que dissera: - Sim, é de facto muitíssimo simpático.
- Bom - disse Lord Kessler -, nós temos um sem-número de
quartos prontos e Fales fez reservas no Fox and Hounds e no
Horse and Groom, que, ao que me dizem, são estabelecimentos
perfeitamente decentes. Quanto a arranjos mais específicos,
esse é um campo que faço tenção de ignorar. - Kessler nunca se
tinha casado, mas não havia nele nada de perceptivelmente
homossexual. Em relação a todos os jovens que circulavam na
sua órbita social, mantinha uma estratégia de sábia evitação. - E
não vamos ter a primeira-ministra - acrescentou.
- Não vamos ter a primeira-ministra - disse Gerald, como se, por
um momento, tivesse sido realmente provável.
- Um alívio, devo dizer.
- Um grande alívio - disse Rachel.
Gerald murmurou um divertido protesto e replicou que
continuava a contar com a presença de vários ministros,
incluindo o Ministro da Administração Interna.
- Com esses, podemos nós - disse Lord Kessler, e deu à sineta
para chamar o criado.
Depois do almoço, deram uma volta por várias salas amplas que
possuíam a quietude residual, o requintado cheiro seco, intenso,
sem dúvida, mas tão agradável, de uma casa de campo num dia
quente de Verão. Tais sensações não eram para Nick uma
novidade, bem pelo contrário; remontavam à sua infância, ou,
mais exactamente, às visitas que costumava fazer com o pai a
várias mansões dos arrabaldes de Barwick; visitas de trabalho,
diga-se, pois o pai só era chamado quando algum relógio se
avariava. No entanto, nessas casas, muito mais velhas e
remotas, tais odores surgiam, por norma, misturados com os
cheiros dos cães e da humidade. Aqui, havia uma profusão alto-
vitoriana de tudo, quadros, tapeçarias, cerâmica,

65

mobiliário; comparada com Hawkeswood, a casa de Kensington


Park Gardens parecia um espaço despojado. O mobiliário era, em
grande parte, francês, e de uma qualidade espantosa. Nick
ficava para trás a apreciá-lo, o coração batendo mais forte de
conhecimento e dúvidas. - Aquela escrivaninha Luís XV... - disse
ele a certa altura. - Trata-se seguramente de um objecto
extraordinário, não é verdade, sir? - O pai ensinara-o a tratar
todos os lordes por sir, cruzar-se com um lorde era sempre um
excitante acaso nas suas visitas para afinação de relógios, e,
agora, era com prazer que adoptava aquele tom de insinuante
submissão.
Lord Kessler olhou à sua volta e virou-se de novo para Nick.
- Ah, sim - disse, com um sorriso. - Tem toda a razão. Aliás, esta
escrivaninha foi feita para Madame de Pompadour.
- Um verdadeiro espanto...! - Pararam a admirar aquele móvel de
formas bulbosas e singularmente pequeno. - Pau-rosa, não é?,
com frondes de ormolu. - Lord Kessler abriu uma gaveta e uma
série de caixinhas de porcelana chocalharam lá dentro; e logo a
fechou. - Estou a ver que percebe de mobiliário - disse.
- Um pouco - disse Nick. - O meu pai negoceia em antiguidades.
- Ah, sim, claro, evidentemente - disse Gerald, como se Nick
tivesse acabado de confessar que o pai trabalhava na recolha do
lixo. - O pai de Nick é um dos meus eleitores, portanto eu tenho
obrigação de saber.
- Bom, então tem de dar uma vista de olhos completa à casa
- disse Lord Kessler. - Tem de apreciar tudo, mesmo as mais
pequenas coisas.
- Sem dúvida - disse Gerald. - É que, não sei se sabe, Nick, a casa
nunca está aberta ao público.
Lord Kessler em pessoa levou-o até à biblioteca, onde, pelos
vistos, os livros eram menos importantes do que as respectivas
encadernações, as quais eram tão importantes quanto uma
encadernação poderia ser. As pesadas douraduras das lombadas,
vistas através das finas grades douradas das estantes talhadas e
douradas, impunham um tom de ameaçadora opulência. Aqueles
objectos eram, sem dúvida, livros; no entanto, pareciam sê-lo
num sentido completamente diferente daquele que definia os
livros que Nick usava e manuseava todos os dias. Lord Kessler
abriu um armário e tirou um volume imponente:

66

Fables Choisies de La Fontaine, encadernado em couro castanho


esverdeado, gravado e dourado com uma profusão de gavinhas e
frondes rococó. Era uma imitação da natureza que triunfara
enquanto pura invenção e puro dispêndio. Ficaram lado a lado a
admirar o livro e Nick reparou no agradável cheiro do fato lavado
de fresco de Lord Kessler, bem como da sua discreta colónia.
Não lhe foi permitido pegar no livro; pôde apenas espreitar umas
quantas gravuras, tão fantásticas como a capa, povoadas de
elegantes aves e outros animais. Lord Kessler mostrou -lhe o
livro num jeito rápido e seco que não significava em si mesmo
uma exclusão, mas que levava em conta a ignorância - e talvez
um interesse meramente polido - de Nick. De facto, Nick adorava
o livro, mas não queria maçar o anfitrião pedindo-lhe que o
deixasse ver a obra com mais vagar. Ficou na dúvida se as
Fables seriam a jóia da colecção ou se haviam sido escolhidas
ao acaso.
- É tudo tão... - disse Kessler.
Ao fim de um instante, Nick disse: - Eu sei...
Depois, de um modo algo reservado, exploraram a biblioteca por
um minuto ou dois. Nick encontrou uma colecção de livros de
Trollope, a qual, no meio das outras, tinha um ar relativamente
modesto e acessível, e tirou um exemplar de The Way We Live
Now, com um ex-líbris heráldico e as páginas por abrir. - Que
encontrou aí? - perguntou Lord Kessler, num tom cordialmente
possessivo. - Ah, estou a ver, você é um admirador de Trollope.
- Para dizer a verdade, não estou lá muito certo disso - disse
Nick. - Acho sempre que ele escrevia demasiado depressa. Há
um comentário de Henry James acerca de Trollope... Como é que
era?... Ah, sim, James fala de Trollope e do testemunho que ele
nos dá, «grandes e pesadas pazadas de testemunhos», diz
James, acerca de «questões inglesas perfeitamente comuns».
Por um instante, Lord Kessler manifestou o seu apreço, não
isento de ironia, por aquela breve, mas vistosa, exibição; porém,
logo retomou a conversa: - Oh, Trollope é bom... É muito bom
quando aborda a questão do dinheiro.
- Oh... sim... - disse Nick, sentindo-se duplamente desqualificado
pela sua total ignorância relativamente a questões de dinheiro e
pelo preconceito estético que o impedira de ler uma única linha
de Trollope.

67

- Para ser franco, há imensas coisas dele que ainda não li.
- Mas deve conhecer esse - disse Lord Kessler.
- Não, este é muito bom - disse Nick, fitando a lombada com um
ar de discreta condescendência. Por vezes, devido a um qualquer
fértil processo de auto-sugestão, a sua memória dos livros que
alegava ter lido tornava-se quase tão nítida como a memória dos
livros que lera e de que, em parte, já se tinha esquecido. Voltou a
pôr o livro no lugar e fechou o armário dourado. Tinha a
sensação, ou talvez fosse apenas uma consequência do seu
próprio constrangimento, de que, sob o afável disfarce da
sociabilidade, estava a ser levada a cabo uma qualquer
diligência formal, e isso era algo de novo para ele, embora
profundamente familiar para o seu anfitrião.
- Em criança, frequentou a mesma escola que Tobias?
- Oh... não, sir. - Nick deu-se conta de que decidira não mencionar
a escola primária de Barwick. - Estivemos juntos em Oxford, no
Worcester College... Embora eu tivesse estudado Inglês e Toby
PPE(1).
- Exacto... - disse Lord Kessler, que talvez não tivesse grandes
certezas quanto ao assunto. - Foram contemporâneos.
- Sim, precisamente - disse Nick, e pareceu-lhe que a palavra
«contemporâneos» lançava uma luz histórica sobre os singelos
três anos que haviam passado desde que vira Toby pela primeira
vez; Toby estava na portaria e, mal o viu, foi como se tudo o mais
se tivesse evaporado.
- E teve um First?(2)
Nick adorava a confiança agressiva - expressa num murmúrio -
da pergunta, porque podia responder «Sim». Sentia que, se
tivesse sido «Não», se tivesse obtido um Second como Toby,
tudo teria sido diferente - e, dado o contexto, uma mentira seria,
por certo, muitíssimo imprudente.
- E como é que avalia as possibilidades do meu sobrinho? -
perguntou Lord Kessler com um sorriso, embora Nick não
soubesse ao certo

*1. Acrónimo de um dos cursos ministrados em Oxford: Filosofia,


Política e Economia. (N. do T.)
2. Ou first class degree: no final de um curso, a melhor
qualificação que se pode obter numa universidade britânica.
Second é, apesar de tudo, uma boa qualificação. (N. do T.)
68

a que competição, a que eventualidade, o tio de Toby se estava a


referir.
- Creio que ele vai sair-se muito bem - retorquiu, retribuindo o
sorriso, e sentindo que havia encontrado um registo muito subtil,
em que uma afirmação de lealdade surgia envolvida num
embrulho de uma ironia tolerável.
Por um momento, Lord Kessler apreciou o seu comentário.
- E quanto a si, que vai fazer agora?
- Vou começar na UCL(1) para o mês que vem; pós-graduação em
Inglês.
- Ah... sim... - O sorriso desmaiado e o queixo baixo de Lord
Kessler sugeriam uma decepção facilmente controlada. - E que
campo escolheu?
- Mm. Pretendo fazer uma abordagem do estilo - disse Nick. Esta
rutilante ênfase dada a algo de tão ubíquo impressionara o júri
de admissão da UCL, mas a reacção de Lord Kessler não era
muito clara. Nick sentia que um homem que tinha a escrivaninha
de Madame de Pompadour dificilmente poderia ser indiferente ao
estilo; no entanto, a sua reacção parecia resultar de uma velha e
sensata atitude quanto a estilo e substância.
- Estilo tout courti
- Enfim, o estilo na viragem do século, Conrad, e Meredith, e
Henry James, claro. - Assim dito, tudo aquilo parecia
perfeitamente inútil, ou, na melhor das hipóteses, uma maneira
de desperdiçar dois anos, e Nick enrubesceu porque estava
realmente interessado na matéria em causa e ainda não sabia,
pois não fizera nenhuma pesquisa nesse sentido, o que ia ter de
provar.
- Ah - disse Lord Kessler, com um ar perspicaz: - o estilo como
obstáculo.
Nick sorriu. - Precisamente... Ou talvez o estilo que oculta coisas
e revela coisas ao mesmo tempo. - Por algum motivo, esta
formulação pareceu-lhe demasiado íntima e, portanto, ofensiva,
como se estivesse a sugerir que Lord Kessler tinha um segredo.
- Devo dizer que James é um dos meus grandes interesses.
- Sim, estou a ver: você é, afinal, um admirador de James.
- Ah, absolutamente! - e Nick pôs um sorriso arreganhado de
prazer e desafio;

*1. Acrónimo de University College London. (N. do T.)

69

era uma espécie de saída do armário, que revelava, com algum


atraso, por que razão não desposara, nem nunca desposaria
Trollope.
- Henry James esteve aqui, claro. Receio que nos tenha achado
particularmente grosseiros - disse Lord Kessler, como se o caso
se tivesse passado apenas na semana anterior.
- Mas isso é fascinante! - disse Nick.
- É natural que se sinta especialmente fascinado pelos velhos
álbuns. Ora deixe-me ver. - Lord Kessler abeirou-se de um dos
armários sob as estantes, fez girar uma chave que chiava na
fechadura, e baixou-se para retirar um par de grandes álbuns
encadernados a couro, que levou para uma mesa central. De
novo, a inspecção, de tão apressada, revelou-se uma verdadeira
tortura para Nick. À medida que as pesadas páginas iam caindo,
Lord Kessler dignava-se parar de quando em quando para
mostrar uma fotografia vitoriana dos jardins, com as suas amplas
e despojadas vistas para bosques recentemente plantados, ou
dos interiores, quase comicamente atravancados de cadeiras e
mesas, vasos sobre suportes, pinturas em cavaletes, e, por todo
o lado, fosse qual fosse a perspectiva, as folhas curvadas,
pendentes, de palmeiras envasadas. Agora, um século passado, a
casa parecia respirar estabilidade e maturidade, com a sua luz e
o seu odor históricos tão particulares, mas, naqueles tempos,
Hawkeswood era ostensivamente nova. No segundo álbum, havia
fotografias de grupo, enquadradas pelos degraus do pátio e
anotadas numa letra minúscula e arrebicada: Nick precisaria de
vários dias para ler todos aqueles nomes, condessas, baronetes,
duquesas americanas, Balfours e Sassoons, Goldsmiths e
Stuarts, inúmeros Kesslers. As pedrinhas do pavimento haviam
sido bizarramente cobertas com peles de animais para o grupo
que posara à volta de um Eduardo VII com uma capa de tweed e
um chapéu Homburg. E depois, em Maio de 1903, um grupo de
cerca de vinte pessoas e, na segunda fila, Lady Fairlie, o
Excelentíssimo Mr. Simeon Kessler, Mr. Henry James, Mrs.
Langtry, o Conde de Hexham... uma bem-disposta fotografia
informal. O Mestre, com o polegar no colete listrado, os olhos
protegidos por um chapéu de viajante de aba larga, fitava a
câmara com uma expressão assaz maliciosa.

70

- Então, o que é que achas da casa? - perguntou-lhe Catherine a


meio do relvado.
- Bom... obviamente é um espanto... - As impressões da tarde
haviam-no excitado a ponto de o deixarem cansado, mas decidiu
usar de alguma cautela quanto ao que lhe ia dizer.
- É, é mesmo do caraças, não é! - concordou ela com um riso tão
animado quanto tolo. Por norma, Catherine não falava assim, e
Nick intuiu que aquele devia ser um dos traços da personagem
que ela representava perante Russell. Para dizer a verdade,
Russell nem sequer estava presente (encontrava-se algures,
muito atarefado com a sua máquina fotográfica), mas o acto de
despir a pele da personagem teria obrigado Catherine a um
esforço desnecessário. Outros elementos da sua composição
eram um estranho passo arrastado e um sorriso atordoado e com
um não sei quê de matreiro. Nick concluiu que, com estes dois
traços específicos, Catherine devia querer provocar uma
impressão de saciedade sexual.
- Que tal a viagem?
- Ah, óptima, ele conduz tão perigosamente...
- Ah... Nós estivemos parados um ror de tempo, por causa de
umas obras na estrada. O teu pai ficou completamente passado.
Catherine lançou-lhe um olhar compadecido. - Está-se mesmo a
ver que meteu pelo caminho errado - disse.
Continuaram a passear pelo jardim formal, onde fragrâncias de
rosa se misturavam com o cheiro a mijo de gato das sebes
baixas de buxo e os lagos redondos reflectiam um céu de Verão
agora tenue-mente velado pela brancura das nuvens altas. -
Santo Deus, vamos sentar-nos - disse ela, como se tivessem
acabado de fazer uma longa caminhada. Foram para um banco de
pedra vigiado nas alturas por duas desnudadas divindades
menores. Era um verdadeiro prodígio, a multidão de despidos que
as pessoas ricas convocavam para o seu serviço. Lord Kessler,
em casa, devia estar quase sempre perante uma ninfa
esparramada algures ou um qualquer herói despojado de
inibições. - Russell deve estar quase a acabar, vais já conhecê-lo.
Pergunto-me se gostarás dele.
- Eu já disse a toda a gente o encanto de pessoa que ele era, de
maneira que, creio, vou ter mesmo de gostar.
- Ah sim...? - disse Catherine com um sorriso grato e intrigado.
Procurou os cigarros na sua malinha de mão decorada a
lantejoulas.

71

- Neste momento, anda a fazer montes de coisas para a The


Face. É um fotógrafo brilhante.
- Também lhes falei disso. É claro que todos eles assinam a The
Face.
Catherine resmungou. - Imagino o que Gerald não terá dito dele.
- Não, disse apenas que não tem uma opinião formada porque
não o conhece.
- Mm... Normalmente, o facto de não conhecer alguém não o
impede de dizer os maiores horrores acerca dessa pessoa. De
facto, isso nem parece dele, não, de maneira nenhuma. -
Acendeu o isqueiro e puxou uma primeira e profunda fumaça,
quando soprou o fumo, meneou um nada a cabeça e recostou-se,
confortada. - De maneira nenhuma, de maneira nenhuma, de
maneira nenhuma - continuou ela, agora com um acento irlandês
que não fazia o mínimo sentido.
- Bom... - Nick queria que toda a gente se desse bem, mas, por
uma vez, considerou que não estava em condições de se dar a
esse fatigante trabalho. Adoraria poder falar de Leo tão
livremente como ela falava de Russell, considerava que, se
trouxesse Leo à baila, Catherine acabaria por fazer algum
comentário inquietante e possivelmente verdadeiro.
- A minha mãe mostrou-te a casa? - perguntou ela.
- Não, de facto, quem me mostrou a casa foi o teu tio. Senti-me
muito honrado.
Catherine fez uma pausa e soprou o fumo com um ar não isento
de admiração. - E o que é que achas dele?
- Pareceu-me muito simpático.
- Mm. Mas o que é que achas, ele não é gay, pois não?
- Não, não me apercebi de nada que apontasse nesse sentido -
retorquiu Nick num tom algo solene. Sabia que esperavam dele
que fosse capaz de dizer se determinado homem era ou não gay;
de facto, tendia a pensar que eram gays quando na realidade não
eram; daí que experimentasse um recorrente sentimento de
decepção perante os homens em causa e os seus inadequados
sensores. Não disse nada a Catherine, mas, durante a volta pela
casa, as suas incertezas tinham girado, não em torno de Kessler,
mas em torno de si mesmo. A sua homossexualidade teria de
algum modo afugentado Lord Kessler?

72

Teria este considerado que ele era uma pessoa insignificante e


indigna de confiança, precisamente por ser gay} Teria Lord
Kessler sequer captado, no seu jeito inteligente, impassível, que
Nick era gay} - Ele perguntou-me o que é que eu ia fazer em
termos de estudos ou trabalho. Foi um bocado como uma
entrevista, só que eu não me tinha candidatado a nenhum
emprego.
- Bom, mas um dia podes vir a querer um trabalho - disse
Catherine. - E então é muito natural que ele se lembre da vossa
conversa. Ele tem uma memória de avestruz.
- Talvez... Nem sei ao certo o que é que o teu tio faz. Catherine
olhou para Nick como se ele só pudesse estar a brincar. -
Querido, ele tem um banco...
- Sim, eu sei...
- É um edifício enorme, todo a abarrotar de dinheiro. - Ondeou a
mão com que segurava o cigarro, perdida de riso. - E ele chega lá
e transforma esse dinheiro em ainda mais dinheiro.
Nick ignorou a modesta veia sarcástica da amiga. - Está visto,
também não sabes o que é que ele faz.
Catherine fitou-o e caiu de novo num riso relinchado. - Não faço a
menor ideia, querido!
Houve uma agitação na sebe de faias à direita,
convenientemente aparada, e, um segundo depois, um homem
alto saiu de entre as árvores, de lado e aos pulos, segurando
uma câmara presa ao pescoço. Observaram-no enquanto
avançava na direcção deles, Catherine apoiada num braço e com
uma expressão nervosamente triunfante. - Deixem-se estar
assim! - disse o homem, e, com extrema rapidez, tirou uma série
de fotos ao mesmo tempo que caminhava. - Porreiro - disse.
Estava visto, Russell era um dos mais velhos namorados de
Catherine, uns trinta anos talvez, moreno, em pleno processo de
calvície, com o ar descontraído, se bem que combativo, do
fotógrafo urbano, T-shirt preta e botas de baseball, colete com
vinte bolsos e película a tiracolo. Passou diante deles, sempre a
disparar, explorando animadamente aquele pequeno episódio da
sua chegada, o constrangimento de Nick e a fome de Catherine
pelo espontâneo e pelo escandaloso. A irmã de Toby recostou-se
indolente e pôs-se a roçar com a língua no lábio superior. Seria
bom quando os namorados dela eram mais velhos? Ou não?
Russell podia ser Protector ou Abusador,

73

aí estava uma incerteza abismal, tão abismal como as que


vinham expressas no seu livro de grafologia. Ele ergueu-a e
abraçou-a e só então Catherine, num jeito quase relutante, disse:
- Ah, a propósito, apresento-te Nick.
- Olá, Nick - disse Russell. -Olá!
- Já falaste com alguém? - perguntou Catherine, denunciando
alguma ansiedade.
- Sim, ainda agora estive a falar com os criados da empresa de
catering, lá nas traseiras. Pelos vistos, Thatcher não vem.
- Oh, desculpa, Russell - disse ela.
- Mas vamos ter o Ministro da Administração Interna - disse Nick
no seu tom ironicamente pomposo, que Russell, tal como Leo,
não conseguia apanhar.
- E eu que queria apanhar a Thatcher a dançar o twist, ou então
bêbeda...!
- Isso, a Thatcher aos pulos como umpunkl - disse Catherine e
rompeu num riso desalmado. Russell não parecia especialmente
divertido.
- Bom, eu é que não a queria no meu vigésimo primeiro
aniversário - disse ele.
- Não creio que Toby desejasse de facto a presença dela -
interveio Nick em jeito de desculpa. O que era sem dúvida
tocante era o facto de Catherine ter acreditado piamente na
fantasia do pai e de a ter usado para atrair Russell. O sonho da
presença da líder entranhara-se fundo, muito fundo, alcançara
mesmo profundidades inesperadas.
- Bom, a verdade é que Toby teria ficado perfeitamente feliz com
uma festa em casa - disse ela. Quando havia divergências entre o
pai e o irmão, Catherine nunca sabia ao certo de que lado é que
estava; Nick dava-se conta de que ela queria impressionar
Russell com o tipo certo de rebeldia. - Mas depois vem o meu pai
e é claro que tem de se apropriar da festa e de tudo o mais e de
convidar os ministros para tudo. Isto não é uma festa, querido, é
um congresso do Partido(1).

*1. Na tradução, perde-se um trocadilho só possível em inglês:


party é «festa», mas também é «Partido» (neste caso, o Partido
Conservador britânico). (N. do T.)

74

- Bom... - Russell riu-se e desatou a bambolear os seus longos


braços e a bater relaxadamente com as mãos uma na outra,
como se estivesse a preparar-se para um combate com eles.
- Nós também temos uma casa enorme - disse Catherine. - Não
que a casa do tio Lionel não seja fantástica, claro. - Viraram-se e
franziram o sobrolho para a mansão, para lá do suave relvado e
dos ornatos formais do parterre. Os íngremes telhados de lousa
eram encimados por remates de bronze tão altos e
extravagantes que mais pareciam gotas de um qualquer líquido
deslizando por um fio. - Não me parece é que o tio Lionel vá ficar
muito contente quando os turbulentos amigos de Toby desatarem
a vomitar para cima dos whatsits.
- Dos whatnots(1) - corrigiu amavelmente Nick.
Russell piscou o olho para Nick. - O tio Lionel, o tipo é lari-las,
não é? - perguntou.
- Não, não - disse Catherine, tropeçando por um momento no
termo usado pelo namorado. - De maneira nenhuma.
O casaco de smoking de Nick pertencera ao seu tio-avô Archie;
era assertoado e largo nos ombros, um estilo que voltava a estar
na moda. Tinha umas lapelas luzidias e tão bicudas que quase
chegavam às axilas, já para não falar de uns reluzentes botões
forrados a seda. Quando passou pela sala de estar, apreciou-se
ao espelho com um sorriso agradado. Usava colarinho de pontas
viradas, e um não sei quê de dandy que havia nele, alguma
memória da licença e da disciplina que encontrara numa
qualquer peça de teatro em que tinha entrado, deram-lhe um
novo ânimo. O único problema do casaco de smoking, numa
longa noite de Verão em que muito se comia e outro tanto se
dançava, era que, quando o calor apertava, o casaco desprendia,
de uma forma cada vez mais notória, um penetrante cheiro a
velho,

*1. O jogo de palavras não pode ser dado na tradução. O whatnot


a que se refere Nick é um móvel - muito popular na época
vitoriana - constituído por pequenas estantes abertas (com a
forma de segmentos de círculo) cujos tamanhos vão
decrescendo com a altura. Este móvel, usado basicamente para
a exposição de bricabraque, caiu manifestamente em desuso. O
termo whatsits é utilizado com o significado de «coisas de cujo
nome não me lembro» ou de «objectos indefinidos». (O jogo de
palavras torna-se ainda mais complexo se pensarmos que
whatnot também pode significar «objectos indefinidos».) (N. do
T.)

75

não mais que o fantasma ressurrecto de um sem-número de


jantares dançantes que, noutros tempos, haviam animado os
hotéis do Lincolnshire. Nick salpicara-se de alto a baixo com Je
Promets, na esperança de protelar e refrear, tanto quanto
possível, o temido efeito.
As bebidas estavam a ser servidas no extenso átrio e, quando ele
saiu pelas janelas de sacada, havia dois ou três pequenos grupos
de convidados já bastante risonhos e corados. Via-se que todos
eles tinham chegado recentemente de férias e, como as rosas e
as begónias, pareciam sorver e reter a luz que o sol, ao despedir-
se, generosamente derramava. Gerald estava a conversar com
um homem que, de algum modo, seria das suas relações, e com a
respectiva esposa, a qual vinha munida de um verdadeiro elmo
de cabelo louro; pelos sorrisos e gargalhadas de Gerald, Nick
tinha de concluir que o deputado estava a ser implacavelmente
agradável. Os seus amigos mais próximos ainda não tinham
chegado e Toby continuava num dos pisos de cima com Sophie,
perdidos ambos nos intermináveis preparativos da toilette. Tirou
uma finte de champanhe da bandeja de um jovem criado de olhos
escuros e avançou para o dédalo do parterre, cuja verde
ornamentação lhe daria quando muito pelo joelho. Ficou a pensar
no que acharia dele o criado e se estaria a observá-lo no seu
solitário serpenteio por sobre a relva aparada e o minúsculo
cascalho. Também ele trabalhara como criado, dois Natais antes,
também ele andara de bandeja, tal e qual como aquele jovem, em
dois bailes (daqueles com que se celebrava o fim da época da
caça à raposa) nas proximidades de Barwick. Não era impossível
que voltasse a fazê-lo. Sentiu que poderia parecer uma pessoa
sem amigos e que o criado talvez se apercebesse de que, na
realidade, ele não pertencia àquele mundo tão radicalmente
diverso do normal dos mundos. Provavelmente, nem sequer
perceberia, tal como Lord Kessler não percebera, que Nick era
gay. Ou não? Parecera-lhe que, no momento do contacto, houvera
uma muito breve sugestão de um entendimento mais sensual, de
um olhar mais demorado, cheio de humor e curiosidade, que
poderiam ter partilhado... Decidiu que, ao segundo contacto,
quando fosse encher o copo, faria tudo como devia ser. A certa
altura, por obra dos arabescos do caminho, ficou de novo de
frente para a casa,

76
mas o criado já não estava lá e, em vez do jovem de olhos
escuros, quem Nick viu foi Paul Tompkins, que se encaminhava
na sua direcção.
- Meu caro!
Em Oxford, Tompkins era amplamente conhecido como Polly,
mas Nick disse-lhe «Olá, Paul», visto que a alcunha lhe pareceu,
de súbito, demasiado íntima ou demasiado crítica. - Como estás?
- Deu-se conta de que, no romântico retrospecto da sua vida em
Oxford, a figura de Paul havia sido obliterada.
- Estou extremamente bem - disse Paul, num tom muito
significativo. Era um indivíduo largo e redondo a meio e, enfiado
naquele fato de cerimónia bastante justo, o seu corpo parecia
afilar-se na direcção de uns pés estreitos e de uma cabeça alta
onde avultavam umas fartas bochechas. Durante o tempo que
Nick passara em Oxford, Paul fora uma fonte constante de
conflitos, um recorrente manancial de intrigas, veneno e
ambição, enfim, uma espécie de monstro da associação de
estudantes e do MCR(1). Disputara um lugar no funcionalismo
público, obtendo uma qualificação muito próxima das melhores
e, recentemente, ocupara um qualquer posto, pelos vistos
promissor, em Whitehall. Andava já de olhos esbugalhados, por
via da disputa entre uma discrição pomposa e um apetite natural
pelo escândalo. Ergueu o copo. - Os meus cumprimentos ao
malandrão do velho Lionel Kessler... Estes criados são de cair
para o lado! Um deslumbramento...!
- Eu sei...
- Aquele com o champanhe é da Madeira, ora aí está uma
divertida coincidência. Champanhe e Madeira...
- Ah sim...
- Bom, antes assim do que ao contrário. Agora, porém, vive em
Fulham: por pouco, não era meu vizinho...!
- Estás a falar daquele ali...
- Tristão. - Paul lançou-lhe um olhar de pura malícia. - Meu caro,
pergunta-me mais coisas depois do nosso encontro... É já para a
semana que vem.

*1. Acrónimo de Middle Common Room, uma estrutura do


Worcester College da Universidade de Oxford que funciona
basicamente como um centro de convívio e lazer, com salas de
leitura e de computadores, bar, bilhares, etc. Acolhe ainda
actividades «sociais» como bailes, jantares, noites de cinema,
etc. (N. do T.)

77

- Ah. - Por um segundo, o rosto de Nick encheu-se de pesar, o


tormento da sua própria incompetência. Para ele, era um
mistério que Polly, a gorducha da Polly, com aquela cara toda
sulcada pelas cicatrizes do acne, completamente destituída da
mais comum afabilidade, tivesse um êxito tão conspícuo com os
homens. Na universidade, tivera uma série de aventuras quase
impossíveis, envolvendo desde rapazes da cozinha ao Captain of
Boats(1), uma criatura solenemente hetero. Nada que durasse,
mas, ainda assim, assombrosos triunfos da vontade, do
oportunismo e da técnica. Nick sentia-se um pouco intimidado na
sua presença. Deu uns passos em torno do plinto de uma
imponente urna e, através dos canteiros de rosas, mirou os
convidados reunidos em grupos. Um famoso entrevista-dor de TV
usava de todo o seu charme junto de um grupo de lisonjeadas
raparigas. - É uma multidão bastante distinta.
- Mmm. - O murmúrio de Paul continha uma nota de cepticismo,
bem como uma sugestão de que, também ali, havia
oportunidades. Tirou um cigarro e acendeu-o. - Isso depende
muito da tua ideia de distinção. Mas as esposas... Não estão uma
maravilha, desde as últimas eleições? É como se, agora, todas
as dúvidas que possam ter tido da primeira vez se tivessem
dissipado por completo. Os homens portaram-se muito mal, mas
levaram a sua avante e, como se isso não bastasse, ainda lhes
pediram que repetissem a dose, e por uma confortável maioria. É
esse o estado de espírito em Whitehall, a economia está em
ruínas, ninguém consegue um emprego, e eles estão-se
completamente marimbando, vivem numa espécie de bem-
aventurança... E as esposas, não sei se estás a ver, parecem-se
todas com... ela, não há nenhuma que não use laçarotes azuis e
o cabelo, ah, o cabelo é uma cópia perfeita...
- Bom, não é esse o caso de Rachel - disse Nick, que duvidava
muito seriamente que Paul pudesse dar uma ideia do estado de
espírito em Whitehall, quando só lá estivera cinco minutos.
- Mas, meu caro, Rachel tem muito mais classe. Classe judia,
mas ainda assim classe. E o marido dela não se chama Norman.

*1. O Captain of Boats, no remo, nomeadamente universitário, é


uma espécie de supervisor, não só dos atletas (neste caso, com
funções de treinador), mas também das embarcações e de todo o
material necessário para a prática desportiva. (N. do T.)

78

Nick tinha mais objecções a pôr aos comentários de Paul, mas


não quis parecer destituído de humor. - Não. Nem Ken - disse.
Paul inalou generosamente e soprou o fumo num longo e
sibilante jacto. - Devo dizer que Gerald está uma verdadeira
delícia
esta noite.
- GeraldFedden...?
- Absolutamente...
- Estás a gozar comigo.
- Está visto que te choquei - disse Paul, sem a menor nota de
desculpa.
- De modo nenhum - disse Nick, para quem a vida era uma série
de choques, mais ou menos bem aparados. - Não, eu sei que
ele está...
- Claro que agora vives na casa dele... É natural que já te tenhas
acostumado ao seu imaculado esplendor.
Nick riu-se e, juntos, observaram o deputado. Gerald concluía
uma história qualquer (toda feita de risonha tagarelice,
entremeada de retumbantes ênfases) e as mulheres à sua volta,
uma verdadeira mancha de azul, ondeavam e cambaleavam um
pouco nas finas pedrinhas do átrio. - Não vou negar que é um
homem com muitos encantos - disse Nick.
- Aha... Mas diz-me, quem é que está lá em casa agora, só tu e
eles e a Bela Adormecida?
Nick adorava ouvi-lo chamar «Bela Adormecida» a Toby, o
sarcasmo encobrindo a glorificação. - Infelizmente, a Bela
Adormecida agora não pára muito por lá. Como sabes, os pais
deram-lhe um apartamento. Mas tenho Catherine, claro.
- Ah, sim, eu adoro a Catherine. Ainda agora a apanhei a fumar
um charro com quase um metro de comprido. O sujeito que
estava com ela tinha um ar de patifório a toda a prova. É uma
rapariga notável.
- É seguramente uma rapariga muito infeliz - disse Nick, por um
momento todo inchado com o secreto e portentoso
conhecimento que tinha dela.
A sobrancelha de Paul sugeria que Nick tocara na nota errada. -
Deveras? Sempre que a vejo, tem um namorado novo. Quer dizer,
não vejo razão nenhuma para que seja infeliz... Pois se deve ter
tudo, mas tudo, o que uma rapariga pode desejar...!

79

- Pareces tal e qual o pai dela. Já o ouvi dizer exactamente o


mesmo.
- Ah, pois ora aí tens! - disse Paul. Pôs um sorriso imenso e
esmagou o cigarro meio fumado nas pedrinhas do caminho. - Aí
vem Toby. - Acenou na direcção da porta da sala de estar, de
onde Toby emergia de braço dado com Sophie, como se aquilo
fosse mais um casamento do que uma festa de anos. - Santo
Deus, a sorte que aquela cabra tem! - murmurou Paul, rendido, de
uma forma singularmente sincera, ao puro deslumbramento do
casal.
- Eu sei, podes crer que a odeio.
- Oh, ela é maravilhosa. É bonita, é estúpida que nem uma porta,
e, claro, é uma actriz muitíssimo promissora.
- Exactamente.
Paul sorriu-lhe como que para um primo da província. - Meu caro,
não leves o caso tão a peito. De qualquer modo, estes rapazes
são todos umas rameiras, todos eles têm um preço. Apanha Toby
às duas da manhã, depois de ele ter emborcado uma garrafa de
brandy, e vais ver se não fazes tudo o que queres com ele.
Garanto-te.
A ideia era tão excitante, tão desvairadamente, quase
penosamente, excitante, que Nick mal conseguiu sorrir. Ah, a
manha com que a velha Polly achincalhava, de uma forma tão
íntima, os seus sentimentos...! - Mm - disse Nick - ou muito me
engano, ou isto é mais uma celebração da namorada do que
outra coisa.
E era verdade que a multidão, à medida que duplicava e
triplicava no átrio, ia ganhando, cada vez mais, a aparência de
uma espécie em constante reprodução. Os rapazes, na sua
maioria contemporâneos de Nick em Oxford, todos de preto e
branco, miravam os políticos e as vedetas da TV e, num relance,
viam-se a si mesmos já adultos, com carreiras tão magníficas
como as daqueles homens e mulheres - havia nas suas
expressões aquele brilho matreiro de autodescoberta que advém
do facto se envergar um disfarce. Não se misturavam
desnecessariamente com as raparigas. Era quase como se os
códigos alto-vitorianos da casa, com a sua sala de fumo e a sua
ala dos celibatários, continuassem a guiá-los e a refreá-los. Mas
as raparigas, numa cintilação de veludo e seda, e vistosamente
maquilhadas, como crianças pequenas que, na ausência das
mães, tivessem assaltado os toucadores, tinham também um
novo poder e autoridade.

80

A luz do sol, agora que se despedia, tornava-se mais incisiva e


teatral e desenhava intrigantes sombras.
Paul virou-se para ele e disse-lhe: - Tenho de te avisar, meu caro.
Wani Ouradi anunciou o seu noivado.
- Oh, não - disse Nick. Que coisa mais humilhante, um noivado! -
Podia ter pensado um pouco mais antes de dar um passo desses.
- Imaginava um futuro alternativo, tão feliz, tão feliz, para ele e
Wani, um rapaz naturalmente encantador, e tão rico, e tão belo
como um João Baptista pintado para um Papa com uma
pronunciada inclinação por rapazes. O pai de Wani tinha uma
cadeia de supermercados, de seu nome Mira, e, sempre que ia a
um Mira Mart comprar uma garrafa de leite ou uma tablete de
chocolate, Nick tinha a vaga sensação, sem dúvida erótica, de
que estava a meter o dinheiro no bolso de Wani. - Creio que ele
também vai cá
estar.
- Pois vai, essa rameira velha também vai cá estar. Eu vi o carro
dele, um horror, de tão rasca, no caminho da casa. - Rameira era
o termo que Paul usava para designar qualquer homem que
tivesse acedido a ir para a cama com ele; ainda que, tanto
quanto Nick sabia, Paul nunca tivesse ido para sítio nenhum com
Wani. Tal como Toby, Wani permanecia na longínqua e pura
região da fantasia, um reino que, perante a inacessibilidade dos
seus habitantes, designadamente de Wani, se tornava cada vez
mais ardente e criativo. Nick sentia a perda de Wani como se
tivesse realmente tido alguma hipótese como ele; sozinho na sua
cama, deixara que a sua imaginação o levasse longe, muito
longe, com ele. Via o grande Expresso heterossexual arrancando
da gare à hora certa e todos os seus amigos iam lá dentro, na
carruagem da primeira classe, nos vagões-camas! Aferrava-se ao
que tinha, enquanto o comboio ganhava velocidade: aquele
quarto de hora com Leo junto ao monte de adubo, a primeira vez
em que sentira o pungente sabor da união carnal. - Tu e eu
somos as únicas bichas nesta festa? - disse.
- Duvido - retorquiu Paul, que não parecia muito entusiasmado
com a perspectiva de passar o resto da noite com Nick, só
porque o acaso os tinha juntado. - Deus do céu, lá vem o filho da
mãe do Ministro da Administração Interna! Tenho de me rebolar
daqui para fora, meu caro. Que tal estou?
- Fantástico - disse Nick.

81

- Oh, eu sabia. - Tal um rapazinho vaidoso, passou com os nós


dos dedos pelo penteado, em que avultava uma franja oleosa. -
Tenho de ir, menina! - disse ele, tonto mas alerta, com um novo e
escandaloso caso em vista. E lá foi ele, num ritmo animado,
saltitando por sobre as sebes baixas. Nick viu-o chegar ao grupo
onde Gerald estava a apresentar o filho ao ministro: era quase
como se houvesse dois convidados de honra, cada um dos quais
jovialmente perplexo com a presença do outro. Polly rondou por
um momento o grupo e, depois, abriu alas descaradamente; Nick
conseguiu ver a sua expressão excitada e sem sombra de ironia
enquanto o grupo se fechava à sua volta.
- Então, como é que ele é? - disse Russell. - O velho dela. Do que
é que ele gosta? - Olhou de relance para Catherine, que estava
do outro lado da mesa, antes de os seus olhos deambularem de
novo até Gerald, que sorria para a loura ao seu lado, embora se
notasse no seu rosto aquele fino véu de preocupação de alguém
que se preparava para fazer um discurso. Estavam no salão
principal, sentados a uma dúzia de mesas. O jantar chegava ao
fim e reinava uma atmosfera de ruidosa expectativa.
- Vinho - disse Nick, que estava bêbedo e fluente, mas ainda
desconfiado do tom encorajador de Russell. Fez rodar o seu copo
sobre os vincos da toalha de mesa. - Vinho. A sua mulher... hum...
- Poder - acrescentou bruscamente Catherine.
- Poder... - com um aceno, Nick juntou-o à sua lista. - Também
gosta muito de queijo Wensleydale. Ah, e da música de Richard
Strauss, então disso nem se fala.
- Certo - disse Russell. - É, eu também não desgosto de Richard
Strauss.
- Oh, eu preferiria sempre uma fatia de queijo Wensleydale - disse
Nick.
Russell piscou-lhe o olho num jeito que sugeria que não o
entendia ou que estava prestes a dar-lhe um murro na cara. Um
segundo depois, porém, pôs um sorriso relutante. - Então quer
dizer que ele não anda metido em nada de esquisito, escândalos
sexuais e assim.

82

- Poder - repetiu Catherine. - E discursos. - Gerald tilintou no copo


com um talher, o tumulto depressa se esbateu e, nesse preciso
instante, muitos foram os convidados que a ouviram dizer:
- Ele adora fazer discursos.
Nick recuou um pouco a cadeira para ver melhor Gerald, e
também Toby, que ganhara alguma cor nas faces e olhava à sua
volta com um sorriso apreensivo. Ia ter de enfrentar dez minutos
de provação - uma provação bizarramente apreciada -, dez
minutos em que teria de suportar as alfinetadas e os elogios do
pai e as aclamações dos seus amigos bêbedos - os seus
contemporâneos. Nick sorriu para ele um sorriso imenso; queria
ajudá-lo, mas, como está bom de ver, não podia fazer nada.
Também ele corara, tal era a ansiedade e a impaciência forçada
com que aguardava o discurso do amigo.
Gerald pusera os seus óculos de leitura, que raramente usava, e,
com o braço estendido, segurava um pequeno cartão. - Vossa
Graça, meus lordes, damas e cavalheiros - começou ele,
oferecendo a velha fórmula com uma negligência irónica que
tinha o engenhoso efeito de levar os convidados a pensar, sim,
claro, a duquesa e o filho estavam presentes, bem como Lord
Kessler e o gordo e jovem Lord Shepton, que fora colega de Toby
no Martyrs' Club(1).
- Distintos convidados, família e amigos. Sinto-me muito feliz por
vê-los a todos aqui reunidos, neste cenário verdadeiramente
esplêndido, e, como é óbvio, muito grato a Lionel Kessler por
permitir que a equipa principal de rugby do Worcester College
tenha livre acesso à sua colecção de porcelana, famosa em todo
o mundo. Bom, como diz, ou dizia, um cartaz das lojas Selfridge,
«o cliente terá de indemnizar o estabelecimento se por acaso
rachar ou quebrar algum dos objectos expostos. - Isto suscitou
alguns risos abafados, embora Nick sentisse que o deputado
talvez não tivesse batido na nota certa. - É uma grande honra
podermos contar com a presença de homens de Estado, e
estrelas de cinema, e suspeito que Tobias se sente
extremamente lisonjeado pelo facto de tantos membros do
governo de Sua Majestade terem podido vir à sua festa de
aniversário. A minha espirituosa filha, ao que sei, comentou que

*1. «Clube dos Mártires». Como é sabido, no meio escolar


britânico, designadamente universitário, os clubes são uma
tradição imprescindível (como aliás sucede noutros espaços
sociais). (N. do T.)

83

isto «é menos uma festa do que um congresso do Partido». -


Risos incertos, no meios dos quais, com um bom timing: - Só
espero que venha a desempenhar um papel tão importante como
este quando nos encontrarmos em Blackpool, no próximo mês de
Outubro. - Os deputados trocaram uns risinhos amáveis, embora
o ministro, que encarara o epíteto de homem de Estado mais
gravemente do que os outros, sorrisse de um modo misterioso
para a chávena de café que tinha à sua frente. Russell disse bem
alto: - Grande Catherine! - e bateu palmas umas quantas vezes.
- Ora bem, como certamente sabem - prosseguiu Gerald, com um
olhar rápido, se bem que atrasado, na direcção dos convidados -,
Toby faz hoje vinte e um anos. Cheguei a pensar em declamar os
famosos versos do Dr. Johnson sobre os «tão ansiosamente
esperados vinte e um anos», mas, ontem à noite, ao revê-los,
descobri que não os conhecia tão bem como pensava ou,
obviamente, como muitos dos presentes, disso estou certo,
conhecem. - Aqui, Gerald olhou para o cartão num jeito
maravilhosamente altivo. - «Esbanja os guinéus dos teus
antepassados», diz o Great Cham(1), «Diz adeus aos escravos da
sovinice... Quando o sedutor e impetuoso rapaz à pândega se
entrega, Com bolsos cheios e espírito folgazão, O que são terras?
O que são casas? Não mais que poeira, umas vezes seca, outras
molhada». Portanto: nada que se assemelhe àqueles conselhos
avisados que poderíamos dar ao neto e sobrinho de grandes
banqueiros, ou a qualquer jovem que atinja a maioridade na
nossa esplêndida democracia assente na propriedade privada. E
quanto à questão «seco versus molhado», aí entramos num
campo em que a indecisão já não é, de modo nenhum, tolerável.
No meio dos generosos risos, o olhar de Nick voltou a encontrar
o de Toby e não o largou durante dois ou três longos segundos,
dando-lhe talvez uma transfusão de serenidade. Toby estava por
certo demasiado nervoso para escutar em condições o discurso
do pai; ao rir-se, estava simplesmente a imitar os outros, e não a
reagir às piadas propriamente ditas. Era mesmo típico de Gerald,
não se aperceber de que o poema do Dr. Johnson era uma
pequena sátira implacável.

*1. O epíteto de Great Cham (Grande Khan) da literatura foi


atribuído a Samuel Johnson pelo romancista Tobias Smollet em
1759 e acabou por ficar. Resumidamente, Johnson (1709-84) foi o
erudito e crítico literário mais importante do seu tempo. (N. do
T.)

84

Nick esquadrinhou o salão e aquele espaço fez-lhe lembrar uma


sala de jantar da universidade, com Gerald e os convidados mais
influentes eleitos para a mesa de honra. Ou talvez de uma
qualquer outra instituição; era tão frequente, casas como aquela
acabarem nas mãos das mais variadas instituições... Em cima,
nas arcadas da galeria, um ou dois criados escutavam
impassíveis; estavam simplesmente à espera da próxima
mudança de cena na representação daquela noite. Havia um
gigantesco lustre eléctrico, com três metros de altura e uns
braços dourados que se enroscavam na direcção do tecto para
depois se abrirem numa ofuscação de lírios de vidro. Catherine
recusara sentar-se debaixo do lustre e, pelos vistos, fora por
esse motivo que a sua mesa havia sido desterrada para aquele
canto do salão. Nick deu-se conta de que uma eventual queda do
lustre esmagaria Wani Ouradi. Foi o bastante para que também
ele começasse a sentir-se um pouco ansioso.
Gerald estava agora a fazer uma jocosa síntese da vida de Toby
e, uma vez mais, Nick deu por si a pensar num casamento, e no
discurso do padrinho, que era uma coisa de que toda a gente
fugia, e na fortíssima probabilidade heterossexual de que um
vigésimo primeiro aniversário redundasse, pouco tempo depois,
num casamento. Da cabeça de Sophie Tipper, só conseguia ver a
nuca, mas atribuía-lhe pensamentos similares, transpostos para
um tom radioso, feliz. - Na sua adolescência, portanto - estava a
dizer Gerald -, Tobias a) acreditava que Enoch Powell(1) era
socialista; b) deitou fogo a um volume de Hobbes; e c) tinha um
vasto e misterioso saldo negativo na sua conta bancária. Quando
Oxford se perfilou no horizonte, um diploma em Política, Filosofia
e Economia foi a escolha irresistível. - Houve mais risos, e, com
efeito, Gerald conduzia-os de uma forma muito hábil: os
convidados, já com alguns grãos na asa, tinham adoptado uma
atitude receptiva ou mesmo ingénua, já que fazer um discurso
constituía uma espécie de prestidigitação. Ao mesmo tempo,
havia um elo a unir aqueles jovens, que já tinham idade para
saber que os discursos podiam ser, e talvez devessem mesmo
ser, embaraçosos, além do que eram simultaneamente
turbulentos e superiores, ao estilo de Oxford.

*1. Powell era um político britânico de extrema-direita. (N. do T.)

85

Nick perguntou-se se as mulheres estariam a reagir de um modo


mais caloroso, se elas seriam permeáveis, como Polly era, ao
«esplendor» do anfitrião; era possível que Gerald sentisse o riso
das mulheres como uma espécie de submissão. Quanto a Nick,
entregava-se agora a uma indolente exploração da margem entre
o seu afecto por Gerald e uma divertida suspeita, a que, durante
tanto tempo, resistira, de que talvez houvesse na personalidade
do deputado algo de francamente horrível. Tinha uma imensa
pena de não poder ver as reacções de Lord Kessler.
- E agora, como sabem, Toby optou - prosseguiu Gerald -, pelo
menos por ora, por uma carreira jornalística. Sou obrigado a
admitir que, de início, a ideia me deixou ansioso, mas ele
garante-me que não sente o menor interesse pela cobertura dos
debates parlamentares. Tem havido umas misteriosas conversas
a propósito do Guardian, mas esperemos que a ideia se dissipe e
morra. No entanto, devo dizer que, para já, sempre que ele me
faz uma pergunta, penso duas e três e quatro vezes, para além do
que decidi negar vigorosamente tudo.
Nick deu uma espreitadela à sua volta, num pequeno parêntesis
em busca de divertimento, e viu que Tristão, o criado da Madeira,
estava junto à porta atrás dele, seguindo os acontecimentos com
uma expressão ausente. Como empregado de uma empresa de
catering, já devia ter escutado um número impressionante de
discursos, cada um deles construído em torno de piadas e
alusões privadas. Que pensaria ele? Que pensaria ele de toda
aquela gente? Tinha umas mãos enormes, magníficas, as mãos
de um virtuoso. A região da braguilha das vistosas calças
curvava-se para a frente com uma poderosa assimetria. Quando
reparou que Nick estava a olhar para ele, respondeu-lhe com o
mais vago dos sorrisos e inclinou a cabeça, como que à espera
de uma ordem murmurada. Ele nem sequer se dá conta de que eu
gosto dele, pensou Nick, pensa que eu não passo de um desses
ricalhaços que nunca vêem os criados como pessoas. Nick
abanou a cabeça e virou-se; a decepção que sentiu, de tão
controlada (a prática era muita), não encontrou a menor
tradução na sua fisionomia. Viu que Catherine estava a meter
coisas na sua malinha de mão e a disparar olhares irritados para
Russell que, mexendo apenas os lábios, lhe perguntava «O
quê?», e que, por sua vez, também estava a ficar irritado. -
Portanto, Toby - disse Gerald,

86

elevando a voz e adoptando um ritmo mais lento -, recebe os


nossos parabéns, as nossas bênçãos, o nosso amor: feliz
aniversário, Toby! Por favor, ergamos todos os nossos copos,
brindemos
a Toby!
- Toby! - exclamaram os convidados, erguendo um verdadeiro rio
de borbulhante champanhe; de súbito, a tensão que pairava na
sala esbateu-se em vivas e assobios e aplausos, aplausos para
Toby, não para o orador, a aclamação ampliada, irreal, de uma
ocasião festiva, no meio da qual Nick ergueu o seu copo de
champanhe com lágrimas nos olhos e logo desatou a beber para
ocultar a emoção que sentia. Entretanto, Catherine tinha
afastado bruscamente a sua pequena cadeira dourada e saíra
numa pressa, passando por Tristão, que a seguiu por um
segundo, na esperança de poder ajudá-la nalguma coisa. Nick e
Russell ficaram a olhar um para o outro, mas, nesse preciso
momento, Toby levantou-se e Nick disse para si mesmo que nem
pensar, macacos o mordessem se ia atrás dela, não, desta vez,
não, porque ele amava Toby de verdade, mais do que qualquer
outra pessoa naquele magnífico salão, e ia estar com ele, ao lado
dele, enquanto ele falasse.
- Não - disse Toby -, quer-me parecer que o pai não entendeu
muito bem as referidas conversas. Eu tentei arranjar-lhe uma
entrevista com o Guardian, o problema é que eles não estavam
interessados! - Não era de facto um arranque muito espirituoso,
longe disso, mas a verdade é que arrancou sonoras gargalhadas
aos seus amigos, e Gerald, que exibia uma expressão
autocongratulatória, viu-se obrigado a pôr um ar humildemente
amuado. - «Espere que ele faça qualquer coisa de importante»,
disseram-me eles. - Virou-se para o pai. - Claro que eu respondi
que não teriam de esperar muito tempo.
Havia qualquer coisa de desajeitado no discurso de Toby;
procurava cumprir a tradição familiar da alfinetada, mas era
demasiado brando e estava ainda longe da pesada malícia de
Gerald. Quando se levantara, estava assustadoramente pálido,
como alguém prestes a desmaiar, mas, depois de ter relaxado
um pouco, a cor voltou de súbito às suas faces, e o seu sorriso
era um nervoso reconhecimento do seu rubor. Disse: - Eu não vou
falar muito - vagos grunhidos de desapontamento - mas, acima
de tudo, gostaria de agradecer ao meu querido e generoso tio
Lionel, por nos ter recebido esta noite.

87

Não posso imaginar nada mais maravilhoso do que esta festa, e


tenho a horrível sensação de que, depois disto, o resto da minha
vida vai ser um longo anticlímax. - Isto provocou aclamações e
palmas para Lord Kessler, o qual estava por certo acostumado a
agradecimentos, mas não a declarações de amor públicas. Uma
vez mais, a nota familiar irrompia forte e sentimental, e um
pouco surpreendente. Nick sorria para Toby num ansioso transe
de desejo e encorajamento. Era como ver um belo actor no palco,
era como segui-lo e desejá-lo.
- Sinto-me também verdadeiramente emocionado - disse Toby -
pelo facto de os meus velhos amigos Josh e Caroline terem vindo
de tão longe, da África do Sul, para a minha festa. Ah, mas eu sei
que eles também incluíram na sua apertada agenda uma
cerimónia de casamento. - Ouviram-se uns aplausos
complacentes, ainda que ninguém soubesse de facto quem eram
Josh e Caroline. Nick deu por si a escutar de uma forma quase
abstracta a voz de Toby, ouvindo as suas inofensivas pretensões,
que eram o exacto oposto das de Gerald. Gerald era um orador
experiente e seguro, treinado na associação de estudantes de
Oxford, polido em inúmeras reuniões de direcções e conselhos
vários, e o seu tom combinava a franqueza e a insinceridade para
produzir um efeito estranhamente encantador. Toby, como muitos
dos seus amigos, usava o estilo mais recente das public
schools(1), uma espécie de salgalhada com a qual se almejava,
sem o menor resultado prático, ocultar a classe a que se
pertencia. Agora, estava um pouco bêbedo, e sob pressão, e as
vogais mais antigas vinham ao de cima quando dizia que a
tolerância dos pais em relação ao seu comportamento revelara
«uma bondade verdadeiramente extraordinária». Também ele
parecia não saber para que é que estava a fazer aquele discurso;
de tal forma que fazia lembrar um cruzamento entre um noivo e o
vencedor de um prémio qualquer, com uma lista de pessoas a
quem devia agradecer. A sua técnica, sem dúvida infantil,
consistia em desviar as atenções de si mesmo, concentrando-as
nos seus amigos, e, neste particular, Toby era também o oposto
do pai. Saiu-se com algumas graças, como «Sam vai precisar de
dois pares de calças», ou «Não há mais creme de menthe para
Mary», as quais aludiam, de uma forma evidente,

*1. Uma public school, em Inglaterra, é uma escola privada


particularmente dispendiosa e exclusiva. (N. do T.)

88

a antigos desastres, e, a certa altura, começou a maçar os


deputados. Nick sentiu uma tocante nostalgia pelos tempos de
Oxford, sobre os quais uma porta, talvez de carvalho, parecia ter-
se fechado suave, mas firmemente. Toby não mencionou o seu
nome; mas Nick interpretou isso como um sinal de intimidade. O
seu olhar abraçava Toby e, por detrás do seu irremediável sorriso
e das mãos que se perdiam em aplausos, viu o Nick dos seus
sonhos correndo disparado para abraçar Toby e para lhe beijar o
rosto vermelho de tão quente.
Já no seu quarto, Nick despiu o casaco e, com um ar de
resignação, cheirou-o bem cheirado: estava na hora de um novo
banho de Je Promets. Foi para a sua casa de banho e abriu a
pequena trapeira da pequena torre; borrifou as faces com água
fria. Os brindes tinham acabado com ele - havia sempre um copo
que o fazia cair, injusta e abruptamente, na embriaguez. E a noite
não passava ainda de uma criança... Era um grande ritual de
diversão, uma tradição, uma convenção, uma cerimónia que toda
a gente estava a adorar porque nela tudo era abundância e
porque correspondia plenamente às expectativas. Agora, iam
passar à pista de dança e todos os pares poderiam render-se ao
prazer de ancas e coxas que se roçavam e colavam, de mãos que
deslizavam por onde queriam. Nick fitou o espelho e viu alguém
periclitantemente só. O amor que sentira por Toby dez minutos
antes migrou para uma súbita e sôfrega fantasia envolvendo Leo,
os seus beijos transfiguradores, os seus problemas com os
folículos pilosos, e a maravilhosa fundura, imaculadamente
rapada, entre as bochechas do seu cu. A precisão da memória, a
ardente realidade daquilo que acontecera, cegou-o e paralisou-o
por um bocado. Quando regressou, talvez não mais que uns
segundos depois, à imagem no espelho, viu o rubor nas suas
faces e a sua boca aberta numa rendição revivida. Voltou a fazer
o nó da gravata, com toda a perfeição, e passou a mão pelo
cabelo. Havia uma espécie de ternura por si mesmo no
movimento da mão por entre os caracóis, como se a mão
houvesse sido adestrada por Leo. O espelho era uma casta elipse
numa moldura de madeira de bordo-doce. O lavatório uma
cómoda Luís XVI verdadeira, esventrada e perfurada para
receber uma bacia e um par de altas e elegantes torneiras

89

por onde a água se escapava num murmúrio rouco. Bom, quando


uma pessoa tinha uma cómoda Luís XVI, quando tinha dúzias de
cómodas Luís XVI, podia fazer com elas as barbaridades que
muito bem lhe aprouvesse; e uma cómoda, vendo bem as coisas,
destinava-se a ser cómoda. E, vendo ainda melhor as coisas, era
maravilhoso estar numa casa tão magnífica como aquela, ser um
amigo da família, e não o filho do homem que afinava os relógios.
Ao descer as escadas, cruzou-se com Wani Ouradi. Por vezes,
Nick saudava Wani com uma amistosa apalpadela bem no meio
das pernas, ou com um longo e ofegante beijo, e, certa vez,
chegara mesmo a tê-lo uma noite inteira no seu quarto da
residência universitária, todo nu e com as mãos bem atadas;
sodomizara-o infatigavelmente e mais vezes do que aquelas de
que conseguia lembrar-se. Quanto a Wani, que olhava de relance
para trás para ver se a sua namorada, a sua prometida, não
demorava, é claro que não fazia a menor ideia de todos esses
imaginários acontecimentos; para dizer a verdade, Nick e Wani
mal se conheciam.
- Olá, Wani! - disse Nick.
- Olá - disse Wani num jeito caloroso, provavelmente sem
conseguir lembrar-se do nome do antigo colega.
- Creio que tenho de te dar os parabéns...
- Ah... sim... - Wani sorriu e baixou os olhos. - Muito obrigado. -
Nick pensou, como já tinha pensado tantas vezes, durante as
vagarosas horas na sala dos seminários, que umas pestanas tão
fartas e tão longas teriam por força de proporcionar a Wani
Ouradi uma visão do mundo extraordinariamente filtrada e
umbrosa. De súbito, decidiram ambos cumprimentar-se. Wani
relanceou de novo para trás com um murmúrio de exasperação, o
qual, de tão afectuoso e polido, parecia incluir Nick num qualquer
conluio inofensivo. - Tenho de te apresentar Martine - disse.
Havia nele um traço especialmente provocante, é que o seu
pénis nunca passava despercebido, um pequeno enchumaço
apontando para a esquerda, pudico, involuntário, mas impossível
de ignorar, um gatilho que fazia disparar em Nick os mais
sequiosos pensamentos. Num vertiginoso meio segundo,
espreitou o enchumaço. Sim, Wani era tal e qual uma. pop star
dos anos 60, com o pénis e o cabelo escuro encaracolado, ainda
que o look contrastasse de uma forma brutal com a entorpecida
cortesia dos seus modos.

90

Nick ouviu-se dizer: - Espero que seja um longo noivado.


- Ah, aí vem ela... - e olharam ambos para a jovem que subia os
degraus baixos, cingidos por um tapete vermelho. Vestia uma
blusa pérola e uma longa saia preta, bastante retesada, que ela
erguia um pouco com ambas as mãos, de tal forma que, a cada
passo, parecia fazer-lhes uma cortesia. Impunha uma impressão
sóbria, bem vestida e penteada, mas sem qualquer concessão às
modas. - Martine - disse Wani. - Nick Guest, estivemos juntos no
Wor-cester College.
Nick pegou na mão fresca de Martine, sorridente porque, afinal,
Wani sabia o seu nome, e sentindo-se, por um breve momento,
alvo de cómicas suspeitas, visto que era um amigo desconhecido
do noivo, alguém que pertencia ao seu passado. - Muito prazer
em conhecê-la - disse. - Os meus parabéns. - Tantos parabéns
provocavam já nele um vago alvoroço masoquista.
- Oh, muito obrigada. Sim, Antoine contou-lhe. - Tinha um sotaque
francês, o que, por sua vez, sugeriu a Nick as ignoradas redes da
família e do passado de Wani, talvez Paris, Beirute... a vida real
dos ricos internacionais que Ouradi abandonava ocasionalmente
para baixar às paragens de Oxford e ler um ensaio sobre Dryden
ou traduzir um enigma anglo-saxónico. Antoine era o seu
verdadeiro nome, e Wani, a sua tentativa infantil para o
pronunciar e o seu diminutivo universal.
- Deve sentir-se muito feliz.
Martine sorriu, mas não disse nada, e Nick procurou no seu largo
e pálido rosto os sinais do triunfo que ele teria sentido se fosse
noivo de Wani.
- Vamos só ao nosso quarto - disse Wani -, mas descemos já para
o baile.
- Bom, talvez tu vás dançar... - disse Martine, revelando já a sua
independência, mas com a mesma expressão paciente que Nick,
enquanto descia as escadas, considerou decididamente adulta.
Devia ser a expressão de uma felicidade estável, de uma posse
calma, algo que ele não era capaz de imaginar, nem sequer, com
todo o rigor, de desejar.
Precisava de ar fresco, mas, nesse momento, uma quantidade de
pessoas voltava numa pressa para dentro, provocando algum
tumulto no salão. Lá fora, de um sombrio céu nocturno,

91

começara a cair uma chuva miúda. Nick parou a vê-la, flutuando


e reluzindo à luz de uma grande lanterna em forma de globo. A
alguma distância, no círculo do caminho da casa, dois motoristas
tinham-se sentado no capot de um Daimler com a luz interior
acesa, aguardando e cavaqueando. E lá estava o Mercedes de
Wani, com o seu suave tejadilho e a sua embaraçosa matrícula -
WHO 615. Uma voz urrou: «Muito bem! Toda a gente para a pista
de dança!» E logo se seguiu um desafinado coro de
concordância.
- Hurra! Vamos dançar! - exclamou uma jovem bêbeda com todo o
ar de Sloane Ranger(1), os olhos fixos no rosto de Nick como se,
com algum esforço, conseguisse lembrar-se dele.
- Onde é que é o raio da pista de dança? - perguntou o rapaz que
urrara segundos antes. Tinham voltado para o salão, que estava
a ser arrumado e limpo pela equipa de empregados com uma
eficiência sem ilusões.
- É na sala de fumo - disse Nick, excitado por saber isso e
porque, de súbito, era ele quem conduzia o grupo. Todos o
seguiam de uma forma desordenada, a Sloane Ranger rindo-se
desalmadamente enquanto gritava: - Boa! É na sala de fumo! - e
acenando-lhe para que avançasse, como se ele fosse o cómico
empregadeco que sabia o caminho.
Um amigo de Toby viera de Londres para pôr a música disco, e
projectores vermelhos e azuis acendiam e apagavam por sobre
as pinturas que testemunhavam as inúmeras corridas de cavalos
do primeiro Barão Kessler. A maior parte do grupo desatou logo a
menear-se ao sabor da música, algo desajeitadamente, mas com

1. No original, Sloanish, adjectivo formado a partir de «Sloane


Ranger», expressão que vem dos anos 80 e designa sobretudo
jovens mulheres (mas também homens) da classe média-alta
londrina que usavam figurinos supostamente «chiques» (segundo
alguns, trapos para mulheres de meia-idade usados por jovens) e
que, de um modo geral, se consideravam superiores ao comum
dos mortais. Tinham (e têm, visto que este «tique social» parece
ser difícil de erradicar) uma agitada vida social em torno da
public school que frequentavam e muito dinheiro dos pais para
gastar. A expressão «Sloane Ranger» associa Sloane Square
(zona «chique» onde viviam as ditas jovens) e Lone Ranger (o
«solitário guarda montado» de uma série de TV - uma referência
aos solitários percursos das jovens que, empunhando o cartão de
crédito do papá, assaltam positivamente as lojas de King's
Road). Em português, seriam uma espécie de jovens «tias»
tontas, com conotações políticas de direita e extrema-direita, ou,
no caso dos rapazes, «betinhos» com as mesmas conotações
políticas e tão tontos como as «tias». (N. do T.)

92

expressões felizes e determinadas. Nick vagueava ao longo da


parede, como se a qualquer momento pudesse começar a dançar,
mas depois voltou para trás, dando à cabeça como o ritmo
mandava, e saiu rapidamente da sala. Era aquela canção, Every
Breath You Take, que tinham passado vezes sem conta no último
período em Oxford. De um momento para o outro, a música
deixara-o triste.
Sentia-se inquieto e esquecido, periférico a um evento que,
lembrava-se bem, chegara a ser pensado como uma festa de
aniversário conjunta. A sua solidão aturdiu-o por um momento, no
desolado cenário do corredor dos celibatários: a sensação,
próxima do pânico, de que ele não pertencia àquela casa nem
àquele grupo de pessoas. Não, o seu lugar não era ali. Alguns
dos convidados tinham ido para a biblioteca e, ao abeirar-se da
porta aberta, prestou atenção à débil textura das conversas,
sobre a qual uma ou duas vozes se erguiam, como que por direito
natural. Gerald dizia palavras cujo significado Nick não
conseguia entender e, no meio da risada geral, uma outra voz,
vagamente reconhecível, intrometeu uma rápida correcção:
«Não, se eu conheço Margaret, nem pensar!» Nick ficou parado à
porta da sala iluminada e, por um segundo, sentiu-se como um
estudante bêbedo, e era isso que ele era, e também, numa região
mais sombria e inconsolável, como uma criança que, vendo-se
sem sono, resolvera espreitar um mundo adulto de ombros nus,
rostos afogueados e fumo de charutos. Rachel fez-lhe sinal e
sorriu e ele entrou - Gerald, de pé junto à lareira vazia, com
aquela pose arrogante de alguém que pretende aquecer-se, ainda
exclamou «Ah, Nick!», mas havia demasiada gente para fazer
apresentações, um amplo e volúvel círculo de convidados que,
por um momento, se voltaram para o inspeccionar, e logo viraram
costas como se, apesar de todos os seus esforços, não tivessem
enxergado coisa nenhuma.
Rachel estava sentada num pequeno sofá, à parte dos outros,
com uma velha senhora cheia de rugas e vestida de preto; ao pé
dela, Rachel parecia uma jovem bela e bastante turbulenta. -
Judy - disse ela -, já conhece Nick Guest, o grande amigo de
Toby? Nick, deixe-me apresentar-lhe Lady Partridge, a mãe de
Gerald.
- Ah, não! - disse Nick. - Muito prazer em conhecê-la.
- Como está - disse a velha senhora, com um ar severamente
jovial. O grande amigo de Toby, aí estava um aposto para
saborear,

93

para analisar pela sua generosidade, pela sua inocência, pela


sua cautela.
Rachel encolheu-se um pouco, mas, de facto, não havia lugar
para ele no sofá. O magnífico vestido de seda cor de alfazema,
com uma armação algo rígida, espalhava-se, como que
drapejado, sobre o sofá; e Rachel fazia lembrar um retrato que
Sargent pintara oitenta anos antes, no tempo em que Henry
James passara por aquela casa. Nick plantou-se diante delas, um
sorriso nos lábios.
- Que bem que você cheira, Nick - disse Rachel, num tom que
roçava o flirt, no mesmo jeito com que, por vezes, uma mãe fala
com um filho todo embonecado.
- O cheiro dos charutos é absolutamente insuportável - disse
Lady Partridge. - Não lhe parece, Rachel?
- Lionel também o odeia - murmurou Rachel. Tal como Nick, para
quem o fedor áspero dos charutos, com uma nota de retrete
muito evidente, significava a inexplicável segurança dos gostos e
hábitos dos outros homens, bem como a desenvoltura com que
os impunham aos seus semelhantes. Porém, como o próprio
Gerald estava a fumar charuto, com o sobrolho e o olho esquerdo
sujeitos a um constante franzimento, Nick nada disse.
- Não faço ideia onde é que ele terá apanhado tal vício - disse
Lady Partridge; e Rachel suspirou e abanou a cabeça, num bem-
humorado reconhecimento das decepções que esposa e mãe
partilhavam. - Tobias e Catherine também fumam?
- Oh, não, graças a Deus, foi coisa de que nunca gostaram - disse
Rachel. E, uma vez mais, Nick não disse nada. Aquilo que
acabava sempre por prendê-lo era o romance que a família
construía em torno de si mesma, com as suas pequenas
asperezas e conspirações, que possuíam um encanto e uma
graça muito superiores às da sua própria família, um romance
que, agora, ganhava uma nova dimensão na pessoa da mãe de
Gerald. O seu porte era indolente mas vigilante, o rosto
densamente empoado, os lábios pintados de um ousado
vermelho. Havia nela qualquer coisa de autocrático que
suscitava em Nick uma vontade de agradar. Tinha uma aparência
mais nobre, mais grandiosa, do que Gerald, pelas mesmas razões
que levavam Gerald a parecer mais elegante, mais chique, do
que Toby.
- Não seria má ideia arejarmos um pouco a sala - disse ela,

94

mal olhando para Nick, o qual, sem a menor hesitação, se dirigiu


à janela de guilhotina mais próxima e puxou a vidraça de cima,
deixando entrar o ar fresco e húmido dos jardins.
- Já está! - disse ele, sentindo que, agora, já eram amigos.
- Mas diga-me, vai ficar cá em casa? - perguntou Lady Partridge.
- Sim, tenho um quartinho minúsculo no último piso.
- Não sabia que havia quartos minúsculos em Hawkeswood. Mas
também é verdade, creio, que nunca estive no último piso. - Nick
sentiu uma muito razoável admiração pelo modo como que ela
pegara na sua modéstia e lha revelara em toda a sua
profundidade; quase encontrava uma nota de autocrítica no
comentário de Lady Partridge.
- Suponho que tudo depende do conceito que cada um tem de
minúsculo - disse ele com um sorriso resolutamente lisonjeador.
A vaga paranóia que acompanha a embriaguez começara já a
manifestar-se e Nick não sabia ao certo se estava a ser grosseiro
ou encantador. Pensou que aquilo que acabara de dizer talvez
fosse o oposto do que pretendera dizer. Um criado apareceu com
uma bandeja e ofereceu-lhe um brandy, e Nick, com uma
passividade deslumbrada, observou todos os movimentos do
criado enquanto servia a bebida. «Oh, está bem assim... está
bem assim...!» Era o género de criado com um ar simpático e
cúmplice, mas não era Tristão, o qual atravessara já um limiar
muito especial na mente de Nick e se transformara no objecto de
um ardor que, na sua ausência, se inflamava ainda mais.
Perguntou-se se poderia sentir o mesmo por aquele criado -
bastavam uns quantos olhares, o estado de frustração em que se
encontrava, e uma única decisão meio consciente, para que a
figura do jovem ficasse gravada na sua mente e o seu pulso
acelerasse sempre que o visse.
- Nick também vive connosco em Londres - disse Rachel.
- Aí é que ele tem, de facto, um quarto minúsculo nas águas-
furtadas.
- Sim, creio que já me tinha dito que tinha alguém lá em casa
- retorquiu Lady Partridge, uma vez mais sem olhar para Nick. Era
como se ela tivesse suspeitado da sua fantasia de pertencer
àquele mundo, da sua fantasia de uma secreta fraternidade com
o seu belo neto, e, armada de um aguçado instinto territorial,

95

tivesse determinado erradicá-la. - Toby é sem dúvida


extraordinariamente popular - disse ela. - É um jovem tão bem-
apessoado... Não acha?
- Sim, acho - disse Nick, com alguma ligeireza, e logo corou e se
pôs a olhar para a sala como se o procurasse.
- Quem olha para Toby, nem imagina que é irmão de Catherine. A
sorte só o beneficiou a ele.
- Se é que a beleza é uma questão de sorte... - estava a dizer
Nick, meio para si mesmo.
- Mas diga-me, quem é que é aquela criatura baixinha, de óculos,
que está a dançar com o ministro?
- Mm, parece-me que não é a primeira vez que o vejo - disse Nick
e riu-se bem alto.
- É o Analista Cáustico - disse Rachel.
- Morton Danvers - registou Lady Partridge(1).
Rachel decidiu elevar o tom de voz. - Toby e Catherine chamam-
lhe o Analista Cáustico. Peter Crowther, é um jornalista.
- Vi coisas dele no Mail - disse Lady Partridge.
- Ah, claro... - disse Nick. E, de facto, o Analista Cáustico parecia
estar mesmo a dançar com o Ministro da Administração Interna,
a cortejá-lo, a cabriolar diante dele, curvando-se com novas
perguntas e recuando, como que de um salto, com uma
expressão de assombrado esclarecimento perante as respostas
que acabara de ouvir; e o ministro, que era pesado de pés e
praticamente desprovido de pescoço, não tinha outra hipótese
senão alinhar em tal coreografia, de um modo desajeitado, é
certo, embora cortês.
- Nunca pensei que pudesse enervar-me tanto - disse Lady
Partridge. - Durante o jantar, aquela criatura disse um ror de
disparates acerca da questão... da cor. Eu não estava ao lado
dele, mas era de todo impossível não o ouvir. Racismo, está a ver
- como se a palavra fosse tão desagradável como o próprio
conceito.
- Dizem-se sem dúvida muitos disparates a esse respeito -
comentou Nick com generosa ambiguidade. A velha senhora
fitou-o com um ar avaliador.

*1. A surdez da personagem leva-a a entender Mordant Analyst


(«Analista Cáustico») como «Morton Danvers». (N. do T.)

96

Viraram-se e viram Gerald avançando para salvar o Ministro da


Administração Interna, com um sorriso solícito nos lábios e uma
luzinha de ciúme nos olhos. Afastou o ministro, curvando-se para
ele num jeito confidente, abraçando-o quase, mas olhando
rapidamente à sua volta como alguém que tivesse preparado
uma surpresa: e foi então que explodiu um flash, seguido de um
zunido e de um novo flash.
- Ah! A Tatleris! - exclamou Lady Partridge, - já não era sem
tempo. - Afagou o penteado e assumiu uma expressão de...
coqueteria... de autoridade... de boas-vindas... de uma sabedoria
antiga... Era difícil dizer ao certo que efeito procurava Lady
Partridge.
A meio do corredor dos celibatários, Catherine incitava Nick e
Pat Grayson a apressarem-se. Chamava-os a batida da dance
music.
- Estás bem, querida? - disse Nick.
- Desculpa, querido. Foi aquele discurso horrível, era de todo
impossível suportar mais uma palavra que fosse! - Estava sem
dúvida animada, mas as suas reacções eram lentas e
brincalhonas, e Nick concluiu que a sua amiga devia estar
pedrada.
- Creio que foi um discurso um pouco egocêntrico. Catherine
sorriu com um ar de superioridade digno da avó. -
Teria sido um discurso maravilhoso, mas para o aniversário dele,
não é? Pobre Fedden!
Pat, que devia ser a pessoa descrita no discurso como uma
estrela de cinema, disse: - Oh, não me pareceu que fosse assim
tão mau, considerando que - e logo se calou, sem especificar os
«quês» do considerando. Nick vira-o em Sedley, uma série da TV
em que Pat fazia o simpático malandro epónimo e estava
impressionado com o facto de, na vida real, ter encontrado um
homem muito mais baixo, velho e camp(1). Sedley era a série
favorita da mãe, embora Nick não tivesse a certeza se a mãe
sabia que Pat era um «não-sei-quê», como ela dizia. - Oh, não sei
se será boa ideia, amor... - disse ele, mal entraram na sala. Mas
Catherine empurrou-o para o meio da multidão

*1. Simplificando, o termo camp, neste caso específico, aponta


para uma mescla de «efeminado» e «kitsch». (N. do T.)

97

e Pat, com uma agilidade notável, desatou a girar em torno dela,


dando sonoros estalidos com os dedos e franzindo o sobrolho
num jeito muito sexy. Ela parecia adorar toda aquela piroseira,
mas, para Nick, Pat significava um futuro indesejável, um homem
famoso que era uma bicha velha, tonta e estúpida. Afastou-se
deles, embrenhando-se na sala, e logo descobriu uma série de
pessoas que lhe gritavam e sorriam e o abraçavam com inegável
brutidão, como se ele fosse uma pessoa muito popular. O brandy
estava a produzir os seus efeitos. Por um minuto, porém, ficou
envergonhado por ter tratado Pat Grayson com óbvia rudeza e
por fingir que fazia parte daquela turba hetero. Sentia-se muito
bem e pôs um sorriso de todo o tamanho para Tim Carswell, que
atravessou a sala ao seu encontro e logo o agarrou e o fez
rodopiar até que tropeçaram um no outro e a respiração húmida
de Tim ardia já na face de Nick e Tim gritou - Eh! Alto lá! - e,
lentamente, começou a afastar-se, ainda num redemoinho, até
que, por fim, recuou para o meio da multidão com um braço
erguido ao jeito de Mick Jagger. - Como é que está o sedutor e
impetuoso rapaz? - perguntou Nick, e Sophie Tipper olhou para
ele por cima do ombro, com uma expressão de vago
reconhecimento, enquanto dançava, que raiva!, com Toby; Nick
espetou um beijo em cada um deles, na face, antes que eles
conseguissem impedi-lo, e gritou de novo - Como é que estás? -
com um sorriso radioso e o coração destroçado, e Toby mostrou-
lhe um punho com um polegar erguido e, um segundo depois,
desandou com Sophie. Nick continuou a dançar, o colarinho
estava tão apertado e ele a suar em bica, desabotoou o casaco e
depois voltou a abotoá-lo; ah, havia uma janela aberta ao fundo
da sala, de maneira que lá foi ele sacudir-se para ao pé da janela,
e por aí ficou um bocado, o rosto virado para aquele cheiro a
terra molhada. Martine estava sentada no banco de pedra que se
erguia ao longo da parede, e, sob a luz verde intermitente, o seu
paciente perfil parecia desfigurado e perdido. - O-olá! - gritou
Nick, parando e quase se ajoelhando ao lado dela. - Wani não
está consigo? - Ela olhou à sua volta com um encolher de
ombros: - Oh, está para aí algures... - E Nick queria muito vê-lo,
subitamente certo e seguro de que iria saudá-lo tal e qual como
nas suas fantasias, ao mesmo tempo que introduzia uma
pequena marosca, sim, ele poderia cair, como um peso morto,
sem metade pelo menos

98
das suas capacidades físicas e mentais, nos braços de Wani.
Três raparigas faziam coreografias disco, rodopiando e tocando
nos cotovelos. Nick não era capaz de fazer isso. As raparigas
dançavam melhor do que os rapazes, como se a dança fosse
realmente o seu elemento, ao passo que os seus parceiros,
brigões, agressivos, faziam uma triste figura. Nick não gostava
da zona ao pé da porta, para onde se tinham deslocado alguns
dos casais mais velhos, os quais, agora, iam trotando para a
frente e para trás como se estivessem muito habituados a
dançar ao som dos Spandau Ballet. A luz ultra-violeta fazia
brilhar a camisa de peitilho de Nat Hanmer e o branco dos seus
olhos ficava assustadoramente estranho. Deram as mãos por um
momento e Nat esbugalhou os olhos para ele por causa do efeito
grotesco que provocava e depois gritou-lhe - Seu grande
panasca! - e deu-lhe uma palmada nas costas e espetou-lhe um
beijo na orelha antes de desandar. - Ai os teus olhos! - Mary
Sutton parou a olhar pasmada para Nick e ele esbugalhou os
olhos o mais que pôde. Era fácil tropeçar na borda razoavelmente
alta da pedra da lareira, bastava ir dançar para ao pé da mesma,
e Nick tropeçou e caiu em cima de Graham Strong e disse - É
bestial voltar a ver-te! - porque, por vezes, também lhe
acontecera desejar ardentemente Graham, Nick mal o conhecia,
e disse-lhe - Temos de dançar os dois sozinhos mais tarde - mas
Graham já lhe tinha virado as costas, e Nick acabou no meio de
Catherine, Russell e Pat Grayson, onde foi muito bem acolhido, o
que também não admirava, visto que formavam um trio
francamente confrangedor.
Abriu uma porta que ligava o salão de entrada a uma pequena
sala de estar, onde um homem em mangas de camisa se levantou
e disse - O que se passa? - e avançou na direcção dele com cara
de poucos amigos.
- Peço imensa desculpa - disse Nick -, fui dar ao sítio errado - e
retirou-se e fechou com estrondo a porta.
Podia ouvir a música ao longe, e o burburinho e as gargalhadas
que vinham da biblioteca, e um sonoro zunido nos seus próprios
ouvidos. Lá no alto, os cem lírios do lustre cintilavam e
piscavam, havia uma hesitante animação nas coisas, todas elas
palpitavam ao ritmo do seu próprio pulso. Foi avançando,
furtivamente por vezes, outras como se desfilasse, por uma série
de salas iluminadas, abandonado, divertido, pensando que, ao
olhar para um almofadão

99

ou para uns cortinados puxados, talvez pudesse ver muito de


relance uma pessoa escondida. De quando em quando, parava e
curvava-se a apreciar uma mesa ou um pequeno bronze
palpitantes que, mal uma pessoa desviava os olhos, pareciam
rodopiar. Encostou-se, num jeito meigo, se bem que um pouco
pesado, à escrivaninha da adorável Marquise de Pompadour, a
escrivaninha rangeu - ah, ele adorava aquele género de coisas,
mas... e se alguém estivesse a ver...? Entrou na sala de jantar
onde haviam almoçado, encontrou os interruptores e tratou de
examinar com toda a atenção a paisagem de Cézanne, a qual
também palpitava, com secretas geometrias. Porque é que
estava a falar para si mesmo acerca da pintura? O amigo
imaginário que se encontrava ao seu lado, o companheiro
devotado do filho único, precisava que ele o guiasse, que lhe
ensinasse aquelas coisas. A composição, disse... os diferentes
verdes... Uma ideia entranhou-se e ele reprimiu-a e evitou-a e
depois libertou-a, uma coisa de cada vez, enquanto abria uma
porta lateral que dava para um corredor castanho, o qual,
passando-se uma esquina, conduzia a outras portas, e foi então
que, no meio de uma corrente de ar fresca e revigorante, deu
com uma porta das traseiras aberta, o pátio de serviço ao fundo,
brilhando sob a chuva miudinha. Ali, as luzes eram cortantes,
eficazes, sem nenhum resquício sentimental. Nada que se
parecesse com o brilho requintado, enriquecedor, das velas ou
das luzes que iluminavam os quadros. Homens de jeans
empilhavam coisas e desfaziam-se ruidosamente de outras e não
paravam de gritar uns para os outros enquanto passavam por
Nick, de tal forma que ele sentiu-se como um fantasma cujos
«Obrigado!» e «Desculpe!» eram inaudíveis. Tristão estava a
lavar pratos numa copa e Nick avançou e entrou sem que Tristão
o visse, o coração de súbito a martelar, sorrindo como se eles
fossem mais do que amigos, e ciente, não obstante, de que
Tristão estava a trabalhar, de que era uma da manhã e de que ele
não passava de um bêbedo de lacinho, uma nota errada de
esperança e necessidade em forma de gente.
-Olá!
Tristão virou-se, olhou e suspirou e logo voltou a concentrar-se
no trabalho. - Tu vens para ajudar? - Os copos vinham em
bandejas metálicas, meio cheios, com manchas de bâton, beatas
de cigarro em Bordeaux, destroços de copos, pouco mais que o
pé com um resto pontiagudo em cima.

100

- Hum... Tenho a certeza de que partiria tudo - disse Nick e fitou-


o por trás maravilhado e com uma sensação de sorte e, de novo,
com a suspeita de que ia ser rejeitado.
- Uf...! Estou cansado - disse Tristão e atravessou a copa e Nick
sentiu que estava a atrapalhar. - Nove horas em pé agora.
- Imagino... - disse Nick, inclinando-se na direcção dele com uma
palmadinha ou uma festa amistosa que não alcançou o alvo e
acabou ignorada. Perguntou-se se não estaria prestes a cair para
o lado. - Então... Quando é que acabas?
- Oh, nós sempre em frente até vocês ir embora, miúdo. - Secou
as mãos a um pano da louça e acendeu um cigarro e só depois se
lembrou de oferecer um a Nick, ainda que sem grande convicção.
Nick odiava tabaco, mas aceitou num ápice. A primeira fumaça,
sem dúvida atroz, deixou-lhe a cabeça a andar à roda. - Mas tu
gostares da festa, não? - disse Tristão.
- É... - disse Nick, e encolheu os ombros e rendeu-se a um riso
franco e irónico. Queria impressionar Tristão na sua qualidade de
convidado de Hawkeswood, mas também queria escarnecer dos
convidados. Queria sugerir que estava a passar uma noite
muitíssimo agradável, que a equipa, sem dúvida, não poderia ter
feito melhor, mas que, para ele, tanto lhe fazia; além do mais (e
aqui, se-micerrou os olhos, sedutora e ousadamente), no que
tocava a diversões, tinha uma ideia muito melhor. Tristão talvez
não tivesse entendido tudo à primeira. Olhou para Nick com um
ar melancólico, como que para uma espécie de problema. E Nick
olhou também para ele, com um quente sorriso bêbedo, como se
soubesse o que estava a fazer.
Tristão perdera o lacinho e os dois botões de cima da camisa
estavam abertos, mostrando uma camisola interior branca. Tinha
as mangas arregaçadas e os seus antebraços eram percorridos,
aqui e ali, por pêlos pretos, mas, entre o coração e os joelhos,
usava um avental branco bem apertado, o qual ocultava aquilo
que, horas antes, fora uma tão pronunciada sugestão. A copa era
iluminada por uma única lâmpada fluorescente que revelava de
uma forma crua o seu rosto cansado e pálido. Parecia tão
diferente do Tristão que Nick gravara na sua mente; de tal forma
que só com alguma libidinosa força de vontade conseguiu achá-
lo atraente, o que quase parecia dar-lhe um pretexto para
desistir do criado e voltar para a festa.

101

- Muita gente aqui, não? - disse Tristão. Com azedume, olhou de


relance para as bandejas de copos e destroços, e soprou o fumo
no mesmo jeito crítico e sibilante de Polly, como se esse fosse
um sinal de uma qualquer sabedoria partilhada. E, nesse
momento, Nick ficou cheio de ciúmes, de amargos ciúmes, de
Polly, Polly engatara Tristão!, e não teve a menor dúvida de que
dali não arredava pé. - É, ele tem muitos amigos, este Mr. Toby...
Eu gosto dele. Ele é como um actor(1), não? - e Tristão fez um
gesto, longos dedos esticados como um leque junto ao rosto,
para indicar o esplendor geral da fisionomia de Toby, da sua
estrutura óssea, da sua pele.
- Sim, é - disse Nick com um risinho e uma sopradela de fumo.
Por um momento, teve a sensação de que o rosto de Toby pairava
em frente do rosto do criado, o qual era menos belo a todos os
níveis... Mas o facto de, afinal, não admirar Tristão tanto quanto
imaginava não faria parte de uma lição conhecida, não seria
mais um exemplo daquilo que ele qualificava como as segundas
melhores escolhas homossexuais? Aquela visita às traseiras da
mansão girava toda à volta de sexo e não de disparatados
anseios amorosos: Nick não ia obter o que queria noutro sítio
qualquer. Havia um desafio nos olhos encovados do rapaz e
qualquer coisa de codificado no seu carácter de estrangeiro,
seriam os madeirenses, de facto, receptivos ao sexo fortuito?
Nick não via por que raio é que não haviam de ser...
- Então quanto é que tu tiveste para beber? - disse Tristão.
- Oh, rios e rios... - disse Nick.
- Sério?
- Bom, não tanto como certas pessoas - disse Nick. Fumava e
segurava no cigarro junto à lapela e sentia que os seus gestos de
fumador revelavam claramente que ele não era grande fumador,
bem pelo contrário. Claro que o que havia de maravilhoso no seu
engate com Leo era o facto de ter sido um engate notoriamente
assumido como tal, isto é, ambos sabiam o que procuravam. Ao
passo que aquela história com Tristão podia muito bem estar
toda na sua cabeça. Não saberia dizer se a magreza do diálogo
mostrava

*1. No original, em vez de «actor», surge «hactor», ou seja, o


criado madeirense pronuncia «actor» com um «h» aspirado. Há,
nas suas falas, vários desvios à norma inglesa; alguns, é possível
dá-los em português; outros, como é o caso de «hactor», não. (N.
do T.)

102

até que ponto a conversa era supérflua ou se, ou se, pelo


contrário, seria um sinal da sua autenticidade. Suspeitava que as
conversas de engate deveriam ser, por norma, mais coloridas,
mais picantes. - Ouvi dizer que eras da Madeira - disse ele, e uma
das suas sobrancelhas
agitou-se um nada.
Tristão franziu os olhos e pôs o seu primeiro e muito leve sorriso.
- Como sabes isso? - disse. Nick aproveitou para o olhar bem nos
olhos. - Oh, eu sei, aquele tipo grande contou.
- Grande, não, enorme! - disse Nick. - Bom, pelo menos
ao nível da barriga!
Tristão procurou o cartão de Polly dentro do maço de cigarros. -
É ele? - disse. Nick olhou de relance, e com óbvio desdém, para o
cartão, mas logo se deu conta de que aquele pequeno rectângulo
lhe dera uma grande lição. Dr. Paul Tompkins, 23 Lovelock
Mansions... oh, já tão instalado, como se aquilo fosse um
consultório médico, com os rapazes na sala ao lado, à espera do
exame do doutor... Virou o cartão, onde Polly rabiscara 4 de
Setembro, 8 horas em ponto! - Porque diz ele em ponto? -
perguntou Tristão.
- Oh, porque é um homem muito ocupado - disse Nick, e, sentindo
que chegara o momento, fez um súbito movimento para a frente,
dois passos, os braços estendidos, e, nos lábios, um sorriso
cheio da inefável ironia com que contemplava Polly.
- Desculpa, pá... - um homem vermelho que nem um pimento
assomou à porta, depois baixou o queixo quase até ao peito e
deu uma risada atrevida e mordaz. - Por um momento, fiquei na
dúvida sobre o que é que se estaria a passar aqui! - Nick ficou
tão vermelho como o homem e Tristão teve a presença de
espírito adequada, e por certo provocante, para se rir com algum
desdém e perguntar: - Bob, como estão as coisas?
Bob deu-lhe algumas instruções relativamente aos diferentes
quartos, «Sua Excelência» foi referida umas quantas vezes, com
a ironia própria dos criados, mas também com um respeito
caridoso, e Nick todo se pavoneava com um sorriso tolerante,
para que aqueles dois ficassem a saber que ele conhecia Lord
Kessler pessoalmente, que tinham almoçado juntos e que Sua
Excelência lhe havia mostrado o Moroni. Quando Bob saiu,
Tristão disse: - O que é que eu vou fazer contigo? - sem grande
calor, mas também sem má vontade.

103

- nada - disse Nick num tom jovial, já que a bebida o deixara meio
anestesiado e quase cego perante o novo fracasso que se
avizinhava.
- Tenho de ir. - Tristão tirou o lacinho do bolso e, por um
momento, entreteve-se a mexer no elástico e no clipe. Nick
aguardou que ele despisse o avental. - Olha, OK, eu vejo-te, junto
escadas principais, três horas.
- Oh... OK, óptimo! - disse Nick, e encontrou um feliz alívio tanto
na combinação como no ligeiro deferimento. - Três horas...
- Em ponto - disse Tristão, com uma carranca severa.
Acercou-se da porta do quarto de Toby e espreitou lá para
dentro. Alguns dos seus amigos tinham-se instalado no quarto
depois de a música ter acabado às duas, e, agora, pareciam
avaliá-lo num jeito indolente. - Chiça, Nick, entra e fecha a porta -
disse Toby, acenando-lhe da ampla cama onde ele se sentara no
meio de vários amigos que tinham preferido estirar-se ao
comprido. Lord Kessler dera-lhe o Quarto do Rei, onde Eduardo
VII dormira; os drapeados de seda azul por sobre a cabeceira
convergiam numa coroa dourada que era vagamente cómica. Na
parede oposta, dominava um confortável nu de Renoir. Nick abriu
caminho por entre grupos sentados no chão, diante de um
enorme sofá onde o gordo Lord Shepton se deitara com a gravata
desfeita e a cabeça nas coxas de uma atraente rapariga bêbeda.
Tinham afastado os cortinados e aberto uma janela para que o
fedor da marijuana não chegasse, nem de longe, ao nariz do
Ministro da Administração Interna. De algum modo, haviam
recriado o ambiente de um quarto de universidade a altas horas
da noite, os pés das raparigas, ainda com as meias, estirados em
cima dos joelhos dos namorados, o fumo no ar, duas ou três
vozes dominantes. Nick sentiu o encanto, bem como a ameaça
do grupo. Gareth Lane arengava acerca de Hitler e Goebbels e o
tom arrastado e monótono da sua prelecção e as ruidosas
gargalhadas com que os outros saudavam os seus trocadilhos
traziam de volta qualquer coisa de deprimente dos tempos de
Oxford. Gareth Lane fora considerado «o mais competente
historiador do seu ano», mas não conseguira obter um First, e,
agora,

104

parecia desempenhar o papel do aluno num infindável e redentor


exame oral. As conversas e o discurso prosseguiram, mas os
ouvidos de Nick, os seus ouvidos bêbedos e torturados por um
zunido constante, pareciam encontrar no quarto um silêncio
residual e, no meio desse silêncio, os seus próprios movimentos
e palavras eram como que uma intrusão... e, no entanto, não
deixavam o menor traço. Havia no quarto outros camaradas seus
de Oxford, mas os dois meses que, entretanto, haviam
transcorrido, tinham-nos distanciado mais do que ele poderia
explicar. Ocorrera uma mudança qualquer, uma mudança
simples, é certo, mas forte, muito forte, uma mudança que vinha
sendo preparada havia muito tempo, e eles tinham reassumido
as suas vidas reais e ele ficara só na sua própria vida real. Voltou
a si e empoleirou-se na beira da cama e Toby estendeu-lhe o
charro.
- Obrigado... - Nick sorriu-lhe e, finalmente, brilhou entre eles um
pouco da velha e reconfortante doçura. Nick passara a noite toda
à espera desse momento.
- Santo Deus, querido, cheiras pior que uma casa de putas - disse
Toby. Nick continuou de olhos fixos nele, paralisado, por ora, pela
necessidade de aguentar o fumo, uma comichão na garganta,
todo corado de vergonha e prazer. Retinha com todas as suas
forças o «querido», uma novidade absoluta!, e essa simples
palavra deixava-o tão quente e atordoado como a erva. Depois,
soprou o fumo e deu-se conta das implicações grosseiramente
hetero do resto da frase. Disse:
- E como é que tu sabes a que cheira uma casa dessas? -
perguntando-se, com sentido decoro, se Toby alguma vez teria
estado numa casa de putas. Imaginava-o subindo aos tombos
uma escada estreita.
Toby piscou-lhe o olho. - Tens-te divertido?
- Sim, tem sido fantástico. - Nick olhou à sua volta com um ar
apreciativo, suavizando a sua visão íntima da noite como uma
longa e trôpega jornada, meio caçada, meio fuga, como um
daqueles sonhos que ele tinha, algures numa casa de campo, os
seus sonhos com escadas. - A propósito, que é feito de Sophie?
- Teve de voltar para Londres. É. Tem uma audição na segun-da-
feira.
- Ah... certo... - Aí estava uma boa notícia para Nick, e,

105

quanto a Toby, bêbedo, pedrado, os olhos a brilharem, parecia


todo contente com a ausência da namorada, gostava da nota
adulta de responsabilidade, presente no facto de a ter mandado
para casa, e também gostava de se ver livre dela. Levantou a voz
e disse:
- Oh, cala-te já com essa história do filho da puta do Goebbels! -
Porém, após um breve e incrédulo sussurro, o mecanismo de
Gareth, à prova de todo e qualquer choque, continuou a
matraquear os ouvidos alheios.
Toby era o rei naquela noite, na sua cama imensa, e os amigos,
por uma vez, eram os seus súbditos. Desempenhava esse papel
com extrema animação, num registo que roçava o infantil. Nick
achou tudo isso muito comovente e excitante. Quando a erva fez
o seu retardado efeito, contraindo e libertando como uma
massagem psíquica, Nick estendeu-se para trás e pegou na mão
de Toby e assim ficaram refastelados durante uns trinta ou
quarenta segundos absolutamente divinos. Era como se o quarto
estivesse impregnado de um ambiente de amorosa hilaridade,
tão docemente impossível de ignorar como a água-de-colónia Je
Promets. Lembrou-se do que Polly lhe dissera no jardim, várias
horas antes, e pensou que, finalmente, por uma vez, Toby talvez
viesse a ser seu.
Havia à volta deles um murmúrio de mexericos pedrados,
cabeças acenando para as mortalhas, as figuras embaçadas,
mas brilhando à luz dos candeeiros. «Mas será que o Fúhrer
autorizou a Solução Final?», perguntava a si mesmo Gareth; e
era evidente que o jovem historiador ia passar detalhadamente
em revista as diversas posições em torno da célebre questão.
Houve um protesto mesclado de risinhos por parte de Sam
Zenman, um génio de cabelo encaracolado que entrara
directamente para o banco Kesslers, a ganhar vinte mil ao ano. -
Estás numa casa cheia de judeus, não te importas de calar a
boca sobre essa merda da Solução Final, estamos numa festa... -
e pegou no seu copo com o cenho carregado e a audível
fungadela de uma pessoa gentil obrigada a ser brutal.
- Se quiseres, passo já para Estaline... - disse Gareth num tom
jocoso.
Após um minuto de reflexão, Roddy Shepton declarou, com toda
a robustez de que era capaz: - Bom, eu não sou judeu, porra!
- Tobias é judeu - disse a namorada dele -, não és, querido?

106
- Por amor de Deus, Claire... - disse Roddy.
Claire ficou parada a olhar para Toby com um ar cada vez mais
convicto. - Há bocado, não houve alguém que disse que o
Ministro da Ministração Interna também era judeu...? - disse ela,
por
fim.
- Acalma-te, Claire! - rugiu Roddy Shepton. Estava firmemente
convencido de que a sua opulenta e plácida namorada, que
nunca erguera a voz para criatura nenhuma neste mundo, era
uma pessoa perigosamente lúbrica. Talvez fosse a maneira que
ele tinha de dizer que domara um vulcão sexual; o que, por sua
vez, talvez o ajudasse a explicar porque é que andava com uma
rapariga que era classe média da cabeça aos pés, mais
exactamente a filha do tipo que administrava os bens da família
Shepton.
Claire olhou à sua volta, determinada a aprofundar a sua nova
ideia. - Tu és judeu, não és, Nat?
- Sou, querida - disse Nat -, ou, enfim, meio judeu.
- E a porra da outra metade é galesa - atirou Roddy. Virou a
cabeça sobre os joelhos de Claire e semicerrou os olhos para ver
melhor em que estado se encontrava ela. - Santo Deus - disse -,
estás perdida de bêbeda.
Este era o tipo de insulto que, no ambiente do Martyrs' Club,
passava por espirituoso; para dizer a verdade, era até uma das
frases que mais se ouvia naquele espaço. Certa vez, Toby levara
Nick à acanhada e desconfortável sala de jantar do clube, com
as suas paredes apaineladas, onde meninos podres de ricos do
Christ Church(1) e dirigentes da associação de estudantes
alinhavam todos pelo mesmo diapasão ensurdecedor e bebiam
até caírem e conspiravam e trocavam aos urros comentários
inaceitáveis, não se esquecendo de brindar a maltratada equipa
de funcionários com o mesmo género de ofensas. Era um outro
mundo, agressivamente impenetrável, e, para Nick, fora um
choque descobrir que Toby fazia parte dele.
- Estás completamente fodido de bêbedo, Shepton - disse Toby.
Tirara as meias e enrolara-as numa bola. De repente, atirou a
bola com toda a força e precisão à cabeça do gordo lorde.
- Mas que porra é esta, Fedden - murmurou Roddy, mas ficou-se
por aí.

*1. Um dos colleges de Oxford. (N. do T.)

107

Nick estava a explicar que, nos romances de Conrad, o mar era


uma metáfora tanto para a fuga ao eu como para a descoberta
do eu, um ponto que ganhava uma força cada vez mais
reveladora à medida que ele o repetia. Riu-se da perfeição, da
beleza, da ideia. Não era um grande fumador de coisa nenhuma,
e uma segunda e ameaçadora passa, que fumara na crença de
que a primeira não causara nenhum efeito, podia deixá-lo a
flutuar e a tagarelar horas a fio. Nat Hanmer estava sentado no
chão ao lado dele e Nick sentia a coxa quente do antigo colega
bem comprimida contra a sua. Naquela noite, havia em Nat
qualquer coisa de adoravelmente bicha. Sem tirar os olhos de
Nick, acenava-lhe e sorria-lhe enquanto ele falava. Para Nick, a
pressão que sentia nas têmporas não era causada pela droga;
não, o que se passava era que as mãos enormes de Nat estavam
a massajar-lhe suavemente o crânio, apertando e calcando mais
em determinados sítios, designadamente nas têmporas. Sam
Zenman também estava a acenar e a sorrir e, a certa altura,
corrigiu (mas deixando implícito que o caso não tinha a menor
importância) um detalhe da intriga de Victory que Nick
entendera mal. Nick adorava Sam porque ele, apesar de ser
economista, lera tudo e tocava viola e manifestava um lisonjeiro
interesse pelas pessoas menos sublimemente omniscientes do
que ele.
Apetecia-lhe deitar-se e escutar e talvez desatar num longo
linguado com Nat Hanmer, cujos lábios não eram tão cheios e
macios como os de Leo, mas que era (Nick nunca dera por isso)
quase belo, bem como, é claro, um marquês. Os dois em mangas
de camisa. Nat disse que estava a tentar escrever um romance.
Comprara um computador, «uma máquina mesmo sexy», nas
suas palavras. À luz quente e explanatória da erva, Nick
entendeu o que ele queria dizer. - Adorava lê-lo - disse. Na outra
ponta do quarto, Gareth mudara de frente e descrevia agora a
Batalha da Jutlândia para um paralisado círculo de raparigas. O
seu enorme lacinho de veludo era todo vaidade e pedantice.
Gareth ia continuar assim nos próximos quarenta e cinco anos.
Nick ouviu-se a si mesmo a falar das imensas saudades que tinha
do seu namorado e, um segundo depois, o seu coração acelerou.
Sam sorriu, ele era pura e maduramente hetero, mas tinha uma
atitude de abertura em relação a tudo. Revelando grande
largueza de espírito, Nat arriscou: - Oh, tu tens um... tu tens um
tipo?

108

Nick disse: - É... - é, num instante, ja lhes tinha contado tudo: o


anúncio, a resposta ao anúncio, o encontro, o sexo no jardim, o
cómico episódio com o vizinho Geoffrey. E também que, agora, se
encontravam regularmente. Para ele, a erva era uma espécie de
droga da verdade, se bem que com um ligeiro desvio. Sentia um
desejo irresistível de contar tudo e de mostrar aos outros que
também era uma pessoa sexualmente activa, mas, ao fazê-lo,
parecia dar-se conta de que a sua vida era uma região ignota e
muito estranha, de maneira que acrescentava alguns retoques
fáceis, o bastante para lhe dar um aspecto mais harmonioso e
normal.
- Não sabia de nada disso - disse Toby, que andava por ali
descalço e com uma garrafa de brandy na mão. Estava com um
sorriso imenso, ligeiramente escandalizado, talvez mesmo
magoado pelo facto de Nick não lhe ter contado que tinha um
caso.
- Ah, sim... - disse Nick - desculpa... É um tipo negro, muito
atraente, chama-se Leo.
- Devias tê-lo trazido contigo esta noite - disse Toby. - Porque é
que não disseste nada?
- Eu sei - disse Nick; mas estava mesmo a ver a cena: Leo em
Hawkeswood, com os seus jeans a escorregarem-lhe da cintura e
a camisa da irmã e a rispidez da sua ironia contra os
entranhados preconceitos daquela gente de Oxford.
- E pode saber-se porquê? - disse Lord Shepton, que estivera a
ressonar momentos antes, mas que acordara vítima das cócegas
que lhe tinham feito, e que, agora, exibia um ar remelosamente
vingativo. Ninguém sabia do que é que ele estava a falar. - Já cá
temos aquele filho da mãe do... Woggoo(1) - e fez um esforço
notável para se pôr de pé, no rosto um esgar de pretensa
culpabilidade, para ver se Charlie Mwegu, um dos mais
importantes avançados da equipa de rugby de Worcester e o
único negro convidado para a festa, se encontrava no quarto. -
Quer dizer, mas que porra - disse. Shepton era um bufão tolerado,
uma autoparódia consentida, e Nick limitou-se a erguer as
sobrancelhas e a suspirar; por um momento, a velha e
deprimente atmosfera, cheia de suspeições

*1. Woggoo associa wog, termo pejorativo (mais usado na Grã-


Bretanha) para «indiano», «paquistanês», «árabe» e, por
extensão, qualquer pessoa que não seja branca, ao «gu» de
Mwegu, o apelido do jogador de rugby do Worcester College. (N.
do T.)

109

e medos e cautelas, emergiu de novo, manchando aquele


ambiente romântico, uma absoluta novidade, que a erva
proporcionava.
Claire fitava-o com um ar terno. E não se conteve: - Acho que os
homens negros podem ser tão atraentes... têm umas orelhas
pequenas tão queridas, não é... às vezes... não sei... Deve ser
bom...
- Acalma-te, Claire! - atroou Roddy Shepton, como se os seus
piores receios se tivessem confirmado. E logo fez uma imensa
ginástica para apanhar o seu copo, que estava algures no chão.
- Não, para ser franca, até estou cheia de ciúmes - disse Claire,
e, na brincadeira, espetou um soco na barriga de Lord Shepton.
- Ah, sua vaca! - berrou Lord Shepton; mas logo recentrou a sua
atenção, lenta mas avidamente, em Wani Ouradi, que acabava de
entrar no quarto. - Ah, Ouradi, já voltaste. Espero que me dês um
bocadinho desse pó branco, ó árabe dum raio!
- Oh, francamente! - disse Claire, num desesperado apelo a todos
os presentes.
Mas Wani ignorou Shepton e avançou por entre o grupo na
direcção da cama e de Toby. Mudara de figurino. Vestia agora um
casaco de smoking de veludo verde. Por um momento, Nick
mergulhou, num jeito desprendido, se bem que intensamente
curioso, na beleza de Wani. O queixo poderoso, voluntarioso, mas
compensado por um ligeiro arredondamento, os olhos fundos,
dotados de uma perturbante brandura, as maçãs do rosto e o
nariz comprido, as orelhas pequenas e os caracóis tão dóceis, a
cruel e encantadora curva dos seus lábios, faziam com que tudo
o mais naquela casa parecesse trivial, demasiado artificioso, ou
irrelevante. Nick não desejava outra coisa senão abandonar o
atraente Nat e voltar a subir para a cama do rei. Ergueu os olhos,
em jeito de desculpa pelas alarvidades de Shepton, mas Wani
não lhe enviou nenhum sinal revelador de um reconhecimento
especial. E o grupo depressa desatou a falar de outra coisa
qualquer. Wani reclinou-se por um momento ao lado de Toby e
apreciou o quarto através do filtro das suas pestanas. Toby tinha
pegado num lenço de chiffon cor-de-rosa de uma das raparigas e,
com uma perseverança bêbeda, estava a tentar transformá-lo
num turbante. Wani nada disse acerca do turbante, como se eles
fossem quase demasiado íntimos para que se perdesse em tais
comentários, como se eles fossem figuras de um outro tempo

110

e de uma outra cultura, e Nick ouviu-o dizer: Se tu veux...(1 antes


de se levantar e seguir para a casa de banho. Toby ficou sentado
ainda um instante, rindo-se artificialmente da conversa, e,
depois, lá foi atrás de Wani com um bocejo e um tropeção. Nick
sentiu-se todo a ruir por dentro, cheio de ciúmes de ambos e
chocado - quase ao ponto de entrar em pânico - com aquilo que
eles estavam a fazer. Quando voltaram, observou-os como uma
criança curiosa à procura de vestígios dos vícios dos pais.
Apercebia-se do ínfimo esforço que faziam para reprimirem a sua
excitação, da ligeira solenidade fingida que fazia com que eles
parecessem - coisa estranha - menos felizes e menos pedrados
do que os outros. Havia neles o brilho de um conhecimento
secreto.
Um charro voltou a passar de mão em mão e Nick pegou no
cigarro e deu uma valente passa. Depois, levantou-se e foi abrir a
janela, pois queria contemplar a noite serena e húmida. As
imponentes faias para lá do relvado recortavam-se em silhuetas
cinzentas contra a primeira e muito pálida luz do céu. Era um
belo efeito, tão mais extraordinário do que aquela festa: o mundo
girando, as alegres frases práticas dos primeiros pássaros...
Embora ainda faltasse muito tempo - com toda a certeza - para o
sol nascer... Pôs-se todo direito, agarrou no pulso e manteve o
relógio imóvel diante dos olhos. Eram quatro e sete da manhã.
Virou-se e olhou para as outras pessoas que estavam no quarto,
imersas no seu estupor e animação, e sentiu-se dominado por um
austero pensamento - estavam-se completamente borrifando
todos eles, não, àqueles jovens nunca lhes ocorreria sequer
imaginar um engate com um criado, ou o desastre que era perder
esse engate. Deu os primeiros passos na direcção da porta e
abrandou e parou, o sentido de direcção obliterado pelo efeito da
erva. Mas afinal de contas para onde é que ele ia? Tudo parecia
ter-se dissipado num silêncio, como se tivesse havido um acordo
nesse sentido. Nick sentiu-se demasiado exposto, de pé no meio
do quarto, sorrindo cautelosamente, como alguém que não
entende a piada de que o grupo se ri; porém, quando olhou para
os outros, teve a sensação de que estavam tão estáticos e
aturdidos como ele. Devia ser uma substância incrivelmente
forte.

*1. Em francês, no original. (N. do T.)

111

Não podia ser. Nick encaminhou o seu pensamento no sentido de


mover a perna esquerda para a frente; conseguia persuadi-lo a
passar o cabo do joelho e a descer até ao pé, mas, aí chegado, o
seu pensamento morria, sem a menor hipótese de se transformar
em acção. Havia qualquer coisa de penoso na perspectiva de ter
de ficar ali parado durante muito tempo. Lançou um olhar mais
ousado aos outros... Para já, não era nada fácil lembrar-se dos
nomes de alguns deles... Lentas piscadelas de olhos, pequenos
espasmos no lugar de sorrisos... «É, é mesmo...», disse Nat
Hanmer, num jeito cadenciado, acenando com a cabeça,
concordando com uma qualquer afirmação que só ele ouvira.
«Julgo que sim...», disse Nick, mas calou-se e olhou à sua volta,
porque, afinal, estava envolvido numa conversa sobre Gerald e a
BBC. No entanto, ninguém tinha dado por ele. «Mas vocês estão
a pensar, não era precisamente isso o que Bismarck pretendia?»,
discorria Gareth.
Nick não sabia ao certo como é que a coisa tinha começado.
Sam Zenman estava tão completamente perdido de riso que, a
certa altura, deitou-se no chão, mas, um instante depois, sentiu
que estava a ficar sufocado e teve de se sentar. Uma das
raparigas apontou para ele com um ar de gozo, mas não estava
nada a gozar com Nat, não, também ela caíra num riso
incontrolável. Nat estava vermelho que nem um pimento e as
lágrimas jorravam-lhe dos olhos cerrados e ele repuxava os
cantos da boca para baixo, na esperança de conter o riso. Nick
só conseguia parar de rir se olhasse fixamente, ferozmente, para
o chão, mas, mal erguia os olhos, desatava de novo a rir
convulsivamente, aquilo era como soluços, não, eram mesmo
soluços, tudo misturado com a delirante e inexplicável
comicidade da garrafa de brandy e da dama de Renoir e da coroa
de estuque dourado sobre a cama, e todos eles com as suas
ideias e lacinhos e planos e objecções.

112

4.

Isto não é uma Vida de Herói», disse um crítico acerca da


primeira versão, «mas sim uma Vida de Cão. Ou melhor, uma
canzoada(1) infrene, é o que, convenhamos, o ouvinte deve ter
sentido ao escutar a interpretação do trecho da batalha por
Rudolf Kothner e a Orquestra Sinfónica de Tallahassee». - Era
sábado de manhã e, na cozinha de Kensington Park Gardens, um
jovem e acutilante radialista comparava discos de Ein
Heldenleben no programa «Um guia para uma discoteca».
«Ah, ah», riu-se azedamente Gerald, que caíra numa agitação de
maestro, ora todo curvado, ora todo empinado, dirigindo a
orquestra primeiro com uma esferográfica e, agora, com uma
raquete de ténis. Gerald adorava aquelas manhãs domésticas;
sempre muito solícito com Rachel, fazia listas de tudo e mais
alguma coisa e inventava e executava pequenas tarefas na
cozinha e na adega. E hoje ainda era melhor, já que a rádio
estava a passar o seu compositor favorito; deixou-se ficar na
cozinha, atrapalhando quem precisava de passar, balouçando a
cabeça tanto quanto podia balouçá-la, e nem um bocadinho
chateado por ter de ouvir uma mesma passagem vezes sem
conta, em interpretações rivais cada vez mais estrondosas.
Interessou-se muito em particular pela divisãos

*1. No original, a dog's breakfast, uma expressão coloquial que


significa «confusão», «barafunda», «trapalhada». Para traduzir
este sentido da expressão, perde-se a literalidade: «um pequeno-
almoço de cão» - o que faz sentido, dada a hora matutina a que o
programa é transmitido. (N. do T.)

113

dos adversários ao neroi em maldizentes flautas;, vituperadores


(oboé) e carpidores (corne-inglês), e, com uma vigorosa direita,
digna do melhor ténis, atirou-os a todos para a despensa no
momento da vitória do Herói.
- Mas passemos agora às Obras de paz do Herói - disse o crítico -,
onde Strauss, em jeito de autocelebração, volta a pegar nalgum
material dos seus primeiros poemas sinfónicos e canções.
- Não gosto do tom deste sujeito - disse Gerald. - Ah, agora...!
Nick... - enquanto a música se deleitava e avolumava
desmesuradamente. - Tem de admitir, Nick...
Nick sentou-se à mesa, espevitado por uma caneca de café e
pronto a dizer todo o género de coisas que lhe viessem à cabeça.
Hoje, em particular, se havia algo capaz de o deixar fora de si era
a arrogante autoconfiança de Strauss, que não levava
minimamente em conta as suas mais íntimas frustrações, as
duas tensas semanas em que o sonho de Leo como um possível
futuro se dissipara no ar. Contudo, limitou-se a pôr uma
expressão aterrada. Na presente e persistente contenda em
torno de Strauss, Nick mostrava-se sempre animadamente
combativo e dava por si a saltar para posições cada vez mais
vertiginosas, após o que tinha de tirar uns minutos para ponderar
tudo muito bem ponderado e dar a essas posições uma sólida
base racional. O simples facto de ter um opositor trazia à tona
sentimentos latentes e polarizava pontos de vista que, de outro
modo, dificilmente se daria ao trabalho de formular. Para ele, era
urgente rebaixar Richard Strauss, e fazia-o com todo o prazer,
embora de uma forma algo histérica, como se aquilo que estava
em causa ultrapassasse, de longe, o âmbito das questões de
gosto. Não lhe era difícil medir o estranho zelo das suas
reacções, bastava-lhe estar atento à força com que denegava o
inocente prazer que sentia ao ouvir algum do material de Strauss
e as coisas mágicas que o compositor fazia com o mesmo,
aquela melodia densa, maciça, por exemplo, que, durante dias,
não lhe sairia da cabeça. Ficou a olhar para Gerald, que se
deleitava e avolumava tanto quanto a música, e o vago embaraço
que sentiu perante tal espectáculo facilitou-lhe muito as coisas. -
Não... não... não há nada a fazer - disse ele, por fim, enquanto o
jovem crítico calava rapidamente a música.
- Tivemos Herbert von Karajan, com as cordas da Filarmónica de
Berlim numa forma superlativa.

114

- Exactamente, é o disco que nós temos, não é? - disse Gerald. -


O Karajan, Nick? - visto que fora Nick que, durante os meses de
Verão, andara a vasculhar nas estantes dos discos e os ordenara
por ordem alfabética.
- Hum... julgo que sim...
- Mas creio que faz todo o sentido - prosseguiu o arguto jovem -,
perguntar se a pura opulência do som e estes tempos tão
dilatados não deixam esta leitura da obra à beira do abismo,
levando-a a perder aquele toque essencial de auto-ironia, sem o
qual Uma Vida de Herói pode, com extrema facilidade,
transformar-se num festival de grosseria. Ouçamos agora
Bernard Haitink e o Concertgebouw interpretando a mesma
passagem.
Gerald exibia a expressão grave e atormentada de alguém que
fora ferido na contenda e que avaliava uma eventual reacção
com constrangida dignidade. A orquestra rompeu de novo num
furioso assalto. - Não creio que goste muito desta - disse. E uns
momentos depois: - Não vejo que grosseria é que pode haver
numa existência gloriosa.
Nick disse: - Oh, se a grosseria o incomodasse, então você nunca
ouviria Strauss.
- Ooh...! - protestou Gerald, subitamente reanimado.
- Talvez a Sinfonia em Fá, que é dos primeiros tempos de Strauss
- disse Nick. - Mas mesmo essa...
- Vou a casa de Russell - anunciou Catherine, atravessando a
cozinha com um chapéu espetado na cabeça e os dedos enfiados
nos ouvidos, faltava saber se para escapar aos feitos do Herói,
se às objecções do pai. Na realidade, Gerald limitou-se a dizer:
- Está bem, Puss(1) - e bateu exultantemente com o pé perante a
retumbante entrada das trompas. Era um caso evidente de God-
dammery(2), a palavra com que Catherine designava toda a
música

*1. Termo afectuoso que, a par de Cat (gata), Gerald utiliza com a
filha; traduzível por «Bichana». (N. do E.)
2. A personagem usa a expressão God-dammery por colagem ao
Gótterdámmerung (O Crepúsculo dos Deuses, de Richard
Wagner). É um engenhoso trocadilho (facilitado pela proximidade
entre o alemão e o inglês) que, obviamente, não passa na
tradução. A personagem distorce o título de Wagner e, em vez de
«crepúsculo dos Deuses» temos algo que, caricaturalmente, se
aproxima de «danação do Deus». No entanto, God-dammery
também aponta para «Goddam» ou «Goddamn», um termo que
exprime normalmente raiva ou frustração (isolada, é traduzível
por «Raios (me) partam!», «Porra!», etc, etc). (N. do T.)

115
romântica pesadamente orquestrada. Desandou na direcção da
sala de entrada e Gerald e Nick ouviram a porta da rua bater com
algum estrondo.
O problema era aquela colossal redundância, o desperdício de
uma técnica brilhante com material de segunda ou terceira
categoria, a sensação de que os nervos morais haviam sido
extirpados, deixando o grande e inchado corpo entregue a uma
vida de inúteis excessos. E, depois, havia o rematado mau gosto
de aplicar a elevada linguagem metafórica de Wagner às
banalidades da vida burguesa, um absurdo de que Strauss só
uma vez por outra parecia ter consciência! Mas Nick não poderia
dizer uma coisa dessas, claro que soaria pedante, daria a
impressão de que atribuía demasiada importância ao caso.
Gerald retorquiria que aquilo era apenas música. Durante uns
minutos, Nick tentou ler o jornal, mas, por alguma estranha
razão, estava tão excitado que não conseguia concentrar-se.
- É então que o corne-inglês abandona finalmente o seu papel de
adversário carpidor e se metamorfoseia numa bucólica flauta, a
fim de introduzir a pungente melodia que anuncia a partida
iminente do Herói rumo ao além. Para um exemplo de como não
interpretar esta passagem, voltemos àquele disco de preço
muito acessível, gravado pela Orquestra da Rádio Caracas, cujo
solista, pelos vistos, não foi avisado da profunda transformação
que referimos...
- Gerald, sempre conseguiste falar com Norman? - perguntou
Rachel num tom insistente, como se até ela não estivesse muito
certa de conseguir vencer a barreira straussiana. Porém, uma
pergunta ou uma ordem de Rachel tinham automaticamente
prioridade sobre tudo o mais, de modo que Gerald respondeu:
- Consegui, sim, minha querida - logo avançando para ela a fim de
pegar num cesto de rosas amarelas com longos caules que
Rachel trazia do jardim. Ela não precisava de ajuda e a breve e
galante pantomima quase passou despercebida, como se fosse, e
era, o idioma comum do casal. - Penny vai passar por cá para
termos uma conversa. Norman diz que ela é demasiado
orgulhosa para trabalhar para os Tories.
- Ficará muito contente com a perspectiva de um emprego -
comentou Rachel. Norman Kent, cujos temperamentais retratos
de
Toby e Catherine estavam pendurados na sala de estar e no
patamar do segundo piso, era um dos amigos de «esquerda» de
Rachel dos seus tempos de estudante, um amigo a quem ela
permanecera obstinadamente leal; Penny era a rosada e loura
filha de Kent, também acabada de sair de Oxford. Era possível
que fosse trabalhar para Gerald. - Catherine ainda está lá em
cima? Ou já desceu? - perguntou Rachel.
- Mm...? Não, não está lá em cima nem cá em baixo; de facto,
está fora. Foi ver o homem da Face(1).
- Ah. - Rachel cortava com expressiva eficácia os caules das
rosas. - Bom, espero que ela volte a tempo para o almoço com a
tua mãe.
- Não estou lá muito certo disso... - disse Gerald, que considerava
sem dúvida que o almoço correria muito melhor sem a filha,
tanto mais que Toby e Sophie iam estar presentes. Escutou o
programa até à recomendação final sobre Ein Heldenleben e,
com um ar pensativo, desligou o rádio. - Aquele tipo, Nick... -
disse - ... é um tipo decente, não é?
- Quem... Russell? Sim, acho que sim. - Tendo prestado um
testemunho abonatório, fervoroso, até, duas semanas antes,
quando nem sequer conhecia Russell, via-se forçado a manter
uma posição vagamente positiva, agora que o conhecia e sabia
que o indivíduo era pura e simplesmente insuportável.
- Ah, ainda bem - disse Gerald, contente por ter arrumado esse
ponto.
- A mim, pareceu-me uma criatura francamente sinistra - disse
Rachel.
- Percebo o que quer dizer - disse Nick.
- Se há uma coisa que nós já aprendemos, Nick - disse Gerald -, é
que os namorados de Catherine são todos maravilhosos.
Qualquer crítica nossa é a mais refinada das traições. Quanto
menos encantador for o indivíduo, tanto maior será o empenho
com que o admiramos.
- Nós adoramos o Russell - disse Rachel.

*1. No original, the man witb the Face é «o homem» que trabalha
na revista Face, mas também pode ser entendido como uma
referência à «desfaçatez» ou ao «descaramento» do fotógrafo.
(N. do T.)

116 - 117

- Não se pode dizer que seja uma bonita figura - concedeu


rapidamente Nick, sabendo que esse era precisamente um dos
factores que mais atraía Catherine, que descrevia Russell como
«uma foda do outro mundo».
- Oh, francamente, o indivíduo é um rufião completo - disse
Rachel com um sorriso implacável. - As fotografias que ele tirou
em Hawkeswood são puro veneno. Ficámos todos com um ar de
idiotas consumados.
- Um alvo fácil - disse Gerald, e era claro que estava pensar numa
coisa completamente diferente. Na semana anterior, Catherine
mostrara-lhes ao jantar uma selecção das fotografias. Eram a
preto e branco, cheias de grão, e tinham sido tiradas sem flash e
com longas exposições, o que, tudo junto, moldara as feições
das pessoas em máscaras sinistras. A fotografia que mostrava
Gerald e o ministro a serem fotografados para a Tatler resultara
numa pequena obra-prima. Entre as fotografias que Catherine
não mostrara, contavam-se as de vários convidados fornicando,
mostrando insultuosamente o rabo, mijando para a fonte e
snifando cocaína. - É isso o que The Face é? - disse Gerald. - Uma
espécie de revista satírica...
- Não propriamente - disse Nick. - É mais pop, e moda.
- Não me importava de ver um exemplar - arriscou Rachel. E Nick
deu por si a subir os quatro lanços de escadas a fim de ir buscar
um exemplar da revista ao quarto de Catherine. Uma sensação
de ingerência criminosa, uma perturbante memória daquilo que
por pouco não acontecera naquele quarto três semanas antes,
levaram-no a descer as escadas numa pressa. Deu uma vista de
olhos à revista ao passar pela porta do quarto dos seus
anfitriões, só para se certificar de que não era demasiado
escandalosa. Para dizer a verdade, até gostava de The Face, mas
havia muita coisa na revista que não compreendia. A foto da
capa, um Boy George com quilos de base na cara e montes de
longos caracóis, era de Russell. Quando entrou na cozinha, Nick
sentiu-se de súbito embaraçado, como se, por engano, tivesse
trazido uma das suas quatro revistas pornográficas. Passou a
revista ao casal e eles colocaram-na em cima da mesa e deram
início à inspecção.
- Mm... perfeitamente inofensiva - murmurou Gerald.

118

- É, não passa de uma coisa para miúdos - disse Nick, mantendo-


se por perto (muito perto, de facto), a fim de interpretar e
reflectir. Não seria muito útil como guia para a sua própria
cultura juvenil, mas sabia que aquilo não era, de todo, uma coisa
para miúdos. Detiveram-se numa página dupla reservada à moda,
que mostrava alguns modelos meio nus e bastante sexy, num
simulacro camp de uma batalha de almofadas. Gerald franziu
ligeiramente o sobrolho, uma maneira de negar todo e qualquer
interesse por aquelas mulheres, e Nick deu-se conta de que o
seu paradigma para aquela inspecção era um qualquer difícil
recontro com os seus pais, que teriam enrubescido perante o
estilo sexualizado de toda a revista, qualificando-a como «um
disparate pegado» ou «puro lixo» só porque não eram capazes
de mencionar a conotação sexual propriamente dita. Nick
apreciou uma série de belos homens esparramados nas páginas
da revista e, também ele, enrubesceu assombrosamente. -
Sempre achei o grafismo um verdadeiro pesadelo.
- Mas não é que é mesmo um pesadelo? - disse Rachel num tom
grato. - Uma pessoa sente-se completamente perdida. -
Começaram a ler um artigo que começava com: «Tirem-me esse
filho da puta daqui!', diz Daddy Mambo, de Collision.»
- Muito bem - disse Gerald, num tom vagarosamente depreciativo,
enquanto folheava as páginas dos anúncios de clubes e álbuns.
Parecia vagamente perturbado, não com a revista propriamente
dita, mas com o facto de Rachel a ter visto. - Neste exemplar,
não há nenhuma obra do jovem génio...? - perguntou.
- Hum, sim, foi ele que fez a capa.
- Ah... - Gerald examinou a foto num jeito afectadamente
minucioso. - Ah sim, diz aqui: «foto Russell Swinburne-
Stevenson.»
- Não sabia que ele tinha um apelido - disse Rachel.
- Quanto mais dois - disse Gerald, como se, afinal, Russell talvez
não fosse tão mau tipo quanto isso.
Atentaram no sorriso carmim e no inusitado chapéu de Boy
George. Nick não o achava nada sexy, mas não havia dúvida de
que aquela imagem veiculava pesadas implicações sexuais.
- Boy George é um homem, não é? - disse Rachel.
- Sim, é - disse Nick.
- Não como George Eliot.

119

- Não, de maneira nenhuma.


- Uma pergunta perfeitamente lícita - comentou Gerald.
A campainha tocou, produzindo um som que parecia misturar um
rápido e estridente chocalho com um silvo. - Será Judy? Tão
cedo? - disse Rachel, francamente irritada. Gerald foi até à sala
de entrada e ouviram-no abrir a porta da rua e atroar um «Olá»
naquele tom peremptório e desencorajador que ele tinha. E,
depois, num outro timbre que fez com que o coração de Nick
desatasse a martelar e com que o ar parado da casa rompesse a
estremecer e a cintilar, ouviram Leo dizendo:
- Bom dia, Mr. Fedden. Passei por aqui e pensei que talvez o
jovem Nicholas estivesse em casa.
- Hum, sim, sim, ele está... Nick! - chamou Gerald, mas Nick já ia
disparado, com um andar estranho, como se tivesse andas, ou
pelo menos foi o que lhe pareceu, um estranho andar feito de
embaraço e orgulho. Tudo aquilo era abrupto e desconcertante,
mas ele não conseguia parar de sorrir. Era a primeira vez na sua
vida que um amante o visitava, e tal facto tinha sem dúvida uma
aura de escândalo. Gerald não convidou Leo a entrar, mas
afastou-se um pouco para que Nick passasse e para se certificar
de que não havia nenhum problema.
- Olá, Nick - disse Leo. -Leo!
- Como é que isso vai? - perguntou Leo com o seu sorrisinho
cínico, mas com um olhar que quase acariciava, que transmitia a
Nick uma mensagem secreta e que, um momento depois, lhe fez
sinal de que Gerald se tinha retirado; ainda que, por certo, Leo o
tenha ouvido dizer: «...é um amigo de Nick...», e, passado um
bocado: «Não, é um sujeito negro.»
- Estou tão contente por te ver - disse Nick, com alguma cautela,
pois não queria mostrar que estava louco de excitação. E, logo
de seguida: - Tenho pensado em ti. Pensado no que seria feito de
ti, no que andarias a fazer - soando um pouco como a mãe,
quando refreava afectuosamente uma nota crítica. Fitou a
cabeça de Leo como se nunca tivesse visto nada assim em toda
a sua vida, o seu nariz, a barba curta, o sorriso tímido, indeciso,
que era uma confissão da sua própria vulnerabilidade.
- É, eu percebo - disse Leo. Pôs-se a mirar a ampla rua branca e
Nick lembrou-se daquela frase de Leo, verdadeira, sem dúvida,
mas misteriosa: «É que este teu amigo já anda nisto há algum
tempo.» - Desculpa não ter dado nenhum sinal de vida.
- Oh, não faz mal - disse Nick e descobriu que as semanas de
espera e de fracasso já estavam em boa medida esquecidas.
- É, eu tenho andado um bocado adoentado - disse Leo.
- Oh, não! - Nick conformou-se a acreditar na palavra de Leo e
apercebeu-se de que um dado tão simples como aquele lhe abria
as portas de uma nova e adorável esfera de acção, uma esfera
onde poderia manifestar toda a sua ternura e companheirismo e
que lhe permitiria interferir na vida de Leo. - Sinto imenso que
tenhas estado doente...
- Era uma coisa no peito - disse Leo. - Parecia que não
conseguia livrar-me daquilo.
- Mas agora já estás melhor...
- Ooh, sim! - disse-lhe Leo, piscando o olho e agitando o corpo em
jeito de demonstração; o que levou Nick a pensar que
poderia dizer:
- Demasiado sexo ao ar livre, imagino. - Nick não sabia, de todo,
o que é que se podia ou não dizer, o que é que era engraçado e o
que é que era inepto. Temia que a sua inocência viesse ao de
cima.
- És mesmo um desavergonhado, não és? - disse Leo num tom
apreciativo. - És mesmo um rapaz completamente sem vergonha
nenhuma. - Vestia os mesmos velhos jeans do primeiro encontro,
os quais, para Nick, possuíam agora uma comovente qualidade
anedótica, pois conhecia-os e amava-os; e um blusão de treino
com fecho metálico que o fazia parecer pronto para a acção, ou
para a inacção, para os rigores e as demoras dos treinos. - Não
me esqueci da nossa pequena cambalhota nos arbustos.
- Nem eu - disse Nick, com uma contenção atordoada, olhando de
relance por cima do ombro.
- Eu pensei: o rapaz é tímido, um bocadinho convencido, mas algo
se passa dentro daquelas calças de veludo cotelê, de maneira
que vou dar-lhe uma oportunidade. E estava coberto de razão!
Nick enrubesceu de prazer e desejou que houvesse uma maneira
de distinguir «tímido» de «convencido», essa confusão que o

120 - 121

vinha atormentando havia tanto tempo. Queria louvores cem por


cento puros, tal como queria amor incondicional.
- De qualquer modo, eu estava aqui perto, de maneira que pensei
que podia tentar a minha sorte. - Leo olhou-o de alto a baixo
significativamente, mas, um momento depois, disse: - Só que
tenho de passar por casa do velho Pete, em Portobello Road, não
sei se queres vir.
- Claro! - disse Nick, pensando que uma visita ao ex-amante de
Leo não era propriamente o seu guião ideal para um segundo
encontro com Leo.
- É só um minuto. O velho Pete não tem andado lá muito bem.
- Oh, sinto muito... - disse Nick, embora, desta feita, sem o
ímpeto de uma solidariedade possessiva. Viu um táxi preto
encaminhando-se lentamente na sua direcção, uma figura
perscrutando impaciente no banco de trás; o táxi parou mesmo
em frente deles e o motorista enfiou o braço pela sua janela e
abriu a porta de trás. Visto que a passageira (que Nick sabia ser
Lady Partridge) teimava em não emergir, aconteceu uma coisa
muito rara: o taxista saiu do carro e escancarou ele mesmo a
porta de trás, afastando-se num jeito cerimonioso que ela
agradeceu secamente ao sair.
- Mas quem é esta megera velha? - disse Leo. E havia
seguramente qualquer coisa de combativo no feroz olhar com
que Lady Partridge brindou as duas figuras nos degraus da
frente, bem como no seu rigoroso conjunto de vestido e casaco
azul, como se ela tivesse vindo para jantar e não para um
simples almoço em família. Nick pôs um sorriso largo e saudou-a:
- Olá, Lady Partridge!
- Olá - disse Lady Partridge, com a menor afabilidade de que era
capaz, com o apressado apreço de uma pessoa famosa saudada
por um admirador desconhecido. Nick não podia acreditar que
ela já se tivesse esquecido dele, de modo que prosseguiu com
uma cortesia quase satírica.
- Permita-me que lhe apresente o meu amigo Leo Charles. Lady
Partridge. - Visto de perto, o casaco da velha senhora,
ostentando uma saturação de cintilantes bordados pretos e
prateados, possuía uma textura escamada; tecidos mais
delicados, ao roçarem naquilo, poderiam abrir profundas malhas.
Lady Partridge sorriu e disse:
- Como tem passado? - num tom extraordinariamente cordial, o
qual, não obstante, transmitia algo de definitivo, a certeza de

122

que nunca mais voltariam a falar um com o outro. Leo estava a


dizer olá e a oferecer a sua mão, mas a mãe de Gerald já o tinha
deixado para trás e avançava decididamente pela porta da
frente, que ficara aberta. - Gerald! Rachel, querida! - chamou ela,
nervosa, como se procurasse um porto de abrigo.
Portobello Road ficava a não mais que dois minutos de caminho
da porta verde dos Fedden e não havia tempo para cenas
amorosas. Leo ia a pé, conduzindo a bicicleta com uma mão, e
Nick caminhava descontraído a seu lado, sem dúvida com um ar
muito normal, mas sentindo-se estonteadamente atento, como se
pairasse acima de si mesmo. Talvez fosse aquela experiência de
caminhar no ar de que algumas pessoas falavam, e que, tal como
o roller skating, era uma coisa que se conseguia dominar através
da prática; porém, na sua primeira tentativa, Nick passou o
tempo todo a oscilar e a cambalear. Tinha uma pergunta tão
importante a fazer a Leo que, em vez de a fazer, deu por si a falar
de uma coisa completamente diferente. - Vejo que já sabes de
Gerald - disse.
- O teu esplêndido Mr. Fedden - disse Leo, no seu jeito
inexpressivo, quase como se soubesse que esplêndido era uma
das palavras favoritas de Gerald. - Bom, eu percebi que havia
qualquer coisa que tu não querias que eu soubesse, e isso é uma
coisa que acaba sempre por me espicaçar, quer dizer, eu sou
assim mesmo. E, depois, o teu amigo Geoffrey, lá no jardim, disse
não sei o quê sobre o Parlamento, de maneira que eu pensei,
bom, vou mas é investigar esta história toda lá no trabalho.
Listas eleitorais, Who's Who, nós sabemos tudo acerca de si...(1)
- Estou a ver - disse Nick, lisonjeado, mas surpreso com este
primeiro contacto com o Leo profissional. Claro que ele fizera
pesquisas similares quando se apaixonara por Toby. Havia uma
excitação desviada, dir-se-ia que por interposta pessoa, naquilo
tudo, com a data de nascimento de Gerald e os seus
passatempos e as suas diversas directorias substituindo, de
algum modo, os detalhes íntimos, os beijos e tudo o mais que ele
quisera do seu filho. Pensou que, provavelmente, as coisas não
tinham funcionado assim para Leo.
- Para um Tory, até que é bastante giro, o tipo - disse Leo.

*1. O slogan das publicações Who's Who («Quem é Quem»):


«Who's Who, we know ali aboutyou». (N. do T.)

123

- Sim, toda a gente parece gostar dele, excepto eu - disse Nick.


Leo fitou-o com um sorrisinho malicioso. - Eu não disse que
gostava dele - emendou. - Não, é outra coisa, é assim como
alguém da TV.
- Bom, estou certo de que em breve Gerald será de facto alguém
na TV. Mas, para ser franco, é claro que há monstros tanto num
partido como no outro, quer dizer, no que toca ao físico.
- Sem dúvida.
Nick hesitou. - Mas há uma espécie de pobreza estética no
conservadorismo, não é?
- Sim?
- Aquele azul é uma cor impossível.
Leo aquiesceu com um ar pensativo. - Não me parece que esse
seja o principal problema deles - disse.
As multidões do fim-de-semana apinhavam-se já ao longo da rua
que vinha da estação e que descia a íngreme encosta até ao
mercado. O estabelecimento de Pete ficava na fila recurvada de
lojas à esquerda: PETER MAWSON a ouro sobre preto, como o
nome de um velho joalheiro, as montras ocultas por uma tela
reticulada apesar de a loja estar aberta. Leo abriu a porta com o
ombro e o tapete rompeu num repique de aviso que só parou
quando ele conseguiu enfiar a bicicleta na loja. Nick já tinha
espreitado para aquela loja, num daqueles fins-de-semana sem
grande movimento, quando o estabelecimento estava fechado e
com os taipais de protecção corridos e o correio espalhado pelo
chão. Nas montras que ladeavam a porta, havia um par de mesas
Império com tampos de mármore, e, para lá das montras, um
espaço que fazia lembrar mais um armazém meio vazio do que
uma loja.
Podiam ouvir Pete a falar ao telefone numa sala das traseiras.
Leo arrumou a bicicleta num jeito familiar e avançou pela loja
dentro e Nick ficou sozinho, pestanejando ansiosamente para
aquela última imagem de Leo, o ligeiro requebro ou dança que
havia nos seus passos. Ouviu Pete a desligar, um murmúrio de
beijos e abraços. - Ooh, tu sabes... - disse Pete. - Não, estou um
bocadinho melhor.
- Trouxe o meu novo e simpático amigo Nick para te conhecer -
disse Leo numa voz tolamente jovial que fez com que Nick

124

se desse conta de que aquela poderia ser uma meia hora muito
constrangedora para todos eles. Para começar, Nick seria muito
sensível a toda e qualquer coisa que pudesse ser dita. Como
tantas vezes sentira já, ele possuía o tipo de ironia errado, os
conhecimentos errados, para a vida gay. A ideia de um casal de
homens, entre outras emoções que envolviam interesse e
excitação, ainda provocava nele algum choque. Ele e Leo faziam
um par, à sua maneira, é certo, uma maneira peculiar e
transitória, mas a verdade é que ainda não formavam um casal.
- Então o que é que temos por cá? - perguntou Pete, voltando
para a loja atrás de Leo.
- Pete, Nick - disse Leo com um sorriso largo e uma mímica que
traduzia o profundo desejo de os juntar. O esforço que fazia para
cativar e tranquilizar era uma faceta dele que Nick ainda não
conhecia; parecia tornar possível, a longo prazo, toda a sorte de
outras coisas. - Pete é o melhor dos meus velhos amigos - disse
ele, com a sua voz cockney, a voz das concessões. - Não és,
querido? - Nick e Pete cumprimentaram-se e Pete retraiu-se,
como que confrontado com qualquer coisa que não seria muito
do seu agrado, e, um segundo depois, virou-se para Leo e disse-
lhe:
- Pelos vistos, andaste outra vez a rondar os portões das
escolas... Seu velho safado...
Leo ergueu uma sobrancelha e disse: - Bom, não te vou lembrar
que idade é que eu tinha quando me rapinaste do meu carrinho
de bebé.
Nick riu-se animadamente, ainda que aquele fosse um género de
burlesco camp a que não achava naturalmente graça; além do
que era surpreendentemente doloroso ter algum acesso, ainda
que muito superficial, ao passado daqueles dois. Deu por si a
imaginar, e meio a acreditar, a história de Leo no seu carrinho de
bebé. O facto de se ser muito jovem e de se ter uma cara fresca
e viçosa era, por norma, uma vantagem, mas se havia coisa que
ele não queria era que o vissem como uma criança. - A verdade é
que tenho vinte e um anos - disse ele num tom fingidamente
ríspido.
- Mas que modos de falar...! - comentou Pete.
- Nick vive aqui perto - disse Leo. - Kensington Park Gardens.

125

- Ah. Muito agradável.


- Bom, eu só estou lá a passar um tempo, com um velho amigo da
faculdade.
Leo, muito habilmente, não desenvolveu o tema; disse: - Nick
sabe imenso de mobiliário. O velho dele também negoceia em
antiguidades.
Pete fez um gesto depreciativo que abarcava o escasso conteúdo
da loja. - Esteja à sua vontade... - disse; de maneira que Nick, por
uma questão de boa educação, fez o que lhe foi sugerido,
enquanto os velhos amantes retomavam a sua sarcástica
cavaqueira; embora falassem baixo, Nick tratou de encher a
cabeça de música, um método infalível para não ouvir nem o
mais ciciado segredo; não, não queria ficar a saber de coisa
nenhuma, fosse ela boa ou má. Examinou algumas cadeiras Luís
XVI bastante maltratadas, uma cabeça de rapaz em mármore,
um armário com aplicações de ormolu que possuía um brilho
francamente duvidoso, e o par de mesas da montra que o fizeram
pensar nas mesas que, em Hawkeswood, eram transformadas em
lavatórios. Numa parede podia ver-se uma imensa e deprimente
tapeçaria representando uma cena báquica, com figuras
dançando e abraçando-se sob árvores castanhas e vermelhas; a
tapeçaria era demasiado alta para a parede e, na ponta de baixo,
descuidadamente enrolada, um sátiro com um sorriso de orelha a
orelha parecia deslizar para a frente, como um dançarino de
limbo prestes a roçar o chão.
O único objecto verdadeiramente interessante, que era preciso
avaliar e com que tinha de se confrontar (e era imperioso que
estivesse à altura dele), chamava-se Pete. Estaria a meio da casa
dos quarenta e tinha uma mancha calva no cabelo ruivo e um
nada de grisalho na barba rala. Era magro, uns três ou quatro
centímetros mais alto do que Nick e Leo, mas já com uma ligeira
curvatura nas costas. Envergava uns velhos jeans justos e uma
camisa de ganga, e mais qualquer coisa, que era uma atitude, um
ar de desafio enfastiadamente agressivo - Pete parecia
apresentar-se como alguém que viera de uma era de rebeldia
sexual e de aguerridas alianças e que encarava com menosprezo
um fedelho como Nick, que nunca havia lutado por nada. Ou pelo
menos era assim que Nick explicava o seu sentimento de
desconforto, a recorrente e vaga mistura de snobismo e timidez
com que perscrutava o mundo da homossexualidade real.

126

Nick imaginara Pete como alguém que corresponderia ao


estereótipo do antiquário bicha, ou mesmo como uma figura
assexuada como o seu pai, com um lacinho e uma barba branca
muito bem aparada. O facto de Pete ser como era lançava uma
luz completa-mente nova sobre Leo. Olhou de relance para Leo,
que estava agora com o seu sublime rabiosque empoleirado num
canto da secretária de Pete, e viu-o totalmente à vontade com
um homem de meia idade que estava longe de ser atraente -
aquele homem fora seu amante e fizera com ele uma centena de
coisas com que Nick se limitava ainda a sonhar, vezes sem
conta. Nick não sabia como é que aquilo tinha acabado, nem
quando; Leo e Pete pareciam partilhar a segurança de qualquer
coisa que já se tinha desfeito, mas, que, ao mesmo tempo, se
encontrava firmada havia muito tempo; e Nick invejava-os, ainda
que não fosse isso o que queria, bem pelo contrário. Fazia parte
do jogo de Leo, ou talvez fosse apenas o seu estilo, não ter dito
quase nada a Nick; mas se Pete era o tipo de homem de Leo,
parecia-lhe de súbito improvável que fosse ele o eleito para
substituir Pete.
- Veja bem isso aí, Nick - desafiou-o Pete, como que a tentar
amavelmente mantê-lo ocupado. - Sabe o que é, não sabe?
- É uma bela peça - disse Leo.
- É uma peça muito bela - disse Pete. - Luís XV.
Nick examinou os embutidos ao estilo de Boulle, ligeiramente
encrespados. - Bom, é uma encoignure - disse, e logo
acrescentou, tentando fazer charme: - n'est-ce-pas.(1)
- É aquilo a que nós chamamos um armário de canto - disse Pete.
- Onde é que foste desencantar este, amor?
- O oh... Encontrei-o na rua, tão simples como isso - disse Leo,
fitando Nick com um ar muito doce e piscando-lhe depois o olho.
- Parecia um bocado perdido.
- De uma pureza quase total - disse Pete.
- Por enquanto - disse Leo.
- Mas diga-me, Nick, onde é que fica a loja do seu pai? -
perguntou Pete.
- Oh, é em Barwick, no Northamptonshire, não sei se está a ver.

*1. Em francês, no original. (N. do T.)

127
- Eles não pronunciam Barrick?
- Só certas pessoas terrivelmente pretensiosas.
Pete acendeu um cigarro, puxou uma longa fumaça e logo
desatou a tossir, ficando com um ar quase doentio. - Ah, já estou
melhor - disse. - Sim, Bar-wick. Eu conheço Barwick. É aquilo a
que se pode chamar uma terra antiga e muito pitoresca, não é?
- Tem um belo mercado do século XVIII - disse Nick, para o
ajudar a lembrar-se.
- Uma vez comprei lá uma pequena escrivaninha Directório, estilo
bombé, você sabe o que quer dizer.
- Não devia ser nossa. Quase de certeza que era de Gaston. O
meu pai vende sobretudo coisas inglesas.
- Ah sim? E como é que vai o negócio actualmente, lá para
aquelas bandas?
- Muito fraco, para dizer a verdade - retorquiu Nick.
- Pois nós aqui estamos numa porra de uma estagnação total.
Cada vez pior. Mais quatro anos de Madam e vamos todos viver
para debaixo da ponte. - Pete tossiu de novo e, ao agitar os
braços, fez gorar a tentativa de Leo para lhe tirar o cigarro. -
Então há quanto tempo é que está em Londres, Nick?
- À volta de... seis semanas, talvez...
- Seis semanas... Estou a ver. Nesse caso, ainda tem muito
ambiente para ver. Ou só faz compras na sua zona? Já foi ao
Volunteer, aposto.
Leo reparou na hesitação de Nick e decidiu intervir: - Nem
pensar, não quero que ele vá àquela piolheira velha. Pelo menos
enquanto não tiver sessenta anos, como toda a gente que lá vai.
- Estou a explorar um pouco... - disse Nick.
- Não sei, para onde é que vão os rapazinhos novos nos dias que
correm?
- Bom, há o Shaftesbury - disse Nick, referindo um pub que Polly
Tompkins descrevera como palco de frequentes conquistas.
- Mas tu não és muito de ir a pubs, pois não, Nick? - perguntou
Leo.
- Do que ele precisa é de ir até ao Lift - disse Pete. - Para quem
gosta de chocolate, como parece ser o caso, não há melhor.
Nick corou e pôs-se a abanar a cabeça num jeito pateta. - Não
faço ideia - disse. Sentia-se muito embaraçado, ali, diante de
Leo,

128

mas inegavelmente fascinado pelo facto de alguém tentar


adivinhar e definir os seus gostos. Quanto a ele, parecia-lhe que
não tinha ainda passado das conjecturas.
- Quando é que conheceu Miss Leontyne?
Aí estava uma coisa que ele sabia com a máxima precisão;
contudo, respondeu: - Há cerca de três semanas - sentindo-se
cada vez mais pateta com as suas respostas rápidas e directas a
perguntas cheias de sarcasmo. Não se retraiu ao ouvir a alcunha
feminina de Leo e era verdade que, por vezes, passara conversas
inteiras a chamar «ela» a Polly Tompkins, mas nunca achara que
isso fosse tão necessário ou tão hilariante como certas pessoas
achavam.
- É assim que eu lhe chamo - disse Pete. - Leontyne Price-tag(1).
Espero que tenha o seu livro de cheques pronto para a acção.
Não havia resposta a dar àquilo, mas Leo murmurou
respeitosamente: - Quanto a etiquetas dos preços, essa é uma
matéria que tu conheces bem, não é, Pete?
Nick abafou o riso e atentou na expressão ofendida de Pete, que
logo se esbateu nos seus traços desfigurados enquanto fumava e
contemplava a deprimente tapeçaria. Seria talvez um daqueles
artigos que nunca atraem compradores e que o comerciante
quase acaba por dar, já que parecem trazer azar a toda a loja.
Lembrou-se de que Pete tinha estado doente, embora não
soubesse com quê nem se fora grave ou não. - Tenho para aí uma
porra de uma cama enorme - disse Pete. - Não consigo ver-me
livre dela. - O telefone tocou e ele desandou para a sala das
traseiras. - Dê uma espreitadela à cama.
A cama fora desarmada, e os balaústres canelados, a estrutura
rectangular do dossel, cheia de ornatos, e a cabeceira e os pés,
adornados com cenas rococó pintadas, tinham ficado
encostados a uma parede. - Bom, vamos lá dar uma olhadela -
disse Leo, encaminhando-se calmamente na direcção da cama e
afagando de passagem o braço de Nick; estava a ser simpático
para ambos, de certeza que não tinha a menor vontade de ver a
cama. Acharam melhor não mexer em nada, não fosse aquilo
cair. Nick examinou o dourado

*1. Trocadilho a partir do nome da famosa soprano norte-


americana Leontyne Price. Juntando tag a Price, Pete ficou com
price-tag, a etiqueta que indica o preço de determinado artigo.
(N. do T.)

129

esbatido e os cantos interiores sem qualquer polimento e que,


em condições normais, estariam ocultos. Passara toda a sua vida
a apreciar mobiliário de ângulos bem estranhos e nutria ainda
aquele sentimento infantil de que as mesas e os aparadores
eram pequenos e complexos edifícios de madeira onde uma
criança se podia meter, as almofadas e os capitéis e as cabeças
de leão à altura do rosto, as suas ásperas superfícies inferiores
retendo ainda o esbatido odor da madeira, da matéria-prima.
Aquela era, de facto, uma cama imponente, mas a estrutura tinha
caruncho e, pelos vistos, faltavam o revestimento do dossel, as
colgaduras da cabeça e dos pés, enfim, não havia nem sinal dos
panos ornamentais. Sentiu o velho impulso de armar aquelas
peças todas e de se meter na cama logo que ela estivesse
armada. Leo agachou-se para ver a pintura que adornava os pés.
- É bonito - disse. - O que é que achas?
Nick, de pé atrás dele, olhou para baixo e deixou que os seus
olhos percorressem o corpo de Leo tal e qual como no primeiro
encontro, quando ele estava a tratar da bicicleta. Logo desviou
os olhos, quase com um sentimento de culpa, e apreciou as
damas de amplas saias e os seus amantes com gibões,
dedilhando alaúdes; as árvores eram azuis e prateadas. Depois,
voltou a olhar para baixo, para o sítio onde os jeans sem cinto de
Leo se afastavam da cintura. Alimentara-se dessa imagem,
saboreara essa breve imagem uma centena de vezes desde o seu
primeiro encontro, ela era quase mais poderosa e emblemática
do que o sexo que se lhe seguira: a imensidão das rijas nádegas
de Leo, o provocante elástico azul dos seus slips. Por isso, o
facto de Leo lhe oferecer essa imagem uma segunda vez possuía
uma força dupla, era como a confirmação de uma promessa, e a
hesitação de Nick devia-se apenas àquele vago tremor de
desconfiança que sentia perante toda e qualquer perspectiva de
felicidade. - É, é muito bonito - disse.
Leo mexeu-se um pouco, para se ajeitar melhor sobre os
calcanhares. - Consegues ver? - disse.
Nick sorria e suspirava ao mesmo tempo. - Sim, consigo ver -
disse, num sussurro que afastava o diálogo dos ouvidos de Pete e
o transformava num estonteante subterfúgio.
- E o que é que achas? - perguntou Leo num tom animado.
- Oh... é muito belo - sussurrou Nick. Deu uma espreitadela para a
porta aberta da sala das traseiras, antes de se baixar e enfiar a
mão

130

e verificar que, desta feita, não havia nenhum elástico azul, não,
havia apenas o macio Leo, o rapado e cheio, tão cheio, Leo. Um
segundo ou dois e Nick ergueu-se e pôs as suas mãos,
delicadamente, à volta do pescoço de Leo, que se encostou às
pernas dele para se apoiar e roçou o ombro umas quantas vezes
no sexo erecto de Nick.
- Mm, tu gostas mesmo disto - disse Leo.
- Adoro - disse Nick.
Quando Pete voltou, deambulavam os dois pela loja com as mãos
nas algibeiras. - Não vão acreditar - disse ele. - Acho que vendi a
cama.
- Ah sim? - disse Leo. - Ainda agora Nick estava a dizer que era
uma bela peça. Mas ele acha que ainda precisa de ser muito
trabalhada, não é, Nick?
Os últimos minutos na loja caracterizaram-se por uma atmosfera
de ridícula estranheza. Era difícil captar o que os outros dois
estavam a dizer - Nick sentia-se radiantemente egoísta e
desatento e deixou a Leo a tarefa de despachar as coisas. O
mobiliário e os objectos ganharam um brilho mais intenso, mas,
ao mesmo tempo, pareciam furiosamente irrelevantes. Pete
devia ter-se apercebido de que se estava a passar qualquer
coisa, de que o ar cintilava e estremecia; e não seria de espantar
que fizesse algum comentário mais ácido. Mas não fez. Nick teve
a impressão de que Pete, realista e resignado, desistira já de
Leo, e deu-se conta de que lamentava - um pouco, pelo menos -
que as coisas fossem assim, pois queria que Pete sentisse
ciúmes.
- Bom, temos de ir almoçar - disse Leo. - Já tenho alguma fome. E
tu, Nick?
- Estou a morrer de fome - disse Nick, numa espécie de grito
feliz.
Todos se riram e se cumprimentaram e, depois de Pete ter
abraçado Leo, Nick apressou-o com uma palmadinha rápida.
E ali estavam eles, na rua, suportando as cotoveladas da
multidão, rodeados de gente por todos os lados, dois empecilhos
distraídos, imersos no seu lento passeio, o qual se ia espraiando
colina abaixo ao ritmo do suave e esbatido tiquetique das rodas
da bicicleta.

131

Tudo aquilo era novo para Nick, o facto de estar com outro
homem, de se deixar levar pela mansa e ondulante corrente de
um sentimento mútuo - com os seus remoinhos, por vezes, nas
entradas das lojas ou sob os toldos das tendas de bricabraque.
Já não falavam do almoço, o que era um bom sinal. Para dizer a
verdade, já nem diziam grande coisa, mas, de vez em quando,
trocavam olhares que floresciam em maravilhosos sorrisos
derretidos. O desejo formigava nas coxas de Nick e comprimia-
lhe o estômago e a garganta e quase o fazia gemer entre
sorrisos, como se, pura e simplesmente, não fosse justo que
alguém lhe prometesse tanto. Deixou-se ficar para trás um ou
dois passos e, enquanto caminhava, abanava a cabeça. Queria
ser os jeans de Leo, que lhe acariciavam as pernas naquele jeito
rítmico, descontraído, queria ser aqueles jeans que ora cingiam,
ora largavam. As suas mãos estremeciam contra o corpo de Leo
vezes sem conta, para lhe chamar a atenção para isto e mais
aquilo, uma cadeira, um prato, a cabeça, cheia de cristas azuis,
de um punk que passava. Ele devia ter ficado em primeiro lugar
nas audições de Leo. Tocava a toda a hora no rabo de Leo,
rendido ao simples prazer da permissão. Não se podia dizer que
Leo retribuísse as suas carícias; estava de olho na rua, um olho
hábil, matreiro, chegou mesmo a erguer uma sobrancelha
maliciosa perante a iminente, e certamente sensual, colisão com
outros rapazes que passaram por eles, mas isso não importava
porque os outros rapazes eram qualquer coisa de supérfluo, a
fugaz gota derramada do seu transbordante desejo por Nick.
Enquanto deambulavam por entre a multidão, Nick viu-se a si
mesmo correndo disparado pelos negligenciados anos da sua
educação moral. Tantas vezes se perguntara como seria aquilo;
pois ali tinha a resposta - aquilo era assim!
Sob o toldo franjado de uma tenda, viu o perfil curvado de Sophie
Tipper, examinando uma série de velhos anéis e braceletes numa
placa forrada a veludo preto. A sua primeira ideia foi ignorada ou
evitá-la. A inveja que sentia daquela mulher reemergiu de
repente. Porém, um momento depois, Toby apareceu atrás de
Sophie, debruçando-se para ela com um pequeno, murcho e
distraído sorriso de interesse, tal e qual um marido. Pousou o
queixo no ombro dela por um momento e ela murmurou-lhe
qualquer coisa, de modo que Nick teve a desconfortável
sensação de estar

132

a espiar duas pessoas que, descuidadamente, revelavam uma


complacente satisfação consigo mesmas. Formavam um casal
forçosamente belo, de algum modo luminoso contra o pano de
fundo da sombria confusão do mercado, como modelos sob uma
luz subtil, mas artificial. Nick virou-se e pôs-se a procurar
qualquer coisa que pudesse comprar para Leo; desejava
loucamente fazer isso. Via todas as razões para que o iminente
encontro social não fosse um êxito. - Eh, Guest! - chamou Toby,
dando a volta à tenda, agarrando nele e dando-lhe um beijo bem
firme na face.
- Olá, Toby... - O beijo era uma coisa nova (tudo começara na
festa), de algum modo facilitado e protegido pela presença de
Sophie. E, para Toby, quase parecia um alívio, como se o beijo
apagasse um qualquer velho constrangimento de baixo nível em
torno do facto de não se beijarem. Para Nick, era maravilhoso,
todo o calor de Toby por um momento colado a ele, mas também
era triste, de uma tristeza impossível de ignorar, visto que o beijo
marcava claramente o limite das concessões, visto que o beijo
era concedido na certeza de que, depois dele, não haveria nada
de mais íntimo.
- Olá, Nick - disse Sophie, aproximando-se e beijando-o em ambas
as faces com uma radiosa boa vontade, que Nick atribuiu ao
facto de ela ser uma actriz tão promissora. Queria apresentar-
lhes Leo, mas temia que eles dissessem alguma coisa de errado,
baseada, obviamente, no seu excitado palavrório em
Hawkeswood, quando estava pedrado. Era um daqueles
momentos inevitáveis, mas ainda surpreendentes, em que o mero
«quem me dera» era posto em causa pela verdade. Nick disse:
- Vão chegar atrasados ao almoço - e pareceu-lhe que soara
particularmente rude.
- Eu sei - disse Toby. - A avó queria uma das suas sessões com
Sophie. De modo que decidimos torná-la tão breve quanto
possível.
- Bom, eu adoro a tua avó - disse Sophie, fingindo um ar
petulante.
- Não, a avó é uma velha rapariga maravilhosa - disse Toby; e
Nick lembrou-se das coisas em segunda mão que ele costumava
dizer em Oxford, sagazes observações acerca dos amigos
famosos dos pais. Sorriu vagamente para Leo. Se Sophie não
estivesse ali, pensou Nick, poderia exibir Toby perante Leo como
um glamoroso acessório

133

do seu passado íntimo, ou talvez algo mais... Mas, com Sophie ao


lado, Toby encontrava-se irremediavelmente submetido e
enquadrado...
Nick disse: - Sophie Tipper, Toby Fedden: Leo Charles - e Leo
disse «Leo» duas vezes, enquanto os cumprimentava.
- Certo - disse Toby -, fantástico... Nós sabemos tudo a seu
respeito - e pôs um sorriso arreganhado e encorajador.
- Ah, sim? - disse Leo, num tom secamente dubitativo quanto à
eventual réplica de Toby.
- Leo é o novo namorado de Nick - disse Toby a Sophie. - Pois é, é
mesmo porreiro.
Nick deu apenas uma olhadela rápida e aflita a Leo, que
assumira uma expressão assustadoramente impassível, como
que para enfatizar o facto de que não renunciara ao seu poder de
escolha. A esfuziante confiança que experimentara momentos
antes parecia agora uma coisa ridícula. Nick disse: - Bom, nós
não queremos precipitar-nos...
- Mas isso é maravilhoso - disse Sophie, como se o bem--estar de
Nick, o seu coração infeliz, fossem, desde longa data, uma das
suas preocupações. Via-a já abençoando, com um gesto amplo,
magnânimo, o duplo triunfo representado pelos factores
«namorado» e «negro».
- Ele tem-no guardado muito bem guardado - disse Toby. - Mas
agora apanhámo-los em flagrante. Por assim dizer! - E corou.
- Andávamos só a dar um giro - disse Leo.
- Que maravilha. - Toby parecia tão excitado como Sophie com o
que, imaginavam eles, estaria a acontecer, e Nick teve uma visão
muito clara, se bem que triste, das razões mais profundas, talvez
mesmo inconscientes, de Toby: a possibilidade de se livrar de
uma obscura pressão, de um peso de expectativas nunca
expressas, graças à transferência da adoração de Nick para um
outro homem. Como Gerald poderia ter dito acerca de algo
completamente diferente, era mais do que suficiente para uma
pessoa se sentir encorajada. E talvez Sophie também se
apercebesse disso. Se calhar até tinham falado do caso, antes de
adormecerem, como um vago problema, só por um momento,
antes de o dito problema se reduzir à sua insignificância, como
uns chinelos de que nos libertamos,

134

com um leve pontapé, na beira da cama... - Então não vão


almoçar connosco? - prosseguiu Toby.
- Eu não fui convidado - disse Leo, embora abanando jovialmente
a cabeça. Nick fugia a sete pés da simples ideia de um tal
almoço, vendo-o como um nexo de todos os snobismos e
apreensões, o palco de torturadas intercessões entre diferentes
departamentos da sua própria vida: Leo, Gerald, Toby, Sophie,
Lady Partridge...
- Bom, fica para outra vez - disse Toby. - Temos de ir andando,
Pips. Mas vamos encontrar-nos todos em breve, está bem?
- Eu sabia que não encontraríamos o meu anel - disse Sophie,
com a irritação que esconde uma doçura que esconde uma
dureza.
- Voltamos depois de almoço. A rapariga tem por força de
comprar um anel - explicou Toby e Nick não gostou do tom.
Leo mantivera uma atitude de firme e irónica contemplação em
relação ao jovem casal, mas, nesse momento, disse: - Tenho a
certeza de que já a vi... - e ficou com um ar levemente
embaraçado por ter tomado tal iniciativa. O rosto de Sophie era a
clara ilustração de um hesitante deleite.
-Oh...
- Posso estar completamente enganado - disse Leo. - Não entrou
em English Rose}
Decepcionada, Sophie pareceu fazer um esforço para se lembrar.
- Oh, não... É muito simpático da sua parte, mas não, eu não
entrei nesse.
- Era Betsy Tilden - disse Nick.
- Certo, claro, Betsy... Não, mas eu tenho a certeza de que já a
vi...
Nick queria dizer que ela só tinha participado em duas coisas,
um episódio do Bergerac e um filme feito por estudantes de
cinema, baseado na peça The White Devil, financiado pelo pai
dela, e que tivera uma única exibição, numa sessão da meia-
noite do Gate.
- Eu entrei num filme que se chamava The White Devil - disse
Sophie, como se estivesse a falar com uma criança.
- É isso! - disse Leo. - Sim! Era um filme fantástico. Adorei esse
filme.
- Fico tão contente... - disse Sophie. - Você é tão amável!

135
Leo sorria, os olhos fixos, como se as cenas estivessem a passar
de novo pela sua cabeça e a mulher que estava à frente dele
condissesse miraculosamente com a imagem que vira no ecrã. -
É e quando ele o envenena, e... Viste este filme, Nick, White
Devil...}
- Perdi-o, estupidamente - disse Nick; embora se lembrasse muito
bem dos estudantes a fazerem de conta que eram uma equipa
cinematográfica, todos com um ar muito importante dando as
suas voltas em jipes, usando óculos escuros à noite, e, claro,
também se lembrava muito bem do Flamineo(1), Jamie Stallard,
um presunçoso idiota do Martyrs' Club, um dos seus ódios de
estimação...
- Há uma coisa que tenho de lhe dizer, aquele tipo, Jamie, não é?,
oh-ooh...
- Eu sei - disse Sophie. - Achei que gostaria dele.
- E não se engana, menina, não se engana - riu-se Leo, tão cheio
de uma excitação atrevida que Nick pensou por um momento que
talvez estivesse a gozar com Sophie. - Mas ele não é, embora...
seja melhor você dizer-me... elenco é... ou é...?
- Oh...! Quer-me parecer que não. Não, mas há muita gente que
faz a mesma pergunta - admitiu Sophie.
Leo reagiu filosoficamente. - Bom, quando passarem de novo o
filme, podem crer que levo aqui este rapaz - disse ele, num tom
superior, como se ambos pensassem que Nick, o culto e
excelente Nick, ainda com a cabeça cheia das matérias de
exame, enfiado até ao pescoço em tragédias de vingança, era
um bocado paspalhão.
- Está bem, eu vou - disse Nick, vendo a sessão de cinema, pelo
menos, como umas duas horas passadas na quente escuridão da
sala e não atrás dos arbustos. - E eu depois conto-te tudo acerca
de Jamie Stallard - acrescentou.
Porém, o interesse de Leo centrava-se todo em Sophie. - E o que
é que vai fazer a seguir? - perguntou. Nick ergueu as
sobrancelhas para Toby, em jeito de desculpa; Toby, por sua vez,
abanou amavelmente a cabeça, como que a dizer que quem saía
com uma actriz promissora estava condenado a desempenhar o
papel de acompanhante. Quanto a Sophie, parecia ligeiramente
sobreexcitada, em parte por causa da admiração com que era
brindada,

*1. Personagem de The White Devil. (N. do T.)

136

mas também porque não estava habituada a falar com pessoas


como Leo, e, para dizer a verdade, a coisa parecia estar a correr
muito bem. - Eu depois digo-lhe - respondeu ela. - Nick dá-me o
seu número de telefone!
Nick daria tudo para ter a segurança, a confiança que Toby
aparentava ter. Sentiu-se despeitado com as atenções que Leo
dedicara a Sophie, mas talvez fosse apenas porque se sentia um
pateta, uma criança autêntica, por ter espalhado a notícia de que
ele e Leo eram namorados. Toby disse: - Temos mesmo de ir, Pips
- e aquele diminutivo, tão profundamente tolo, acabou por ajudar
Nick a não dar muita importância ao caso.
Depois, porém, de novo sozinho na rua com Leo, os dois em
silêncio, teve uma noção clara daquilo que uma ligação poderia
de facto ser - e a infindável e miraculosa permissão era apenas
uma parte desse todo. Sentia os braços e as pernas
estranhamente rígidos, as mãos formigavam-lhe como se tivesse
voltado para junto da lareira depois de ter andado a lutar com
bolas de neve. Sentiu aquele momento ecoando outras ocasiões
em que estivera à beira do sucesso, mas acabara por falhar
devido à falta de coragem ou a expectativas estupidamente
risonhas. A efusividade de Leo com Pete e depois com Sophie
havia-se dissipado por completo, deixando-os aos dois sozinhos,
no meio daquela horrível paisagem, um mar de gente e de
barulho. Nick olhou de relance para ele com um sorriso tenso,
perante o que Leo esticou o pescoço com um ar sisudo e
desinteressado. - Bom - disse Nick por fim -, aonde é que queres
ir?
- Não sei, namorado - disse Leo.
Nick riu-se num jeito pesaroso; havia qualquer coisa que o
impedia de voltar a mentir. - Vamos a um café? - disse. - A um
indiano? Uma sanduíche? - o que era o máximo que, pelos seus
cálculos, poderia pagar.
- Bom, eu preciso de qualquer coisa - disse Leo, no seu tom de
impassível, mas provocante, ironia, fitando-o bem nos olhos. - E
não é uma sanduíche.
Nick não se aventurou a adivinhar o significado da resposta. -
Ah... - disse. Leo virou a cabeça e franziu o sobrolho para uma
tenda de louças de vidro, todas em tons baços de castanho e
verde, uma tenda que estava a intrometer-se numa crise que era
só deles

137

e que parecia brilhar de sugestões de uma vida doméstica já bem


assente e definida. Leo disse:
- Pelo menos quando andava com o velho Pete tínhamos o
apartamento dele... Mas nós, haverá alguma vez um sítio para
onde eu e tu possamos ir?
Seria esta a sua única objecção, o único obstáculo...? - Eu sei,
somos dois sem-abrigo - disse Nick.
- Amor sem-abrigo - disse Leo e encolheu os ombros e, um
instante depois, pôs-se a dar à cabeça, num ritmo contido, como
que avaliando se aquele seria um bom título para uma canção.

138

5.

Nick escolheu um momento antes do jantar para pagar a renda.


Era sempre constrangedor. - Oh... meu caro... - disse Rachel,
como se as duas notas de dez libras fossem uma espécie de
extravagância benigna, como uma caixa de chocolates, ou flores
oferecidas por um convidado, que eram também uma razoável
maçada. Procurou um sítio para arrumar a sua tigela cheia de
alperces em pleno processo de maceração. - Se acha que deve...
Nick deu de ombros e fungou. - Por amor de Deus - disse.
Acabara de gastar cinco libras num táxi, andava a fazer todo o
tipo de coisas imprudentes e teria adorado não pagar a renda.
- Bom, então, obrigada! - Rachel recebeu o dinheiro e pôs-se a
dobrar as notas com um ar grato, sem saber ao certo onde havia
de as deixar. Por essa altura, Gerald e Badger Brogan voltavam
do ténis, ouviu-se o tilintar esbatido dos seus pés nas escadas de
ferro do jardim e, um instante depois, entravam na cozinha como
dois rapazinhos matulões e francamente fogosos. Só por um
segundo, Gerald reparou na transacção que estava a ter lugar.
No segundo seguinte, exclamou: - Dei cabo dele! - e atirou com a
sua raquete para cima do banco.
- Santo Deus, Fedden, que mentiroso que tu és! - disse Badger. -
Ganhou-me por 6/4, Rache, ao terceiro set.
Gerald abanou a cabeça, saboreando o triunfo. - Dei-lhe cá uma!
- Estou certa de que os dois jogadores estiveram perfeitamente à
altura um do outro- disse Rachel com manifesta prudência.

139

Aí estava um comentário que nenhum dos contendores poderia


aceitar. - Acontece que eu decidi não contestar algumas
decisões do juiz que foram, no mínimo, fantásticas! - disse
Badger. Por um momento, vagueou em torno da mesa, pegando
numa colher e logo a largando, e depois num almofariz, sem ligar
ao que estava a fazer. Nick sorriu como que divertido com a
teatralidade do jogo, embora, de facto, se sentisse importunado
com o jeito livre e descontraído com que Badger se instalava
naquela casa, com a disposição competitiva que acirrava em
Gerald, e talvez com o seu contraponto, o facto de Badger poder
reivindicar um direito mais antigo e profundo à afeição de Gerald.
- Olá, Nick! - disse Badger, no seu tom metediço, sarcástico.
- Olá, Badger - retorquiu Nick, sentindo-se ainda demasiado
inibido para espicaçar um quase desconhecido a propósito da
madeixa entre o grisalho e o louro que irrompia no seu cabelo
preto, para participar naquele culto familiar que fazia de Badger
uma personagem, mas, tudo somado, achando que era mais fácil
lidar com Badger do que com o sóbrio e crítico «Derek»; o
próprio nome, «Derek», soava quase hostil.
Badger, por seu turno, sentia-se manifestamente desconcertado
com a presença de Nick na casa do seu velho amigo e lançava-se
em jocosas tentativas para compreender o jovem. Essa era
apenas uma faceta de uma atitude genericamente maliciosa,
rondava sorrateiro pela casa o dia todo, fazia perguntas
capciosas, reavivava velhos escândalos, vasculhava avidamente
à procura de novos. - Então, Nick, o que é que andou a fazer
hoje?
- Oh, o normal - disse Nick. - Passei a manhã na biblioteca, à
espera de que me trouxessem os livros; à tarde, tive aula de
Bibliografia: «Como descrever variantes textuais.» - No seu
relacionamento com Badger, Nick punha uma máscara tão
insípida quanto possível, como uma velha encadernação
castanha, ainda que, aos seus olhos, a expressão «variantes
textuais» faiscasse de sugestões quanto àquilo que
efectivamente fizera, e que fora faltar à aula e passar duas horas
na cama com Leo, em Hampstead Heath. Badger podia gostar de
escândalos, mas esse seria um escândalo demasiado grave para
ele. Na primeira noite da sua estada, descrevera um amigo
comum de Oxford como um panasca da pior espécie.

140

- LBW(1), Badge? - disse Gerald.


- Obrigado, Banger()2 - disse Badger, usando uma velha e
interessante alcunha que Nick nunca teria tomado a liberdade de
adoptar em relação a Gerald, e que este, numa atitude
francamente sensata, se escusava a contestar. E deixaram-se
ficar na cozinha, envergando os seus equipamentos brancos de
ténis, bebendo os seus copos altos de LBW e sorrindo de orelha a
orelha entre goles. As pernas de Gerald ainda estavam
bronzeadas e as suas nádegas, inquietantemente firmes, eram
realçadas pelos calções Fred Perry bastante apertados. Badger
era mais franzino e seco de carnes e a sua camisa Aertex estava
mais suada e toda retorcida, já que ele a usara para limpar a
cara. Usava uns sapatos de lona já muito velhos e gastos, ao
passo que Gerald parecia saltitar ou levitar ligeiramente graças
aos seus novos ténis desportivos de sola alta.
Elena entrou na cozinha a correr, vinda da copa, com o quarto,
ou pernil, de veado, emplastrado numa massa de farinha e água
manchada de sangue. Toda aquela história do veado, apartado do
rebanho em Hawkeswood todos os meses de Setembro, e
enviado para casa dos Fedden, onde ficava dependurado durante
quinze dias numa divisão da cave, constituía um verdadeiro
martírio para Elena e um triunfo fácil para Gerald, que marcava
sempre uma série de jantares para o exibir e comer. Elena
pousou a pesada travessa em cima da mesa no preciso instante
em que Catherine entrava na cozinha, vinda do seu quarto, as
mãos erguidas como antolhos para não ver aquele espectáculo. -
Mm... olha-me só para isto, Cat! - disse Badger.
- Felizmente, nem sequer terei de vê-los a comer o animal - disse
Catherine; embora, de facto, tenha dado uma espreitadela rápida
para o quarto, ou pernil, com uma espécie de gozo na repulsa.
- Então quer dizer que vais sair, minha velha Puss? - disse Gerald,
cuja animação se extinguiu de imediato, vencida por uma
carranca magoada.

*1. Iniciais de lemon barley water, uma bebida normalmente


associada ao ténis. (N. do T.)
2. À letra, «fodilhão» - ou, se quisermos, «garanhão» (de to
bang). Claro que o termo banger também é usado coloquialmente
para designar uma variedade de enchido de porco, ou ainda «um
carro velho», mas, neste caso particular, a conotação sexual é
óbvia. Por seu lado, Derek Brogan, também tem uma alcunha,
Badger, que, em gíria, é alguém que importuna muito os outros;
significa também «texugo». (N. do T.)

141

- Mas bebes qualquer coisa connosco, não é verdade, querida? -


disse Rachel.
- Pode ser que sim, se tiver tempo - retorquiu Catherine.
- E tudo deputados?
- Não - disse Gerald. - A tua avó não é deputada.
- Aí está uma razão para darmos graças a Deus - disse Catherine.
- E Morden Lipscomb também não é deputado.
- Vêm dois deputados - disse Rachel, e não era claro se
considerava que eram deputados a menos ou a mais.
- É, vêm Timms e Groom! - exclamou Gerald, como se as referidas
criaturas fossem a companhia mais divertida do mundo.
- O homem que nunca diz «olá»!
- Que coisa mais absurda - disse Gerald. - Tenho a certeza de que
já o ouvi dizer «olá»...
- Se Morden Lipscomb vem, então é melhor eu não tirar o casaco,
aquele homem faz-me gelar o sangue.
- Morden é um homem importante - disse Gerald. - É preciso não
esquecer que ele é tu cá tu lá com o presidente.
- Nesse caso, imagino, Nick terá de ficar, para fazer número
- disse Catherine.
Nick desatou a pestanejar e Gerald retorquiu: - Nick não faz
número nenhum, menina, Nick faz parte da... parte da casa.
Catherine olhou para Nick com um ar levemente trocista, na
fronteira que separa as crianças bem comportadas das mal
comportadas. - Ele é o cortesãozinho perfeito, não é?
- Oh, Elena - disse Rachel -, Catherine não vai jantar, portanto o
total de pessoas presentes será inferior ao previsto... Hã? Ah,
sim, claro, um a menos. - Elena foi à sala de jantar a fim de
proceder aos ajustamentos necessários e voltou um instante
depois com uma objecção.
- Miz Fed, sabe, um problema, é treze.
- Ah... - fez Rachel e deu aos ombros como que a pedir desculpa.
- Bom, não creio que nenhum de nós seja triscaidecofóbico, pois
não? - disse Gerald. Estavam todos perfeitamente familiarizados
com os nomes das fobias, dado que, em diferentes alturas,
Catherine sofrera de aicmofobia, dromofobia, quenofobia

142

e nictotobia, para além de uma série de fobias mais triviais; para


tudo se resumia a uma espécie de brincadeira, mas isso não
tinha o menor efeito em Elena, que não arredava pé, sempre a
morder o
lábio.
- Estás a ver, vais ter de ficar - disse Badger, tentando
desajeitadamente agarrar Catherine. - Como podes tu resistir
àquele belo veado?
- Hmm - disse Catherine. - Parece mesmo uma coisa acabada de
sair de um hospital de campo. - E, com um ar ameaçador, olhou
de relance para Nick, que percebeu que devia ser a aicmofobia, o
horror a objectos pontiagudos, que a impedia de participar num
jantar onde serviriam e trinchariam um pernil de veado. A família
sabia dos problemas dela no passado, mas, na ausência de
recidivas, esquecera-se alegremente deles. Nick era o único que
sabia da recente crise das facas de trinchar. Disse:
- Eu também não me importo de ficar de fora, não quero estragar
a festa. - Gostava da pompa bem oleada dos jantares dos Fedden,
mas sabia que, apaixonado como estava, não faria outra coisa
senão sorrir à luz das velas e sonhar com Leo. Passaria o tempo
todo calado e desatento. E sentia já um zumbido no ar, a
memória, mais intensa do que a realidade, daquilo que vivera
com o seu namorado.
- Não, não - murmurou Rachel, abanando impaciente a cabeça.
- Elena, nós vamos correr o risco! - proclamou Gerald. - Si... va
bene...(1) Nick, você só terá de ser o extra... hum... - Elena voltou
para a sala de jantar com aquele ar de infeliz sujeição com o qual
ninguém, a não ser Nick, se preocupava (aliás, também só ele é
que reparava nisso). - Nós não estamos na Calábria do século XII
- disse Gerald e, nesse momento, tocou o telefone. Gerald tirou-o
da parede e rosnou «Fedden» no seu novo e muito austero estilo.
- Sim... Olá... Como?... Sim, está... Sim, está bem... Mm, e para si
também - e logo passou o auscultador a Nick: - É Leo. - Nick
corou como se os seus pensamentos, ainda tão frescos,
tivessem sido transmitidos por alto-falantes; um silêncio total
imperava,

*1. Em italiano, no original. (N. do T.)

143

por um mero acaso, na cozinha, e Lrerald olhou-o com um ar


onde Nick encontrou severidade e decepção, mas que talvez não
passasse de uma expressão ausente, o sobrolho franzido de uma
cadeia de pensamento interrompida.
Catherine disse: - Se é o Leo, então vão demorar horas. - E
Rachel acenou para Nick com um ar compreensivo e disse-lhe: -
Sim, porque é que não atende no gabinete? - Gerald voltou a
olhar para ele como que a dizer que a crua realidade da vida gay,
dos telefonemas reais entre panascas, ultrapassava tudo o que
jamais imaginara que lhe seria exigido; mas logo aquiesceu e
disse, num tom jovial: - Claro, claro, é o telefone vermelho.
- Ah, a linha erótica - disse Badger, cujos sensores de escândalos
começavam a interessar-se por qualquer coisa de constrangedor
que havia no ar. Porém, a meio da sala de entrada, Nick já não
pensava em Badger, mas sim em Rachel; ocorreu-lhe que ela
sabia de tudo e estava a protegê-lo. Na realidade, Gerald nunca
se apercebia do que se passava com as outras pessoas; para ele,
os outros eram apenas peças móveis num processo social, peças
que concordavam com ele ou que a ele se opunham; a sua
famosa hospitalidade servia apenas para encobrir uma peculiar
ausência de talentos próprios, pessoais; tudo isto caiu sobre
Nick como uma límpida e libertadora torrente, enquanto abria a
porta do gabinete. Um segundo depois, mergulhava numa
situação maravilhosamente surreal: encontrava-se no gabinete
de Gerald e trocava sensuais murmúrios junto à sua secretária e
ouvia a voz de Leo precisamente na única divisão da casa que
reflectia o gosto de Gerald, que, na verdade, era um vácuo de
gosto, poltronas verdes de cabedal, um exuberante guarda-fogo
de lareira, candeeiros de bronze, o palco montado para a sua
variante específica de conspiração masculina.
- Bom, foi muito agradável - disse Leo, usando, de um modo meio
provocatório, meio pretensioso, uma palavra a que Nick recorria
com frequência. - Muito agradável, de facto.
- Gostaste, querido? - disse Nick.
- Não esteve mal - disse Leo.
Nick sorriu enquanto sentia o calor nas faces. - A mim, pareceu-
me aceitável, enfim... suportável.
- É natural que para ti seja suportável - disse Leo. - Não tens de
andar de bicicleta.

144

Nick deu uma espreitadela para a porta meio aberta. - Foi


demasiado para ti? - perguntou, maravilhado, e com uma
sensação, que se vinha repetindo vezes sem conta naquelas
últimas semanas, de uma enorme liberdade exercida em ínfimos
pormenores, uma sensação de que tudo o que ele dizia era
desejado.
- És mesmo um rapaz desavergonhado - disse Leo.
- Mm, tantas vezes me tens dito isso...
- Então e o que é que estás a fazer agora?
- Bom... - disse Nick. Era delicioso estar a conversar com Leo,
mas não estava lá muito certo dos motivos que o tinham levado a
telefonar, e era a primeira vez que o fazia; daí que Nick se
sentisse desconfortavelmente expectante; até que lhe ocorreu (e
era provável que fosse verdade) que Leo se limitava a assumir o
simples prazer de conversar com o seu amante, de conversar só
por conversar, tal como ele dizia que adorava foder só por foder. -
Estou sentado à secretária de Gerald com uma tesão que nunca
mais acaba - disse Nick.
Houve uma pausa e Leo murmurou: - Vá lá, não me dês corda. A
minha velhota está aqui.
As sombras conquistavam já o gabinete de Gerald e Nick puxou a
corrente que acendia o candeeiro da secretária. Gerald, como
um marido baboso e, ao mesmo tempo, bígamo, tinha fotos de
Rachel e da primeira-ministra em molduras de prata. Uma
volumosa agenda estava aberta nas páginas finais, consagradas
às «Notas», onde Gerald escrevera: «Barwick: mandatário
(Manning) - esposa Verónica, e NÃO Janet (esposa de Parker).»
Quando, com o ar mais descontraído deste mundo, perguntara a
Parker como estava Verónica e a Manning como ia Janet, o
deputado deparara com algumas expressões francamente
perplexas. Claro que Nick conhecia Janet Parker, ela dirigia uma
secção qualquer nos armazéns Rackhams e cantava no Clube de
Amadores de Ópera. - E o que é que vais fazer mais logo? - queria
saber Leo.
- Oh, temos um grande jantar - disse Nick. Reparou que esperava
impressionar Leo com a vida que eles levavam em Kensington
Park Gardens, e que, ao mesmo tempo, estava pronto a repudiá-
la. - Vai ser sem dúvida muito aborrecido, para dizer a verdade,
eles só me convidam para fazer número.
- Oh - disse Leo, num tom dubitativo.

145

- Vai haver montes de velhos Tones horrorosos - disse Nick, numa


tentativa para se colar à linguagem e aos pontos de vista de Leo,
não resistindo a um risinho que logo sufocou.
- Oh, então a avozinha vai estar presente?
- Claro que vai - disse Nick.
- A puta da velha - disse Leo; o fugaz insulto, proferido aquando
do encontro nos degraus da casa, que na altura passara
despercebido, crescera mais tarde, tanto como um galo na
cabeça! - Tens de me convidar para ir até aí, quero continuar
aquela conversa fascinante que tive com a velha - acrescentou
Leo.
A questão de uma eventual ida de Leo a Kensington Park
Gardens emergira várias vezes desde o primeiro encontro;
emergira mas logo ficara a pairar no ar até se desvanecer. Nick
disse: Ouve, eu estou certo de que consigo livrar-me disto. - E, de
facto, era como se a lógica da noite, os números, a etiqueta, a
superstição] fosse apenas a expressão de uma força natural
mais profunda, uma lógica do amor, capaz de o arrancar àquela
casa e o devolver a braços de Leo. - Estou certo de que consigo
livrar-me da festa repetiu Nick. Porém, no exacto momento em
que o dizia, sentiu que também fazia sentido que não visse Leo;
seria uma separação romântica, um breve período em que o
fabuloso choque da tardd que haviam passado juntos se
entranharia na alma. Dias como aquele tinham o seu traçado, as
suas curvas ascendentes e descendentes: se alterassem essas
linhas, poderiam estar a desfear o desenho geral.
- Não, diverte-te com a festa - disse Leo, movido talvez pelo
mesmo instinto. - Bebe um copo.
- Sim, conto fazer isso. A menos que tenhas uma ideia melhor... -
Nick girou na cadeira com um sorriso tensamente malicioso, o
fio do telefone vermelho esticava e pulava. O assento era em
concha, uma concha de cabedal preto com umas costas altas,
como a cadeira do comandante de uma nave espacial.
- És mesmo insaciável, não és... - disse Leo.
- Isso é porque te amo - disse Nick, a voz cingida ao registo
limitado da verdade.
Leo aproveitou a oportunidade para ecoar a confissão de Nick,
se bem que com um breve e profundo silêncio, tão táctico quanto
indiscutível. Por fim, atirou: - Isso é o que tu dizes a todos os
rapazes -

146

um chavão insípido que Nick só conseguia suportar como a


expressão de uma timidez. Revolveu-a na sua cabeça e
encontrou nela aquilo de que precisava. Disse baixinho: - Não, só
a ti.
- É - disse Leo, num tom perfeitamente relaxado, e logo deu um
bocejo enorme e falso. - Bom, se calhar vou dar um salto à casa
do velho Pete, para ver como é que ele está.
- Certo - retorquiu rapidamente Nick. - Bom, dá-lhe os meus
melhores cumprimentos! - Era uma ferroada de inquietação,
oculta, inesperada.
- Perfeito - disse Leo.
- Como é que ele está, o velho Pete? - disse Nick.
- Bom, está um bocado em baixo. Aquela doença tem dado cabo
dele.
- Que aborrecido... - disse Nick, mas sentiu que não era capaz de
aprofundar mais o caso, por uma questão de delicadeza para
com os seus próprios sentimentos. Pôs-se a olhar para a
secretária, na esperança de que os seus pensamentos se
concentrassem no local onde estava, e não nas imaginadas
intimidades no apartamento de Pete. Havia uma espessa pasta
dactilografada com um cartão, «Da secretária de Morden
Lipscomb», sobre «Segurança nacional na era nuclear», que
Gerald assinalara com vários V e sublinhados nas primeiras duas
páginas. «N.B.: ameaça nuclear», escrevera.
- OK, miúdo - disse Leo baixinho. - Bom, vejo-te em breve. Vamos
conseguir estar juntos no fim-de-semana, não vamos? Tenho de
ir, a minha mãe quer telefonar.
- Eu ligo-te amanhã...
- Está bem, bom, adorei falar contigo.
E no silêncio do gabinete, momentos depois, abalado, os lábios
cerrados, Nick agarrou-se àquele «adorei», aconchegante, é
certo, mas também cínico. Claro que Leo se sentia inibido pelo
facto de estar em casa; claro que, se pudesse, ter-lhe-ia dito
mais coisas. Bastava pensar naquela tarde. Aliás, o facto de ele
ter telefonado, ah, só isso, só isso já era tão querido... A
conversa era um bónus romântico, mas não havia certezas
nenhumas no reino das palavras, no meio das papoilas havia
urtigas. Por um minuto ou dois, Nick sentiu a sua separação
como uma tragédia, um drama do crepúsculo

147

que se adensava - via Leo livre na sua bicicleta, enquanto ele


permanecia naquele gabinete horrível com os seus móveis de
arquivo, as suas belas garrafas de cristal e a fotografia ampliada,
acabada de chegar do moldureiro, dos cento e um novos
deputados conservadores.
Chegado à cozinha, constatou que as pessoas haviam dispersado
para tomarem banho e mudarem de roupa, e estes novos e
imparáveis ritmos fizeram com que se sentisse como um
fantasma. Rachel estava sentada à mesa, a escrever os cartões
que indicavam os lugares dos convidados, com a sua caneta de
tinta permanente de aparo itálico. Ergueu os olhos para ele num
relance e havia, na sua atitude, uma ligeira tensão, bem como
uma solicitude óbvia, um desejo de não ofender num momento
marcado pela afabilidade. Disse: - Está tudo bem?
- Sim, obrigado, tudo bem... - disse Nick, forçando-se a ver as
evidências: sim, a vida era absolutamente maravilhosa, o único
problema era que, afinal, a vida era mais complicada do que ele
pensava, e menos também.
- Deverei pôr Badger ou Derek? O que é que acha, Nick? Creio
que vou escrever Derek, só para o pôr no seu lugar.
- Bom, afinal esses cartões servem para pôr as pessoas nos seus
lugares - disse Nick.
- Exactamente! - exclamou Rachel, e soprou a tinta. Ergueu de
novo os olhos para ele, por um breve instante. - Sabe, meu caro,
se você quiser, pode sempre trazer amigos cá a casa.
- Ah, sim... obrigado...
- Ê que nós odiaríamos, mas absolutamente, acredite, se você
sentisse que não podia fazer isso. Enquanto estiver connosco,
esta é a sua casa. - E foi o «nós», aquela benevolência geral, que
o surpreendeu e perturbou; e, além disso, o reconhecimento
prático de que não estaria naquela casa toda a vida.
- Eu sei, é muito amável da sua parte. Claro que o farei.
- Não sei... Catherine diz que você tem um... um amigo novo...
especial - e, por um segundo, Rachel manteve um ar grave;
estava a ser magnânima, se bem que sofresse de uma ligeira
desvantagem: que nome haveria de dar a uma tal pessoa? - Só
quero que saiba que ele seria muito bem-vindo à nossa casa.

148

- Obrigado - repetiu Nick, e sorriu enquanto corava pelo facto de


a coisa já ser conhecida. Era desconcertantemente claro. Sentia-
se aliviado e defraudado. Não tinha a certeza se conseguiria
estar à altura da liberdade que lhe ofereciam: via-se a si mesmo
a levar para casa, para um chá sem sentido, ou para uma noite
social, gelado com a sua própria cobardia um qualquer
diplomado de Oxford, branco e simpático, em vez de Leo.
- Agora que Toby tem a casa dele - disse Rachel -, mais
parecemos uns velhotes macambúzios. Portanto, faça isso só por
nós, Nick! - Era um exagero encantador, numa mulher de
quarenta e sete anos com treze convidados para o jantar, mas,
ao mesmo tempo, constituía o reconhecimento de uma verdade:
aquelas palavras não significavam, não, de modo nenhum, que
Rachel pensava nele como um filho, não elevavam nem
rebaixavam, mas admitiam um hábito, uma necessidade de sentir
a presença de um homem jovem e dos seus amigos naquela
casa. Juntou os cartões, atravessou a cozinha na direcção de
Nick e ele deu-lhe um beijo, coisa que Rachel pareceu achar
perfeitamente adequada.
Efectivamente, Toby e Sophie vinham ao jantar. Chegaram cedo e
Nick bebeu um gin tónico com eles na sala de estar. Pareciam
trazer consigo a sua própria atmosfera complacente, o ambiente
da sua vida de casal no apartamento em Chelsea, e de um
qualquer distante futuro em que poderiam enroscar uma perna
no sofá ou encostar um cotovelo ao consolo da lareira numa sala
tão desmesurada como aquela. Toby interpretava, em tons muito
ternos, o papel do marido a quem a esposa não dava grande
sossego, e Sophie procurava monopolizá-lo, naquele jeito infantil
de alguém que está a ver até onde chega o seu poder, com
ligeiros remoques e exasperações. A certa altura, fez um
verdadeiro número a propósito do facto de Toby ranger os dentes
enquanto dormia. Nick riu-se, embora com alguma
circunspecção, daquele breve relance do quarto do casal, mas
considerou a falta de subtileza de Sophie singularmente
tranquilizante. Ela tinha ficado com Toby, com o Toby que
ressonava e se mexia e remexia na cama, mas o romântico
domínio dos sentimentos que Nick lhe dedicava, toda aquela teia
de sacrifícios e disparates e cheirosas noites de Oxford,
sobrevivia intacto. Toby também se mostrava muito terno com
Nick. Num dado momento, deixou a sua posição junto à lareira e
foi esparramar-se

149

no tapete ao pé da cadeira dele, de tal forma que Nick, se


quisesse e pudesse afagar-lhe a nuca, teria apenas de estender
um nada a mão. Por um instante, Sophie pareceu desconcertada,
mas logo se dominou e reverteu a situação a seu favor. - Ah,
vocês dois deviam ver-se mais - disse. - É bom vê-los juntos. - Um
minuto passado, com um ar vagamente constrangido, Toby
levantou-se e fingiu procurar um livro.
- E aquele teu amigo que era um encanto de pessoa...? - quis
saber Sophie.
- Oh... estás a falar de Leo?
- Leo - disse Sophie.
- Oh, ele está, um encanto! - E lá voltava à baila aquele assunto,
Nick ainda não se tinha acostumado a isso, à ideia de que uma
coisa tão secreta, tão impregnada dos seus próprios medos e
fantasias, pudesse suscitar o jovial interesse dos outros. Toby,
ainda junto à estante, também se virou para ele com um sorriso
encorajador.
- Uma pessoa tão... encantadora - disse Sophie, cuja conversação
tendia a não evoluir, mas, pelo contrário, a estagnar, a fixar-se,
de um modo agradável ou impertinente, no mesmo sítio.
Nick ficou contente com o elogio, mas, ao mesmo tempo,
desconfiou dele. - Bom, ele adorou conhecer-te - disse.
- Aah... - ronronou Sophie, como que a dizer que as pessoas
costumavam adorar conhecê-la.
- Ele é um grande admirador do teu trabalho, Pips - disse Toby.
- Eu sei - disse Sophie e baixou os olhos num acesso de
modéstia. O cabelo louro escuro, sempre o usara comprido em
Oxford; agora, cortara-o e penteara-o para trás, ao estilo de
Diana, de tal forma que parecia tremular sempre que ela abanava
a cabeça. Vestia um modelo vermelho e sem alças que, de facto,
não lhe ficava nada bem.
- Sabes que ela conseguiu um papel numa peça? - disse Toby.
- Oh, xiu... - disse Sophie.
- Não, temos todos de ir vê-la. Nick, tu vais à estreia, vamos os
dois juntos.
- Absolutamente - disse Nick. - O que é que vais fazer?

150

Sophie, o corpo como que percorrido por um tremor, acabou por


responder: - Bom, já agora também podes saber... - como se
estivessem a incitá-la a anunciar um outro género de
compromisso. - Vou fazer Lady Windermere...
- Fantástico. Acho que te vais sair muito bem. - Era um papel
surpreendentemente importante, mas Nick não tinha a menor
dificuldade em imaginá-la como a jovem esposa que se exibia
como um modelo de virtudes, sim, aquela jovem esposa que
cortava os caules das rosas na sua sala de estar de Westminster
e que declamava aqueles tremendos solilóquios...
- Não sei como é que vai ficar. O encenador, é um daqueles
encenadores completamente de vanguarda. É... para dizer a
verdade, ele também é gay. Diz que vai ser uma leitura
desconstrucionista da peça. Claro que isso não me preocupa,
porque eu fiz desconstrução; mas a mãe e o pai, palpita-me que
não vão gostar.
- Não podes passar a vida a preocupares-te com o que os teus
pais possam pensar - disse Nick.
- Exactamente - disse Toby. - Aliás, a tua mãe até é muito
moderna. Vai sempre a concertos e a todo o tipo de coisas
super-modernas.
- Não, a mãe vai reagir bem.
Toby deu um risinho. - Quanto ao teu pai... «Quem me dera que
Shakespeare nunca tivesse nascido!», eis o mais célebre dos
seus comentários!
- Não sei se esse é o mais célebre dos comentários do pai - disse
Sophie, algo melindrada. De facto, se Maurice Tipper fizera em
toda a sua vida algum comentário célebre, seria sem dúvida
qualquer coisa sobre margens de lucro e bons resultados para os
accionistas. - Ele só disse isso depois de ter sido
impiedosamente mordido pelos mosquitos enquanto assistia ao
Péricles nos jardins do Worcester College.
- Ah... - murmurou Nick que, no que tocava ao Péricles, só se
lembrava da acanhada jactância de Toby como um dos nobres de
Tiro, quando Sophie fizera o papel de Marina.
- És um horror, um verdadeiro horror, para o pai... Coitado do
pai... - disse Sophie num tom extremamente afectado, como se,
por um qualquer processo mental, se encontrasse já no palco.

151

Catherine entrou nesse momento, vestida para a sua noite fora:


um minúsculo vestido cheio de brilhantes, sobre o qual
envergava uma gabardina de um tom cinzento pálido -
desabotoada. Escolhera uns sapatos pretos de salto alto e umas
meias que tinham um brilho esbranquiçado.
- Santo Deus! - exclamou Toby.
- Olá, querida - disse Catherine a Sophie num tom confidencial,
íntimo, baixando-se para lhe dar um beijo. Era notório que Sophie
considerava Catherine o aspecto mais problemático de uma
ligação com Toby; consciente disso, Catherine enfrentava-a com
aquele ar empenhadamente superior que, fossem outras as
circunstâncias, Sophie teria usado com ela, até à exaustão. -
Adoro o teu vestido, é tão bonito - disse ela.
- Oh... obrigada - disse Sophie, sorrindo e pestanejando.
- Estás de partida, maninha? - perguntou Toby. Catherine seguiu
na direcção da mesa das bebidas. - Estou de
partida, mas só por esta noite - disse ela. - O Russell vai levar-me
a uma vernissage em Stoke Newington.
- E onde raio é que isso fica? - disse Toby.
- É uma área superconhecida de Londres - disse Catherine. - Está
imenso na moda, não está, Soph?
- Sim, claro, querido, tu já ouviste falar- disse Sophie.
- Estava a brincar - disse Toby; e Nick pensou que era verdade,
uma pessoa nunca estava à espera que ele brincasse com o que
quer que fosse; e, quando brincava, nem sempre se tinha a
certeza de que estava a brincar. E, um segundo depois, a ideia de
uma festa, não aquela festa em Kensington Park Gardens, mas
uma festa bem ruidosa, com latas de cerveja e nuvens de fumo
de erva, por entre a qual se movimentava com o seu amante, na
qualidade de seu amante, apossou-se dele como uma dor aguda,
e Nick sentiu uma inveja tremenda de Catherine. Era uma
imagem de uma festa de Oxford, mas mesclada com algo que só
se via na televisão, uma casa cheia de pessoas negras.
Toby disse: - Vou dar um salto lá acima, para ver se encontro o
diabo das calças... Não vais à festa de Nat, Nick?
- Que festa? - disse Nick, com uma outra dor, mais ténue, sem
dúvida, provocada por um outro tipo de festa, hetero, branca e
muito chique, na qual a sua presença não era considerada
necessária.

152

- Oh, ele vai dar uma festa dos anos 70... - disse Toby num tom de
irremediável desalento.
- Não, não vou, não fui convidado - disse Nick com um sorriso
superior, pensando na amorosa intimidade que sentira com Nat
em Hawkeswood, quando estavam os dois pedrados e sentados
no chão. - É em Londres?
- O problema é esse. É lá para cima, naquele maldito castelo -
disse Toby.
- Sim... Mas é ridículo, não é? É demasiado cedo para dar uma
festa dos anos 70, não é? - disse Nick. - Quer dizer, os anos 70
foram uma época medonha... Não vejo razão nenhuma para se
querer voltar a esses tempos... - Há muito que ansiava por uma
oportunidade para ver o castelo, uma fortaleza fronteiriça(1),
com interiores concebidos por Wyatt(2).
- Bom, os rapazes das public schools adoram reviver a
puberdade, não é, Soph? - disse Catherine, voltando com um
copo bem cheio.
- Eu sei - disse Sophie, num tom mal-humorado.
- Há até quem passe a vida inteira a fazer isso - prosseguiu
Catherine. Parou em frente da lareira, com uma mão na anca, e
parecia estar já a mexer-se ao sabor da música de um futuro que
ficava a anos-luz de todos aqueles disparates.
Toby deu de ombros, num pedido de desculpas pela irmã, e disse:
- Só espero que aquelas calças disco ainda existam!
Nick por pouco não dizia: «Ah... as calças púrpura...?» - sabendo,
como sabia, o sítio exacto onde se encontravam, visto que
vasculhara de alto a baixo o quarto de Toby e lera o seu diário de
rapaz e cheirara o fino forro dos seus calções de banho, já
demasiado pequenos para aquelas pernas, e chegara mesmo a
experimentar as calças à boca de sino (a figura ridícula que
fizera, enfiado naquelas pernas tão compridas). Mas não, não
disse nada, limitou-se a dar à cabeça e a beber de um gole o
resto do seu gin tónico.

*1. Mais exactamente, uma marcher fortress, uma «fortaleza»


situada nas Marches, o nome histórico que designa as fronteiras
entre a Inglaterra e a Escócia e entre a Inglaterra e o País de
Gales. (N. do T.)
2. James Wyatt, um dos mais famosos arquitectos britânicos do
século XVIII (1746-1813). (N.doT.)

153

Gerald, entretanto, apareceu na sala. Vestia um fato escuro, com


a característica camisa cor-de-rosa, colarinho branco e gravata
azul. No que tocava à indumentária, parecia reconhecer, com um
sorriso magnânimo, que impusera um padrão que os outros
dificilmente conseguiriam atingir. Continuou a sorrir enquanto
atravessava a sala, um indício muito claro da sua decisão de não
reagir, fosse de que maneira fosse, à escandalosa aparência da
filha. Com a gabardina por cima do micro-vestido, Catherine
parecia estar quase nua. Mal entrou na sala, Badger mostrou-se
menos circunspecto. - Santo Deus, minha filha! - exclamou.
- Afilhada, mais exactamente, tio Badger - disse Catherine, com a
petulância forçada de uma rapariga muito mais pequena, púbere,
talvez.
Badger franzia o sobrolho e cantarolava. - Bom, precisamente -
disse ele. - Eu não prometi que zelaria pela tua conduta moral e
mais não sei o quê? - E pôs-se a esfregar as mãos enquanto a
mirava de alto a baixo.
- Ou muito me engano, ou dificilmente haverá alguém que o
considere a pessoa mais indicada para exercer tais funções -
replicou Catherine, sorvendo o seu gin e sentando-se de lado
numa poltrona baixa.
- Não estás a exagerar com a bebida, Puss? - disse Gerald.
- É a minha primeira bebida, pai - disse Catherine; mas Nick
percebia por que razão Gerald estava tão ansioso; era fácil de
ver: a filha deixara-se embriagar pela sua própria rebeldia.
Observou Badger observando-a, a poupa listrada de grisalho
alisada para trás depois do duche; havia nele qualquer coisa de
indecoroso e desprendido; em certas partes de África, segundo
Toby, o padrinho de Catherine não era conhecido por Badger, mas
sim por uma série de palavras para «hiena». E não havia dúvida
de que ele rondava como uma hiena e de que estava faminto de
alguma coisa. Espicaçava a afilhada de um modo claramente
lascivo e isso era permitido porque, obviamente, se tratava de
uma impossibilidade, não mais que um número de palhaço.
Catherine ficou tempo suficiente para cumprimentar todos os
convidados e pôr à prova a sua teoria de que Barry Groom nunca
dizia olá.

154

Gerald aderiu ao jogo e disse, «Olá, Barry », e, para além de lhe


apertar a mão, cobriu-a enfaticamente com a sua outra mão,
como se estivesse numa qualquer cena de uma campanha
eleitoral: perante o que Barry, olhando à sua volta com um
sorriso desconfiado, comentou: «Gerald, estou surpreendido
contigo» - e, aqui, fez uma pausa tão longa que Gerald se sentiu
incomodado - «a tua porta da frente é verde: com uma porta
assim, não se pode dizer que estejas a transmitir o sinal mais
adequado»(1). Foi premiado com uma gargalhada, mais calorosa
e mais complexa do que estava à espera - durante uns breves
segundos, Barry Groom cresceu para se moldar à amplitude de
tal reacção, obrigando os ombros a espetar-se tanto quanto
podiam. Seguiu Gerald ao longo da sala, acenando num jeito
crítico, emproado, à medida que ia sendo apresentado aos outros
convidados, mas sem nunca dizer olá. Catherine foi cumprimentá-
lo e Groom comentou: «Aha! Que bela criatura!», com uma
presunção de charme que roçava a ameaça. Catherine
perguntou-lhe pela esposa; ficara a arrumar o carro, segundo ele.
Era bom que Catherine quisesse estar presente e ser
apresentada e ajudar a distrair os convidados, mas, para a
família, também era um pouco sinistro. A filha do deputado
deixava toda a gente nervosa pelo facto de andar de gabardina
em casa, além do que parecia estar a brincar com as esperanças
paternas de que ela se fosse embora a qualquer momento. De vez
em quando, Gerald olhava de relance para ela com um ar
aturdido, como se fosse seu desejo dizer-lhe qualquer coisa, mas
tivesse já concluído que a excentricidade da gabardina era
preferível à carne nua que espreitava por baixo. Foi com notória
relutância que a apresentou a Morden Lipscomb. O velho e
grisalho americano, com a sua ínfima e granítica centelha de
charme, apertou a mão da jovem e pôs um sorriso trocista, como
se estivesse a ser confrontado com uma velha indiscrição a que
oporia um categórico desmentido. Toby e Nick estavam ambos a
observá-la e Toby comentou: - Meu Deus, a minha mana parece
mesmo,

*1. De um ponto de vista político, o comentário do convidado dos


Fedden remete obviamente para os ecologistas, mas também, na
Grã-Bretanha, para os republicanos (inde-pendentistas) da
Irlanda do Norte (o verde é a cor da Irlanda). Por outro lado, o
azul é a cor dos conservadores britânicos (profusamente usada
por Thatcher na sua indumentária). (N. do T.)

155

não sei se estás a ver, uma daquelas raparigas que estão à porta
dos bares de strip a aliciar clientes.
- Parece uma strippergram(1) - disse Sophie.
Lady Partridge entrou com aquele ar de enfado que Nick já lhe
conhecia: queria dar a impressão de que se sentia totalmente à
vontade naquele ambiente e também queria que a sua chegada
fosse um acontecimento; a surdez de que padecia acrescentava
uma quérula incerteza quanto ao efeito que poderia estar a
provocar. Badger foi buscar-lhe uma bebida e dispôs-se a flertar
com ela, no que não foi contrariado. Lady Partridge gostava de
Badger, pois conhecia-o desde criança e, certa vez, numas férias,
chegara mesmo a cuidar dele quando tivera papeira - um
episódio que continuava a ser referido como uma pedra de toque
da sua amizade, e de um modo vagamente picante, já que, pelos
vistos, os tomates de Badger tinham ficado tão grandes como
toranjas. Uns dias antes, Nick ouvira-os gracejar a esse respeito,
e aquilo soara-lhe como as brincadeiras que tinha com os seus
pais, pequenos pontos de referência irreverentes num passado
distante, antes de tudo ter mudado e de se ter tornado
indescritível.
Nick pensava em Leo a toda a hora, de tal forma que Leo parecia
ser o elemento, o contexto invisível, em que aquelas intimidantes
criaturas, tão diversas entre si, se encontravam e saudavam e
discutiam e se congratulavam umas às outras. Misturou os
ingredientes para um novo gin tónico, ao estilo de Gerald, o
quinino perdido no meio do zimbro, e deambulou pela sala sem se
importar com o facto de não lhe dirigirem a palavra. Apreciou os
quadros com uma nova acuidade, como se estivesse a explicá-
los a Leo, o seu aluno reconhecido. O outro deputado e a sua
mulher, John e Greta Timms, estavam plantados diante do
Guardi, com o ar de quem tinha ido parar à festa errada, de quem
desejava algo de mais estimulante, ele num fato cinzento, ela no
desamparado arrojo de um vestido de mamã azul com um
laçarote branco rondando-lhe o pescoço: era como se a primeira-
ministra, ela mesma, estivesse grávida. John Timms assumira
um cargo menor no Ministério da Administração Interna; devia
ser vários anos mais novo do que Gerald,

*1. Strippers que fazem o seu trabalho por encomenda,


nomeadamente em festas de aniversário ou de despedida de
solteiro(a). (N. do T.)

156

mas possuía uma gravitas precoce e uma vaidade inexorável. Se


Barry Groom nunca dizia olá, John Timms parecia, à primeira
vista, nunca pestanejar. O seu olhar fixo tornava-se quase
sensual e o seu discurso caracterizava-se por uma regularidade
hipnótica, tanto no ritmo como no tom, independentemente do
conteúdo: era uma inteligência inspirada, e parecia estar sempre
a declará-lo, mas não era, de maneira nenhuma, um
temperamento excitável. Estavam a falar da guerra das
Falklands e da necessidade de a comemorar com um monumento
e celebrar com um feriado anual. «Um dia de Trafalgar para o
nosso tempo», disse Timms, e a mulher, na qual as certezas do
marido engendravam uma veemência mais vibrante, opinou:
«Porque não reviver o próprio Trafalgar Day? O próprio Trafalgar
Day tem de ser revivido! Os nossos filhos já esqueceram a guerra
contra os Franceses...» John Timms fixou a imensidão da sala
como que lisonjeado com o zelo da mulher, e adorando-a por isso,
ainda que não se sentisse preparado para adoptar uma posição
tão radical. Não fora apresentado a Nick (na realidade, os Timms
estavam a falar um com o outro, excluindo-o, na prática, da
conversa) e a fixidez do seu olhar demorou-se nele por um
momento; parecia estar a sondá-lo, a testá-lo e a duvidar dele. -
Gostaria de ver um monumento à guerra das Falklands, não é
verdade - disse John Timms.
- Mm, tenho as minhas dúvidas... - disse Nick, num tom que não
era desrespeitoso, e ficou espantado com a superfluidade dos
seus pensamentos a esse respeito. Timms, pelos vistos, nunca
tinha dúvidas, o que, por si só, também era razão para deixar
qualquer um espantado. Imaginou Leo a seu lado, colocando uma
qualquer objecção ou salientando algum facto, tudo coisas de
que Nick nunca se lembrava. Catherine abeirou-se deles, a meio
da sua viagem pela sala, como que a recolher uma amostra de
cada um dos pequenos centros de poder. - Estávamos a falar das
Falklands - disse Nick.
- Pelo que sei, a primeira-ministra defende um desfile anual -
disse John Timms -, bem como um memorial significativo. Trata-
se, indiscutivelmente, de um triunfo pessoal.
- Mas também dos nossos homens - disse Greta Timms, com o
seu intenso afogueamento hormonal. - Os nossos homens foram
de uma abnegação a toda a prova. Soldados dos autênticos.

157

- Os nossos Homens são sem dúvida autênticos soldados, minha


querida - disse John Timms. - Mas, mais do que autênticos
soldados, eles foram indiscutivelmente audazes.
- Não - disse Catherine, tapando os ouvidos e sorrindo -; não há
nada a fazer, é que eu não suporto, mas é que não suporto
mesmo, palavras com o som au. Não sei se estão a ver.
- Oh... - disse Greta Timms. - A mim, sempre me pareceram
palavras verdadeiramente esplêndidas!
- OK, estou de partida! - disse Catherine, virando-se para a sala
com aquele sorriso enorme que, talvez durante toda a sua vida,
pareceria desprotegido e vulnerável. Um áspero coro de
«Adeus», um «Oh, ela vai-se embora?» de mistura com um
risinho, e os olhares de convidados e família fixaram-se nela com
alívio, com aquele bom humor que de súbito se instala quando se
manda uma criança para a cama a horas próprias. - Adeus,
avozinha! - disse ela, especialmente alto, enquanto beijava Lady
Partridge no meio da sala. - Vejo-te de manhã, pai. - E, pegando
na sua malinha de mão, saiu a pavonear-se no alto dos seus
saltos agulha. Lady Partridge espiou Morden Lipscomb por um
instante, sondando a sua surpresa; se ele parecia divertido com
aquela visão de uma porteira de um sex-dub, já ela estava pronta
a colher alguns louros, sem dúvida singulares, pelo facto de ser
avó daquela jovem. Mas Lipscomb estava a olhar para Gerald
com um ar desapontado.
Lipscomb conduziu Lady Partridge à mesa. Na casa dos Fedden,
de facto, não «se conduzia à mesa» uma senhora, mas o desfile
que principiava na sala de estar e prosseguia depois nas escadas
de pedra para finalmente desaguar naquela meia-luz das velas,
despertava por vezes uma memória, ou uma ansiedade, nos
convidados. Lipscomb, com uma formalidade grave, típica do
Novo Mundo, ofereceu o seu cotovelo à senhora mais velha e
mãe de Gerald, a qual, depois de dois gin tónicos, se comportava
de uma forma algo arrebatada, logo se colando a ele como a uma
velha paixão. Na sala de jantar, Lipscomb examinou o ambiente
com uma curiosidade cautelosa, enquanto os convidados
procuravam os seus lugares. - «Que esplêndida sala!»: é o que eu
digo para mim mesma, sempre que aqui entro! - comunicou Lady
Partridge, arrastando-se na direcção da sua cadeira.

158

- E estes são os seus antepassados, Lady Partridge? - perguntou


Lipscomb.
- Sim... sim... - respondeu ela, ofuscada ao ver-se alvo de tanta
atenção.
- Não, não são os antepassados dela - disse Rachel, num tom
sereno, embora firme. - São o meu avô e a minha tia-avó.
Nick ficou a meio da mesa, com Penny Kent à direita e Jenny
Groom à esquerda - sem dúvida o lugar menos estimulante de
todos, mas Nick não se importava porque tinha uma companhia
muito especial, uma companhia que era só dele. Atacou a
empada de caranguejo como se estivesse a partilhar uma
anedota. - Que tal se sente neste ambiente? - quis saber Jenny
Groom, com o ar de alguém capaz de resistir mesmo às mais
desagradáveis surpresas.
- De uma maneira estranha, mas confortável - disse Nick; e como
ela não gostasse da resposta: - Não, eu sou um velho amigo de
Toby.
- Oh, o filho de Gerald, não é... E ouvi dizer que ele está a
trabalhar no Guardian! - Parecia a Nick que o escândalo do
estágio de Toby no Guardian eclipsava a sua própria dissidência,
seria talvez escândalo bastante para uma família.
- Bom, pode perguntar ao próprio. Toby está ali... - disse Nick,
alto o bastante para chamar a atenção de Toby, que escutava um
arrazoado de Greta Timms exaltando as virtudes da Família. Toby
ofereceu-lhe um sorriso meio dissimulado, como que a dizer «Eu
ouvi-te», mas logo tratou de aquietar Greta: - Sim, estou a ver -
disse, com o único propósito de lhe mostrar que continuava
atento às suas palavras.
- Oh, claro. É a cara do pai - disse Jenny com o cenho carregado.
- Mas diga-me, o que é que você faz na vida?
- Estou a fazer um doutoramento na UCL, sobre... sobre Henry
James - respondeu Nick, apercebendo-se de que a questão do
estilo era muito capaz de deixar a sua interlocutora completa-
mente perdida.
- Oh... - disse Jenny num tom cauteloso, fazendo um esforço para
identificar o tema. - Sim. Aí está um autor sobre o qual nunca me
debrucei.
- Bom... - disse Nick, marimbando-se para o facto de ela se ter ou
não debruçado.

159

- Ou... espere... talvez tenha lido um livro dele... Dr. Johnson ou


qualquer coisa parecida.
- Não... Não creio...
- Não, não Dr. Johnson, obviamente...!
- Quer dizer, há o Boswell, não é verdade?(1)
- Passava-se em África... Já sei: Mr. Johnson.
- Ah, Mister Johnson é um romance de Joyce Cary.
- Exactamente, eu sabia que tinha lido qualquer coisa dele.
Quando o veado chegou, Gerald rompeu numa gritaria ansiosa: -
Não toquem nos pratos! Não toquem nos pratos! - de tal modo
que até parecia que havia um problema grave. - É que os pratos
têm de estar a escaldar para o veado. - A verdade é que a
gordura congelava de uma forma francamente chocante, caso os
pratos não estivessem quase em brasa. - Sim, o meu cunhado
tem uma propriedade na qual integrou um parque de veados -
explicou Gerald a Morden Lipscomb. - Um traço absolutamente
encantador que, nos nossos dias, é uma verdadeira raridade. - Os
convidados fitavam a comida com a humildade estampada nos
rostos. - Não - prosseguiu Gerald, no seu jeito agressivo de
responder a perguntas que desejava que alguém lhe tivesse feito
-, isto é veado macho... a carne do macho pode ser consumida
muito antes da carne da fêmea e é muito superior. - E deu ele
mesmo a volta à mesa para servir o Borgonha. - Creio que vais
gostar deste - disse ele para Barry Groom e Barry cheirou o vinho
com um ar impaciente, como se tivesse plena consciência de
que os outros consideravam que ele tinha mais dinheiro do que
gosto.
Nick partilhou um breve sorriso com Rachel, que estava do outro
lado da mesa. Um sorriso que parecia troçar subtilmente não só
de Barry, mas também do próprio Gerald. Nick bebeu o seu
primeiro gole de Borgonha com uma excitação que advinha
desse entendimento partilhado, como a liberdade concedida a
uma criança por uma mãe confiante - a suposta conspiração
contra o pai. Perguntou-se se Gerald e Rachel alguma vez
discutiriam. Se alguma coisa acontecia, então só poderia ser no
branco secretismo do seu quarto,

*1. Vide nota a respeito de Samuel Johnson no capítulo 3.


Boswell foi o infatigável companheiro do Dr. Johnson e o seu
biógrafo. A sua principal obra é, aliás, The Life of Samuel
Johnson, II. D. (1791). (N. do T.)

160

o qual, com a sua pequena antecâmara, se furtava aos ouvidos


alheios graças a duas pesadas portas, tornando-se, de algum
modo, sexual.
Quando pensou em Leo, depois de não ter pensado nele durante
um ou dois minutos, ouviu, na sua cabeça, o imponente som de
uma orquestra. Viu Leo deitado em cima do seu casaco, à
sombra de um arbusto, a camisa e a camisola de lã puxadas até
às axilas, os seus jeans e cuecas à volta dos joelhos, pequenas
folhas mortas coladas às coxas - e ouviu o espantoso tema. Era
estrondoso e sumido ao mesmo tempo, um pizzicato abismal,
uma arremetida dos metais mais escuros e, por cima disso, um
esplendor de cordas capaz de fazer estremecer um coração
empedernido. Parecia deitá-lo por terra e lançá-lo nas alturas e
tudo num único gesto a que ele não oferecia a menor resistência.
Não conseguiu repeti-lo imediatamente, mas, passado um
bocado, veria Leo erguendo-se para o beijar, e aquele tema, o
mesmo tema amoroso, faria com que a sua pele se arrepiasse
toda de novo. Despertou sobressaltado do seu devaneio por obra
e graça da voz de Penny, que estava a descrever o seu trabalho -
tão interessante...! - com Gerald; Nick até deu um salto, tal foi o
choque, e sorriu para o seu amigo invisível, de tal modo que
Penny ficou a pensar se, inadvertidamente, não teria dito
qualquer coisa de cómico. Nick perguntou-se se o tema teria
vindo de alguma coisa que ele conhecia, ou se fora ele próprio o
autor. De certeza de que não era o tema do Tristão, com o seu
gérmen de catástrofe. Ocorreu-lhe - horrível ocorrência - que, se
aquele tema existia, então era muito provável que tivesse sido
concebido por Richard Strauss, sem dúvida para ilustrar uma
decapitação ou um massacre à machadada, enfim, uma qualquer
abjecta atrocidade. Ao passo que para Nick, aquela música, se
bem que assustadora, era também indescritivelmente feliz.
- Então e como é que se está a dar na ucl? - perguntou
generosamente Penny, como se, após Oxford, a UCL constituísse
um lamentável revés. Nick e Penny nunca se tinham conhecido
enquanto estudantes, a palavra Oxford significava coisas
diferentes para eles, mas, pelos vistos, Penny usava-a como algo
que tinham em comum.
- Oh, muito bem...! - disse Nick; e prosseguiu, num jeito
obsequioso: - Não sei se sabe, mas não é nada como Oxford, não,

161

de maneira nennuma. O espaço propriamente dito e bastante


soturno. Acabo de saber que o departamento de Inglês foi, em
tempos, uma fábrica de colchões.
- Não me diga! - exclamou Penny.
- É um pouco deprimente. Não admira que metade dos
professores e funcionários sejam alcoólicos. - Penny riu-se,
estranhamente excitada, e Nick sentiu que estava a cometer
uma tremenda deslealdade. Com efeito, venerava o professor
Ettrick, que se afeiçoara a ele com uma imediata e subtil
confiança, e encontrara, no tópico da sua tese, possibilidades
com que Nick nunca sonhara. A verdade, porém, é que o seu
trabalho caíra num marasmo, e, na maior parte dos dias que
passava na biblioteca, os seus olhos deambulavam para lá da
página, num profundo e monótono devaneio em torno de Leo: as
longas e complexas frases de Meredith e James tornavam-se
mais lentas e dissipavam-se em parênteses subliminares, em
orações subordinadas de memórias de sexo que duravam meia
hora. E ele sentia-se culpado, porque queria ser digno da
confiança do professor e tão inteligente e empenhado como
deveria ser. Penny disse: - Não disse que estava a trabalhar em
Henry James?
- Hã... sim - disse Nick.
Penny parecia sentir-se confortável a esse respeito, mas limitou-
se a dizer: - O meu pai tem montanhas de Henry James. Creio
que lhe chama o Mestre.
- Sim, é o que alguns de nós lhe chamam - disse Nick. Pestanejou
com a exaltada humildade de um devoto e cortou um
quadradinho de carne castanha.
- A arte faz a vida: não era essa a sua divisa? O meu pai cita
imenso essa frase.
- É a arte que faz a vida, que gera o interesse, que forja a
importância, tendo em vista o nosso entendimento e aplicação
dessas coisas, e eu não conheço nada, seja em que campo for,
capaz de substituir a força e a beleza do processo artístico -
disse Nick.
- Sim, é qualquer coisa desse género - disse Penny, e, com um ar
satisfeito, sorriu para a luz das velas. - Estava a pensar... -
prosseguiu. - Que teria Henry James feito connosco?
- Bom... - Nick matutou na questão. Achava Penny uma espécie
de tia generosa que propunha questões com uma virginal firmeza
e ignorância. Perguntou-se, com um ar superior, quais
seriam as perspectivas sexuais dela. Um certo tipo de homem
talvez gostasse de dar mais cor àquele nédio e alvo colo. Disse: -
James teria sido muito amável connosco, teria acentuado quão
maravilhosos e belos nós éramos, ter-nos-ia dado coisas
incrivelmente subtis para dizermos, e só nas últimas páginas,
mesmo antes do fim, é que nós nos daríamos conta de que ele
perscrutara o fundo das nossas almas.
- Porque, de facto, ele escreveu sobre a alta sociedade, não foi? -
disse Penny, pensando, sem sombra de dúvida, que era
precisamente aí que ela se encontrava, e também, talvez, que a
alta sociedade era imune a olhares tão perscrutadores.
- E muito - disse Nick; e, lembrando-se da conversa que tivera
com Lord Kessler no Verão e, no fundo, dando-lhe agora uma
resposta longamente ponderada, acrescentou: - Dizem que ele
não entendia as questões do dinheiro, mas do que não há dúvida
é que ele tinha um profundo conhecimento dos efeitos do
dinheiro e do modo como o facto de se ter dinheiro influencia o
pensamento das pessoas. - Olhou afectuosamente para Toby, o
qual, só porque era uma boa alma, tentava de vez em quando não
pensar como uma pessoa rica, embora, de facto, nunca
conseguisse apanhar-lhe o jeito. - James odiava a grosseria -
prosseguiu Nick. - Mas também dizia que, quando taxamos
qualquer coisa de grosseira, é apenas porque não somos
capazes de a descrever adequadamente.
Penny parecia estar a tentar decifrar as palavras de Nick, mas,
na realidade, estava a escutar o que Badger lhe segredava ao
outro ouvido: pelo seu súbito enrubescimento, acompanhado de
um risinho, Nick pôde concluir que estava perante mais uma das
pequenas provocações sexuais com que Badger costumava
brindá-lo - era quase uma maneira de lhe chamar panasca.
Toby escutava Greta Timms, mas adoptara uma posição que lhe
permitia vigiar Sophie, a qual estava a ser friamente dissecada
por Morden Lipscomb. - Não - disse Sophie num jeito relutante -,
eu só participei num filme de facto importante.
- E quanto ao palco? - disse Lipscomb, com uma estranha
combinação de persistência e indiferença.
- Bom, estou prestes a entrar numa coisa... É... Quer-me parecer
que será uma produção bastante avant-garde... é O Leque de
Lady Windermere.

162 - 163
Jenny broom começou a perguntar qualquer coisa sobre
Catherine, se ela era realmente tão louca como se dizia, e as
hesitações de Nick enquanto respondia permitiram-lhe, apenas
em parte, ouvir a verdade que Lipscomb conseguira arrancar a
Sophie, ou seja, que ela não ia fazer a Lady Windermere
propriamente dita, mas «Oh, apenas um pequeno papel... Não!
Não tenho demasiado texto para decorar... Oh, não, ela não, é um
papel maravilhoso... De qualquer modo, o mais provável é que o
encenador acabe por dar cabo daquilo tudo...» e que, na
realidade, lhe fora atribuída a parte de Lady Agatha, um papel
que, se alguma notoriedade tinha, era pelo facto de não conter
mais do que duas palavras: «Sim, mamã». Nick considerou tudo
aquilo muito divertido e, um segundo depois, quase sentiu pena
dela.
Rachel disse: «Que bom, minha querida, iremos todos à sua
estreia» e estava a ser manifestamente sincera, de tal forma que
se poderia dizer que estava a ser firmada uma nova aliança, de
uma solidariedade eficiente, quase impessoal, entre a mãe e a
eventual
nora.
Lady Partridge, ciosa da atenção de Lipscomb, impôs uma
brusca e nebulosa mudança de assunto, lançando-se num
imparável relatório da reposição da anca a que se submetera:
«Oh, foi na Dorset... Bom, sim, é sempre para lá que eu vou, eles
são maravilhosos... jovens encantadoras... Sim, as enfermeiras...
Há um ou dois médicos de cor, mas é claro que não há a menor
necessidade de qualquer contacto com eles... Não que eu seja
uma pessoa de hospitais!» exclamou a anciã, procurando
tranquilizar o seu interlocutor. «O meu falecido marido é que
passou lá muito tempo.»
«Ah...» disse Lipscomb, aferindo a distância necessária à
expressão dos mais sentidos pêsames.
Lady Partridge ergueu o seu copo com um suspiro mundano.
«Bom, eu sobrevivi a dois maridos e, provavelmente, já chega»
disse ela, como que abrindo ainda uma minúscula fresta a
futuras propostas. Olhou para Lipscomb, perguntando-se talvez
se ele dissera alguma coisa, mas logo prosseguiu: «Caso curioso,
chamavam-se ambos Jack! Na realidade, não poderiam ser mais
diferentes... como o dia e a noite... Creio que nunca se teriam
dado bem, se alguma vez se tivessem encontrado!» Nick pensou
que era quase como se ela estivesse ao telefone, ouvindo
respostas e perguntas

164

vindas de muito longe. «Jack Fedden, claro, o pai de Gerald, um


género de homem muito divertido, enfim, à sua maneira... As leis
eram o seu mundo, todo ele era um homem das leis... muito,
muito bem-parecido... e Jack Partridge, Sir Jack, é claro... Não,
não tinha nada a ver com leis... De modo nenhum... Era um
homem prático, um construtor, foi ele que construiu algumas das
novas auto-estradas, como por certo sabe... Sim, algumas das
As... A A... hum... Deixou uma obra maravilhosa...»
Na cabeceira da mesa, Gerald mostrava-se perceptivelmente
perturbado com a conversa da mãe. Nick sabia que Jack
Partridge falira pouco tempo depois de ter recebido o título de
Sir, naquela que fora uma das divertidas reviravoltas dos anos
mais recentes; era um caso que, por associação, poderia talvez
deslustrar um pouco o nome do seu enteado. Gerald optou por
uma intervenção firme. Disse: - Pois é verdade, Morden, o seu
relatório sobre a SDI prendeu-me por completo da primeira à
última página.
- Ah... - disse Lipscomb, com um sorriso que mostrava que não
era assim tão fácil lisonjeá-lo. - Não estava seguro de que
concordaria com as minhas conclusões.
- Oh, absolutamente - disse Gerald, com um surpreendente
sorriso irónico, a confirmação, para Nick, de que ele não lera
mais do que as primeiras páginas. - Seria de todo impossível
discordar!
- Bom... seria pelo menos surpreendente... - disse Lipscomb.
- Estão a falar dos telefones? - perguntou Lady Partridge.
- Da defesa antimísseis, mãe - retorquiu Gerald alto e bom som.
- A Guerra das Estrelas, avó, não sei se está a ver - disse Toby.
- Estava a pensar no STD(1), Judy - disse Badger.
- Ah - disse Lady Partridge, e deu um risinho, não de embaraço,
mas por ter atraído a atenção de tanta gente.
- O presidente anunciou há seis meses a Iniciativa de Defesa
Estratégica - declarou Morden Lipscomb, num tom grave,

*1. STD é a abreviatura para Subscriber Trunk Dialing, um


sistema que (na Grã-"Bretanha) permite aos assinantes fazer
chamadas interurbanas ou internacionais. No entanto, como é
sabido, STD é também o acrónimo inglês para «doença(s)
sexualmente transmissível(eis)». SDI, como indica o texto, é
Strategic Defence Initiative que, em Portugal, se chamou
Iniciativa de Defesa Estratégica, a conhecida «Guerra das
Estrelas» de Reagan. (N. do T.)

165

mas um pouco impaciente. - A SDI tem por objectivo proteger os


Estados Unidos de todo e qualquer ataque com sistemas de
mísseis teleguiados. Com efeito, os Estados Unidos vão criar um
escudo defensivo capaz de rechaçar e destruir armas nucleares
antes que elas consigam atingir-nos.
- Ora aí está uma ideia deliciosa - disse Lady Partridge. Claro que
um tal comentário parecia satírico, e, de facto, o plano suscitara
reacções sarcásticas, a par de uma profunda consternação; mas,
pensou Nick, não, a velha era muito capaz de gostar de
armamento e de orçamentos militares em geral.
- É, creio, uma ideia irresistível - disse Lipscomb, pousando a
mão esquerda sobre a mesa, num jeito sobranceiro. Usava um
anel com sinete no dedo mindinho, mas, quanto a aliança de
casamento, nada. Claro que isso não queria dizer grande coisa; o
pai de Nick e os amigos do pai não usavam alianças de
casamento, as quais, apesar de todo o seu simbolismo, eram
consideradas vagamente efeminadas. Lembrou-se do cartão que
dizia «Da secretária de Morden Lipscomb»; era caso para pensar:
de que outro sítio é que o relatório poderia ter vindo? «Do bico de
trás do fogão de Morden Lipscomb», «da casa de banho de
Morden Lipscomb», «do armário de Morden Lipscomb»...? Bom,
era uma ideia... De uma coisa não havia dúvida: Lipscomb
possuía os seus próprios sistemas defensivos.
Após o pudim, as damas retiraram-se. Ao vê-las subir as escadas,
Nick foi com elas em pensamento; levantou-se e deixou-se ficar
de pé com um joelho na cadeira, na esperança de que, não sabia
como, lhe fosse permitido juntar-se a elas. - Venha daí, Nick -
disse Gerald. Os homens reuniram-se todos à cabeceira da mesa,
num sinistro movimento convivial, ocupando os lugares das
ausentes. Nick passou o guardanapo de Lady Partridge, todo
besuntado de bâton, a Elena, que viera impor alguma arrumação
na mesa. Havia muitas reuniões inteiramente masculinas de que
ele gostava, mas, agora, sentia a falta da presença amenizadora
de uma mulher; qualquer mulher serviria, até mesmo Jenny
Groom, cuja impaciência geral, concluíra, era uma flor triste
nascida do ódio que dedicava ao marido. Agora, Barry Groom
estava sentado em frente dele, com um ar trombudo, como se
uma extrema familiaridade com a etiqueta de tais ocasiões
provocasse nele um intolerável enfado.

166

Nick olhou para Toby num pedido de ajuda, mas Toby estava a
tratar da caixa de charutos e do corta-charutos; Gerald, por seu
lado, dava a ordem de partida para o circuito das garrafas ao
longo de meia mesa. Nick reviu Leo no instante em que o
deixara, poucas horas antes; viu-o afastando-se, conduzindo a
bicicleta com uma mão, e o tema amoroso voltou a soar,
prudentemente agora, não, não queria que os outros o ouvissem.
Como poderia ele descrever aquilo, inclusive para si mesmo,
aquele jeito que Leo tinha de andar, aquele requebro, aquela
mobilização, meio consciente, meio inconsciente, dos seus
próprios efeitos? - Vou dar-lhe um conselho - disse Barry Groom,
escolhendo, num movimento imperioso, entre as garrafas de
cristal, obviamente não assinaladas, de Porto e de Bordeaux.
- Ah, sim, claro - disse Nick, e sentiu a sua erecção começar a
esbater-se.
- Nunca especule com mais de doze por cento do seu capital -
proferiu Groom.
- Ah... - disse Nick, num tom de jocosa surpresa; porém, ao ver a
expressão quase raivosamente séria do outro, tratou de
acrescentar: - Doze por cento. Certo... Vou tentar não me
esquecer. Não, sinceramente, parece-me um bom conselho.
- Doze por cento - repetiu Barry Groom. - É o melhor conselho que
lhe posso dar. - E fez deslizar as garrafas na direcção de Nick;
por serem os convidados mais distantes de Gerald, formavam
uma espécie de ponte no circuito das bebidas. Nick serviu-se do
Porto e passou a garrafa a Morden Lipscomb, numa inofensiva
exibição de eficiência e charme. Lipscomb estava a cortar um
charuto, e a sua boca fina, repuxada para baixo graças a uma
total concentração, parecia remoer um qualquer desdém, não
pelo charuto, mas pela companhia em que se encontrava. Na
solene, mas desinibidora, ausência das mulheres, aquele seria
talvez o momento certo para que ele brilhasse entre os demais;
contudo, Lipscomb mostrava-se cauteloso, ou então estava
francamente mal-humorado. Nick sentiu pena de Gerald, mas não
via de que modo é que poderia ajudá-lo. Só conhecia uma
maneira de se envolver com as pessoas: através da súbita
intimidade de uma conversa sobre arte e música, de uma
manifestação de sensibilidade; sentia, porém, que Lipscomb o
rejeitaria, como se repelisse uma intimidade de um outro tipo.

167

Perguntou-se uma vez mais o que Leo teria dito e feito: ah, ele
tinha opiniões tão claras e tão sarcásticas acerca das coisas...!
- Então, Derek - disse Barry Gordon, no seu tom gelidamente
informal -, quanto tempo é que vais ficar em casa de Gerald?
Badger puxou esforçadamente uma fumaça, após o que soprou
uma turbulenta nuvem. - Enquanto o velho Banger me deixar ficar
- disse ele, empinando a cabeça na direcção de Gerald.
- Ah, então é por esse nome que tu o tratas? - disse Barry, num
acesso de rivalidade.
Badger resmungou, deu um rápido chupão no charuto e disse:
- Vem dos tempos de Oxford... - sabendo que era muito fácil
provocar Barry. - Não, eu estou à espera de que acabem as obras
na minha futura casa, por isso é que estou aqui.
- Ah, sim? E onde é que fica essa casa? - perguntou Barry num
tom dubitativo.
Badger mostrou-se surdo a esta pergunta, de modo que Barry
repetiu-a e Badger retorquiu lentamente, como que dando uma
pista a alguém que tivesse uma extrema dificuldade em decifrar
mesmo a mais simples das adivinhas: - Bom, para dizer a
verdade, até fica muito perto do sítio onde tu trabalhas. - Com
esta meia resposta, era muito provável que pretendesse apenas
provocar ainda mais Groom, embora uma tal reserva combinasse
na perfeição com qualquer coisa de sordidamente secreto que
havia em Badger.
- É só um pequeno apartamento, um pequeno apartamento
temporário.
- Por outras palavras: um apartamento para foder - retorquiu
Barry com óbvia rispidez, pois queria ter a certeza de que a
brutal expressão que escolhera, e o modo ofensivo como a usara,
atingiam em cheio o alvo. Até mesmo Badger pareceu um pouco
desconcertado. Gerald limitou-se a um «Ah...» depreciativo, e
mergulhou, de um modo quase confidencial, numa nova conversa
com John Timms e o seu velho mentor acerca do génio da
primeira-ministra. Nick olhou num relance para Toby, que
semicerrou os olhos para ele como que a garantir-lhe uma
solidariedade que, sendo geral, não tinha nenhuma consequência
prática.
- Cheguei a pensar que a primeira-ministra talvez pudesse estar
connosco esta noite - disse Lipscomb. - Mas é evidente que este
não é o género de festa adequado.

168

- Oh... - disse Gerald, com um ar ligeiramente culpado. - Sinto


imenso... Quer-me parecer que ela não estava livre. Mas se
quiser que os apresente...
Lipscomb olhou para ele com um sorriso invulgar. - Eu vou
almoçar com ela na terça-feira, de modo que é absolutamente
desnecessário.
- Ah vai? - disse Gerald, e, no meio da sua leve e jovial máscara
de inveja, despontou um sorriso.
E assim continuaram as coisas por mais dez ou quinze minutos,
com Nick empoleirado na esquina de duas conversas, o «extra»,
como Gerald predissera com extrema acuidade. Passava as
garrafas num jeito apreciativo, e mirava, com um sorriso vago, os
reflexos dos candelabros no tampo da mesa ou um espaço livre
escassos centímetros acima da cabeça de Barry Groom. Ria-se
de uma forma evasiva de algumas das piadas de Badger; à luz
das velas, naquela atmosfera suave e indecisa que a luz das
velas criava, Badger surgia quase como um amigo no meio dos
outros convidados. Acenou amavelmente a sua concordância
perante um ou dois comentários de Lipscomb cujo fio não seguiu,
mas que impuseram um respeitoso silêncio geral. O fedor a
charuto impregnava toda a atmosfera, era a própria atmosfera,
mas o álcool funcionava como uma secreta segurança. Havia em
Barry Groom qualquer coisa que, de tão irritante, se confundia
com um fascínio: uma pessoa ansiava que ele voltasse a
importuná-la. Havia nele uma inacreditável agressividade (seria
isso?) - todos os seus anseios se exprimiam como uma espécie
de desdém pelas coisas por que ansiava. E, no entanto, ele dava-
se bem com Gerald, eram parceiros nos negócios, encontravam
um no outro uma utilidade; e essa era talvez a imponderável
verdade por detrás daquela reunião de adultos.
A certa altura, Barry disse: - O modo como vocês, os gajos de
Oxford, falam do Martyrs' Club... - e franziu azedamente o
sobrolho enquanto engolia um pouco de Bordeaux. - Mas afinal
vocês eram mártires de quê? Isso é que eu gostava de saber!
- Ooh... das ressacas - disse Badger.
- Sim, da bebida - apoiou Toby, dando vivamente à cabeça.
- Das distinções de classe e das contas bancárias com saldo
negativo - disse Nick num jeito brincalhão.

169

Barry olhou-o fixamente. - O quê? Você também foi membro do


clube?
- Não, não... - disse Nick.
- Eu bem me parecia!
E foi então que se ouviu um tumulto na sala de entrada, logo
após terem aberto a porta da rua, e o estrondo desta a fechar-se.
I Um segundo depois, a campainha tocou, em três explosões
urgentes. Ouviu-se um grito ofendido, a porta escancarou-se de
novo, el Catherine - só podia ser ela - desatou a falar; à sala de
jantar, só chegava o tom apressado das suas palavras. Os olhos
de Nick percorreram os rostos dos outros homens, os quais
pareciam perplexos, aborrecidos, e até, num ou noutro caso,
algo deleitados. John Timms olhava fixamente - sem pestanejar -
para a porta fechada da sala; Badger recostou-se numa espiral
de fumo. «Está bem!», ouviram. Era Catherine.
- Aquela rapariga daria cabo da paciência a uma ostra - disse
Gerald, com evidente sentimento, mas também com uma
fungadela divertida, e um relance rápido para avaliar o efeito da
sua alusão.
Então, a porta da rua fechou-se de novo, mais delicadamente
desta vez, e ouviu-se a voz de um homem - «A menina tem de ter
cuidado...» Nick abafou um risinho enquanto, com algum esforço,
tentava colar aquela voz à de Russell, mas Gerald arrumou o
charuto e levantou-se: «Desculpem...», murmurou, e seguiu na
direcção da porta com um sorriso minguante. «É a minha mana»,
disse Toby. «Como ia dizendo...», disse Morden Lipscomb.
Quando Gerald abriu a porta, o homem continuava a falar num
tom calmo, se bem que insistente. «Você tem de se acalmar,
Cathy, eu não gosto de a ver assim, mas é que não gosto mesmo
nada...», e o coração de Nick derreteu-se com o sotaque
caribenho, num repentino acesso de vassalagem sentimental:
sentiu-se a flutuar na direcção daquela voz, deixando para trás
aquela espécie de reunião secreta, asfixiada pelas nuvens de
fumo dos charutos, os murmúrios oxfordianos e a hostilidade
lamurienta de Barry.
- Quem é você? - disse Gerald.
- Oh, por amor de Deus, pai! - exclamou Catherine, e não havia
dúvida de que estava a chorar, a sua voz embargara-se no final,
quando tentara dizer mais alto a palavra «pai».
- E o senhor deve ser o pai de Cathy...

170

Nick levantou-se e desandou na direcção da sala de entrada,


com a intenção de tentar controlar a rispidez de Gerald - não ia
ajudar nada, aquele tom ríspido - e com uma noção ansiosa das
coisas que Gerald ignorava e que, agora, muito provavelmente,
teriam de ser nomeadas e enfrentadas. Aliás, até ele estava meio
às escuras. Se uma pessoa nos dizia que estava bem, fazíamos
mal em acreditar nela? Catherine estava de pé ao fundo das
escadas, as mãos cravadas na corrente dourada da mala, uma
expressão simultaneamente furiosa e vulnerável: Nick quase se
ria, como as pessoas costumam rir-se - por um segundo - da
última catástrofe provocada por uma criança, e, depois, parecem
escarnecer dela quando, afinal, pretendem tranquilizá-la; no
entanto, Nick também estava assustado. Era muito provável que
tivesse de fazer qualquer coisa. Examinou Catherine com a
curiosidade ostensiva que é permitida em situações de crise -
era realmente infantil, aquela queda abrupta; ela saíra de casa
apenas duas horas antes. A boca dela tremia, como se, a
qualquer momento, pudesse romper em acusações. Parecia
minúscula sobre os saltos altos. Nick conhecia o homem, era o
motorista de táxi com quem ela fizera amizade, aquele que ela
levava lá a casa quando Gerald e Rachel não estavam, um
homem na casa dos cinquenta, o cabelo grisalho nas têmporas,
uma constituição física imponente; desprendia-se dele um doce e
muito leve cheiro a ganjá(1); bom, a verdade é que todos os
taxistas da Orbis vendiam haxixe. Era completa e perigosamente
diferente de tudo o que pudesse haver naquela casa.
- Olá! - disse Nick, ofegante, e pousou uma mão no ombro do
homem. - O que é que aconteceu, querida? - perguntou.
- Quem é este homem? - disse Gerald.
- Chamo-me Brentford, já que pergunta - retorquiu calmamente o
homem. - Trouxe Cathy para casa.
- É realmente muito amável da sua parte - disse Nick.
- Como é que você conhece a minha filha? - disse Gerald.
- Cathy precisa que cuidem dela - disse Brentford. - Eu não posso
ajudá-la esta noite, tenho o meu trabalho para fazer.

*1. No original, usa-se o termo inglês ganja. «Ganjá» é o termo


português, derivado, tal como a palavra inglesa, do hindu ganjah,
que designa um tipo de cannabis usado na índia para fumar. (N.
do T.)
171

- É o motorista de táxi - disse Nick.


- É preciso pagar-lhe? - disse Gerald.
- Eu não levo nada a Cathy - disse Brentford. - Ela liga-me quando
aquele tipo lhe dá com os pés.
- Isso é verdade? - disse Gerald.
- É realmente muito amável da sua parte - disse Nick. Catherine
deu um gritinho de incredulidade e avançou direita a
Brentford e agarrou no braço dele, como que a pedir-lhe um
abraço, mas o taxista manteve, também com ela, a mesma
atitude de prudente dignidade, e não a abraçou: afastou-a
delicadamente na direcção de Nick, e ela deixou-se encostar a
Nick, carpindo desalmadamente, mas sem se agarrar a ele.
Naquele momento, Catherine entregava-se por completo ao seu
sofrimento; não procurava nenhum tipo de consolação em Nick,
apenas um sítio onde se encostar; ainda assim, Nick envolveu-a
com um braço cauteloso. - Foi Russell? - perguntou ele. Mas ela
nem uma palavra conseguia alinhar.
- O que é que se passa, querida? - perguntou Rachel, descendo
numa pressa as escadas.
Gerald explicou: - Aquele bandido daquele monte de merda deu-
lhe com os pés - dizendo claramente, sob o véu de uma pretensa
indignação, que aquilo que mais desejava tinha finalmente
acontecido. - Coitada da minha Puss.
Rachel olhava para os três homens, e havia no seu rosto uma
sugestão de medo, como se o motorista de táxi tivesse trazido
para aquela casa uma ameaça muito mais terrível do que a crise
de Catherine. - Vem para cima, querida - disse ela.
Barry Groom, entretanto, aparecera na sala de entrada. Mirava a
cena com um ar arregalado e abanava a cabeça num jeito
furioso; estava de súbito tão bêbedo que a sua agressão,
inconscientemente, acabou por chegar atrasada. - Ouça lá, você!
- gritou ele para Brentford. - Eu não sei quem você é. Seu
badameco!
Gerald agarrou-lhe no pulso. - Não há problema, Barry.
- Você não toca nem com um dedo nesta rapariga, ouviu, seu...
- Cale-se já, seu... seu anormal de merda! - atirou-lhe Nick; o
insulto saiu-lhe sem contar, de tal forma que ficou todo a tremer
com o som da sua própria voz, de súbito possante, gigantesca.

172

- Sim, cale-se já, sua punheta mal batida! - berrou Catherine, por
entre lágrimas.
- Eh pá, calminha aí! - disse Barry, e, nesse instante, qualquer
coisa de horrendo, um sorriso malicioso, insinuou-se no seu
rosto.
- Santo Deus... Sinto muito, sinceramente... - disse Nick
para Brentford.
- Por que raio é que estamos todos aqui parados? - disse Gerald.
- Vem para cima, querida - disse Rachel.
- Vamos mas é acabar o nosso Porto e os nossos charutos - disse
Gerald, virando costas a Brentford. Tinha de mostrar, a festa
exigia-o, que encarava cenas daquelas com o seu habitual bom
humor. - Leva-la para cima, querida? - perguntou, como se
houvesse realmente alguma hipótese de ser ele a fazê-lo.
Catherine afastou-se e começou a subir as escadas e Rachel
tentou pôr-lhe um braço por cima dos ombros, mas ela repeliu-a.
Nick acompanhou Brentford à porta. - Tem a certeza de que não
quer que lhe paguemos? - disse ele, embora duvidando que o seu
dinheiro chegasse para pagar uma viagem de Stoke Newington a
Kensington Park Gardens. Queria que Brentford soubesse que ele
não era culpado da coisa de que toda a casa era acusada.
- Aquele homem não presta - disse Brentford, nos degraus da
porta.
- Oh... - disse Nick - sim... - Não sabia ao certo a que homem se
referia o taxista e o modo como este abanava a cabeça e agitava
o braço parecia indicar que a acusação abarcava todos aqueles
homens.
Nick deixou-se ficar no passeio por um bocado, depois de o
Sierra ter partido, e, através de uma janela aberta, chegaram-lhe
os risos das mulheres. Era bom estar fora de casa, saboreando o
ar da noite. Se tremia um pouco, era porque insultara aos berros
uma pessoa que odiava. Pensou em Leo e sorriu e aconchegou as
mãos sob as axilas. Perguntou-se o que é que Leo estaria a fazer
naquele preciso instante, e a tarde acendeu-se de novo e
aqueceu-o de espanto; depois, lembrou-se de Pete e Pete abateu-
se sobre a tarde quente como a friagem de uma nuvem. Voltou
para dentro e, já perto da porta meio aberta da sala de estar,
abrandou o passo:

173

«... o mendigo tresandava a haxixe!», estava a dizer Gerald, no


meio de uma estranha risada desenxabida. Agora, talvez pudesse
de facto meter-se no seu quarto e saborear a liberdade de ser o
extra. Não havia lugar para ele em nenhuma das duas festas. Era
falta de educação, ir-se embora assim - equivalia ao
reconhecimento de um desejo prévio de o fazer; mas Nick não
podia voltar para aquela sala e sentar-se diante de Barry Groom.
Sim, pensou, era possível que Gerald também ficasse furioso
com ele, mas ficaria sem dúvida contente por ele se interessar
tanto por Catherine. Não poderia ser acusado de estar a fugir às
suas responsabilidades. Nick começou a subir as escadas de
pedra e, sem dar por isso, cantarolou vários compassos - tão
vivos, tão auspiciosos - da Quarta Sinfonia, de Schumann; e,
quando deu por isso, calou-se.

174

6.

Santo Deus, saíste-me cá um artolas... - disse Leo. Impaciente,


olhou para diferentes partes de Nick, incapaz de identificar
exactamente a origem da sua insatisfação. No fim, lambeu o
polegar e esfregou-lhe as faces, como se Nick fosse uma
criança. Aquela palavra, artolas, uma minúscula ferroada, não
era a primeira vez que aparecia; assinalava um qualquer
complexo de reparos menores, inveja de classe, ou pena, as
óbvias frustrações de quem tinha um rapaz como Nick para
ensinar. Como sempre, também neste caso Nick procurava algo
mais; e aquilo que encontrava era a indulgência levemente
reprovadora do professor; continuava a suspirar por uma ternura
imaculada, mas perdoava a Leo, o qual, por uma vez, tinha os
nervos em franja. Estavam no passeio, em Willesden, a escassos
metros da cancela da frente da sua casa. - És mesmo um raio
dum betinho completo - disse Leo.
- Não sei o que é que isso quer dizer.
Leo abanou a cabeça. - O que é que eu vou fazer contigo?
Tinham-se encontrado depois do trabalho, do outro lado da rua
onde ficavam os serviços municipais, e Leo vestia um fato
cinzento-escuro, um casaco daqueles com os ombros bem
espetados e uma camisa branca e uma gravata larga, mas
sóbria. Era a primeira vez que Nick via aquela bela metamorfose,
o Leo de todos os dias, e não resistiu a sorrir. Estava apaixonado
ao ponto da idolatria, mas os sorrisos, os relances apreciativos,
Leo parecia senti-los como uma espécie de sarcasmo. - Estás tão
bonito - disse Nick.

175

- Fois, e tu também - disse Leo. - Muito bem, vamos entrar. Agora


não te esqueças do que eu te disse! Não invoques o nome de
Deus em vão! Não digas: «Deus do céu!» nem «Santo Deus!» Nem
sequer: «Meu Deus!» - (Leo disparava estas expressões com uma
vozinha aflautada, naquela que era uma desconcertante imitação
de Nick). - Não digas: «Caralhos mem fodam, meu Deus!»
- Vou tentar não dizer.
Nick atraía sempre a afeição das mães, era comummente
considerado um jovem amável e simpático, além de que gostava
da companhia - isenta de ameaças - das pessoas mais velhas.
Gostava de cativá-las com o seu charme, e mal dava por isso
quando, num acesso de entusiasmo, se deixava levar pela
insinceridade. No entanto, também conhecia a despreocupação
fictícia, a incerteza e a apreensão de levar amigos a casa, a
vigilância, disfarçada por um tom brincalhão, com que certos
assuntos tinham de ser interceptados e desviados mesmo antes
de terem emergido; aquele que levava amigos a casa, claro que
também conversava, mas apenas de uma forma distraída,
irrelevante, e tudo porque estava trinta segundos, um minuto,
dez minutos, à frente da conversa, como um radar capaz de
detectar aqueles magnéticos constrangimentos para os quais
qualquer conversa tenderia a convergir.
- A minha irmã a modos que sabe - disse Leo. - Tens de ter
cuidado com ela.
- Rosemary.
- É muito bonita.
Nick seguiu-o pelo curto caminho de cimento e disse-lhe ao
ouvido: - Aposto que não é tão bonita como tu - um dos seus
muitos, e muito leves, piropos de namorado que logo se
despenhavam no pó da terra, tal era o peso de adoração que
tinham em cima.
Mrs. Charles e os filhos viviam no rés-do-chão de uma pequena
casa com fachada de tijolo vermelho, que ficava no meio de uma
fila de casas iguais; havia duas portas, lado a lado, no acanhado
espaço do alpendre. Leo concentrou toda a sua atenção na porta
da direita, e não sem sérios motivos, pois a porta tinha uma
daquelas fechaduras que exigem ternos tenteios e suaves
puxadelas e recuos infinitesimais, para que a chave possa, por
fim, girar. Por um breve instante, os pensamentos de Nick
centraram-se no vidro colorido da janela

176

e na velha cruz de Domingo de Ramos pregada uns centímetros


acima da campainha. Imaginou Leo a viver aquela rotina todos os
dias; e deu-se conta do pequeno esforço de ajustamento que
estava a fazer, do choque que sentira e disfarçara ao ver aquela
rua e aquela casa - sim, talvez ele fosse de facto um artolas.
Quando entrou, assaltou-o uma memória, tão aguda como o
cheiro a cozinhados no bali, das tardes de serviço comunitário
promovidas pela escola, das suas visitas às casas dos velhos e
inválidos, cada caridosa visita uma lição sobre a vida e também -
pelo menos para Nick - sobre o subtil snobismo da estética.
Captou a minúscula cozinha num relance fotográfico, os
armários de parede com portas de correr de vidro fosco, os
cortinados cor de laranja, o calendário de igreja com o seu Jesus
flutuando nas alturas, a evidência de pequenos sistemas
necessários, papéis amontoados, instalações eléctricas
assustadoras, tigelas enfiadas em tigelas, e o fogão com uma
panela onde fervia qualquer coisa, e, por sobre a panela, pregada
na parede, uma daquelas armações verticais para pratos, os
quais estavam cobertos de uma ténue névoa, uma gotinha aqui,
outra acolá; e, no centro da cozinha, a mãe de Leo, uma mulher
com cinquenta e tal anos, pequenina, delicada, com os olhos
semicerrados e o cabelo desfrisado e um sorriso caridoso muito
seu. - Seja muito bem-vindo - disse, e a sua voz possuía aquela
quente cor caribenha que Leo apenas usava como um efeito
especial ou uma camuflagem temporária.
- Obrigado - disse Nick. - Muito prazer em conhecê-la. - Estava tão
habituado a viver segundo sugestões e aproximações que,
quando era apresentado à família de um homem por quem se
apaixonara, acabava sempre por sentir que havia nesse primeiro
contacto qualquer coisa de erótico; era como se, graças ao
exame de peculiaridades genéticas, de uma curva igualzinha do
nariz ou de uma idêntica indolência no andar, pudesse, por
interposta pessoa, chegar a um entendimento mais profundo
desse homem. Na opulenta atmosfera de Kensington Park
Gardens, tinha a sensação de que vivia na constante e difusa
presença de Toby, no meio de pessoas que eram alusões vivas a
Toby e, por isso mesmo, um tormento, tal como uma espécie de
consolo. Mas é claro que, no caso de Toby, nunca passara dos
abraços e dos beijos nas faces; por duas vezes, espreitara o seu
pénis nos urinóis da universidade. Agora,

177

num minúsculo apartamento da desconhecida zona de Willesden,


estava a conversar com a mãe do homem que o achava «uma
foda boa como o caralho», mas também «um pequeno brochista
de primeira, diplomado, com a nota máxima, em botões de rosa».
O que estava a anos-luz de abraços e espreitadelas. Nick ficou
parado a olhar para ela num transe de revelação e gratidão.
E depois apareceu Rosemary, vinda do trabalho, pelos vistos
mais cedo que o costume, para ajudar a mãe nas coisas da casa,
e tudo por causa daquele tipo que o irmão trouxera, sem sequer
explicar em condições os porquês do convite. Rosemary era
recepcionista num consultório médico e trazia uma blusa e uma
saia sob o impermeável com o cinto apertado. Foi uma
apresentação desastrosa, os dois às voltas no hall, tentando
contornar a bicicleta de Leo. Talvez fosse timidez, mas Nick teve
a sensação de que ela o tratava com desdém. Quanto à
formosura de Rosemary, achou que ela era uma versão fofa e
sedosa de Leo, sem o devastador pormenor de uma barba
encravada. Depois, os dois irmãos foram para os seus quartos
mudar de roupa. Nick não conseguia visualizar a planta da casa,
mas havia salas subdivididas nas traseiras, e uma sensação de
perturbante estreiteza que tornava a bicicleta inteiramente
necessária; a bicicleta ali estava à espera, estremecendo e
tilintando um nada quando Nick, por mais de uma vez, chocou
contra ela, como que consciente da prisão que fora imposta à
sua velocidade.
- Ah, aquela bicicleta... - disse Mrs. Charles, como se estivesse
perante uma qualquer inovação profana. - Eu bem o avisei...
Foram os dois para a sala da frente, onde uma pesada mesa de
carvalho e as respectivas cadeiras, com pernas bulbosas ao
estilo jacobiano, se apinhavam ao lado de um sofá de três peças,
estofado com um lustroso cabedal amarelo-avermelhado - ou, se
não era cabedal, era parecido. Havia um calorífero a gás com
uma armação de cobre amolgada e, por cima dele, uma
prateleira a abarrotar de souvenirs religiosos. As actividades
paroquiais de Mrs. Charles envolviam, sem dúvida, muito
trabalho burocrático; com efeito, metade da mesa estava
ocupada por caixas de arquivo e uma substancial pilha de cópias
de um folheto intitulado Dando as boas-vin-das a Jesus nos dias
de hoje. Nick sentou-se numa ponta do sofá e
pôs-se a examinar polidamente as gravuras, um amplo «mural»
emoldurado de uma praia cheia de exuberantes palmeiras e uma
reprodução de The Shadow ofDeath, de Holman Hunt. Havia
também fotografias de estúdio de Leo e Rosemary quando eram
pequenos; a certa altura, Nick deu por si a apreciá-las com um
interesse que roçava a pedofilia.
- Ora muito bem, meu jovem - disse Mrs. Charles, com uma
clareza de enunciação que soava simultaneamente inquieta e
maliciosa. - Sabe, Leo não me conta praticamente nada, nada de
nada. Mas suponho que você é aquele amigo dele que vive numa
grande casa branca, aquela que pertence ao deputado... É isso,
não é?
- Sim, sou eu mesmo - respondeu Nick com um riso auto-
depreciativo que pareceu deixá-la confusa. Leo devia ter
enfatizado tais factos para impressionar a mãe, se bem que,
noutras ocasiões, os mesmos factos fossem objecto de um vago
sarcasmo.
- E que tal se sente lá? Gosta daquilo? - perguntou Mrs. Charles.
- Bom, posso dar-me por feliz... - disse Nick. - Eu só lá estou
porque andei na universidade com um dos filhos.
- Então, e já esteve com ela?
Nick sorriu para o sorriso de Mrs. Charles com uma leve
palpitação de incerteza. - Com quem... está a falar de Mrs.
Fedden, não é....
- Não...! Mrs. Fedden... Claro que já esteve com Mrs. Fedden, se é
que estou a dizer correctamente o nome dela. - Nick enrubesceu
e, um instante depois, voltou a sorrir; tinha-se dado conta do
caminho, simples, embora engenhoso, ou mesmo religioso, que a
mãe de Leo percorrera para chegar à grande questão. - Não, ela.
A dama ela mesma. Mrs. T!
- Oh... Não. Não, não estive com ela. Ainda não... - Sentiu-se
obrigado a acrescentar, com uma forte dose de indiscrição: - Eu
sei que eles adorariam recebê-la lá em casa, ele... hum... Gerald
Fedden fez tudo para a ter lá em casa, bom, pelo menos uma vez
tentou. É um homem muito ambicioso.
- Ah, veja lá, não perca a oportunidade de conhecer Mrs. T
pessoalmente...
- Bom, se isso acontecer, pode ter a certeza de que não me
esqueço de lhe contar - disse Nick, mirando a sala com um ar
grato

178 - 179

no preciso momento em que Leo entrava. Vestia uns jeans e uma


camisola e Nick teve uma visão muito nítida de Leo em plena
ejaculação. Logo a seguir, viu o jorro espesso, grosso, de início
passeando, demorando-se, e depois escorrendo, escorrendo pelo
cabedal retesado, amarelo-avermelhado, das costas do sofá. O
sexo produzia nele uma deliciosa lavagem ao cérebro; quando
fechava os olhos, via uma sucessão de falos como um padrão de
papel de parede no escuro, e, a qualquer momento, as imagens
da cópula anal, o seu novo triunfo e arte, podiam galopar, numa
montagem surreal, pela rua fora, ou na sala de aulas, ou à mesa
de jantar.
- E será que me vai dar a alegria de me dizer que é um cristão
praticante?
Nick cruzou as pernas para ocultar a excitação e disse: -
Lamento desiludi-la, mas de facto não sou. Pelo menos por ora.
Mrs. Charles parecia habituada a tais decepções; havia nela um
ar quase alegre, como se, menosprezando os factos do momento,
pudesse ver longe, muito longe, no futuro. - E o seu pai e a sua
mãe?
- Oh, os meus pais são muito religiosos. O meu pai é fabri-queiro
e a minha mãe faz muitas vezes arranjos de flores para a igreja...
por exemplo. - Esperava que isto não realçasse apenas a sua
própria transgressão, mas que, sobretudo, a compensasse.
- Fico muito feliz em saber... E qual é a ocupação do seu pai? -
perguntou Mrs. Charles, avançando num tom insistente, como se
aquilo fosse uma entrevista; Nick ficou a pensar se ela saberia
de algum modo (ainda que subconsciente) que ele queria unir a
sua vida à vida do seu filho. Nick era um enigma em muitos
contextos, as pessoas costumavam entrevistá-lo naquele jeito
indirecto, oblíquo, pois queriam ver até que ponto ele encaixava
no contexto em que se moviam.
- O meu pai negoceia em antiguidades - disse. - Mobiliário e
relógios antigos, sobretudo, e também porcelana.
Mrs. Charles ergueu os olhos para Leo. - E esta? E exactamente o
mesmo negócio do velho Pete!
- É - disse Leo, que adoptara uma atitude reservada, distante,
que não ajudava nada. Puxou uma das cadeiras e sentou-se à
mesa atrás deles. - Antiquários é coisa que não falta por aí.
180

- Exactamente o mesmo - repetiu Mrs. Charles. - Esteja à


vontade, dê uma vista de olhos à casa. Nós temos algumas
antiguidades de valor, e bem velhas, por sinal. Não conhece o
velho Pete?
- Sim, conheço - disse Nick, dando uma olhadela rápida à sala e
perguntando-se o que Pete teria dito acerca daquilo tudo e como
é que Leo explicara à mãe a presença de Pete na sua vida.
- Não há dúvida, o mundo é mesmo pequeno - disse ela,
maravilhada.
- Bom, acontece que Leo me apresentou ao velho Pete...
- Ah, aí está um bom homem, o velho Pete. Sabe, nós sempre lhe
chamámos «velho» Pete, apesar de ele não ter mais de cinquenta
anos, quer dizer, de certeza que não tem.
- Tem quarenta e cinco - disse Leo.
- O velho Leo foi uma grande ajuda para o meu filho. Ajudou-o nos
estudos e também deu um empurrãozinho para ele ter aquele
emprego no município. E fez tudo isso desinteressadamen-te,
sem estar à espera de receber nada em troca, pelo menos neste
mundo, é claro. Sabe o que é que eu digo a Leo? Que o velho
Pete, para ele, foi como uma fada padrinho(1) que lhe apareceu...
Sim, como num conto de fadas! Está a ver, como as fadas
madrinhas das histórias para crianças... Uma fada padrinho...
- Qualquer coisa desse género - disse Leo, com o azedume de
uma criança sujeita à inaudita repetição das expressões
favoritas do progenitor, favoritas porque, amiúde, disfarçam com
reluzente verniz uma ansiosa denegação. Aquela expressão
específica, com o seu desajeitado e inconsciente trocadilho,
devia ser, para Leo, especialmente penosa.
- Leo não teve um pai em condições, um pai como deve ser -
disse Mrs. Charles num jeito inocente, e, de novo, com um ar de
satisfação quase manhoso pelo facto de os ter submetido àquela
pequena prova. - Mas o Senhor vela pelos seus filhos. Mas diga-
me, não acha que o meu Leo é um bom rapaz?
- É, sim... é um rapaz... esplêndido! - disse Nick.

1. No original fairy godfather, um «padrinho com poderes


mágicos, um padrinho de história de fadas». No entanto, a
palavra fairy também pode ser entendida como o termo
português (de origem brasileira) «bicha»; teríamos assim uma
outra leitura: um «padrinho bicha». (N. do T.)

181

- O que é que há para comer? - disse Leo.


- Espero que a tua irmã já não demore muito - disse Mrs. Charles.
- Vamos oferecer ao nosso convidado um prato muito especial:
costeletas picantes com arroz. Neste país - comentou ela para
Nick -, não é costume fritarem as costeletas, pois não? Vocês
têm mais o hábito de as grelhar, não é?
- Hum... Não sei. Creio que comemos as costeletas das duas
maneiras. - Nick pensou na sua própria mãe como uma
encarnação de tal tradição, se é que ela existia; mas prosseguiu,
decidido a encantar a sua interlocutora: - Mas se vocês fritam as
costeletas, em vez de as grelharem, então nós também fritamos
costeletas neste país!
- Ah... - disse Mrs. Charles. - Bom... é sem dúvida uma maneira de
ver a questão.
À mesa, os movimentos do braço esquerdo de Nick eram
limitados pela torre inclinada de Dando as boas-vindas a Jesus
nos nossos dias. Atacou a comida de um modo hesitante, se bem
que predatório. A refeição era uma ousada combinação de
picantes, uns mais brandos, outros mais violentos, e, a certa
altura, perguntou-se se Rosemary, como um diabrete zombeteiro,
não teria exagerado no picante só para caçoar das suas boas
maneiras. No rosto de Nick podia ler-se um apreço esbugalhado,
o que também era um disfarce para a surpresa de estar a jantar
às seis menos um quarto; algum absurdo reflexo social, o
proveitoso choque da diferença de classes, talvez uma
preocupação infantil perante a alteração de uma rotina, tudo isso
se combinava para produzir um estado de interessante
alienação. Em Kensington Park Gardens, jantava-se três horas
mais tarde, e, antes do jantar, tinham de passar por toda uma
sequência de outras diversões, conversas e bebidas, jardinagem
e ténis, discos, whisky e gin. Na casa de Charles, não havia
espaço para diversões, nem um jardim digno desse nome, nem
tão-pouco álcool. A refeição chegava à mesa logo após o
trabalho, dizia-se uma oração de graças por tudo e mais alguma
coisa (era verdadeiramente uma oração de longo alcance), e,
depois, comia-se e levantava-se a mesa e os Charles ficavam
com a noite inteira à sua frente. Havia coisas que Nick podia
adivinhar nos Charles, a partir dos hábitos da sua própria família,
os quais se situavam algures entre os hábitos dos Charles e os
dos Fedden; mas havia outras coisas que só ao fim de algum
tempo

182

conseguiria entender. Era a primeira vez que se via no seio de


uma família negra. O primeiro amor viera acompanhado de um
ramalhudo molho de outras primeiras coisas, um molho que, nas
suas mãos, se transformava num maravilhoso, mas inquietante,
bouquet.
Após um silêncio algo longo, Leo perguntou-lhe: - Então, como é
que vão as coisas na universidade? - como se mal se
conhecessem.
- Oh, vão bem - disse Nick desconcertado, mas, um segundo
depois, comovido com a rígida formalidade de Leo. Sempre que
Leo o tratava de um modo frio ou ríspido, Nick sentia-se como
uma criança, depois, virava um tal tratamento de pernas para o
ar e encontrava nele a expressão de uma afectividade recalcada.
Idolatrava Leo, mas, ao mesmo tempo, conhecia-o por dentro e
por fora, e, sempre que seguia este pequeno processo de
indulgência, acabava por sentir-se ainda mais apaixonado. - Até
agora, não tem sido muito excitante... Suponho que é apenas
diferente daquilo a que estava habituado. - Quando abandonava o
pátio das traseiras onde ficava o departamento de Inglês e onde
o sol nunca se dignava entrar, trazia sempre duas ou três
histórias novinhas em folha, prontas para serem contadas;
olhando para trás, apercebia-se de que eram essas histórias que
davam algum brilho aos dias que passava na universidade; mas
era muito difícil interessar Leo por tais coisas e o resultado é
que as suas histórias acabavam amiúde no caixote do lixo. Ou
então ficavam em armazém, com uma sombria sensação de
ressentimento.
- Ele antes esteve em Oxford - disse Leo.
- E agora onde é que está? - quis saber Mrs. Charles.
- Estou no University College - disse Nick. - Agora estou a fazer
um doutoramento.
Leo mastigava e franzia a testa. - Tu já me disseste o que era,
mas explica lá outra vez...
- Oh... - disse Nick, abanando a cabeça num jeito desenco-
rajador, como se não fosse de todo capaz de alinhar as palavras.
- Eu estou só a fazer uma coisa sobre o estilo nos... oh, no
romance inglês!
- Aaaah sim - disse Mrs. Charles, com um sereno aceno da
cabeça,

183

como que a dizer que se tratava de uma coisa infinitamente


superior, mas também, é claro, positivamente pateta.
Nick disse: - Umm... - mas Mrs. Charles não se conteve e
exclamou:
- Ele é louco pelos estudos! Ainda agora estava a pensar, que
idade é que terá este rapaz?
Nick deu um risinho constrangido. - Tenho vinte e um.
- Vinte e um anos e parece mesmo um rapazinho pequeno, não
parece, Rosemary?
Não se pode dizer que Rosemary tenha respondido; porém,
ergueu uma sobrancelha e pôs-se a cortar a sua costeleta num
jeito que parecia muito irónico. Nick ficou corado que nem um
pimento e só ao fim de um instante é que se deu conta do
embaraço de Leo, o misterioso enrubescimento negro,
desmentido com uma cara de poucos amigos. O seu segredo
estava escrito - e de que maneira - no seu rosto, e, de súbito,
Nick compreendeu que a diferença de idades contava muito para
Leo e que mesmo uma referência inocente a esse facto parecia
pôr completamente a nu a sua fantasia. O velho Pete era tolerado
e permitido por ser velho, uma instituição obscuramente
benigna; era muito mais difícil explicar a sua amizade com um
rapazinho de vinte e um anos e, para mais, tão estudioso.
Nick tinha de falar, tinha de prosseguir, embora se desse conta
de que estava completamente dessintonizado em relação ao
contexto: - Claro que uma pessoa tem saudades dos amigos,
demoramos algum tempo a habituar-nos, só espero que, no fim,
tudo se torne maravilhoso! - Houve uma outra pausa crítica, de
maneira que continuou: - O departamento de Inglês fica num
edifício que, em tempos, foi uma fábrica de colchões. Pelo menos
metade dos professores, é o que parece, são alcoólicos!
Estes dois comentários tinham caído bastante bem em
Kensington Park Gardens; Nick por pouco não sorrira da sua
própria patetice. Mas se é certo que todas as famílias são tolas,
não é menos verdade que cada família possui uma tolice muito
própria, diferente de todas as outras; e, agora, a família Charles
premiava os seus comentários com um silêncio perplexo e talvez
mesmo ofendido. Leo mastigava com óbvia lentidão e olhava
para ele com um ar absolutamente neutro. - Colchões, hã? -
disse.

184

Rosemary parecia apostada em não despegar os olhos do prato.


- Quer-me parecer que esses professores deviam procurar ajuda
- disse.
Nick deu um riso que era um pedido de desculpas. - Oh... claro,
claro que deviam. Tem toda a razão. Quem me dera que o
fizessem!
Passado um momento, Mrs. Charles disse: - Sabe, todos esses
homens, esses homens que têm esse tipo de problemas, todos
eles, sem excepção, têm um vazio enorme, imenso, mesmo no
meio das suas vidas.
- Ah - murmurou Nick, retraindo-se com polida apreensão.
- E eles podem preencher esse vazio com Nosso Senhor Jesus
Cristo. Só precisam de saber como lá chegar. É isso que nós
pedimos a Deus, é isso que nós pedimos sempre a Deus. Não é
verdade, Rosemary?
- É isso mesmo que nós fazemos - disse Rosemary, abanando a
cabeça para mostrar que se tratava de uma evidência
incontestável.
- E qual é a vossa taxa de sucessos? - perguntou Leo num tom
surpreendentemente sarcástico; um tom que encontrou cabal
explicação quando Mrs. Charles, num jeito confidencioso, se
curvou um pouco na direcção de Nick. Era impossível deter uma
mãe que se lançara no encalce da sua «ideia».
- Eu rezo para que todos aqueles que estão nas trevas encontrem
Jesus, e rezo para que os dois filhos que trouxe a este mundo
possam finalmente arrumar-se. No altar, claro está. - E riu-se,
mas de um modo tão terno, tão meigo, que Nick ficou na dúvida
quanto ao que Mrs. Charles realmente pensava ou sabia.
Leo coçou a cabeça e tremeu de frustração, ainda que, nessa
reacção, houvesse também uma espécie de ternura, visto que
ele era o filho que ia decepcioná-la. Rosemary, sem sombra de
dúvida o braço direito de Mrs. Charles, viu-se ligada a Leo pelas
palavras da mãe, e protestou categoricamente que estava pronta
para o casamento; só lhe faltava encontrar o homem certo. Com
os olhos semicerrados, ficava com o ar devoto da mãe. - Não há
nada que me impeça de subir ao altar... Quer dizer, tirando essa
única coisa - disse ela, e, ao olhar nesse preciso instante para
Leo, Rosemary pareceu brincar

185

com o fogo da traição, se bem que, um segundo depois, e uma


vez mais, parecesse desistir das suas intenções.
Quando a fruta e o gelado já estavam na mesa, Mrs. Charles
disse para Nick: - Reparei que tem estado a apreciar o meu
quadro, aquele ali, com Nosso Senhor Jesus Cristo na
carpintaria.
- Ah... sim - disse Nick, o qual, na verdade, fizera tudo o que
estava ao seu alcance para o evitar; no entanto, as
circunstâncias tinham-no levado a um exame muito cauteloso do
quadro, já que este estava uns escassos centímetros acima do
ombro de Leo, e mesmo em frente dele.
- Sabe, é um quadro antigo muito famoso.
- Pois é. Sabe, eu vi o original há muito pouco tempo, está em
Manchester.
- Pois, eu sabia que este não era o original, pois há um igualzinho
na Church House.
Nick sorriu e pestanejou, sem saber ao certo se a mãe de Leo
estava a troçar dele. - O original é enorme, é em tamanho natural
- disse. - É de Holman Hunt, claro...
- Aha - murmurou Mrs. Charles ao mesmo tempo que abanava a
cabeça, como se uma explicação vagamente improvável lhe
tivesse sido dada a uma luz nova e plausível. Era precisamente o
género de pintura, tenazmente literal e morbidamente simbólico,
de que Nick menos gostava; pior ainda, o quadro de Hunt era em
tamanho natural, o que implicava uma literalidade que a todo
custo clamava por admiração. - Ouvi dizer que é o mesmo sujeito
que pintou The Light of the World, aquele com Nosso Senhor
Jesus Cristo a bater à porta.
- Ah sim, é verdade - disse Nick, como um professor satisfeito
pelo simples facto de o seu aluno se mostrar interessado, e
deixando as questões de gosto para muito mais tarde. - Bom,
para ver esse, só tem de ir à Saint Paul's Cathedral.
Mrs. Charles pegou logo na sugestão. - Ouviste o que o nosso
convidado disse, Rosemary? Um dia destes, vamos as duas à
Saint Paul's Cathedral para apreciarmos o quadro com os nossos
próprios olhos. - E Nick viu-a com uns sapatos reluzentes de
engraxados e o pequeno chapéu preto, idêntico aos das
hospedeiras de bordo, que estava aninhado numa cadeira a um
canto, fazendo a sua longa viagem até à Saint Paul's Cathedral,
com longas esperas

186

numa série de paragens de autocarro, e a nervosa paciência de


um peregrino; viu-a, como que do ar, subindo a escadaria e
entrando na magnífica catedral que, sentia, acabava por ser,
ironicamente e por via da história da arte, propriedade sua, mais
do que dela, que não passava de uma simples e crédula cristã. -
Ou então, claro, podemos ir os dois, você e eu... hã? - disse ela a
Nick, evitando, um tanto por timidez, tratá-lo pelo nome.
- Adoraria - apressou-se a dizer Nick, aproveitando a
oportunidade para ser simpático e amável que até então lhe
havia sido negada.
- Então vamos os dois para vermos o quadro com olhos de ver -
disse Mrs. Charles.
- Excelente! - disse Nick, e vislumbrou um brilho trocista nos
olhos de Leo.
Empinando a cabeça para o lado, num jeito apreciador, Mrs.
Charles observou: - Sabe, nestes quadros antigos há sempre um
pormenor especial, escondido, um truque que não se vê à
primeira vista, não é?
- Sim, isso é muito frequente - concordou Nick.
- E sabe o que é que este quadro tem de especial, sabe qual é o
seu truque...? - A mãe de Leo olhou para ele com o ar tolerante,
mas manhoso, de alguém que conhece a resposta a uma
pergunta difícil.
Para Nick, o que aquele quadro tinha de especial, o truque, era
talvez o facto de a Virgem, ajoelhada junto ao baú onde guardou
as valiosas prendas dos Reis Magos, e vendo o presságio da
Crucificação na sombra do filho que se projecta na parede do
fundo, não mostrar o seu rosto ao espectador; de facto, o rosto
da Virgem está completamente oculto, de tal forma que o centro
de consciência do quadro, como Henry James teria talvez
chamado à figura da Virgem, é, na realidade, um espaço em
branco, um vazio; o que, seguramente, equivalia a um gesto
anticatólico. Disse: - Bom, há uma espantosa atenção ao
pormenor, aquelas aparas de madeira parecem mesmo reais,
tudo é tão preciso, tão exacto, neste quadro...
- Não, não... - disse Mrs. Charles, num tom de afectuoso
menosprezo. - Está a ver, o pintor pôs Nosso Senhor numa tal
posição que a sombra que projecta na parede é a imagem
exacta, sem tirar nem pôr, de Ele próprio na Cruz!

187

- An... sim - disse Nick - com efeito... De facto, chama-se a isso...


- E, claro - interrompeu Mrs. Charles -, tudo se resume a mostrar
que a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a sua Ressurreição
são profetizadas na Bíblia desde tempos imemoriais.
Nick disse: - Bom, não há dúvida de que o quadro ilustra esse
ponto de vista, ainda que não o prove - num tom tão categórico
como o dela, o que não seria talvez uma escolha muito acertada.
Leo lançou-lhe um olhar como que indicando perigo e tratou de
desviar o rumo da conversa.
- É, eu cá gosto da maneira como o pintor o pôs a bocejar - disse;
e espreguiçou os braços e inclinou a cabeça com um bocejo,
numa imitação perfeita de Nosso Senhor Jesus Cristo,
ressalvando-se o facto de que Leo tinha na mão esquerda uma
colher de sobremesa suja de gelado e Nosso Senhor não. Era o
género de pantomima frequentemente levada a cabo por
crianças mais observadoras, e Rosemary mirou-o com o
assombro recalcado e a expectativa sarcástica de uma rapariga
bem-comportada cujo irmão está a ser insolente e irresponsável.
Porém, disse:
- Mm, fico toda arrepiada quando ele faz isto.
Leo fez um «Tch...tch...» desdenhoso e pôs um sorriso
arreganhado, enquanto a sua sombra, na luz agora menos
brilhante do entardecer, se estirava e encolhia e vacilava na
parede por sobre a sua cadeira.
Terminada a refeição, Leo deu uma vista de olhos à bicicleta e,
num instante, estavam na rua. Nick sentia-se aliviado, mas cheio
de vergonha, transformara numa brincadeira o facto de ter sido
arrastado para fora de casa a meio de uma frase, fazendo de
conta que Leo era um cão cheio de força e vontade de sair que
puxava encarniçadamente a trela e o dono. Mas Mrs. Charles
pareceu não se importar nada com isso. - Ah, vão-se embora, vão
- disse, como se também ela sentisse, muito provavelmente, um
alívio imenso. Ou talvez, pensou Nick, enquanto avançava rápido,
em silêncio, ao lado de Leo, talvez Mrs. Charles tivesse reparado
no alívio de Nick e ficado triste por um segundo, após o que
adoptara uma atitude dura em relação a ele... O tom dela raiava
a rejeição;

188

talvez pensasse que ele era uma pessoa falsa, um fingido... Bom,
do que não havia dúvida é que ele assumira um ar superior
perante a senhora, sim, até certo ponto era verdade... Estas
ansiedades iam ardendo surdamente no seu coração. A certa
altura, chegou mesmo a sentir-se ofendido por Mrs. Charles
pensar que ele se achava superior.
Leo avançava num passo rápido, como se já tivessem combinado
para onde iam, mas não dizia nem uma palavra. Nick não
conseguia decifrar o que se passava com ele, não sabia se ele
estava aborrecido ou furioso ou envergonhado ou se,
simplesmente, optara pela provocação... mas sabia que todas
essas emoções podiam subir e engrossar como um rio e invadir
as margens para logo se evaporarem e se metaformosearem
noutras emoções, e também que era mais sensato deixá-lo
acalmar-se do que pôr-se a adivinhar o seu estado de espírito e
arriscar-se a tocar no botão errado. Essa consciência da
necessidade de sensatez era um pequeno refúgio sempre que
Leo se mostrava difícil ou distante. Concentrou a sua atenção no
arrefecimento que acompanhava o pôr-do-sol, nos farrapos de
uma nuvem negra que rondava os telhados da cidade e que os
ventos varriam na direcção dos céus, no álgido azul-cobalto para
lá da nuvem. Ao longo daquelas quatro semanas juntos, estes
passeios ao entardecer, com a bicicleta tiquetaqueando ao lado
deles ou entre eles, tinham ganho uma cor de romance cada vez
mais intensa. Inquietava-o que o próprio silêncio fosse uma
espécie de comentário, e, ao chegarem ao fim da estrada, puxou
Leo para si num rápido e impaciente abraço e disse-lhe: - Mmm,
obrigado por tudo, querido.
Leo resmungou brandamente. - Por tudo o quê?
- Oh, por me teres levado à tua casa. Por me teres apresentado à
tua família. Isso tem um grande significado para mim. - E deu-se
conta de que a sua pequena confissão libertara um sentimento
que, antes de a ter feito, era completamente ignorado. Sentiu-se
muito comovido.
- Portanto agora já sabes como elas são - disse Leo, parando e
fitando (e semicerrava os olhos tal e qual a mãe) a estrada
principal que se estendia diante deles. O trânsito do fim do dia
teve luz verde para avançar e acelerou colina abaixo, na
direcção deles e para lá deles, e depois começou a rarear até
que, uma vez mais, veio aquele vazio que marcava uma nova
espera.
189

- São maravilhosas - disse Nick, e só pretendia ser amável


embora ouvisse a palavra a pairar, no silêncio entre os
semáforos como que entre aspas, e sublinhada também: o
«maravilhoso» que acompanhava uma efusão sentimental, o
«maravilhoso» de um connaisseur, o «maravilhoso» de
Kensington Park Gardens. Leo pareceu achar o comentário
absurdamente inesperado e não parava de pestanejar; um
segundo depois, porém, sorriu e replicou, com um riso irónico:
- Se tu o dizes... querido - o «querido», tão ansiosamente
desejado por Nick, dito num tom dúbio e sarcástico.
Nick tinha grandes e desvairados planos para aquela noite, mas,
para já, deixava que fosse Leo a tomar a iniciativa: iam voltar a
Notting Hill, talvez apanhassem a sessão das sete e um quarto
do Scarface, no Gate - o filme acabara de estrear e Leo sabia
tudo acerca dele, incluindo a sua enorme duração, 170 minutos;
Nick via já cada um desses 170 minutos como uma unidade
definida pela escuridão, o calor de dois corpos, o contacto e a
excitação. Durante três horas, iam estar os dois muito juntinhos
no quente escuro do cinema. Leo disse que Al Pacino era um
actor extraordinário e falava dele de um modo quase amoroso,
coisa que Nick, muito francamente, não conseguiria fazer - para
ele, Pacino não era esse tipo de ídolo. Havia uma entrevista com
o actor numa nova revista, a Time Out, que Leo devia ter lido, já
que as suas ideias sobre o filme pareciam ter sido retiradas,
quase ponto por ponto, das sintéticas recensões da revista.
Fosse como fosse, o cinema era um território de Leo, patrulhado
sem a menor ponta de humor contra as hostis pretensões de
Nick, e um dos interesses que Leo referira no anúncio que os
juntara, e Nick lá acabou por conceder: «Não, Pacino é um
génio» e «génio» era uma palavra susceptível de satisfazer os
dois. E foram para a paragem do autocarro com essa ideia na
cabeça.
Quando veio o autocarro, Nick entrou e sentou-se no banco de
trás para não perder de vista Leo, que demorou uma eternidade a
aprontar a bicicleta e depois a montá-la; à luz dos candeeiros da
rua, ia ficando mais e mais pequeno a cada segundo que
passava. Quando o autocarro se deteve na paragem seguinte, a
bicicleta surgiu quase como se flutuasse e Leo abandonou a
posição curvada e ergueu-se no selim para dar uma espreitadela
a Nick - por um instante, dir-se-ia que montava o ar; depois,
piscou-lhe o olho e voltou

190

a curvar-se todo sobre a bicicleta e, com um clique da


engrenagem, passou o autocarro. Desta vez, Nick ficou contente
com a piscadela de olho; ergueu a mão e pôs um sorriso de
orelha a orelha e, um instante depois, era abandonado à luz crua
e pública do autocarro e aos olhares, vagamente suspeitosos,
dos outros passageiros.
Por fim, o autocarro, depois de muito se arrastar, lá deixou a
Harrow Road, e deu início à longa descida da Ladbroke Grove.
Nick julgava ver Leo ao longe, disparado na sua bicicleta, e a
todo o momento o perdia nas cintilações e sombras do trânsito
nocturno. Onde é que ele estaria agora? Nick encontrava-se
ainda no cimo da rua, na parte inicial da Ladbroke Grove, aquela
que lhe era mais estranha, com o canal e os terrenos
camarários, e ansiava por chegar ao outro extremo, àquela
região que sentia como sua, à segurança e altivez do estuque
branco e dos jardins privados. Perguntou-se o que acharia Leo da
zona de transição, que surgia a meio da rua, aquela densa zona
junto ao mercado e à estação, sob ruidosas pontes, onde as
pessoas flanavam e gritavam... Depois, surgia um trecho de uma
nobreza constrangida, até que a Grove subia, tirando um palpável
proveito da colina como metáfora social, e dando vida à sugestão
de um pomar ou pequeno bosque que o próprio nome da rua
continha. Não alimentava ilusões a esse respeito - não, Leo não
era sensível a esse tipo de coisas; para Nick, Leo podia ser uma
figura dilacerantemente poética, mas isso não significava que
ele fosse uma pessoa poética; para Leo, as exaltações e
hesitações estéticas de Nick tinham, seguramente, qualquer
coisa de tolo ou mesmo de bizarro. Por vezes, Nick cometia o
erro de pensar que Leo não sentia as coisas de uma forma
intensa, e, depois, quando Leo, furioso por duvidarem dos seus
sentimentos, deixava vir ao de cima o amor que lhe dedicava e a
necessidade que tinha dele, Nick sentia um choque violento que
o deixava sem fala e quase o amedrontava. Passou em revista o
jantar, a visita, e rendeu -se às evidências: claro que o jantar
também fora muito importante para Leo; o problema é que, nele,
a reserva, o secretismo, esmagavam e negavam tudo: se Nick
fosse uma mulher, a ocasião teria tido um significado ritual e a
mãe de Leo poderia ter-se permitido sonhar - finalmente - com os
degraus do altar. Para Nick, a razão gritante da visita fora o seu
amor por Leo, que o obcecava tanto como o amor por Cristo
obcecava Mrs. Charles; mas ela concedera-se a

191

Liberdade de exprimir a sua fixação - acolhera mesmo como um


dever a expressão desse amor obcecado -, ao passo que a
fixação de Nick ardia apenas através de rubores e olhares
secretos. Mrs. Charles eclipsara-o por completo.
Quando chegou ao cinema, encontrou Leo na bicha, só com duas
ou três pessoas à sua frente. - Conseguiste - disse, acenando
com a cabeça e dando uma espreitadela para as pessoas que
estavam atrás. - Pois, é a estreia - disse Leo, como se fosse uma
tremenda maçada, ele era um mártir das estreias. E quando
chegou a vez deles, verificaram que o cinema estava quase cheio
e que não poderiam ficar juntos. Nick encolheu os ombros e
disse: - Ah bom... - voltando-se para o casal que estava atrás
deles e que tentava ouvir a conversa. - Podemos vir no fim-de-
semana.
Mas Leo disse: - OK; nós ficamos com os bilhetes, já que
viemos...! - e olhou para ele com um ar de amável solicitude.
Nick disse baixinho: - Estava só a pensar: como não podemos
ficar juntos... - visto que a única razão para ele passar três horas
a ver um filme de gangsters superviolento era ter o peso e o
calor de Leo contra ele e a mão de Leo na sua braguilha aberta.
Tinham feito amor assim, com uma lentidão cautelosa e
delirante, no Rum-blefish -Juventude Inquieta, sob a deliciosa
égide de Matt Dillon, e n'O Navio, de Fellini, que fora uma
escolha, sem a menor esperança, de Nick e um pano de fundo
muito peculiar para um orgasmo. Tirando isso, só tinham feito
amor em parques, ou em casas de banho públicas, ou, uma vez,
nas traseiras da loja de Pete (Leo ficara com uma chave), e, aí,
Nick tivera a sensação de que o seu encontro amoroso fora ainda
mais furtivo, mais clandestino, do que aquelas roscas no cinema.
O que o cinema tinha de bom é que parecia que eles estavam a
participar em toda uma longa história de felizes apalpões e
linguados, e Nick gostava disso.
Agora, porém, ao aceitar o «melhor» dos dois bilhetes, no meio
da última fila, via-se de novo só e sentia essa solidão de uma
forma muito aguda. Os anúncios estavam já a passar quando
começou a abrir um penoso caminho por entre pernas e as
costas das cadeiras da fila seguinte; à luz instável da
publicidade, ora violenta, ora muito discreta, sentiu-se um
gigante e logo se baixou e se desfez em desculpas, não mais que
um intruso, um desastrado intruso num mundo de casais muito
enroscadinhos. Todo se espremeu para se
sentar e mesmo o espaço da sua cadeira parecia meio ocupado
pelos casacos e malinhas de mão e joelhos e cotovelos dos
amantes. Os cento e setenta minutos estendiam-se à sua frente
como um cativeiro de outras eras, como um qualquer teste
monstruoso. Estendiam-se, na realidade, como um filme que ele
não tinha a menor vontade de ver, e, por um momento, sentiu-se
dominado por uma revolta que lhe fez chegar as lágrimas aos
olhos e que ele próprio considerou insólita num homem adulto.
Sabia que podia levantar-se e ir até casa e voltar no fim. Mas a
verdade é que receava a reacção de Leo. Havia tanta coisa em
jogo... Passaram um anúncio ao Bacardi e a luminosidade do mar
tropical e da areia branca quase fazia da noite dia. Fixou o olhar
no lado esquerdo da sala, perto da frente, na esperança de
localizar Leo, mas não conseguia encontrá-lo. Até que, por fim, lá
enxergou a silhueta espetada - como que a preparar-se para o
combate com a tela - da sua cabeça, e, por um momento, o seu
perfil estranhamente distante e atento, à mercê dos jogos de luz.
Claro que a cena das palmeiras e do surf não andava longe do
«mural» de Mrs. Charles. Com a diferença de que, agora, uns
quantos heterossexuais soberbamente bem-parecidos se
entregavam a agradáveis tropelias na praia.
Os críticos haviam já descrito Scarface como «operático», o que
talvez fosse apenas uma maneira de dizer que era latino, espec-
taculoso e bombástico. Passava-se numa Miami tão brutal e tão
opulenta, tão sumptuosa e tão sem alma, que, a certa altura,
Nick deu por si inquieto com uma questão muito concreta, a
saber, como é que as pessoas conseguiam sobreviver naquela
Miami; um instante depois, já estava a pensar como é que ele é
conseguiria sobreviver num tal meio. Não era de admirar que,
sentindo-se tão insatisfeito, tão ressabiado, estivesse
constantemente a deambular entre o filme e uma série de
dúvidas e objecções paranóicas. Dava-se conta de que estava a
reagir tal e qual a sua mãe, para quem qualquer filme da TV com
uma cena de sexo ou a palavra «merda» ganhava de imediato
uma presença quase hostil e, a partir daí, passava a ser visto
com raivosa desconfiança. Scarface girava todo à volta da
cocaína, o que era bastante para o deixar alarmado. Encheu-se
de nervos

*1. «Rumblefish» chamou-se em Portugal «Juventude Inquieta»,


é um filme de Coppo-la, de 1983: «O Navio» de Fellini é também
do mesmo ano. (N. do T.)

192 - 193

só de pensar em Toby, que smtara coca com Wani Ouradi, em


Hawkeswood. O filme confirmava as suas piores suspeitas. Não
havia em nenhum daqueles cento e setenta minutos a menor
sugestão do delicioso prazer de que Toby falara. A droga era
dinheiro e poder e vício - uma jovem actriz loura passava o filme
a snifar montanhas de coca com o ar mais infeliz deste mundo.
O casal à esquerda de Nick afundava-se num emaranhado de
evolução lenta mas constante. Apercebera-se de uma mão numa
coxa desnudada por uma saia muito curta - e quando a mão se
moveu, desviou o olhar numa fracção de segundo, esmagado por
um sentimento de culpa. Tinha a invulgar sensação de que o
cinema era como um quarto - um longo e estreito espaço com as
molduras de gesso, cheias de pó, de um velho teatro. Em vez do
esquecimento característico de quem vai ao cinema, assaltava-o
uma espécie de pressentimento aziago. Nas cenas com mais luz,
os seus olhos percorriam numa pressa ansiosa as obscuras filas
de cabeças, mas Leo era baixote e ele também e nunca mais
voltou a vê-lo tão bem como no princípio da sessão, durante os
anúncios. Como fora Leo a escolher o filme, imaginava que ele
estivesse a gostar, a seguir atentamente as peripécias, a ajustar-
se, à medida que o filme avançava, aos seus novos padrões de
violência. Um filme que era chocante depressa baixava o limiar
do choque, acabando por deixar o espectador insensível. Nick
sentia que, se estivesse sentado ao lado de Leo, era muito
natural que, como os demais espectadores, tivesse gemido e
desatado num riso nervoso perante os tiroteios e o sangue. Mas,
agora, estavam separados, como talvez tivessem estado,
ocasionalmente, naquele mesmo cinema, antes de saberem da
existência um do outro, separados naquela quase escuridão.
Talvez fosse irracional, mas a gritante irrealidade do filme
parecia lançar uma suspeita de irrealidade sobre tudo o mais, e a
sua ligação com Leo, que era tão estranha, tão nova, tão
irreconhecida, parecia não ter defesas que lhe valessem perante
dúvidas tão básicas, ainda que penetrantes. Perguntou-se se
teria reparado em Leo um ano antes, na arrastada e
semipaciente bicha à saída do filme, e se teria levado para casa
a sua imagem e passado a noite acordado com ela. Bom,
provavelmente não, visto que uma das manias de Leo era ficar
até ao fim dos fins, até ao derradeiro nome da ficha artística e
técnica, até às lentes, às companhias seguradoras, aos
agradecimentos

194

ao presidente da Câmara e ao departamento da polícia de... oh,


algures, obscuramente, uma solução e um enigma ao mesmo
tempo...
E, de facto, só depois de toda a ficha artística e técnica ter
passado é que Leo apareceu no foyer, pestanejando e dando à
cabeça e, passado um momento, jovialmente perplexo com o ar
perturbado de Nick. - Está bem, miúdo - disse baixinho e agarrou
nele pelo braço para o conduzir até à rua. - É o que eu chamo
respirar coca - prosseguiu Leo, referindo-se a uma cena da última
hora do filme em que Pacino rasgara um enorme saco de plástico
cheio de cocaína em cima da sua secretária e mergulhara o nariz
na droga, finalmente escravo do seu próprio instrumento de
poder. A Nick, a cena parecera-lhe completamente ridícula. -
Então? Gostaste?
Nick hesitou e pigarreou como um ansioso mensageiro de más
novas. - Nem por isso - disse, e pôs um sorriso que nem meio era.
- Não, até que é divertido... - disse Leo. - O fim é inacreditável.
- Sim... lá isso é - concordou Nick, de um modo hesitante, mas
firme, recordando o copioso banho de sangue final. Como tantas
vezes lhe acontecia, tinha o sentimento de que uma discordância
artística, quase imaterial para a outra pessoa, ia ser o veículo de
qualquer coisa que, no seu íntimo, assumiria uma importância
que ele não se permitiria reconhecer.
Mas Leo disse: - Não, desculpa lá o mau jeito, miúdo, o filme é
mesmo merdoso. E lá ficámos nós sem os nossos beijinhos e
festinhas...
- Eu sei - disse Nick, com uma malícia que ocultava e que de
algum modo dissolvia três horas de lamentações, era tão grande
o seu alívio que nem via bem por onde ia, de tal forma que, à
saída, agarrou no puxador e desatou a sacudir uma das portas de
vidro que já estavam fechadas.
Leo encaminhou-se na direcção da rua secundária, obstruída
pelo trânsito, onde deixara a sua bicicleta, e Nick apanhou-o num
instante e, sem mais nem menos, Leo envolveu-lhe o pescoço
com as mãos e beijou-o, casta mas ternamente, na testa; depois,
parou a olhar para ele, franzindo um nada o sobrolho e sorrindo
ao mesmo tempo, num jeito de reprimenda bem-disposta.
- Nicholas Guest.

195

- Mm... - e Nick estava a ncar vermelno, mas, submissa^ mente,


não desviava os seus olhos dos olhos de Leo.
- Tu preocupas-te demasiado. Sabias disso?
- Sabia...
- Ah sim? Mas tu confias no teu tio Leo, não confias?
- Claro que confio em ti - ripostou calmamente Nick, como se lhe
tivessem feito uma pergunta mais simples.
- Bom, então não te preocupes tanto... Fazes isso por mim?
Fazes? - E, de novo, todo ele era aquela brandura cockney.
- Sim - disse Nick, espreitando todavia para a esquerda e para a
direita com alguma preocupação, visto que Leo o encostara à
parede como um assaltante tanto como um amante, estava com
medo do que as pessoas pudessem pensar. Esta breve cena, logo
após o profundo alívio que sentira, provocava nele uma vaga
insatisfação.
- Nunca te esqueças disto.
- Eu não me esqueço - murmurou Nick, e Leo afastou-se. Não
estava lá muito certo do que é que não devia esquecer, tinha um
ouvido demasiado desconcentrado para pormenores sintácticos,
mas sorriu do sentido geral daquela inofensiva e apaziguadora
sessão de catequese. Era delicioso que Leo se tivesse
apercebido imediatamente do que estava mal, ainda que o seu
tom avuncular não contribuísse, bem pelo contrário, para pôr o
caso em pratos completamente limpos. Não obstante o coração
acelerado, Nick achou que já se sentia suficientemente confiante
para referir os seus planos.
- Tens mesmo a certeza de que eles não estão cá?
- Absoluta. Bom, pode ser que Catherine esteja, não sei.
- Catherine... Certo... É a tua irmã, não é? - E Leo piscou-lhe o
olho.
A sólida e aguçada chave da fechadura blindada abrira já um
buraco no bolso das calças de Nick; quando levou a mão ao
bolso, verificou que o pesado molho de chaves se emaranhara
todo nos fios rasgados, acabando por ficar dependurado do
buraco; sentia-o roçando-lhe a coxa, não muito longe das virilhas.
Quando puxou pelo molho de chaves, umas quantas moedas de
libra, de circulação recente, deslizaram tilintantes pela sua
perna e rolaram pelo chão

196

de ladrilhos do alpendre. Leo apressou-se a apanhá-las. - Sim


senhor, deita o dinheiro fora... - disse.
Havia sempre uma luz acesa na sala de entrada, uma luz que,
naquela noite, dava àquele espaço uma atmosfera vigilante e, de
algum modo, misteriosa. Nick fechou a porta à chave e devolveu
o molho de chaves ao bolso, e, desta vez, mal deu dois passos,
as chaves desceram pela sua perna abaixo e foram cair no
xadrez de mármore do chão. Leo, entretido com o espelho da
sala de entrada, ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada.
Na consola, havia algumas chaves extra dos carros, binóculos de
ópera, um dos chapéus de feltro cinzentos de Gerald, uma carta
«P. M. P.» dirigida ao Rt Hn(1) Mr. e à Hon Mrs. Gerald Fedden - e
todos esses objectos juntos, reflectidos no espelho, como uma
natureza morta que o acaso juntara, pareciam a Nick
simultaneamente maravilhosos e constrangedores. Parou um
instante e pôs-se à escuta. A luz, vinda de uma lanterna de
bronze pendurada na caixa das escadas, desenhava angulosas
sombras à entrada da sala de jantar, revelando apenas o corpete
de cetim preto de uma Kessler do século XIX. A Hon. e o Rt. Hon.
iam passar a noite em Barwick por causa de assuntos
decorrentes do estatuto de deputado de Gerald, e Nick, enquanto
confirmava isto para si mesmo, ia também repetindo, palavra por
palavra, a frase com que lhes explicaria a presença de Leo, se,
afinal, contra todas as previsões, Gerald e Rachel abrissem a
porta da frente e entrassem na sua casa em amena cavaqueira.
Nick tinha a sensação - e era uma sensação calma, se bem que
arrojada - de que Leo e ele possuíam a casa e tudo o que nela
havia; naquele momento, sentia que abarcava toda a imensidão
da casa, desde a escadaria de pedra até às cornijas que, de um
modo absolutamente implacável, se confundiam com as sombras
do tecto. Beijou fugazmente Leo na face e conduziu-o até à
cozinha, onde as luzes sob os armários se acenderam após uma
breve vacilação.

*1. Rt. Hon. é a abreviatura de «The Right Honourable», título


honorífico atribuído a certas pessoas na Grã-Bretanha,
designadamente alguns detentores de cargos públicos (membros
do Privy Council, magistrados, primeiro-ministro, etc.) e nobres
(barões, viscondes, condes). No que toca aos deputados, é usado
o prefixo «Hon.» para a generalidade dos mesmos, mas «Rt.
Hon.» para aqueles que pertencem ao Privy Council (conselho
consultivo do rei ou da rainha). «Hon.», isoladamente, também é
usado para membros da nobreza. (N. do T.)

197

- Queres um whisky?
por uma vez, Leo disse: - Não digo que não! É, seria agradável.
Muito obrigado, Nick. - Deu uma volta rápida pela cozinha, como
se, afinal, tudo aquilo lhe passasse despercebido, até que parou
para examinar a parede das fotografias. A família comprara uma
das fotos da Tatler relativa ao vigésimo-primeiro aniversário de
Toby e mandara-a ampliar e emoldurar: um grupo de familiares
sorrindo freneticamente; o Ministro da Administração Interna
também lá estava, mas parecia ter alguma consciência da sua
condição de intruso. Mesmo por cima deles, o estudante Gerald,
de fraque, cumprimentava Harold Macmillan(1) na sede da
associação de estudantes de Oxford. Uma vez mais, Leo não fez
nenhum comentário, mas, quando lhe passou o copo frio, Nick viu
nos seus olhos
e no seu sorriso muito esbatido que ele estava a tomar nota dos
dados e a arquivá-los. Talvez estivesse a calcular o grau de
afronta representado por todo aquele dinheiro e
conservadorismo Tory. Nick sentia que o seu renomado estatuto
de amigo da família, de detentor da chave da casa, possuía um
peso muito incerto. - Vamos para cima - disse.
Subiu os degraus dois a dois, demasiado apressado, e, quando
parou no patamar e olhou para trás, viu que Leo se arrastava
pela mesma razão que o levava a ele a correr; entrou na sala de
estar e carregou em interruptores que acendiam luzes nas
mesinhas e por sobre os quadros - de tal forma que, quando
entrou com toda a calma na sala, Leo viu-a exactamente como
Nick a vira dois anos antes, com todos os seus reflexos e
sombras e o brilho dos dourados. Nick parou diante da lareira,
desejando ansiosamente que tudo aquilo redundasse num triunfo
para ele, mas pautando as suas reacções pela curiosidade
reprimida que encontrava no rosto de Leo.
- Não estou acostumado a isto - disse Leo. -Oh...
- Não bebo whisky.
- Ah, não, bom...
- Sabe-se lá o efeito que este copo de whisky pode ter em mim...
Posso tornar-me perigoso.

*1. Primeiro-ministro conservador britânico entre 1957 e 1963.


(N. do T.)

199

Nick pôs um sorriso tenso e perguntou: - Isso é uma ameaça ou


uma promessa? - Estendeu o braço e tocou na anca de Leo, e a
sua mão não pousou na anca mais do que um segundo ou dois.
Em condições normais, quando se viam os dois juntos e
finalmente sós, corriam a abraçar-se num abraço muito apertado
e desatavam a beijar-se, as bocas e as línguas numa agitação
sôfrega; embora, por vezes, era verdade, Leo se risse da
urgência de Nick e dissesse: «Não entres em pânico, miúdo! Eu
não vou fugir! Tens-me todo para ti!» Leo pousou o copo no
consolo da lareira e pôs-se a mirar o Capriccio com San Giorgio
Maggiore, de Guardi, o qual, em comparação com The Shadow of
Death, pareceria sem dúvida um quadro perfeitamente insípido.
Era difícil imaginar Rachel numa roda de convidados, pairando a
propósito do pormenor especial, escondido - do truque - que
havia no Guardi. Sob o quadro, no consolo da lareira, uma fiada
de convites em pé, sobrepostos, quase produzia uma longa e
arrebicada frase social: Mr. e Mrs. Geoffrey - e Condessa de
Hexham - Lady Carbury recebe em sua casa para - Michael e
Jean - O Ministro dos... e outros ainda, espantosamente grossos,
com as pontas estriadas: O Camareiro-Mor, por ordem de Sua
Majestade, vem solicitar... os quais tendiam a ficar no consolo da
lareira durante muito tempo após os eventos a que se referiam, e
que provocavam em Nick uma pomposa excitação que, também
ela, se prolongava um ror de tempo. Ainda que, apercebe-se
subitamente, um tal prazer requeresse uma cumplicidade
voluntária com um hábito que Gerald tinha - o hábito de se
pavonear perante si mesmo. Virou costas à lareira, fazendo de
conta que os convites não estavam lá, e Leo disse, com um
«Tch...» escarninho:
- Deus do céu, que snobs...
Nick riu-se. - Não, de facto eles não são snobs - disse. - Bom,
Gerald talvez seja... enfim... um pouco. Eles são... - Era difícil de
explicar, difícil de saber, no denso pacto do casamento, quem
sancionava o quê. Eles eram o álibi um do outro. E Nick percebeu
que Leo estava a usar a palavra de um modo mais lato, no fundo
o que ele queria dizer era, sim, pessoas abastadas e que viviam
em casas bonitas, agradáveis; o que ele queria dizer era ricaços.
Ocorreu-lhe que Leo talvez estivesse prestes a encarar toda a
ameaça que era ir a Kensington Park Gardens e fazer amor numa
cama como uma

199

forma de rejeição, elaborada, complexa, mas esmagadora.


Observou-o sorvendo vagarosamente um pouco mais de whisky
e, um momento depois, encaminhando-se para as janelas da
frente. Procurava comportar-se de acordo com o conselho que
Leo lhe dera um quarto de horas antes, procurava confiar no seu
tio Leo. A sala fora concebida e decorada para receber, numa
escala francamente generosa, e, por um segundo, como se a
pesada porta se tivesse aberto, ouviu o rumor das conversas e
dos risos acumulados, aquele rumor social que é a expressão de
um consenso, em vez do tique-taque do relógio e do zunido do
silêncio.
- Um belo trabalho, estes embutidos a imitar concha de ostra... -
disse Leo, apontando para uma cómoda de nogueira.
- E aquilo ali é Sèvres, se não estou em erro, com aquele azul só
pode ser...
- Sim, acho que é - disse Nick, sentindo que este apelo a um
interesse comum trazia também o velho Pete para aquela sala, e
esse era um grande perigo. O velho Pete teria sabido lidar com
um momento tão constrangedor, teria usado por certo toda a sua
lábia gay.
- Não, eles têm algumas belas peças - disse Leo, num tom
categórico, e também um pouco grave, e, por isso, talvez,
também tímido. Virou-se para Nick abanando a cabeça. - Sim
senhor, estás bem na vida.
- Querido, nada disto é meu...
- Eu sei, eu sei. - Leo sentou-se ao piano e, após uma breve
reflexão, pôs o copo em cima de um livro. - Vejamos o que temos
aqui... Mozart... sim senhor, não está mal - espreitando a capa do
livro de partituras na estante, mas deixando-o voltar ao sítio
onde estava eternamente aberto, o Andante. - Olha, isto é em
que tom? - perguntou. Dir-se-ia que o tom, como se fosse uma
tacada de golfe, impunha alguma táctica especial. - Fá maior...
- É um velho piano, mais uma graça que outra coisa - disse Nick.
Sentia que, se Leo desatasse a tocar piano, e especialmente se
tocasse mal, acabaria por acordar os demónios inconscientes da
casa, provocando neles ruidosos bocejos e protestos.
- Ah, para o que é serve perfeitamente - murmurou cortesmente
Leo; e começou a tocar, franzindo distraidamente o sobrolho
para a página. Era o magnífico segundo andamento do K533,

200

contido, penetrante e profundo, reminiscente de Bach, que Nick


descobrira e tentara tocar na noite em que perdera a
oportunidade de se encontrar com Leo, até que Catherine se
queixara e ele pedira desculpa e se pusera a brincar com aquilo
a que chamavam música do Waldorf. Pedir desculpa por aquilo
que mais se desejava fazer, conceder que aquilo era secante,
chato, «ordinário e inseguro», isso era o pior de tudo. E a música
parecia saber disso, parecia conhecer a irresistível curva da
esperança e a sua cavada inversão. Leo tocava de uma maneira
bastante segura e Nick pôs-se atrás dele, animando-o a
continuar, ajudando-o naquelas notas erradas rapidamente
corrigidas e naquelas tensas hesitações que são uma tortura em
qualquer leitura à primeira vista e que, no entanto, realçam a
satisfação que se sente quando tudo flui de uma maneira clara e
perfeita. Quando, de súbito, cometeu um lapso de todo o
tamanho, Leo soltou uma exclamação depreciativa, tocou uns
quantos acordes ao acaso e, depois, pegou no seu copo. - Devo
estar demasiado bêbedo para tocar - disse, e não estava
necessariamente a brincar.
Nick não resistiu a um risinho. - Tu és bom. Eu não consigo tocar
isso. Não sabia que tocavas piano. - Sentia-se muito comovido, e
purificado, como se tivesse podido ver, num relance, os seus
próprios preconceitos, nunca postos em causa. Abria uma nova
perspectiva, aquela imagem de Leo, com os seus jeans e
camisola e botas de baseball, arrancando Mozart às entranhas
do velho e ressoante Bõsendorfer. E parecia que a música o
deixara mais descontraído, sim, Leo era como um convidado
tímido que diz uma graça brilhante, uma daquelas piadas cujo
brilho é ampliado pelo tempo e pela maturação, e que, de súbito,
descobre que está a divertir-se imenso com a festa. Nick
agarrou-o por trás e deu-lhe um beijo bem molhado na face.
Leo riu-se e disse: - Está bem, miúdo...
Nick disse: - Amo-te - sacudindo-o num abraço apertado e
gemendo de prazer ao sentir aquele calor rijo, musculado. Leo
ergueu a mão que tinha livre, e que era a direita, e agarrou-lhe o
braço. Um instante depois, disse:
- Aquele quadro é horrível.
Era o retrato de Toby aos dezasseis anos, pintado por Norman
Kent, e era a imagem - para lá do intimidante busto de bronze de
Liszt - em que os olhos do pianista, brincando com a música do

201

Waldorf, tendiam a fixar-se. Enquanto Leo estivera a tocar,


aquele mesmo retrato emprestara a sua cor doentia aos
pensamentos de Nick.
- Eu sei... Coitado do Toby.
- Porque, em minha opinião, o rapaz até que é um petisco.
- Sem dúvida.
- Nunca me disseste se o tinhas comido, quando estavam em
Oxford.
Não se podia dizer, bem pelo contrário, que Nick tivesse revelado
a Leo que, antes da cambalhota nos arbustos, nunca «comera»
homem nenhum. Disse: - Não, não, ele é completamente hetero.
- Ah sim? - disse Leo, num tom céptico. - Mas deves ter tentado...
- Não, de facto não - disse Nick. Recuou um pouco, com as mãos
pousadas ainda nos ombros de Leo, e sorriu vagamente para
aquele rapaz de blazer com rosetas nas faces. A velha mágoa
podia sempre reemergir e, por um momento, até mesmo Leo,
quente sob as suas mãos, lhe pareceu vulgar e provisório, em
comparação com a inatingível florescência de Toby.
- Não, é que o modo como ele te beijou, o jeito como olhava para
ti... Enfim, tudo isso me pareceu um bocado abichanado.
- Não! - murmurou Nick, e depois riu-se e puxou Leo para que ele
se levantasse e lhe desse beijos de verdade, os beijos que Toby
nunca lhe daria.
Mas Leo ainda resistia. - Então quer dizer que, para Suas
Excelências, não há problema em terem um roto cá em casa?
- Claro que não - disse Nick. - Encaram isso da melhor maneira
possível. - E, na sua mente, ouviu Catherine dizendo: - Desde que
nunca seja mencionado. - Prosseguiu, carregando no exagero: -
Eles têm montes de amigos gays. Para dizer a verdade, meu
querido, até me disseram que te trouxesse cá a casa.
- Oh - disse Leo, com uma subtileza de registo digna da própria
Rachel.
Nick deitou-se nu em cima do edredão, numa espécie de
assombro marcado por uma pulsação acelerada. Leo telefonara à
mãe, dissera-lhe que ia passar a noite em casa de um amigo:

202

era um risco, uma cedência e, portanto, um compromisso. Nick


pôs-se à escuta do zumbido do chuveiro na casa de banho, do
outro lado do patamar. Depois, como podia ver-se no espelho do
roupeiro, meteu-se debaixo da roupa. Assim ficou, com uma mão
atrás da cabeça, num estado de felicidade e inquietação que era
quase penoso. Lá muito em baixo, a porta da frente estava
fechada à chave com três voltas, as luzes estavam todas
apagadas na sala de estar e na cozinha e a única lanterna acesa
espalhava o seu frio brilho pela sala de entrada. A porta do
quarto de Catherine estava fechada, mas Nick tinha a certeza de
que ela saíra. Tinham a casa toda só para eles. A janela estava
aberta um nada e podia ouvir as volatas e os trilos - de uma
violência aterradora para quaisquer cordas vocais normais - de
um pisco-de-peito-ruivo que ganhara o hábito de cantar à noite
no jardim, e que, de início, qualificara apressadamente como um
rouxinol; uma velha que encontrara no caminho de pedrinhas a
escutar o canto do pássaro é que o elucidara quanto ao nome da
canora criatura. Portanto, nunca tinha ouvido um rouxinol, mas
era impossível que um rouxinol cantasse melhor do que o seu
pisco-de-peito-ruivo. A questão era a que horas Gerald e Rachel
voltariam. Mas, na realidade, era muito provável que só
chegassem um bocado para o tarde; porque, de manhã, havia a
«cirurgia»(1) de Gerald e, depois, duas horas de viagem. Nick
sorriu da generosidade involuntária dos seus senhorios.
O ruído do duche parou e o pisco-de-peito-ruivo insistiu no seu
chilreio estridente, com pausas enfadadas e implacáveis
recomeços. Nick teria gostado ainda mais se Leo tivesse ido
para a cama sem tomar banho; adorava o sabor vagamente ácido
da sua pele, o cheiro intenso dos seus sovacos, o doce cheiro a
mofo bem lá no fundo entre as suas pernas. Os cheiros de Leo
eram pequenas lições constantemente reaprendidas, pequenos
choques de autenticidade. Para o próprio, porém, eram uma fonte
de perturbação e quase de vergonha. Tinha uma sensibilidade ao
cheiro tremendamente apurada - uma sensibilidade que se
revelava numa bicha do cinema, por exemplo, ou numa sala cheia
de gente, quando Leo arrebitava

*1. No original, «surgery» (entre aspas). Optou-se pelo sentido


mais comum, «cirurgia», embora surgery, neste caso, designe o
período de tempo em que, regularmente, um deputado britânico
recebe eleitores do círculo pelo qual foi eleito. (N. do T.)

203

o lábio superior ou franzia as narinas num jeito aristocrático.


Insistia que gostava dos cheiros de Nick, e Nick, que, valha a
verdade, nunca pensara em si mesmo como uma criatura com
cheiros, ficava nervosamente inseguro, pois não sabia se era
verdade ou lisonja. Quem sabe, talvez fosse uma adorável
mistura das duas.
Havia uma espécie de magia naquilo tudo - no facto de estar
deitado na cama, numa cama de solteiro, com tudo o que isso
implicava, afagando-se suavemente, esperando pelo seu amante.
Era a postura de um celibato para toda a vida, de um incessante
triunfo da imaginação, da supremacia do rapaz num mundo de
sonhos, onde os homens estavam sempre a aparecer para o
satisfazerem; e, agora, aquele ruído chocalhado da porta da casa
de banho, o estalido do cordão da luz, o rangido do soalho do
patamar, eram os sinais de uma chegada autêntica, concreta, e,
três segundos depois, a porta abrir-se-ia e Leo entraria.
Tão negro na saia branca de uma toalha de banho, bem justa às
nádegas e ao chumaço recurvado da picha! Trazia a roupa
dobrada nas mãos, como um marinheiro no primeiro dia de
recruta, um recruta que fora obrigado a despir-se e a lavar-se
bem lavado e a quem tinham dado as suas novas roupas - Leo
olhou à sua volta e, depois, pô-las em cima da secretária, junto
aos livros azuis da biblioteca. Mostrava-se um pouco formal,
piscou o olho a Nick, mas era evidente que estava emocionado
com a novidade e a trivialidade do momento. Para Nick, aquele
era um momento de escuridão, um momento que sabia a fuga, a
uma exultante acção acossada pelos medos que ela própria
desafiara a dois amantes que, de súbito, se sentiam como dois
estranhos na sua primeira noite num hotel estrangeiro. Mas, no
fim de contas, tudo isso era absurdo - eles só tinham fugido para
o último piso. Sentiu um orgulho arrebatador por ter Leo ali, no
seu quarto. Afastou o edredão e disse: -Desculpa a cama ser tão
pequena - encolhendo-se um pouco para aumentar o espaço
disponível.
- Hã...? - disse Leo.
- Acho que não vais conseguir dormir grande coisa.
Leo deixou a toalha cair no chão e, sem um sorriso, olhou
fixamente para Nick. - Mas eu não estou a pensar dormir nem um
bocadinho - disse.

204

Nick aceitou o desafio com um ligeiro gemido, era a primeira vez


que via Leo nu, e a primeira vez que via a sombra que lhe
mascarava o rosto, indolentemente vigilante, facilmente cínica,
ora inteligente, ora obtusa, a derreter-se de puro sentimento. Leo
respirava pela boca e, no seu rosto, lia-se um choque, um
estremecimento, de desejo, e também, pareceu a Nick, de auto-
acusação - por ter sido tão lento, tão frívolo, tão cego.

205

«A QUEM É QUEO SENHOR BELAMENTE PERTENCE?» (1986)

7.

Nick avançou pelo caminho à frente de Wani e, quando chegou à


cancela, abriu-a e esperou por ele, de modo que, durante vários
segundos, o mundo exterior ficou exposto a uma paisagem de
carne nua, até que a cancela, com o letreiro que dizia «Só
Homens», se fechou de repente atrás deles. Era um pequeno
recinto, um pátio de cimento, com bancos ao longo das paredes
sob uma estreita faixa de tecto. Fazia lembrar um pátio do
mundo clássico reduzido a tubos e a chapa ondulada. Também
havia qualquer coisa de distantemente clássico naquela nudez
que se espraiava, e qualquer coisa de inglês, de escola primária
e de desconforto, no cimento e no metal e no cheiro a água de
lago. Nick atravessou o espaço amplo, passando pelos livros e
toalhas de um ou dois homens que tomavam o seu banho de sol,
e viu a presença deles ser registada, alguém que o saudou,
conversas que se alongavam e aquietavam, e sentiu o olhar fixo
da pequena multidão como pontas de dedos lentas, ociosas,
percorrendo-o e pousando, de um modo terno e curioso, em Wani.
Wani, com os seus óculos azul-gelo espelhados, era uma figura
de uma insólita beleza, e talvez apenas Nick, enquanto se
sentava e lhe acenava para que fizesse o mesmo, se
apercebesse da apreensão que rondava o seu meio sorriso.
- Mm, muito primitivo - disse Wani, como se aquele lugar
confirmasse uma suspeita qualquer que tinha acerca de Nick.
Nick disse: - Eu sei - e pôs um sorriso arreganhado, era
precisamente disso que ele gostava naquele sítio.

209

- Onde é que pomos as nossas coisas?


- Deixamo-las aqui, não há problema.
Mas Wani receava uma tal solução. Tinha as chaves do Mercedes
no bolso dos jeans, e o relógio, como dissera a Nick mais de uma
vez, custara mil libras. - É, talvez seja melhor eu não sair daqui. -
E talvez Nick, que nunca tivera nada de seu, fosse culpado por
não conseguir imaginar as preocupações de um milionário.
- A sério, não há nenhum problema. Olha, põe as tuas coisas aqui
- disse, oferecendo-lhe o saco de plástico dos hipermercado
Tesco onde metera a sua toalha e os calções de banho.
- Este relógio custou mil libras - disse Wani.
- Talvez fosse boa ideia não dizeres isso a toda a gente -
retorquiu Nick.
Havia um homem velho a secar-se perto deles, atarracado e com
as pernas tortas e bronzeado desde a ponta dos pés até ao
cocuruto da cabeça, e Nick lembrou-se dele do ano anterior, um
habitue daquele local, do recinto à entrada e do molhe e, muito
em particular, daquele espaço rodeado por uma vedação, onde,
num dia quente, homens nus tomavam banhos de sol, anca
contra anca. Era um homem todo enrugado, embora bem-
parecido, e Nick sentia que, composto e ajeitado e uniformizado,
num meio-perfil vigilante, a sua fotografia poderia muito bem
acompanhar o obituário de um general ou de um vice-marechal
da Força Aérea. Acenou-lhe afavelmente, como que a uma
coriácea personificação do espírito do lugar, e o velho disse: - Já
sabem? George partiu. Steve acabou de me dar a notícia, foi-se
embora a noite passada.
- Oh - disse Nick. - Sinto muito. Não, eu não conhecia George -
mas partindo do princípio de que com a palavra «partir», ou com
a locução «ir-se embora», o azougado velho não queria dizer «ir
de férias». Afinal, precisava de um obituário.
- Vocês conheciam George. - O homem olhou também para Wani,
que estava a despir-se num jeito lento, distraído, com pausas
para pensar antes de cada meia, antes de cada botão. - Ele
andava sempre por aqui. Tinha só trinta e um anos.
- Eu nunca aqui estive - disse Wani, cortês, se bem que frio. O
velho franziu o sobrolho e deu à cabeça, aceitando o seu engano,
mas sentido talvez menos apreço por eles pelo facto de não
conhecerem George.

210

Após uma pausa, Nick perguntou: - Como é que está a água? - e


encolheu a barriga enquanto despia a camisa porque queria que
o homem o admirasse. Mas ele não respondeu, talvez por não ter
ouvido a pergunta.
No molhe, Nick foi de novo à frente, numa passada larga e
vigorosa, com os seus calções azuis Speedo, e abriu os braços
para acolher o abraço da vista, a vastidão verde e prata do lago,
jovens salgueiros e pilriteiros rodeando-o por todos os lados, e,
para lá do lago, Hampstead Heath(1), agora apenas entrevisto
como retalhos de uma encosta banhada pelo sol. Nick sentia-se
bem com o seu próprio corpo e exibia-se de um jeito perdoável,
fazendo extensões e batendo com os pés nas nádegas enquanto
corria sem sair do sítio. Ao longo da superfície do lago, as
cabeças dos nadadores moviam-se minúsculas, simples pintas ou
salpicos. Havia neles qualquer coisa de sociável e perscrutador.
Ao longe, no meio do lago, lá estava a velha jangada de madeira,
o palco de inúmeros contactos fáceis e a plataforma flutuante de
algumas das mais constantes fantasias de Nick. Agora, estavam
lá meia dúzia de homens e, em breve, também ele faria parte do
grupo. Virou-se e sorriu para encorajar Wani, que descia
lentamente as escadas, agarrado ao corrimão recurvado, de
olhos pregados nas distantes cabeças dos nadadores,
perguntando-se talvez como era possível que aquelas criaturas
tivessem conseguido chegar ali. Pelos vistos, a natação era uma
rara lacuna na vasta lista de coisas que Wani fazia de um modo
tão belo... Havia uma crueldade moderada, e, sem dúvida,
interessante, em levá-lo para aquele sítio, para tão longe do seu
elemento. - Tens de te atirar de cabeça - disse. - Se entrares na
água lentamente, vai ser uma tortura. - Sorriu dos calções
pretos, bem justos, que Wani trazia, da suavidade e delicadeza
da sua pele (de um tom castanho claro), e da habitual
provocação do seu pénis que, agora, se erguia bem direito sobre
os tomates como um impudente ponto de exclamação. Depois,
atirou-se ele à água, de cabeça como dissera,

*1. Trata-se de um parque particularmente vasto, situado na


zona de Hampstead, no norte de Londres. Há mais de trinta lagos
em Hampstead Heath e três deles são usados para banhos: um
exclusivamente reservado a senhoras, outro a cavalheiros e um
terceiro misto (possivelmente uma herança vitoriana). O lago
referido no texto, só para homens, tem também uma zona
reservada a nudistas. (N. do T.)

211

para mostrar até que ponto era fácil, e sentiu o choque da água
fria um nadinha abaixo da fina película quente da superfície.
Deixou-se ficar na água, boiando apenas e acenando para Wani,
que parara todo curvado como um esquiador, mas com uma mão
apertando as narinas; e que, um momento depois, se atirou - de
cabeça - para as águas do lago. Emergiu ofegante, numa
agitação de braços e, por um segundo, Nick pôde ler no seu rosto
um medo impossível de disfarçar. A água desfizera os caracóis
negros, que lhe caíam agora sobre os olhos e as orelhas. Nick,
sempre a boiar, abeirou-se de Wani, e sentiu a mão dele
cravando-se no seu braço; deixou que as suas pernas errassem e
deslizassem consoladoramente entre as pernas dele, e, com a
mão que tinha livre, afastou-lhe o cabelo para trás, e isso, pelos
vistos, acalmou Wani, que, um instante depois, desatou a nadar
num bruços apressado, o corpo muito direito, como se nada
tivesse acontecido.
Por uns breves minutos, nadaram num círculo imperfeito,
seguindo os cabos brancos entre as bóias que marcavam os
limites da área reservada à natação. Para lá dessa fronteira,
supunha Nick, a água devia ser demasiado rasa por sobre a lama
funda e macia. Para dizer a verdade, Wani até nadava bastante
bem, com a cabeça sempre erguida e a expressão cómica de
alguém que é forçado a ser um tipo simpático, apesar das
partidas que lhe pregam; parou numa das bóias e agarrou-se a
ela para descansar, com um sorriso ofegante, e um aceno da
cabeça que parecia dizer «Eu sou capaz!», bem como «Hás-de
pagar-me por isto». Nick pegou nos óculos de protecção que
balouçavam lassos à volta do pescoço, ajustou-os bem ajustados
e mergulhou. Sob a cintilação amarelada da superfície, a água
ganhava um tom verde lodoso que logo escurecia num castanho
sujo, um mundo de cores de vidro de garrafa. Rodopiou,
matutando na partida que ia pregar a Wani. Bolhas, a
reverberação que vinha das dóceis ondinhas à superfície, restos
de folhas negras revolvidos pelos seus movimentos, giravam e
escapavam-se em torno das pernas de Wani, que permaneciam
suspensas, condenadas a um indolente cbassé, na régia
presunção de que não haveria nenhum ataque subaquático. E
talvez fosse demasiado infantil, com Wani completamente à sua
mercê; em vez de se agarrar a ele ou de desatar a fazer-lhe
cócegas, Nick disparou rumo à superfície, numa ânsia de ar e de
riso. Tê-lo-ia beijado se, nesse momento, um velho
e vigilante cavalheiro não andasse a rondar, engatador, tão perto
deles.
Largaram de novo a bóia e Nick depressa tomou a dianteira e foi
o primeiro a voltar à bóia, triunfando sobre Wani, decorando com
arabescos o seu firme curso, e, ao mesmo tempo, espreitando
para ver quem é que andava por ali. Era difícil distinguir todas
aquelas cabeças, amaciadas e polidas pela água; porém, através
dos óculos molhados, cada figura à espera no molhe ou subindo
para a jangada ganhava o fulgor de uma nova possibilidade. Nick
nadou até perto da velha plataforma uma vez; deu a volta,
sempre de costas, enquanto ele e um casal que estava lá em
cima se perguntavam de onde é que se conheceriam.
Depois de uma volta quase completa ao lago, Wani já tinha a sua
conta; por um minuto, boiaram apenas, entretidos a conversar,
enquanto Nick olhava para a direita e para a esquerda com olhos
de ver. Adorava o lago, mas sentia-se desapontado, talvez ainda
fosse demasiado cedo, o pico do calor ainda estava para vir,
comparava a calma daquele dia e a água fria do lago com os
domingos cheios de gente do ano transacto, durante a onda de
calor, a jangada numa loucura de mãos que se agarravam à
madeira e de corpos que saltavam para cima dela, os balneários
a abarrotar de gente determinada, as bichas na relva lá fora,
apinhadas como uma cidade com uma dúzia de bairros rivais.
Havia gritos e grandes convulsões na água para os lados da
jangada, onde um novo grupo se juntara. Nick sentiu o irresistível
apelo da curiosidade e viu que tinha ali uma possibilidade de
exibir Wani e de se exibir perante Wani, o que dava duas
vaidades numa só, e ambas deliciosas. Wani tremia e Nick não
resistiu a dizer-lhe: - Não podes parar, tens de te mexer - e logo
se afastou para o meio do lago. Dois homens morenos com
calções pretos estavam de pé em cima da jangada, repelindo
desajeitadamente uma corpulenta e musculada bicha loura que
tentava subir; a balsa, embora muito guinasse e bamboleasse,
não corria o risco de se virar. Dois outros homens que estavam
agachados numa ponta caíram à água, caíram porque queriam
cair, no fundo atiraram-se mais do que caíram, brincando como
miúdos, e logo desataram a nadar de volta à jangada, a fim de
participarem na batalha. Seguiram-se trinta segundos de
combates, que alguns levaram mais a sério do que outros,

212 - 213

ou com mais atenção ao seu aspecto. Nick seguiu tudo aquilo


com uma intensidade sorridente, à procura do seu lugar na cena.
Um instante depois, veio uma espécie de trégua e toda a gente
voltou para cima da plataforma, de tal forma que, quando passou,
Nick pôde passear os olhos por pernas suspensas, pichas
apertadas em estranhos ângulos, cabelos raiados de sol e peles
luzidias, um quadro vivo e flutuante de homens contra o céu. O
sexo deixava-os meio conscientes, meio esquecidos, da imagem
que davam de si; alguns eram desportistas repousando numa
entorpecida camaradagem, mas outros nem por isso, bem pelo
contrário, pois mexiam-se e bem, e davam as mãos, e respiravam
lascivamente nos rostos uns dos outros. Davam pontapés na
água, indolentes, mas intencionais. Um deles, que estava de pé
na parte de trás da jangada, curvou-se para a frente,
abandonando o pano de fundo do céu e das árvores, e Nick
estendeu-lhe a mão e elevou-se no ar e pulou para cima da
plataforma, todo a escorrer água, enquanto duas bichas se
afastavam num ápice para lhe dar espaço. Ficou de pé, ofegante
e sorridente, num frouxo mas curioso abraço com os homens que
estavam no meio. Tinha a sensação de que havia naquilo tudo
qualquer coisa de evanescente e harmónico, de ardentemente
desejado e repetido - eram talvez as árvores que tudo rodeavam,
e as águas da cor da prata, o abraço de uma infância solitária, e
a necessidade de ser puxado para o meio de um expectante
círculo de homens.
- Não o vi no Bang a semana passada? - perguntou o homem ao
lado dele, que lhe pusera uma mão firme no ombro e a deixara
ficar.
- Creio que não - disse Nick, que, na realidade, nunca estivera no
Bang. No entanto, tinha na memória uma qualquer imagem
daquele homem, uma qualquer excitação não localizada. Só ao
fim de um momento se deu conta de que costumava vê-lo no
ginásio Y, no ano anterior, talvez, na zona dos duches; e um
momento mais para confirmar que, enquanto ele, de uma forma
lenta, mas sem a menor gravidade, ganhara peso, o espanhol (se
é que era mesmo ele), de cabelos negros e seco de carnes, com
uns largos e rosados mamilos, emagrecera de forma bem visível,
transformando-se numa versão inquietantemente bela, como que
desgastada, corroída, de si mesmo. Encostava-se levemente a
Nick agora

214

e quase parecia depreciar a inegável mudança, ou talvez desafiar


Nick a vê-la, mas sem aludir a ela de maneira nenhuma, a não ser
através de um olhar demorado e temeroso. Nick afastou-se dele
num jeito casual, e aquilo que irrompeu nítido, luminoso, no
borrão indistinto da memória, foi o seu rabo bem cheio e os
minúsculos caracóis negros entre as nádegas, um nada de
penugem que só se via quando ele se curvava: uma imagem que
também lhe fazia lembrar Wani. Examinou calmamente as águas
do lago e pensou que talvez Wani tivesse voltado para a relva -
nesse preciso instante, recomeçou a brincadeira, o espanhol
mergulhou abruptamente como uma espada na água, toda a
gente desatou a gritar, e a própria madeira gemia e rangia. Nick
tentou aguentar-se em cima da jangada, também ele se ria e
gritava qualquer coisa contra aqueles que saltavam de novo para
cima, molhando inevitavelmente os outros, que já estavam
secos. E ali estava ele, no meio daquele atoleiro, daquela
chafurdice, o rosto de Wani, quase à beira das lágrimas, tal era a
concentração com que tentava evitar os frenéticos braços e
pernas dos outros homens e encontrar o momento certo para
trepar.
- Olá, querido! - disse Nick e pôs um joelho na madeira molhada
para o ajudar a subir. Wani não respondeu e não sorriu.
Breves minutos depois, a calma voltava quase por completo.
Estavam sentados ao lado de um homem na casa dos cinquenta,
com abundantes pêlos grisalhos no peito e um acirrado apetite
social. O seu amigo, muito mais novo, talvez malaio, estava a
nadar a alguma distância da jangada, fazendo-se
escandalosamente a outros homens, e executando vistosos e
rápidos mergulhos que faziam com que os seus calções se
soltassem. - Oh, os problemas que eu tenho com aquele rapaz... -
disse o homem. - Olhem-me só para ele. - Wani sorriu
polidamente e virou-se para Nick; não estava habituado a dar-se
com pessoas daquelas, para mais no meio da barafunda quase
completamente nua de um local público. - Mas não me
interpretem mal, é tudo na brincadeira. - O homem acenou todo
alegre, como se o rapaz estivesse a prestar-lhe um niquinho que
fosse de atenção, e disse: - Sabem, ele tem por mim verdadeira
devoção. Não sei porquê, mas é a pura verdade.
- Como é que ele se chama? - perguntou um homem de voz
ríspida, que estava agachado atrás deles.

215

- Chama-se Andy.
- Andy, é? - disse o homem. - Anda cá, Andy! - gritou, levantando-
se. - Mostra-nos lá esse teu cu!
- E mostra! - disse o seu velho protector. - E mostra!
A jangada abanou e, na outra ponta, um homem lustrosamente
musculado ergueu-se das águas num rodopio e aterrou nas
tábuas com um prometedor estrondo. Nick viu Wani olhando de
relance para o homem sob as suas longas pestanas, como que
avaliando um novo tipo de problema ou possibilidade; Nick
lembrava-se de o ter visto por ali no ano anterior. Tinha olhos
escuros e estava a ficar calvo; o rosto era redondo, com um belo
nariz comprido e a expressão indolente, mas concentrada, de um
homem que não pensa senão em sexo. Nick lembrava-se do seu
olhar descansado, ocioso, das enormes pupilas negras que
pareciam encher-lhe os olhos, da cheia e curvilínea massa
cingida pelos calções pretos. Quando se sentava, o estômago
fazia uma suave curva para fora; parecia condenado à obesidade,
mas, para já, conseguia manter um equilíbrio razoável entre
gordura e músculo.
Wani estava sentado com os joelhos erguidos, o cabelo puxado
para trás em ondas brilhantes, que se encaracolavam de novo à
medida que ia secando. Recuperara parte da sua pose social, e,
com ela, um ar vagamente superior, como se estivesse com
medo de ser reconhecido ou de agradar a alguém. O homem mais
velho dirigiu-se a Nick com ele de permeio. - O rapaz, agora, anda
com mil cuidados...
- Aha... - disse Nick.
- Pelos vistos, o KY já não serve. Temos de ter uma outra
substância, uma coisa chamada Melisma. Só que, pelos vistos, o
Melisma também já não serve. De maneira que, agora, vamos
passar para o Crest. Mas todo o cuidado é pouco com aquelas
horríveis camisinhas. Nunca pensei que, um dia, chegássemos a
isto... O que é que você usa?
- Seja como for, tenha cuidado com a saúde do menino - disse o
homem de voz ríspida, que, não havia dúvida, começava a sentir
por Andy um interesse bem visível. - Já agora, amigo, Crestj é
uma marca de pasta para os dentes - acrescentou, e, um
segundo depois, mergulhou e disparou, com braçadas vigorosas,
na direcção do rapaz.
- A propósito, o meu nome é Leslie - disse o homem mais velho.
Wani virou a cabeça e acenou-lhe. - Olá. Antoine.
- Estava cá a pensar, de onde é que você é?
- Sou libanês - disse Wani com um rápido e irónico sorriso, no seu
mais irónico acento inglês. Nick atentou no seu perfil aquilino e
não resistiu a um sorriso malicioso. Gostava que os outros
homens reconhecessem o glamour de Wani, era como se, num
rápido acesso de ciúmes, se reacendesse a velha paixão que
sentia por ele desde Oxford, e que se confundia com um desejo
ampliado e disseminado pelo mistério. Agora, Wani baixara as
suas extraordinárias pestanas e os olhos fixavam-se de novo no
chão. Nick lembrava-se dele em certas ocasiões, depois de uma
aula, por exemplo, ou depois de uma daquelas raras noites em
que não era solicitado pelos seus outros mundos e voltava para a
residência universitária, ou, mais exactamente, para o quarto de
um qualquer estudante pobre, com a sua estante de livros de
bolso e um póster de Dylan, para conversar um pouco mais
acerca de Culture and Anarchy ou North and South, comparando
e trocando notas à volta de uma caneca de Nescafé, fazendo um
esforço docemente respeitoso para mostrar que partilhava as
preocupações dessoutros rapazes, e, como um membro da
família real de visita à residência, sem se aperceber
minimamente da atitude desajeitada e deferente dos outros.
Alguns dos estudantes mais arrogantemente snobs, como Polly
Tompkins, troçavam do seu refinamento e diziam que ele não
passava de um filho de um merceeiro, um daqueles imigrantes
que vendiam limões e laranjas, «uma rameira cockney do
Levante», para usar a expressão de Polly; segundo essas
versões, Wani era um rapazinho libanês, tão lindo, tão giro, que
fora mandado para Harrow(1), onde se transformara num
fleumático e ocioso gentleman inglês. Consideravam alguns que
Wani também se transformara num panasca só porque usava
calças justas e porque era desconcertantemente belo.
- Mas diga-me, o que é que faz na vida? - perguntou Leslie.

*1. Um dos trinta e dois boroughs (divisões administrativas) da


Grande Londres, situado no extremo noroeste da cidade. Tem
uma forte percentagem de população asiática. (N. doT.)

216 - 217

- Tenho uma produtora de filmes - disse Wani.


- Oh... - disse Leslie, simultaneamente esmagado e intrigado. E
logo, numa reacção manifestamente sinuosa: - Viu Un Quarto
com Vista?(1) Seria interessante saber o que achou, já que está
no mundo dos filmes.
- Infelizmente não vi - disse Wani, de novo com um sorriso ínfimo,
embora gélido.
- Não o vi no Volunteer a semana passada? - perguntou Leslie
passado um bocado, ao que Wani reagiu com um ar de quem não
estava a perceber rigorosamente nada, mas a pergunta era
dirigida ao homem de olhos escuros que, durante todo aquele
tempo estivera reclinado, com um joelho erguido e o seu
equipamento acintosamente esparramado na direcção deles. Era
difícil dizer se o vago sorriso do homem seria uma reacção à
conversa, ou, inclusivamente, se estaria a olhar para eles. Os
seus olhos pareciam seguir uma qualquer cena de iminente
gratificação, uma cena que estava passar algures num ecrã
suspenso entre ele e a tarde. Havia nele qualquer coisa de
confiantemente paciente, uma total ausência de pressa ou
esforço lúbrico. Porém, quando outro homem lhe dirigia a
palavra, era como se já estivessem a conversar há algum tempo
e houvesse entre eles um entendimento. Nick fitou-o, sentindo
que ele permitia e captava os olhares dos outros, e logo se pôs a
mirar a água cintilante para lá dele, com uma pontada de tristeza
pelo facto de, esgotada a conversa, terem de deixar a pequena
faixa oblonga da jangada que o sol banhava, e nadar de volta
para o mundo sólido. Wani também voltou a olhar para o homem,
mas igualmente para a escada do molhe, com a vacilação de
alguém que giza uma fuga.
Quando estavam a secar-se e a vestir-se no recinto à entrada do
lago, Wani acenou e disse-lhe: - Aí está o nosso amigo Ricky
outra vez. - Nick olhou por cima do ombro e viu aquele homem
sexy da jangada contornando a vedação da zona para nudistas,
os dedos puxando negligentemente o cordão dos calções de
banho.
- Ah, sim. Não sabia que se chamava Ricky - disse Nick.

*1. Filme de James Ivory. A referência a este filme remete para a


componente indiana da obra de Ivory, não só no que toca aos
temas e cenários de alguns dos seus filmes, mas também, e
sobretudo, no que se refere ao facto de o seu produtor ser o
indiano Ismail Merchant (sem esquecer a argumentista Ruth
Prawer Jhabvala, com ligações à índia). (N. do T.)

218

- Bom, com o ar que ele tem, só se pode chamar Ricky disse


Wani, que, para tirar os calções, se sentara na relva, embrulhado
numa toalha.
- Será que estás com uma erecção? - disse Nick.
- Não sejas pueril - disse Wani. E virou-se para Nick com um olhar
que era um misto de desafio e de súplica melancólica. - E se
fosses perguntar-lhe se quer ir connosco para casa?
- O quê? Àquele «Ricky»?
- Não é para isso que servem sítios destes? Uma pessoa não vem
para aqui por causa do exercício, pois não?
Nick não resistiu a um risinho. - Não tens de ficar como louco
logo da primeira vez que te levo a passear - disse.
Wani corou um pouco, mas não desviou os olhos. - Sinto-me
tentado a pensar que podia ser muito excitante... - disse. - É um
tipo bem ordinário.
Nick espreitou uma vez mais na direcção de Ricky, que flanava
num jeito simpático, convidativo, pelo caminho dos balneários e
que, evidentemente, flanava também na memória de Nick como
um potencial inexplorado. Ao mesmo tempo, sentia um vago
aviso de perigo. Wani não sabia em que é que estava a meter-se
e a metê-los - e Nick também não.
Quando voltou a olhar para Wani, já este estava de pé, com as
cuecas vestidas, a enfiar os jeans. - Excitante, seria, sem dúvida
- disse Nick, secamente. Ao que Wani respondeu com um tremor
das sobrancelhas e um azedo franzimento dos lábios, como que a
dizer - Deixa lá... - Tirou o relógio do bolso e pô-lo no pulso.
- Se não o convidares rapidamente - disse -, não vamos ter
tempo. Lamento, mas pensava que gostavas do género.
- Sim, não há dúvida que é uma brasa - disse Nick, e reparou que
estava a descrever-se a si mesmo, pois a inesperada ansiedade
que sentia deixava-o que nem um tição. Detestava ver a bela
boca de Wani franzindo-se daquela maneira e sentir o seu
desdém, que era tão divertido e excitante quando visava os
outros. Queria apenas amor (e, hoje, talvez, uma espécie de
obediência) de Wani, que sabia que as tácticas locais de
argumentação e persuasão o deixavam confuso e perturbado. -
Muito bem, eu vou lá e convenço-o a vir connosco - disse,
fazendo de conta que, também para ele,

219

uma proposta dava sempre em engate e sabendo que nunca


poderia permitir que Wani se rebaixasse a convidar o homem.
- Quer dizer, eu sei que ele não é um daqueles escarumbas de
que tu tanto gostas...
- Oh, vai chatear outro - disse Nick, e desandou, com os jeans
vestidos, mas ainda sem camisa, na direcção dos balneários.
Sentia a desvantagem dos vestidos no meio dos nus; e, ainda por
cima, mal entrou, deu-se conta de que o chão dos balneários
estava desagradavelmente húmido sob os seus pés descalços.
A porta de um dos dois cubículos estava fechada e o homem
estava de pé diante da calha metálica do urinol, oferecendo as
costas e o cu, formidáveis, sedosos, brilhantes, aos olhos de
quem entrava, mas virando a cabeça, no seu estranho jeito
inexpressivo, para ver quem chegara. E aquela expressão, e o
cheiro daquele sítio, a mijo e a desinfectante, a atmosfera de
permissão, as normas todas alteradas por um consentimento
ávido, mas furtivo, tudo isso contribuiu para que Nick se sentisse
completamente subjugado e desfeito. Avançou na direcção do
urinol e pôs-se ao lado do homem e, breves segundos depois, os
salpicos do excitado jacto da descarga faziam já frias cócegas
nas pontas das duas erecções. Nick fazia deslizar lentamente o
prepúcio para baixo e para cima e não tirava os olhos do dardo
de cabeça grossa do outro homem. Depois, olhou-o nos olhos e
foi tal e qual como quando estavam a conversar na jangada, sem
nada, rigorosamente nada, de inesperado, a razão por que
estavam ali, tão trivial quanto profunda. Tinha a sensação de que
estava a nadar naquele olhar escuro, com leves oscilações
provocadas por conjecturas. O homem apontou com a cabeça na
direcção do cubículo aberto e Nick perguntou-se se poderia fazer
isso, rapidamente ou parcialmente, antes de o «convencer», ou
de tentar convencê-lo, a ir para casa com eles, mas, nesse
preciso momento, ouviu-se o estalido da fechadura, a outra porta
abriu-se até meio e o pequeno Andy, o buliçoso malaio,
escapuliu-se do cubículo e atravessou a casa de banho para ir
lavar as mãos. No espelho, Nick viu a malícia do seu olhar
esbatendo-se para dar lugar à atrapalhação. Então, como que por
magia, ouviu-se o autoclismo, a porta escancarou-se, e um
homem de cabelos grisalhos, que não era Leslie, o amigo de
Andy, nem o seu admirador de voz ríspida, emergiu e desandou
dali para fora com um ar pensativo.

220

Agora estavam sozinhos e Nick sentia que Havia qualquer coisa


de quase romântico na paciência de ambos, e no modo insistente
como o outro agarrava no seu pénis, e no jeito como ele próprio
abraçava, um meio abraço, a cintura do homem, a mão entre as
nádegas dele. Sentia a respiração quente do homem no seu
rosto; murmurou: - Espera... espera... como é que te chamas?
- Ricky - disse o homem, e tentou beijá-lo de novo.
Nick não conteve um risinho ao mesmo tempo que afastava a
cabeça. - Estava a pensar se não quererias ir connosco para
casa, comigo e com o meu amigo? Estás a ver, para nos
divertirmos um bocado...
- Bom... - Era evidente que Ricky achava uma seca de todo o
tamanho ir com eles para casa, quando já o tinha a ele ali. - É
muito longe?
- É só em... Kensington!
- Kensington? Porra, eh pá, não sei. - E colou-se a Nick com outro
aceno impaciente para o cubículo que os esperava. Nick
abraçou-o desajeitadamente e gemeu de fúria ao pensar no gozo
que lhe daria possuir aquele homem ali mesmo; mas seria um
escândalo, com Wani à espera a poucos metros dali. Disse:
- Nós temos um carro fantástico.
- Ah sim? - disse Ricky. - Mas o teu amigo, quem é ele? É aquele
de cabelo escuro encaracolado? - Suavemente, beliscou e torceu
um mamilo de Nick, e este, ofegante, disse-lhe:
- Tu viste-o...
Ricky pensou um pouco, aquiesceu e deixou que Nick se
libertasse do seu abraço. Precisaram de um momento para
porem um ar decente. - O tipo é assim um bocado para o
pretensioso, não é? Todo cheio de nove horas, deve ter a mania
que é bom...
- Não diria isso... Não, ele é um bocado tímido - disse Nick.
- Bom, vamos lá ver isso, então - disse Ricky.
Ao saírem, Nick disse: - Podes fazer-nos um favor?
- Um favor? Fogo, espero bem que sim...
Nick tinha razão em sentir-se constrangido: - Importas-te de fazer
de conta... - começou - ...de fazer de conta que és casado... ou
pelo menos que tens uma namorada...
Ricky deu aos ombros e à cabeça. - Eu tenho uma namorada.

221

- An tens. - INick parou por um segundo, a cabeça tão baixa que


o queixo ameaçava tocar-lhe no peito, enquanto Ricky o fitava.
- Sou rápido a topar as coisas, hã? - disse Ricky, piscando-lhe o
olho.
Nick fez um «Tch...» aprovativo e corou. - Fogo, tenho de admitir
que és mesmo rápido - disse, quase com o mesmo tom de voz
que Ricky.
Já no caminho, Wani avançou numa pressa, com o ar ausente de
uma pessoa famosa, enquanto Nick e Ricky seguiam atrás dele.
Era claro que Ricky nunca tinha pressa, ele era o seu próprio
indolente acontecimento. Não tirava os olhos da bela vista de
trás de Wani, o que deixava Nick orgulhoso e também
apreensivo. Perguntava-se que raio de coisas é que iriam fazer, e
não conseguia distinguir os nervos que fazem parte da excitação
de uma espécie de ressentimento. Os nervos de Wani
manifestavam-se através de um comportamento frio, distante,
que era a negação de uma sociabilidade. Seguiam junto às
amplas margens do lago cobertas de ervas e um homem que
tomava o seu banho de sol disse qualquer coisa a Ricky, que lhe
respondeu com um aceno e um sorriso obsceno - e Nick sorriu
também, como se soubesse o que se estava a passar.
Já perto da saída, Wani, que não parava de brincar com as
chaves do carro, sacudindo o porta-chaves de couro, disse: -
Podes conduzir, Nick - e atirou-lhas. Era típico de Wani, enfeitar
uma ordem com o figurino de um delicioso convite. Nick fora
muitas vezes o passageiro do WHO 6, mas só o conduzira uma
vez, sozinho, um breve salto do rio até Kensington que se
transformou numa fulgurante noite de velocidade, pela Brompton
Road, por Queen's Gate, pelo parque, uma série de voltas ao
parque, e com o curioso sentimento (com a capota recolhida e o
ar já um pouco frio inundando em rajadas o carro) de que quem o
visse pensaria que ele era Wani, o sentimento de que ele,
naquele instante, era WHO, esse glamoroso enigma. Todas essas
emoções murcharam e definharam quando deslizou para se
sentar ao volante. O carro ficara perto da rústica vedação, sob
as tílias, e as pegajosas exsudações das árvores já tinham
pontilhado o pára-brisas. Carregou no botão para recolher a
capota e observou-a ao espelho, erguendo-se e estreitando-se
atrás dele, bem como à luz do sol que, através das folhas, caía
obliquamente sobre os mostradores e os manípulos e a madeira
de nogueira, da cor do âmbar, do tablier. Os outros dois ficaram à
espera que ele tirasse o carro, mas, pelos vistos, não trocavam
palavra. Então, Wani, com um gesto, convidou Ricky a ir para o
banco de trás, onde Ricky se sentou com os joelhos muito
afastados, já que o espaço era muito reduzido para quem, como
ele, tinha umas pernas descomunais. - Tudo bem por aí? - disse
Nick, dando uma olhadela para o contorno esmagado do seu
pacote e sentindo uma bizarra necessidade de pedir desculpa
tanto pelo esplendor como pela incomodidade do carro.
- Tudo bem - disse Ricky, como se andasse num carro daqueles,
para mais com motorista, todos os dias.
Começaram a subir a íngreme colina que levava a Highgate e
Nick sentiu-se de novo assombrado com o poder que jorrava sob
o seu pé. Num instante, venceram a colina: foi como se tivessem
devorado a estrada em quatro distraídos abocanhamentos.
Espreitou Ricky pelo espelho; os seus olhos cruzaram-se e Nick
perguntou-lhe: - Então a que horas é que volta a tua namorada?
Ricky disse: - Para dizer a verdade, só vai voltar muito tarde - de
um modo mais claro do que quando dissera a verdade, e logo
tratou de acrescentar: - Foi visitar um tio dela, o tio Nigel -
acompanhando a informação de um tolerante estalido com a
língua. Este breve diálogo teve um efeito visível em Wani, que
pigarreou e virou-se parcialmente no seu assento para dizer:
- Aí está uma boa coisa. - O absurdo da situação, qualquer coisa
de profundamente desconfortável, apertou um súbito nó em Nick,
e, ao chegar ao cimo da estrada, em vez de descer a colina na
direcção da cidade, virou no sentido oposto e, um instante
depois, estava de novo a subir na direcção de Highgate Village.
Provavelmente não precisaria de explicar nada, visto que, no que
respeitava a Wani, tanto lhe fazia se estavam em Londres ou no
Lincolnshire; e quanto a Ricky, bom, Ricky continuaria
exactamente na mesma, com o seu meio sorriso expectante,
para onde quer que fossem, mas, ainda assim, ofereceu:
- Quero dar uma espreitadela rápida a uma coisa. - Mal chegou a
Highgate, virou abruptamente à esquerda e meteu por uma longa
e umbrosa estrada ladeada de casas e mansões, a qual, tanto
quanto sabia, só podia ser The Grove. Tinha uma certeza quase
de que nunca estivera ali,

222 - 223

mas aquela sensação... Devia ser por causa de qualquer coisa


que pensara fazer, um trabalho de pesquisa, talvez, histórico, ou
emocional... Porém, enquanto perscrutava, por entre a sucessão
ininterrupta de árvores, as belas e antigas casas de tijolo por
detrás de grades altas, a casa onde Coleridge vivera e morrera, e
depois, com o carro deslizando muito de mansinho, as mansões
georgianas com escadarias e pátios para as carruagens, Nick
teve a espectral impressão de que já estivera ali, de que fora
levado até ali numa qualquer noite ilocalizável, por causa de um
qualquer evento irrecuperável. - Foi aqui que Coleridge viveu -
disse, cheio de um fulgor devocional com que pretendia também
comover Wani e que, depois, prolongou, em jeito de provocação
perante a evidente falta de interesse do amante.
- Está bem - disse Wani.
- Só quero ver a casa onde os Fedden viviam. Uns velhos amigos
meus... - explicou ele a Ricky. - Sei que é no número trinta e
oito...
- Estamos no dezasseis - disse Wani.
Era uma das rotinas sentimentais dos Fedden, falarem dos seus
«tempos em Highgate», e Gerald punha-se a evocar a primeira
casa onde a família vivera num tom que combinava a nostalgia e
a auto-irrisão, como se estivesse a recordar os dias passados
numa residência estudantil. Rachel costumava dizer que era
«uma casa amorosa», fora nela que criara os filhos, e uma foto
de Toby e Catherine, com dez e oito anos, sentados nos degraus
da frente, permanecia numa moldura de prata algures no seu
toucador. Para Nick, visto que se tratava do primeiro lar da sua
segunda família, a casa possuía uma obscura aura romântica,
obviamente mediada pelos relatos que ouvira. Quando chegaram
ao número trinta e oito, depararam com um contentor a abarrotar
de madeira escaqueirada e uma casa de banho portátil azul no
jardim da frente.
- Hum - disse Wani. - OK... - E virou-se para Ricky com um olhar
encorajador, não fosse ele chatear-se de morte com aquilo tudo. -
Não resta grande coisa.
A casa estava a ser restaurada, mas o restauro era tão completo
que mais parecia uma demolição. O telhado era como uma outra
casa, feita com andaimes e o respectivo revestimento. Tinham
arrancado quase todo o estuque das paredes, de tal forma que
era

224

possível ver os arcos de tijolo, como um esqueleto, sobre cada


janela. Através da porta da frente, via-se o quintal. No único pilar
ainda revestido de estuque branco, perto do portão lateral,
tinham pintado um dedo preto e as palavras ENTRADA DE
FORNECEDORES; sob as quais alguma criatura mais espirituosa
pintara, a spray vermelho, ENTRADA DOS FILHOS DA PUTA, com
uma seta apontando no sentido contrário.
- Tanta coisa para tão pouco - disse Wani. Um trabalhador de
fato-macaco e capacete azul saiu pelo buraco da porta da frente
e parou a olhar para eles como se fosse um segurança, tentando
decidir se aqueles três teriam alguma importância. Eles eram
apenas três entre os mil e um ocupantes de carros que, tendo
acedido a uma riqueza fácil, disparavam e estrondeavam pelas
ruas de Londres, levando tudo à sua frente. Poderia esperar
deles deferência ou humilhação, ou a amarga mistura das duas,
acirrada pelo dinheiro recente. Nick acenou afavelmente para o
homem quando arrancou. De mistura com o seu
constrangimento, e a lastimável lição do contentor e dos
andaimes, havia um sentimento de que o construtor sabia
exactamente o que é que eles estariam a fazer daí a meia hora.
No entanto, meia hora depois, arrastavam-se ainda pela Park
Lane. O decisivo mergulho das alturas abrandara e estacara na
inexaurível confusão de trânsito e obras e construções. As
bocarras que haviam abocanhado a estrada eram agora
boquinhas que davam mordiscadelas frustradas, impacientes; o
fundo sonoro deixara de ser o estrondo do motor e passara a
incluir rangidos de meia dúzia de choques evitados à justa.
Camiões - máquinas que escaldavam e latejavam - espremiam-
nos e desafiavam-nos e inundavam de gases infectos o
descapotável, enquanto quatro faixas se afunilavam numa só, à
saída do hotel Hilton. Certa noite, Wani metera-se no carro com
Nick e, num segundo, chegara ao bar do terraço do Hilton, talvez
não totalmente consciente da vidrenta mediocridade do espaço -
era um sítio para onde o pai de Wani gostava de levar os
convidados, e havia qualquer coisa de tocantemente estudado na
sua pressa em pagar os cocktails e no seu olhar altivo sobre os
parques e o palácio e as peles e os diamantes da noite londrina.
E, agora, ali estavam eles, encurralados, imóveis, meio
asfixiados, mesmo ao pé do Hilton. Como ia a conduzir,

225

NiCK sentia-se culpado e atarantado, como se fosse ele o


responsável pelo engarrafamento, mas também furioso e
ligeiramente nauseado. O rosto de Wani crispava-se, os lábios
franzidos numa acusação. O próprio Ricky não resistia a bufar de
impaciência Wani pousou uma mão na coxa de Ricky e Nick não
tirava os olhos do espelho, atento aos movimentos no banco de
trás. Tentou encetar várias conversas normais, mas Ricky não
tinha opinião sobre nenhum dos tópicos correntes, além do que
manifestava uma maravilhosa ausência de curiosidade acerca
dos seus novos amigos. Trocara o seu emprego num armazém
por uma inactividade total e agora, obviamente, não conseguiria
arranjar trabalho mesmo que quisesse, com três milhões e
duzentos e cinquenta mil desempregados: confrontado com isso,
Ricky limitava-se a sorrir. Não bebia, não fumava, nunca lia
livros. - Pode ser que a gente te ponha num filme - disse Wani,
não sem alguma malícia, e Ricky disse: -Tudo bem. - Parecia ter-
se esquecido da existência da namorada, até que Nick lhe fez
outra pergunta acerca dela. Por fim, deixaram o engarrafamento
e precipitaram-se para Hyde Park Corner e abriram caminho
entre um fluxo razoável de trânsito até Knightsbridge. Wani
disse: - Como é que se chama a tua namorada?
- Felicity - disse Ricky; sem dúvida porque o nome Felicity Prior
estava escrito no toldo de uma florista mesmo ao pé deles. -É...
Wani virou-se para ele e disse, num tom penosamente
malandreco: - Felicity é uma rapariga cheia de sorte.
- Pois, é mesmo, não é? - disse Ricky,
Quando chegaram ao escritório de Wani, os rapazes já se tinham
ido embora; foram imediatamente para o piso de cima, o
apartamento, Ricky atrás de Wani, e Nick atrás de ambos, mas
perto, muito perto, às voltas com um ciúme extremamente
desagradável. Era como a tensão de um primeiro encontro, mas
com um terceiro interveniente que era também um competidor e
um crítico. Sentia-se mal só de pensar que as pequenas
predilecções de Wani iam ser expostas, e furioso porque fora a
ele que Wani confiara o segredo dessas preferências. Não sabia
se seria capaz de alimentar esse drama na presença de Ricky,
com o qual, obviamente, noutro local que não aquele, teria
adorado foder. Ou talvez as coisas não se orientassem nesse
sentido, provavelmente limitar-se-iam a umas brincadeiras
menores.

226

Atravessou a sala e pôs as chaves do carro na mesinha e,


quando olhou para trás, já Ricky e Wani estavam colados num
beijo molhado, nada fora dito, houve suspiros de consentimento,
um momentâneo brilho de saliva antes de um segundo beijo
chocantemente terno. Nick deu um riso abafado e desviou o
olhar da cena, vencido por um sentimento de infelicidade que
não experimentava desde a sua infância, um sentimento que, por
ser tão violento e humilhante, não lhe deixava outra saída: tinha
de sufocá-lo rapidamente.
Pegou nos Poems and Plays of Addison e tirou o grama
escondido de coca - tudo o que restava dos sete gramas da
semana anterior. Ajoelhou-se ao pé da mesinha, poliu uma parte
do tampo para colocar a droga. O último número da Harper's
estava aberto no «Jennifer's Diary» e Nick examinou a fotografia
de Mr. Antoine Ouradi e Miss Martine Ducros no baile de Maio da
Duquesa de Flintshire. O pálido reflexo invertido dos dois homens
a beijarem-se flutuava no vidro, junto à fotografia do casal. Se
aquele ia ser um dos filmes de Wani - não os filmes que queria
fazer, mas aqueles que gostava de ver - Nick teria de se juntar
rapidamente a eles. Por vezes, nesses filmes, havia uma cena
espantosamente chata em que um homem se ajoelhava e
chupava as pichas dos outros dois, uma de cada vez, ou tentava
mesmo metê-las às duas na boca, e Nick não duvidava que Wani
queria um número desses. Talhou e alongou os finos fusos
brancos de prazer, enquanto, no espelho, Ricky se esforçava por
abrir a fivela do cinto do seu amante.

227

8.

O novo centro de operações de Wani era uma casa da década de


1830 situada em Abingdon Road, cuja reconversão encomendara
ao arquitecto Parkes Perrett Bozoglu. O rés-do-chão albergava os
resplandecentes escritórios em plano aberto da Ogee(1), e, nos
dois pisos superiores, um apartamento repleto de traços
eclécticos, frontões em madeira de tília, vidro colorido,
aberturas surpreendentes; o quarto, que era gótico, tinha uma
casa de banho egípcia. A tecnologia de ponta dos escritórios -
parecia querer dizer PPB - era menos a lógica do futuro do que
um qualquer estilo do repertório pós-moderno. A casa fora
objecto de uma reportagem da revista The World of Interiors,
cujo director artístico redistribuíra os móveis, pendurara uma
descomunal pintura abstracta na sala de jantar e enxertara uma
série de candeeiros de cerâmica que mais pareciam colossais
abóboras. Wani comentou que isso não tinha a menor
importância. Aliás, ele parecia elegantemente à vontade tanto
entre os quási-espelhos de vidro e aço dos escritórios como
entre as aleatórias alusões culturais do apartamento. Wani sabia
muito pouco de arte e de design e o prazer que encontrava
naquela casa decorria, antes do mais, do facto de ter mandado
executar algo de dispendioso para si mesmo.

*1. O nome da empresa, Ogee, aponta para a profusão, no


edifício em causa, de um motivo arquitectónico e decorativo - a
dupla curva com a forma de um S alongado, um motivo muito
usado na arquitectura clássica (nas cornijas), embora
recentemente retomado por alguma arquitectura. (N. do T.)

228

Nick sorria em segredo do pretensiosismo do apartamento, mas


habitava-o com a sua velha intensidade melancólica, a exemplo
do que sucedera na casa dos Fedden - como uma fantasia de
prosperidade que ele podia partilhar, e como o habitat do homem
por quem estava apaixonado. Sentia que se adaptara bem àquele
espaço, ao seu conforto, às suas comodidades, àquele mundo de
coisas, discreto, apenas pressentido, que os ricos criavam para
eles próprios. Era um sistema de stress minimizado, de adulação
garantida. Nick adorava a ampla e inclusiva profundidade dos
sofás e a luz, de um peculiar tom dourado, dos candeeiros que
ladeavam o lavatório da casa de banho; nunca tivera tão bom
aspecto como quando se barbeava ou lavava os dentes diante
daquele espelho. Claro que a casa era de uma vulgaridade que
roçava o piroso, como quase todas as coisas pós-modernas, mas
a verdade é que Nick retirava dela um prazer surpreendente. A
sala de entrada, onde os abajures de vidro cinzento, em forma de
campânula, derramavam brumosos reflexos nas paredes de
mármore castanho-avermelhado, fazia lembrar os lavabos de um
restaurante, ainda que, obviamente, de um restaurante muito
elegante e imenso na moda.
Dormia uma vez por outra em casa de Wani, na fantasia da cama
dosselada, com as suas inúmeras almofadas. A dupla curva em
forma de S alongado repetia-se nos espelhos e nas sanefas e nos
guarda-roupas, estes últimos semelhantes a confessionários
góticos; porém, esse motivo encontrava a sua mais grandiosa
expressão precisamente no dossel da cama, feito com duas
curvas em S que se cruzavam transversalmente e que eram
coroadas por uma bossa que fazia lembrar uma enorme couve de
madeira. Foi numa noite em que estava deitado sob esse dossel,
rendido a um constrangedor vazio pós-coital, que lhe ocorreu
chamar Ogee à empresa de Wani: havia na comparação uma
justeza evidente, já que tudo era simultaneamente inglês e
exótico, como tantas das coisas que Nick adorava. A dupla curva
em forma de S alongado era pura expressão, decorativa, não
estrutural; podia fazer-se uma estrutura a partir dela, mas ela
não suportava mais do que uma bossa ou a cruz que encimava
uma cúpula. Wani mostrava-se distante depois do sexo, como
que contemplando uma ofensa à sua dignidade. Virava-se de lado
num agravo ensimesmado. Nick procurava tranquilizar-se
recordando triunfos sociais que alcançara, coisas inteligentes
que dissera,

229

e, na sua imaginação, dissertava sobre a curva em S perante um


amigo que o admirava, amigo esse que podia ser, numa sucessão
rápida, a Duquesa, e depois Catherine, e, logo a seguir, um
amante que não Wani. A dupla curva era a «linha da beleza» de
Hogarth(1), o lampejo sinuoso, serpenteante, de um instinto, de
duas compulsões reunidas num único e ininterrupto movimento.
Deixou que a sua mão percorresse as costas de Wani. Tanto
quanto sabia, Hogarth não ilustrara a sua «linha da beleza» com
aquele exemplo, afinal o seu mais perfeito exemplo, o declive e a
onda - não, Hogarth escolhera harpas e ramos, ossos em vez de
carne. Não havia dúvida: era tempo de se escrever uma nova
Analysis ofBeauty.
No piso inferior, ficava a «biblioteca», uma homenagem ao neo-
georgiano Lutyens(2), com uma parede preta e estantes apoiadas
em pilastras. Uma taça de cristal, algumas fotografias
emolduradas, e uma miniatura de um carro ocupavam espaço
entre os esparsos blocos de livros. Havia pesados volumes sobre
jardins e estrelas de cinema, algumas biografias populares, e
livros que Wani prezava por terem sido escritos por pessoas que
conhecia, como o Sailing de Ted Heath(3), ou o primeiro
romance, «francamente bom», de Nat Hanmer, intitulado
PigSty(4). A sala tinha uma respeitável secretária georgiana, e
sofás, uma enorme e arregalada televisão e um leitor de vídeo
com rewind de alta velocidade. Foi nessa sala, poucos dias
depois do episódio Ricky (com o seu amplo e tácito ajustamento
à compreensão que Nick tinha das coisas), que Wani se sentou,

*1. O extraordinário pintor e gravador William Hogarth (1697-


1764) pintou em 1745 o seu auto-retrato (com cão) e, num canto
do quadro, desenhou uma sinuosa curva acompanhada das
palavras «-The Line of Beauty» («A linha da beleza»). Este
pormenor intrigou tanto o público que Hogarth resolveu explicar-
se por escrito. O resultado foi o volume Analysis of Beauty
(1753), um tratado em que pretendia consolidar «as flutuantes
concepções de Gosto». O livro acabou incensado pelos
admiradores do autor e ridicularizado pelos seus detractores.
Muito resumidamente, poderemos dizer que, no texto,
actualmente disponível (em versão integral) na net, Hogarth
afirma que «há apenas uma linha específica a que
adequadamente podemos chamar a linha da beleza» - uma
«serpentine-line» que exigirá do pintor uma busca constante. (N.
do T.)
2. Sir Edwin Lutyens, arquitecto inglês que viveu entre 1869 e
1944. O ponto alto da sua carreira foi o planeamento de Nova
Deli, que incluiu a concepção do palácio do Vice-Rei. (N. do T.)
3. Edward Heath foi primeiro-ministro, pelo Partido Conservador,
entre 1970 e 1974. Em Sailing, de 1975, aborda as suas viagens e
a sua experiência na vela. (N. do T.)
4. «Pocilga.» (N. do T.)

230

tirou a tampa da sua Mont Blanc e passou um cheque a Nicholas


Guest no valor de cinco mil libras.
Nick olhou para o cheque, de uma conta que Wani tinha no
Coutts & Co., no Strand, com uma mistura de suspeição e júbilo.
Pegou nele num jeito ligeiro, evasivo, mas, um ou dois segundos
depois, deu-se conta de que estava ferozmente preso àquele
bocado de papel e que receava que ele lhe fosse retirado. Disse: -
Mas que história é esta?
- O quê...? - disse Wani, como se já se tivesse esquecido do caso,
mas com um tremor teatral que não conseguia suprimir por
completo. - É que já estou farto de pagar as tuas coisas a porra
do tempo todo.
Esta era uma observação invulgarmente espirituosa, Nick tinha
consciência disso e aceitou a rudeza como uma forma de ternura
encoberta. Ainda assim, havia a sensação de que talvez, quem
sabe, tivesse concordado com alguma coisa quando estava
bêbedo e pedrado e que agora se esquecera da sua parte num
qualquer contrato. - Não me parece correcto - disse, mas já
estava a ver-se a pagar as contas, a levar Toby, ou talvez Nat, ao
Betty's ou ao La Stupenda; a ter um cartão de crédito, por
conseguinte...
- Deixa lá, só te peço que não contes a ninguém - disse Wani, e
logo meteu uma cassete no vídeo e pegou no controlo remoto,
com o qual, à distância e com cara de poucos amigos, desatou a
atazanar e a espicaçar a máquina. - E, por favor, não esbanjes o
dinheiro todo numa semana de coca.
- Claro que não - disse Nick, embora a ideia, e os cálculos que ia
fazendo com os seus botões, o levassem muito rapidamente a
insurgir-se contra o limite de cinco mil libras. Se ia ter de pagar
as contas, então cinco mil libras davam para muito pouco. Vista
a essa luz, a atitude de Wani revelava mesmo uma intolerável
mesquinhez; o cheque era, afinal, um pequeno gesto de troça. -
Vou investi-lo - disse.
- Isso mesmo - disse Wani. - Quando tiveres cinco mil libras de
lucro, poderás pagar-me. - Ao que, por pura ignorância, Nick
reagiu com um risinho sufocado. Pelos vistos, as coisas fiavam
mais fino do que tinha pensado... Sim, se afinal aquilo era um
empréstimo... Mas não, não queria lastimar-se.

231

- Bom, obrigado, meu caro, - disse, dobrando o cheque com um ar


circunspecto, e avançando na direcção de Wani para lhe dar um
beijo. Wani esticou a face para o beijo, como um progenitor
agradecido mas muito atarefado, e, quando Nick saiu da sala, a
cena favorita de Wani do filme Oversize Loady estava já a passar
no ecrã, com o homem vestido de preto submetendo a uma
torturante experiência o excitado lourinho.
- Ah, querido...! - exclamou Wani com um risinho, mas Nick sabia
que o «querido» não era ele.
Wani passava - e não se queixava - umas quantas noites por
semana na casa dos pais, em Lowndes Square. De início, Nick
reagira com alguma ironia a essas noites em família, e também
com alguma mágoa, já que Wani parecia não sentir a menor
tristeza por perder uma noite com o amante. O instinto familiar
era fraco em Nick - ou, quando vinha ao de cima, envolvia uma
qualquer outra família que não a sua. Porém, depressa percebeu
que, para Wani, aquilo era tão natural como o sexo - e que as
exigências familiares eram tão irrecusáveis como as sexuais.
Noutras noites da semana, costumava andar num vaivém entre a
mesa e os lavabos de restaurantes chiques, sempre armado do
seu pacote de coca, e, depois, voava rumo a casa no WHO(1)
para uma punitiva sessão de ficção sexual; contudo, nas noites
familiares, partia para Knightsbridge com uma disposição de
incondicional vassalagem, quase de alívio, a fim de jantar com a
mãe e o pai, alguns conhecidos de viagens, e, por norma (nunca
transgredida), a noiva. Então, Nick voltava cheio de ciúmes para
Kensington Park Gardens e os hospitaleiros Fedden, os quais
pareciam acreditar (todos eles, sem excepção) na sua história de
que, nas outras noites, trabalhava na sua tese no computador de
Wani e dormia numa cama articulada no apartamento de
Abingdon Road. Nunca fora convidado para Lowndes Square e, na
sua imaginação, a casa, a implacável figura de Bertrand Ouradi,
os exóticos protocolos familiares, o enorme monossílabo

*1. Traduzível por «Carga Gigante» ou «Volume Extragrande»,


por exemplo. (N. do T.)

232

da própria palavra Lowndes, tudo se combinava para provocar


uma impressão fortemente intimidante.
Numa das suas noites só, Nick foi ver o Tannhàuser e encontrou
Sam Zenman ao intervalo. Coscuvilharam, com óbvio espírito
competitivo, acerca da edição usada, um lamentável híbrido das
versões de Paris e Dresden; Sam levava alguma vantagem no
capítulo dos factos relevantes e minuciosamente localizados.
Nick disse que queria pedir-lhe um conselho, de modo que
marcaram um almoço para a semana seguinte. - Vem cedo -
disse Sam. - Assim, podes experimentar o novo ginásio. - O banco
Kesslers acabara de reconverter a sua sede na City, com um
átrio em aço e vidro e pisos de negócios high-tech encaixados
atrás da velha fachada do palazzo.
No dia marcado, Nick apareceu cedo no banco e esperou no
átrio, à sombra, por assim dizer, de uma palmeira. As pessoas
entravam apressadas, acenando para o porteiro, que continuava
a usar casaca e chapéu alto. As escadas rolantes, brutalmente
expostas, levavam os funcionários para cima e para baixo, todos
eles com um ar submisso e, ao mesmo tempo, intensamente
importante. Nick deteve-se a observar os mensageiros que iam e
vinham nas suas motorizadas, suando por certo abundantemente
sob os seus impermeáveis e cabedais e botas pesadas. Sentia-se
constrangido e agitado por aquela proximidade face a tantas
pessoas em plena laboração, tão de fato completo, tão dentro
das suas personagens, tão por dentro de um mundo onde ele era
um estranho. O próprio edifício emanava um fulgor de confiança
e produzia e retinha um infindável e inconfundível ruído, uma
espécie de soma do ar condicionado, do tumulto de vozes e do
truquetrum impessoal das escadas rolantes. Nick esticou a
cabeça para as alturas do edifício, na esperança de relancear as
regiões onde Lord Kessler em pessoa estaria, provavelmente, a
conduzir os negócios do banco, a esse nível, sem dúvida, uma
questão de meras ironias e piscadelas de olhos, uma questão de
telepatia. Sabia que a velha sala apainelada do conselho de
administração ficara tal e qual como estava, e que Lionel
pendurara nas suas paredes alguns quadros notáveis. Aliás,
dissera a Nick que lhe telefonasse um dia para ir ver o
Kandinsky...
Sam levou-o pelo átrio e, um instante depois, desciam a uma
cave que tresandava a cloro e que, obviamente, albergava o
ginásio e a piscina.

233

- É uma verdadeira dádiva divina, este sítio - disse ele. Nick


achou tudo aquilo muito pequeno; o ginásio, então, não chegava
aos calcanhares do Y; apercebeu-se de que, quando ia a um
ginásio, qualquer que ele fosse, o encarava como um sítio gay, só
que este ginásio específico não era gay. Um velho com um
casaco branco distribuía toalhas e, por via do hábito, parecia já
não ligar às obscenidades dos quadros superiores do banco. Nick
fez um circuito leve, descuidado, de facto só para agradar a Sam,
que pedalava numa bicicleta ao mesmo tempo que fazia as
palavras cruzadas do Times. Sentia que não conhecia Sam muito
bem e tinha a vaga sensação de que ele o tratava de uma forma
condescendente. A afável sagacidade oxfordiana de Sam
ganhara uma capa de dureza; havia nele um fulgor que ecoava o
fulgor do edifício, um vigilante meio sorriso de secreto
conhecimento. Por todo o lado, viam-se homens levantando e
baixando pesos tão impetuosamente quanto podiam. Nick não
sabia ao certo se estariam a exercitar a sua agressividade ou a
descarregá-la. Nos duches, gritavam esotéricas fanfarrices de
cubículo para cubículo.
Nick imaginara um almoço num velho e murmuroso restaurante
da City com paredes divisórias de carvalho e criados de casaca.
O sítio aonde Sam o levou era tão ofuscante de luzes e tão
ruidoso e enorme que, quando se sentaram, teve de lhe explicar
aos gritos os pormenores do seu negócio com as cinco mil libras.
Quando percebeu do que se tratava, Sam recuou na sua cadeira
por um instante, para mostrar que tinha pensado que só poderia
ser uma coisa realmente importante. - Bom, que divertido - disse.
No restaurante, quase só havia homens. Nick estava contente
por ter vestido o seu melhor fato e por pouco não lamentava o
facto de não ter posto gravata. Eram homens mais velhos, de
olhar aguçado, com um ar vagamente fustigado por causa da
velocidade e do ruído, a sua dignidade ameaçada pelos ferozes
jovens que já tinham as garras cravadas num novo tipo de
sucesso. Alguns dos jovens eram belos e excitantes; uma
espécie de implacável impulso sexual - na imaginação de Nick,
era assim que eles sentiam o seu próprio poder. Outros eram os
feios e marginalizados do recreio da escola básica ou
secundária, que haviam feito do dinheiro o seu melhor amigo.
Não, de facto aquele ambiente era muito pouco public school.
Como toda a gente tinha de gritar, parecia haver no ar

234

uma enorme e estrondosa exclamação, uma espécie de «uau» ou


«iau». Sam mostrava-se algo altivo em relação aos outros
homens, mas não os repudiava. Disse: - Vi uma Frau ohne
Schatten maravilhosa em Frankfurt.
- Ah sim... bom, tu sabes o que eu penso de Strauss - disse
Nick.
Sam fitou-o com um ar desapontado. - Oh, Strauss é bom - disse. -
É muito bom no que respeita às mulheres.
- Não seria isso, por si só, que me faria mudar de ideias! - disse
Nick.
Sam riu-se da graça, mas prosseguiu: - A música orquestral gira
toda em torno de homens, ao passo que as óperas são todas
sobre mulheres. Os únicos papéis masculinos interessantes que
ele escreveu são ambos feitos por mulheres: o Octavian, é claro,
e o Compositor da Ariadne.
- Sim, é um facto - disse Nick, sentindo-se ligeiramente
pressionado. - Strauss não é universal. Não é como Wagner, que
abarcou tudo.
- Não, de facto não tem nada a ver com Wagner - disse Sam.
- Mas, ainda assim, é um génio incontestável.
Só no final do almoço se debruçaram sobre o dinheiro de Nick.
- É só uma pequena herança - disse Nick. - Pensei que era capaz
de ser interessante, ver o que se poderia fazer com o dinheiro.
- Mm - disse Sam. - Bom, neste momento, o que está a dar é o
imobiliário.
- Com cinco mil libras, não compraria grande coisa... - disse Nick.
Sam riu-se, uma única vez. - Se fosse a ti, comprava acções da
Eastaugh. Têm projectos para metade da City. As acções deles
sobem tão alto como a vertente norte do Eiger.
- Disparam, queres tu dizer.
- Ou então há a Fedray, claro.
- O quê, a companhia de Gerald?
- Para dizer a verdade, teve uma performance espantosa no
último trimestre.
Era uma ideia sem dúvida estimulante, mas, tudo somado,
constrangedora. - E como é que se faz para comprar as acções e
essas coisas todas? - disse Nick, espantado com a sua própria
tontice,

235

mas mostrando também uma certa afoiteza, o que era natural


depois de quatro copos de Chablis. - Talvez pudesses tratar disso
tudo por mim.
Sam pôs o seu guardanapo em cima da mesa e acenou para o
criado. - Ok! - disse ele num tom animado, para mostrar que
aquilo não passava de um jogo, uma pequena tontice lá muito
dele) - Vamos apostar no máximo de lucros. Logo se verá até
onde poderemos chegar.
Nick remexeu no bolso para tirar a carteira, e estava a ser
sincero quando o fez, mas Sam disse-lhe que o almoço era por
conta do banco. - Importante investidor da província - disse.
Tinha MasterCard de platina do Kesslers reservado a quadros de
tope. Nick seguiu o processo com uma gotinha de expectativa
num dos olhos. No passeio, Sam disse: - Muito bem, meu caro,
manda-me um cheque. Eu vou nesta direcção - como se Nick
tivesse deixade claro que seguiria no sentido contrário. Depois,
cumprimentaram-se e, nesse instante, Sam disse: - Três por
cento de comissão. Está bem para ti? - de tal forma que
pareciam ter acabado de firmar um contrato. Nick corou e sorriu
porque nunca tinha pensado em comissões: e a verdade é que se
sentia magoado e muito. Só mais tarde é que aquilo lhe pareceu
uma coisa boa, auspiciosa, um trato a que não faltava o
adequado selo dos negócios.
Wani estava ainda a «constituir a sua equipa» nos escritórios da
Ogee e Nick mostrava-se silenciosamente espantado tanto com a
sua confiança como com a sua indolência. Uma mulher chamada
Melanie, que se vestia como se tivesse sido perpetuamente
convidada para um cocktail party ao estilo texano, exercia as
funções de dactilógrafa e, ao longo das tardes, prolongava de
forma habilidosa o pouco trabalho de arquivista e telefonista que
tinha para fazer. Sempre que a mãe lhe ligava, dizia que o
escritório estava «um frenesi». Wani tinha um Talkman, um
maravilhoso telefone portátil que podia levar com ele no carro ou
mesmo para um restaurante, e, quando ia para reuniões, insistia
para que Melanie lhe ligasse para o Talkman e lhe indicasse
alguns montantes, não interessava quais. Havia também os
rapazes, Howard e Simon; embora não fossem de facto um casal,
eram sempre referidos como um par e comportavam-se
com o outro de um modo descontraído e confortável - como se
fossem ainda uns rapazinhos e grandes compinchas na escola.
Howard era muito alto e tinha um rosto duro, anguloso, com um
queixo quadrado, proeminente, ao passo que Simon era pequeno
e tinha um rosto redondo e sério, quase solene, e fingia que não
se importava nada com o facto de ser gordo. Se alguém os
tomava por amantes, Simon desmanchava-se a rir e Howard
explicava diplomaticamente que não passavam de bons amigos.
Nick gostava de cavaquear com eles sempre que passava pelo
escritório e deliciava-se com as fugazes sugestões de que ambos
estavam perdidos por ele. - Bom, eu faço piscina e vou ao ginásio
umas quantas vezes por semana - dizia Nick, recostando-se na
sua cadeira com aquele rubor envergonhado que, para ele, era
ainda o custo da gabarolice; e Simon dizia: - Oh, acho que me
fazia bem, experimentar essas coisas... - E todos se
comportavam como se nunca tivessem reparado na beleza de
Wani e como se o levassem inteiramente a sério. Se Wani
aparecia nas páginas do social da Tatler ou da Harper's and
Queen, Melanie passava a revista aos colegas como se as
fotografias fossem uma validação de toda a empresa.
Nick estava certo de que nenhum deles sabia que ele dormia
com o patrão, e, com dez anos ou mais de prática, não lhe era
difícil deter e desviar qualquer conversa que pudesse acabar
com um enrubescimento suspeito. Uma parte dele ansiava pelo
escandaloso aplauso, mas Wani exigia um secretismo total, e
Nick gostava de guardar segredo. Para disfarçar, apresentava-
lhes elaboradas versões de antigas aventuras; quando contou a
Howard e Simon o incidente Ricky, deu-lhe uma roupagem
inteiramente nova, substituindo Wani por um francês que
conhecera no lago, no Verão anterior.
- Então e como é que ele era, esse Ricky? Um pêssego? - disse
Simon.
Pêssego, no caso de Ricky, era um qualificativo absolutamente
irrelevante; um dado que, de facto, não vinha ao caso; não, o que
contava em Ricky era aquele ar de estúpida certeza, aquele
ardor constante, aquele cio, que havia nele, o modo como um
tipo começava logo de uma forma tão intensa, como se o
primeiro beijo fosse um velho beijo interrompido e de novo
retomado em toda a sua violência;

236 - 237

e Nick disse: - Oh, magnífico. Olhos escuros, rosto redondo, um


belo nariz, bem grande...
- Mmm - fez Simon.
- Talvez um nadinha demasiado cedo, conquanto ainda a salvo de
uma lamentável devastação, apresentava claros sinais de
calvície.
Houve uma breve pausa reflexiva antes de Simon dizer: - Essa é
mais uma das tuas, não é?
- O quê... ? - disse Nick, com um ar vagamente magoado.
- Um nadinha demasiado... como é que era?
- Já não me lembro do que disse... «um nadinha demasiado cedo,
conquanto ainda a salvo de uma lamentável devastação,
apresentava claros sinais de calvície»?
Howard recostou-se, com o aceno de cabeça de alguém que se
rende a um truque velho e simples, e insistiu: - Mas diz lá... Ele
tinha barba?
- De modo nenhum - respondeu Nick. - Não, não, no que
respeitava às faces e ao queixo, dir-se-ia a encarnação das
alegrias do aço matutino.
Desataram todos a rir, deliciados. Um dos números habituais de
Nick consistia em largar aquelas pérolas perifrásticas, extraídas
das últimas obras de Henry James, em momentos da conversa
absolutamente inadequados para o efeito, e os rapazes ficavam
deslumbrados com as citações e tentavam vagamente recordar-
se delas - na realidade, o que eles queriam era que fosse Nick a
dizê-las, naquele seu jeito vivo, mas não isento de gravidade.
- Então essa de que obra é?
- A da calvície? É de The Outcry. Uma novela de Henry James de
que nunca ninguém ouviu falar. - Os rapazes encararam
filosoficamente tal revelação. Para dizer a verdade, Howard e
Simon nunca tinham ouvido falar de nenhum romance de Henry
James. Nick sentia que estava a prostituir o Mestre, mas
também era certo que havia um elemento de auto-irrisão no jeito
como o Mestre moldava aquelas frases, e esse era um ponto que
ele contemplava na sua tese. Sentia-se no auge de uma juvenil
ligação com o seu escritor, apaixonado pelos seus ritmos, pelas
suas ironias, e pelas suas idiossincrasias, e adorando, acima de
tudo, os seus mais idiossincráticos momentos.

238

- Quem ouvir as tuas citações - disse Sam, não sem alguma


amargura - é levado a pensar que Henry James considerava toda
a gente bela e maravilhosa.
- Oh, bela, magnificente... maravilhosa. Na realidade, creio que
esses adjectivos são mais usados pelas personagens, isto é, é
com esses adjectivos que as personagens se qualificam umas às
outras, especialmente quando a sua maldade vem ao de cima.
Sabem, nos últimos livros de James, as suas personagens fazem
cada vez mais isso, quando, na realidade, são cada vez mais
feias, num sentido moral, é claro.
- Claro... - disse Simon.
- Quanto piores eles são, mais beleza vêem uns nos outros.
- Interessante - foi o seco comentário de Howard.
Nick lançou um olhar afectuoso ao seu reduzido público. - Há
uma passagem maravilhosa na sua peça The High Bid, quando
um homem pergunta a um mordomo de uma mansão de campo:
«O que eu queria dizer era isto, a quem é que o senhor belamente
pertence?»
Simon pigarreou e olhou à sua volta para ver se Melanie estava
suficientemente longe. Disse: - Então e que tal era a mala dele?...
DoRicky?
Bom, aí estava sem dúvida uma mala que valia a pena descrever -
e embelezar. Por um momento, Nick perguntou-se como é que
Henry teria atacado uma tal empresa. Se tocara com dedos tão
maliciosos em barbas e calvícies, os dois elegantes elementos
que marcavam a sua própria aparência, que galanterias e
frémitos não teria ele concebido, se tivesse de evocar os
maciços vinte centímetros de Ricky? Nick disse: - Oh, era... de
uma certa dimensão - e observou Simon, que tentava extrair toda
a excitação possível de tão parcos dados.
E assim continuou ele com a sua conversa fiada, misturando
sexo e erudição, deliciando-se com os seus desvios aos rigores
da verdade. De facto, o verdadeiro gozo daquilo tudo estava nos
desvios. E essa fuga à verdade parecia encaixar na perfeição
naquela atmosfera de fantasia dos escritórios da Ogee, na
remota percepção de uma questão a todo o custo evitada.

239

Nick facilmente poderia ter definido o papel que desempenhava


naquele universo e, de facto, só veio a saber que papel era esse
quando, inopinadamente, foi convidado para o almoço de
domingo na casa de Lowndes Square. Na noite anterior, estivera
a dançar até às três da manhã no Heaven, e travava ainda um
duro combate com a sensação de que tinha uma máscara de
borracha colada ao rosto, com as pernas que, de vez em quando,
claudicavam, com a vibração e a ofuscação de uma ressaca de
cerveja e brandy, quando Bertrand Ouradi, apertando-lhe a mão
com toda a força que tinha, lhe disse: - Ah, então você é que é o
esteta de Antoine.
- Esse mesmo! - exclamou Nick, retribuindo o aperto de mão com
toda a firmeza de que era capaz, na esperança de que, aos olhos
de Bertrand, mesmo um esteta pudesse ser uma coisa boa para
uma pessoa ser, só pelo simples facto de contar com a
aprovação do seu amado filho.
- Ah ah! - exclamou Bertrand, e logo virou costas e avançou ao
longo do xadrez de mármore da sala de entrada. - Bom, nós
precisamos dos nossos estetas. - Esticou os braços num
gracioso meneio de ombros, parecendo apontar para as
reluzentes pinturas e candeeiros de pé alto Império como
imprescindíveis ornamentos da sua posição. Eu também tenho o
meu esteta particular, parecia ele dizer, pago-lhe uma pequena
avença. Nick seguiu-o, franzindo muito os olhos para o lustro
excessivo que parecia banhar toda a sala. Tinha a sensação de
que, naquela casa, havia apenas uma coisa que alguma vez
desejaria ver. - Vou já ter consigo, é só um momento - disse
Bertrand, com um minúsculo gesto dissuasivo, já que Nick, sem
dar por isso, ameaçava acompanhá-lo à casa de banho. A mulher
morena e baixinha que lhe abrira a porta conduziu-o
respeitosamente ao piso de cima, de modo que, em vez de entrar
na casa de banho com o pai de Wani, Nick acompanhou a
empregada, sorridente e desditoso. Pelos vistos, Wani tinha-lhe
atribuído aquele título - Nick era o seu «esteta» -, era assim que
ele explicava a sua presença aos pais...
A empregada acompanhou-o até à confusão rosa e dourada de
uma sala de estar. Wani exclamou: - Ah, Nick...! - como um velho
com problemas de memória, e avançou para o cumprimentar. -
Ora bem, aqui tens Martine, que estava desejosa de te ver... -
(Nick parou junto ao sofá onde ela estava sentada e apertou-lhe
a mão,

240

para além de lhe oferecer uma vénia manifestamente exagerada)


- e ainda não conheces a mãe. - Nick dera pelo seu reflexo
avançando no espelho alto que estava pendurado sobre a lareira
com uma ligeira inclinação, que fazia com que a sala parecesse
pairar numa luminosa meia distância. Manteve um amplo sorriso
defensivo, e só espreitou a sua imagem por um imprudente
segundo. Era um sorriso deslumbrado, talvez mesmo o sorriso de
alguém prestes a debitar uma série de observações espirituosas.
Monique Ouradi disse que fora à missa na Westminster
Cathedral, e retribuiu o sorriso, mas parecia não estar ainda
completamente pronta para o mero trato social. - Ah, deixa-me
apresentar-te o meu tio Emile, e o meu primo, o pequeno Antoine
- disse Wani, no momento em que duas pessoas surgiram
inesperadamente atrás dele. Tudo produzia um efeito óbvio em
Nick, mas ele não estava em condições de assimilar o que quer
que fosse. Cumprimentou o tio Emile, que lhe disse «Enchanté»
com uma voz catarrenta, e Nick retribuiu o «Enchanté». Wani
pousou uma mão na cabeça do seu pequeno primo e o rapaz
ergueu para ele um olhar de adoração antes de cumprimentar o
convidado. Nick sentiu uma lágrima assomar-lhe aos olhos só de
pensar na absoluta inocência da criança relativamente a
ressacas.
Decidira no táxi que só beberia água, mas quando Bertrand
entrou e disse: - Ora bem, vamos lá às bebidas! - viu
imediatamente que fazia todo o sentido beber um Bloody Mary.
Bertrand encaminhou-se na direcção de um tabuleiro de bebidas
que estava numa mesa afastada e, nesse exacto momento, um
velho de casaco preto entrou apressadamente com uma bandeja
e tomou conta da situação. Nick fitava-os enquanto se
embrenhava nas pacientes conjecturas dos ressacados; sentia-
se misteriosamente deslocado e, ao mesmo tempo, imerso num
processo de lenta revelação. Bastava que Bertrand fizesse um
simples gesto indicando uma acção e logo essa acção era
executada por outra pessoa qualquer - assinalava-se uma
necessidade de presteza à qual, imediatamente, se seguia um
alívio que nunca fora posto em causa! Isso explicava tudo.
Na verdade, o melhor era uma pessoa refugiar-se num canto do
sofá, numa pose tão natural quanto possível, e deixar que a
conversa da família seguisse o seu rumo... Nas altas janelas da
frente, cortinados brancos ondeavam apenas um nada na
direcção da sala.

241

Havia duas árvores pontiagudas em vasos, e, para lá delas, os


plátanos da praça, tão altos como numa floresta, preenchiam
toda a vista. Os pensamentos de Nick vaguearam pela varanda
fora até se empoleirarem nas copas dos plátanos.
O pequeno Antoine tinha um carrinho de controlo remoto e Wani
encorajava-o a chocar com o carro contra as pernas das
reproduções de mesas e cadeiras Luís XV. Era um Ferrari
vermelho vivo com uma antena que, de tão alta e fina, fazia
lembrar um chicote. Nick curvou-se todo para a frente para
observar as loucas correrias do brinquedo; rompia em gemidos
teatrais sempre que o carrinho se espetava contra o rodapé ou
ficava encalhado sob a escrivaninha. Estava a fingir que gostava
da brincadeira, e a tentar associar-se a ela, mas os dois rapazes
pareciam não se dar conta sequer da sua presença; a certa
altura, Wani quase arrancava o controlo das mãos do primo e
logo para provocar um choque a alta velocidade. Bertrand estava
de pé a conversar com o tio Emile e, duas ou três vezes, desviou-
se para o carrinho passar; era um gesto de condescendência,
acompanhado de uma expressão em que se notava uma certa
dureza. No espelho inclinado, Nick via-os a todos, dir-se-ia que de
um ângulo privilegiado, como actores num cenário.
Os pais eram fascinantes, Bertrand baixo e bem-parecido como
uma estrela de cinema de outros tempos, e Monique também,
muito elegante e austera, com o cabelo preto curto e um broche
de diamantes, exibindo o seu exotismo como um salto no tempo,
um salto que a levava até ao chique de vinte anos antes. Havia
um brilho controlado no fato escuro de Bertrand, no casaco
assertoado, com os ombros muito espetados, e o lenço carmim
no bolso; a sua figura parecia decompor-se num padrão de
quadrados e losangos, com o seu queixo quadrado, mais duro
que o de Wani, e o mesmo nariz comprido e aquilino, funcionando
como elementos desse mesmo padrão. Um fino bigode negro
sublinhava um lábio superior carnudo. Os sapatos leves de
verniz, sem peito, pareceram a Nick uma nota oriental. O próprio
Wani tinha vários pares desses sapatos, com solas de borracha
estriadas, «para andar sobre mármore», como ele dizia. A voz de
Bertrand, com um forte sotaque, descontraída mas coerciva,
dominava a sala.
Martine estava sentada na outra ponta do sofá de Nick,

242

naquele que parecia ser o seu «lugar», contíguo ao da mãe de


Wani. Falavam baixinho em francês, numa espécie de descuidada
conspiração feminina, ao passo que os homens atroavam e
carranqueavam e chocavam com carros contra tudo o que lhes
aparecesse pela frente. Nick sorria incondicionalmente para
todos. Martine, no seu longo noivado, devia ter ganho um
estatuto de acessório; ela era uma espécie de parente pobre e
passiva que esperava e desesperava pelo momento em que se
tornaria milionária. Parecia relutante em falar com Nick, por
razões que ele poderia apenas conjecturar. Wani dissera que ela
estava desejosa de o ver, mas isso mais não era do que um
incitamento ao convívio que confundia o desejo com a realidade -
Wani tinha o hábito de inculcar (de uma forma ténue, lânguida)
os seus desejos nos outros. Mas Martine, no seu jeito brando e
sereno, sempre parecera pensar pela sua própria cabeça. Não
admira, por isso, que só ao fim de um ou dois minutos se
abeirasse da mesinha baixa de vidro e fizesse deslizar um
pratinho de azeitonas na direcção de Nick, acompanhando o
gesto de uma pergunta: - Então como é que tem passado?
- Oh, óptimo! - disse Nick, pestanejando e sorrindo tolamente. -
Para dizer a verdade, neste momento não me sinto lá muito bem,
enfim, o meu estado é um pouco delicado... - e ergueu e agitou o
copo. - Mas isto está a ajudar. É um milagre, o efeito que faz. - E
pensou nas coisas extraordinárias que uma pessoa era capaz de
dizer.
O estado de Martine não seria por certo delicado; contudo, a
própria Martine era demasiado delicada para pegar no tema da
ressaca de Nick. - Vai tudo bem com o trabalho? - perguntou.
- Ah, sim... obrigado. Bom, quero ver se acabo a minha tese este
Verão e, como é evidente, estou muito atrasado - disse ele, como
se fosse plausível que Martine conhecesse por dentro e por fora
as suas fraquezas; dir-se-ia que estas ressumavam da sua
simples presença. - Sou tão terrivelmente preguiçoso e
desorganizado.
- Espero que não - disse ela, como se Nick só pudesse estar a
brincar. - E é sobre quê, essa tese?
- Oh... é sobre Henry James... - Desenvolvera uma resistência,
que era, em si mesma, jamesiana, a revelar o tema exacto da
tese. Tinha muito a ver com sexualidade oculta, um assunto que
lhe parecia melhor evitar.

243

- Mas Antoine diz que também está a trabalhar com ele, na Ogee?
- Oh, o meu trabalho na Ogee não é, de facto, grande coisa...
- Mas não está a escrever um filme? Foi o que ele disse.
- Bom, gostaria de escrever um filme. Num certo sentido, sim, é
verdade... Temos algumas ideias. - Sorriu polidamente para além
da noiva, a fim de integrar a mãe de Wani na conversa. Como era
tudo o que tinha, disse: - De facto, sempre desejei muito fazer
uma adaptação ao cinema de The Spoils ofPoynton... - Ao ouvir
isto, Monique recostou-se com um aceno apreciativo e Nick
sentiu-se encorajado a prosseguir: - Creio que poderia ser
verdadeiramente maravilhoso, não lhes parece? Não sei se
sabem, mas Ezra Pound disse que The Spoils of Poynton não
passava de um romance sobre mobiliário, com o que,
obviamente, pretendia depreciar a obra de James, mas foi
precisamente isso que me atraiu no romance!
Monique sorveu o seu gin tónico e fitou-o com um ar vagamente
interessado, e, depois, como que em busca de um sentido para o
que acabara de ouvir, os seus olhos percorreram num relance as
mesas e as cadeiras. Claro que não fazia a menor ideia do que é
que ele estava a falar.
Martine disse: - Portanto, quer fazer um filme sobre mobiliário?
E Monique, levantando a voz enquanto o Ferrari passava a rasar
pelos seus tornozelos: - Fomos ver um filme que estreou há dias,
um filme tão interessante, tão bonito, O Quarto com a Vista.
- Ah sim - disse Nick.
- Passa-se quase todo em Itália, que é um país que nós
adoramos, foi uma maravilha.
Martine surpreendeu ligeiramente Nick, ao dizer-lhe: - Acho tão
maçadora, esta tendência que há agora, passa-se tudo no
passado.
- Ah... Estou a ver. Quer dizer, todos estes filmes de época...
- Sim, todas estas coisas de época. Os actores ingleses não
ficarão fartos? Passam o tempo todo vestidos a rigor... Não há
uma única cena em que não apareçam em traje de cerimónia...
- É verdade - disse Nick. - No entanto, se virmos bem as coisas...
Actualmente, toda a gente anda vestida a rigor o tempo todo, não
é? - Na realidade, era em Wani que estava a pensar: Wani que,
além de ter três casacos de smoking, aparecera no baile de
caridade

244

da Duquesa absolutamente vestido a rigor, de fraque e lacinho


branco. Apercebeu-se de que estava sob um ataque cerrado,
visto que o projecto Poyton implicaria naturalmente um esforço
muito grande em termos de figurinos.
Monique Ouradi disse: - Estou certa de que o meu filho fará um
belo filme, com a sua ajuda - e Nick sentiu que ela estava a
encorajá-lo num sentido mais lato, naquele jeito inescrutável em
que, por vezes, as mães o fazem.
- Sim, talvez você não o conheça assim tão bem... - concordou
Martine. - Vai ter de andar sempre em cima dele.
- Não me esquecerei disso - disse Nick com um riso, e
espantosas e excitantes imagens de Wani na cama começaram a
passar diante dos seus olhos, de tal forma que Martine era como
uma pessoa em que incidisse a luz de um projector de
diapositivos, meio exposta, meio manchada de sombras
coloridas, e um pouco ridícula.
O Ferrari acertou em cheio, uma vez mais, no sapato de
Bertrand, e o pequeno Antoine fê-lo acelerar e chiar enquanto o
carrinho tentava subir pelo sapato acima. Até que Bertrand se
baixou, pegou no brinquedo e ergueu-o no ar como um insecto
furioso. Antoine saiu de trás do sofá avançando muito
lentamente, mal se deu conta da pura fúria que dominava o rosto
do tio e, um segundo depois, ficou quase ofegante de riso ao ver
que a feroz carranca se desfazia numa cómica rosnadela. - Já
chega de Ferrari por hoje - disse Bertrand, e devolveu o carro à
criança sem o menor receio de ser desobedecido. Nick sentiu-se
bruscamente nervoso, só de pensar no que aconteceria a quem
contrariasse as ordens de Bertrand, e as imagens nuas do seu
filho, até esse instante projectadas num luminoso ecrã,
esbateram-se numa névoa de constrangimento.
Wani disse: - Deves estar desejoso de ver a casa.
- Ah, sim - disse Nick, levantando-se com um sorriso lisonjeado.
Sentia que Wani quase exagerara na frieza e dissimulação, de
facto mal falara com ele, e, mesmo agora, enquanto erguia Nick
numa onda de intenções secretas, a sua expressão não revelava
rigorosamente nada, nem mesmo o calor que a família poderia
ter esperado entre dois velhos amigos da universidade.
- Sim, sim, leva-o a ver a casa - disse Bertrand. - Mostra-lhe o raio
das pinturas e das coisas todas que nós temos.
- Adoraria - disse Nick, apercebendo-se da vantagem oculta

245

da personagem do esteta, mesmo numa casa em que as coisas


realmente boas tinham a aparência ofuscante das reproduções.
- Também posso ir? - disse o pequeno Antoine que, de uma forma
muito óbvia, adorava, tanto como Nick, o sorriso e os afagos do
primo; mas Emile, irritado, ordenou-lhe que ficasse.
- Vamos começar por cima - anunciou Wani mal deixaram a sala e
começaram a subir os degraus dois a dois. No segundo lanço
disse baixinho: - Não me contaste onde é que estiveste a noite
passada.
- Oh, fui ao Heaven - disse Nick, um nada apreensivo por estar a
dizer uma verdade inocente.
- Gostava de saber uma coisa... - disse Wani, sem olhar à sua
volta. - Fodeste com alguém?
- Claro que não fodi com ninguém. Estava com Howard e Simon.
- Suponho que uma coisa impede a outra - disse Wani, permitindo
a Nick um ínfimo sorriso. - Então o que é que fizeram?
- Bom, tu já estiveste numa discoteca, querido - disse Nick, com
uma voz cujo sarcasmo quase ansiava pela sua própria anulação.
- Foste fotografado em diversas discotecas com a tua noiva.
Fartámo-nos de dançar e de beber, foi isso que fizemos.
- Mm. Tiraste a camisa?
- Creio que vou deixar isso à tua ciumenta imaginação - disse
Nick.
Atravessaram o patamar e entraram no quarto de Wani. Este
passou pelo quarto numa pressa, com um ar, quase
imperceptível, de quem estava a fazer uma concessão, de quem
contava com Nick para não examinar com demasiada atenção o
conteúdo do quarto, e entrou numa casa de banho contígua,
totalmente branca. Nick seguiu-o devagar. Tudo naquele quarto
lhe interessava, era um espaço morto e vivo ao mesmo tempo,
fotografias de grupo, de Harrow, de Oxford, os membros do
Martyrs' Club com os seus casacos cor-de-rosa, Toby e Roddy
Shepton e os outros; e os livros, o Arnold e o Shakespeare,
edição Arden, e as lombadas cor de laranja, já muito estaladas,
do Middlemarch e do Tom Jones em edições da Penguin, o tipo
de letra e as cores familiares, as colecções e as ideias de toda
aquela fase das suas vidas, encalhadas e abandonadas,
murchando e definhando como num milhar de outros quartos já
demasiado pequenos

246

para os seus habitantes, e que nunca mais voltariam a ser


contempladas; e a principesca cama do jovem, quase de casal; e
o espelho, onde Nick verificava agora, timidamente, os seus
próprios progressos - sim, parecia estar perfeitamente bem... O
aturdimento de uma ressaca... a exultação furtiva, gradual, da
nova bebida... Avançou num passo lento, divagante, para a casa
de banho. Wani tirara já a carteira e estava a moer e a separar
uma generosa dose de coca na ampla borda do lavatório. - Há
montes de coisas velhas com imensa piada no meu quarto -
disse.
- Pois há - disse Nick. - Não é um bocadinho cedo para isso? -
Aquela queda, aquela inclinação, pela coca, estava sem dúvida
numa fase agradável, mas, por vezes, Wani mostrava-se um
pouco excessivo, um pouco prematuro.
- Estavas com ar de quem precisava.
- Bom, só uma pequena linha - disse Nick. Deu também uma
olhadela à casa de banho, com uma despreocupação tensa. Não
queria ir almoçar com uma disposição tão desinquieta quanto
inexplicável; já agora, escusava de fazer uma figura de parvo
diferente. Mas não era possível resistir a uma linha. Adorava a
etiqueta da coisa, o corte com um cartão de crédito, o passar da
nota firmemente enrolada, a cortesia e a severidade do
processo, «tudo feito com dinheiro», como Wani dizia, uma parte
apenas de uma mais vasta diversão, e, mal começava, enleava-o
com os seus encantos e promessas. Com todo o cuidado, não
fosse dar-lhe um empurrão e estragar-lhe o trabalho todo,
abraçou delicadamente Wani por trás e enfiou-lhe uma mão no
bolso esquerdo das calças.
- Ah, foda-se - disse Wani num tom distante. Em cerca de três
segundos, ficou cheio de tesão, e Nick também, o sexo
esmagado contra as costas dele. Tudo o que faziam era
clandestino e, portanto, ousado, e, portanto, infantil, visto que,
no fundo, não era nada ousado. Nick não sabia quantos minutos é
que aquilo poderia durar, nem lhe passava pela cabeça parar,
mas era pateta e degradante, aos vinte e três anos, andar a
surripiar sexo daquela maneira, como um carteirista, para usar
as palavras de Wani. Mas também era verdade que, numa manhã
ressacada, bronco de desejo, Nick encontrava alguma beleza na
furtividade daquilo tudo. Nas profundezas de flanela do bolso,
várias moedas de libra andavam às voltas enquanto a mão de
Nick afagava a picha de Wani.

247

wani dispôs o pó em duas longas linhas. - É melhor fechares a


porta - disse.
Nick demorou a descolar-se. - É, só temos um minuto. - Empurrou
a porta e logo avançou para pegar na nota de vinte libras
enrolada.
- Fecha a porta à chave - disse Wani. - O miúdo segue-me para
todo o lado.
- Ah, e quem é que o pode censurar? - disse Nick graciosamente.
Wani lançou-lhe um olhar crítico - raramente apreciava piropos.
Curvaram-se à vez sobre a ampla borda do lavatório e, num
ápice, a dose de coca desapareceu. Depois, por um minuto,
ficaram plantados onde estavam, fungando e dando à cabeça,
lendo os rostos um do outro para comparação e confirmação do
efeito. Os traços de Wani pareciam amaciar-se, havia um sorriso
subtil, embora involuntário, que Nick adorava ver no momento da
consumação e da rendição. Retribuiu com um sorriso largo e
estendeu a mão para lhe afagar o pescoço e, com a outra mão,
apalpou, divertido, a erecção oblíqua de Wani. Estavam a
caminho de uma coisa tão boa... Disse: - Foda-se, isto é mesmo
coca de alta qualidade.
- Claro! - disse Wani. - Ronnie nunca me decepciona.
- Espero que não me tenhas dado demasiado - disse Nick; ainda
que, durante os trinta segundos seguintes, enquanto agarrava
em Wani e o puxava para si e o beijava voluptuosamente, tivesse
a clara percepção de que tudo se tornara possível: o longo e
penoso almoço seria afinal uma simples valsa em que ele
brincaria com Bertrand, o magnata, e encantaria toda a gente.
Suspirou e ergueu o braço esquerdo de Wani para dar uma
espreitadela para o seu famoso relógio. - Será melhor descermos
- disse.
- Está bem. - Wani recuou um passo e, rapidamente, desapertou
as calças.
- Querido, eles estão à nossa espera... - Mas, aos seus olhos, a
expressão de Wani era tão insondavelmente interessante,
domínio e rendição a um outro nível, mais profundo, as
necessidades brutais, primitivas, de um homem tão altivo, tão
distante, a tola sensação de privilégio que havia naquele
secretismo romântico; fosse como fosse, Nick ajoelhou-se e fê-lo
rodar nas suas mãos e baixou-lhe até às coxas aquelas
antiquadas e folgadas ceroulas que ele usava.

248
No caminho para baixo, encontraram o pequeno Antoine, que
andara num frenesim à procura deles e, agora, percorria as
salas, numa silenciosa cena de feliz exasperação. A camisa de
vénus só desaparecera depois de duas ou três descargas do
autoclismo, mas tinham-se despachado a tempo; aliás, ainda
dispunham de trinta segundos. Logo que os viu, o miúdo não
mais os largou; queria saber de que é que eles estavam a rir-se.
- Eu estive a mostrar ao tio Nick as minhas velhas fotografias -
disse Wani.
- Eram tão divertidas... - disse Nick, comovido com o generoso
retoque que dera à mentira, e também, de uma maneira absurda,
com a oportunidade falhada de ver as fotos.
- Oh - disse o pequeno Antoine, talvez com idêntico pesar.
- Anda cá, vem dar uma espreitadela rápida - disse Wani, e abriu
a porta da divisão por cima da sala de estar, o quarto dos pais.
Passou a mão por uma série de interruptores e todas as luzes se
acenderam, os cortinados começaram a fechar-se
automaticamente e, dir-se-ia que muito ao longe, ouviram-se os
primeiros compassos da «Primavera» de As Quatro Estações. O
pequeno Antoine exultava com esta parte e pediu a Wani que o
deixasse fazer tudo de novo, enquanto Nick apreciava o quarto
num relance jocoso. Tudo o que ali havia era de um luxo extremo
e Nick não resistiu a pôr um ar aflito só porque os seus sapatos
poderiam estar a deixar marcas na lã alta e macia da alcatifa. A
opulência do quarto resultava da mistura da pompa reluzente, do
brilho lustroso dos cortinados festonados, dos espelhos
enormes, do ónix e dos ofuscantes dourados, com coisas mais
velhas, menos vistosas e de melhor qualidade, coisas que teriam
talvez trazido de Beirute, tapetes persas e fragmentos de
estatuária romana. Em cima de uma pequena cómoda, via-se uma
cabeça de mármore branco, de Wani, possivelmente, quando ele
tinha a mesma idade que o pequeno Antoine, o rosto mais largo e
mais cheio de um Wani menino. Era deliciosa; Nick pensou que,
se pudesse levar qualquer coisa daquela casa, um objecto
qualquer, teria sido sem dúvida aquela cabeça. Bertrand e
Monique tinham quartos separados para se vestirem, cada um
deles, na sua ordem e abundância, iguais à secção de uma loja. -
Repara nisto também - disse Wani, mostrando-lhe uma pintura
enorme, representando o palácio de Buckingham, toda em tons
de amarelo, que estava no patamar.

249

- É um zitt - disse Nick, lendo a assinatura rabiscada no canto


direito do céu.
- Ele está numa de comprar Zitt - disse Wani.
- Oh, bom, é absolutamente horripilante - disse Nick.
- Ai é? - disse Wani. - Bom, então dá-lhe essa má notícia mas
delicadamente...
Desceram até à sala de jantar, com o pequeno Antoine à frente
deles, dando à cabeça como um cata-vento e dizendo para si
mesmo, vezes sem conta, com o seu forte acento francês:
«absolumonte horrripilonte». Wani apanhou-o por trás e as suas
mãos mimaram um delicioso estrangulamento.
Nick foi colocado à direita de Monique, ao lado do pequeno
Antoine, com o tio Emile à frente. O tio Emile tinha o ar de um
irmão com menos êxito na vida, flácido e sombrio em
comparação com um Bertrand cintilantemente triangular. Porém,
como se veio a ver, Emile era afinal um cunhado de Monique que
viera de Lyon para uma visita de duração indefinida; em Lyon,
Emile tinha um negócio de sucata que não estava a correr nada
bem. Enquanto assimilava esta história, Nick oferecia o seu
sorriso a toda a mesa, como se estivessem a contar-lhe uma
anedota picante; só o sobrolho, um nada franzido, de Wani, é que
o fez suspeitar que podia estar com um ar demasiado eufórico; e
se estava com um ar eufórico, os outros concluiriam que fora por
causa da volta que dera à casa. Tudo aquilo era o mágico oposto
da disposição ressacada, obtusa, vacilante, de meia hora antes.
Todos os segredos dele e de Wani pareciam metal a fundir-se,
incandescente. Porém, no caso de Wani, que mantinha um severo
autocontrolo, dir-se-ia que não valera a pena ter consumido a
coca. O velho casal de empregados trazia agora bandejas com
fatias de melão e laranja dispostas em elaborados leques. Era
notório que a casa nutria pelos citrinos uma afeição muito
especial; na sala de jantar, tal como na sala de estar, havia,
numa mesinha, um obelisco, ousadamente empilhado, de laranjas
e limões. O efeito era, ao mesmo tempo, humilde e arrogante. Um
outro Zitt, com a Bolsa e a Mansion House, todo em tons de
malva, estava pendurado entre as janelas.
- Vejo que está a admirar o novo Zitt do meu marido - comentou
Monique com uma pontinha de malícia, como se estivesse a
dizer-lhe que apreciaria muito uma segunda opinião.

250

- Ah sim...!
- Não sei se sabe, mas, de facto, ele é um pintor impressionista.
- Mm, e quase, de algum modo, um expressionista, também -
disse Nick.
- É extremamente contemporâneo - disse Monique.
- É um colorista ousado - disse Nick. - Muito ousado...
- Mas diga-me, Nick - disse Bertrand, colocando o seu
guardanapo aberto sobre a mesa, e arrumando o seu vasto
sortido de facas sobre o lustro vítreo do tampo da mesa -, então
como está o nosso amigo Gerald Fedden? - O «nosso» podia
abarcá-los apenas aos dois, ou apontar para uma amizade com a
família, ou, num sentido mais vago, que Gerald estava do lado
deles.
- Oh, não poderia estar melhor - disse Nick. - Está em grande
forma. Tremendamente ocupado, como sempre...! - Havia na
expressão de Bertrand uma boa-disposição tingida de
persistência, como que se quisesse mostrar-lhe que podiam ser
francos um com o outro; depois de ter ignorado Nick durante a
primeira meia hora, virava agora para ele o foco da sua
confiança, com o instinto de um homem que, não obstante todos
os obstáculos, consegue sempre o que quer.
- Você vive na casa dele, não é?
- Sim, vivo. Era para ficar só umas semanas e já lá estou há
quase três anos!
Bertrand deu à cabeça e aos ombros, como se aquela fosse uma
situação perfeitamente normal. Quem sabe se o tio Emile não
viria a ser uma visita de três ou mais anos... - Eu sei onde fica a
casa dos Fedden. Convidaram-nos para o concerto, já não me
lembro do que é, mas é na semana que vem, e está claro que
iremos, com todo o prazer.
- Ah, óptimo - disse Nick. - Creio que vai ser muito interessante. É
um concerto de piano, com uma jovem estrela da
Checoslováquia.
Bertrand franziu o sobrolho. - Sei que dizem que ele é muito boa
pessoa, um raio dum bom tipo!
- Não, para dizer a verdade, trata-se de... ah, está a falar de
Gerald, claro, absolutamente!
- Ele vai chegar ao topo da pirâmide. Ou quase ao topo. Qual é a
sua opinião acerca disso ?

251

- Oh, oh, não sei - disse Nick. - Eu, de política, não percebo nada.
Havia alguma crispação no rosto de Bertrand. - Bem sei, você é o
raio do esteta...
Nick era amiúde pressionado para revelar uma visão mais íntima
da personalidade e das perspectivas de Gerald, e, por norma,
vacilava na sua lealdade. Agora, disse: - Uma coisa é certa,
Gerald está loucamente apaixonado pela primeira-ministra. Mas
não há nenhuma certeza quanto à possibilidade de uma tal
paixão ser retribuída. É possível que ela esteja a fazer-se difícil. -
O pequeno Antoine deu uma dupla espreitadela furtiva a Nick,
como qualquer criança que ouve coisas que, em princípio, não
deveria ouvir, e o rosto de Bertrand crispou-se ainda mais sobre
o melão. Nick lembrou-se de que aquela família tinha uma visão
muito austera no que tocava à propriedade sexual. Mas foi
Monique quem disse:
- Oh, eles estão todos apaixonados por ela. Ela tem olhos azuis e
hipnotiza-os. - Os seus olhos escuros procuraram
estremecidamente o marido e, logo a seguir, o filho.
- É só uma espécie de amor cortês, não é verdade - disse Nick.
- Pois... - disse Wani, com um aceno da cabeça e um breve riso.
- Imagino que já tenha estado com a grande dama - disse
Bertrand.
- Nunca estive - disse Nick, num tom humilde, se bem que jovial.
Bertrand pôs uma estranha cara, os lábios dilatados e, ao mesmo
tempo, franzidos, e, por um momento, olhou fixamente para um
qualquer ponto imaginário e, sem dúvida, muito distante, até que
retomou o diálogo: - Sabe com certeza que ela é muito minha
amiga.
- Ah, sim, Wani disse-me que a conhecia.
- Claro que ela é uma grande figura da nossa era. Mas também é
uma mulher muito atenciosa. - Bertrand estava com o ar piegas
de um brutamontes que louva a gentileza de outro brutamontes. -
Ela sempre foi muito atenciosa comigo, não é verdade, meu
amor? E é claro que tenciono retribuir essa amabilidade.
- Ah a...
- Quer dizer, em termos práticos, em termos financeiros. Vi-a um
dia destes e... - Bertrand deteve-se, agitando impacientemente

252

a mão esquerda para mostrar que não ia revelar o que fora dito;
mas logo prosseguiu, com bizarra candura: - Vou fazer um
importante donativo para os fundos do Partido, e... quem sabe o
que virá depois, - Trespassou e engoliu um gomo de laranja. - Os
meus princípios são estes, meu amigo, quando alguém nos ajuda,
nós temos a obrigação de retribuir essa ajuda, de compensar
essa pessoa - e trespassou o ar com o garfo vazio.
- Ah, com certeza - disse Nick. - Não, não tenho a menor dúvida
quanto a isso. - Sentia que, inadvertidamente, se tornara o foco
de uma intensa animosidade por parte de Bertrand.
- Nesta casa, não ouvirá uma única queixa acerca dessa grande
senhora!
- Bom, e na minha também não, posso garantir-lhe!
Nick lançou um olhar rápido aos rostos submissos dos outros, e
pensou que, na realidade, em Kensington Park Gardens, a
veneração de que a «senhora» era objecto, aquele estado de
mesmerizada cogitação em que Gerald mergulhava por obra e
graça da «grande dama», encontrava pelo menos um contrapeso
nos monólogos de Catherine acerca dos sem-tecto e nas irónicas
alusões de Rachel à «outra mulher» na vida do marido.
- Pelos vistos, está a subir cada vez mais alto, o nosso amigo
Gerald - disse Bertrand, num tom mais sereno. - Diga-me, Nick,
quais são exactamente as funções dele agora?
- Faz parte da equipa do Ministério da Administração Interna -
disse Nick.
- Isso é bom. Foi rápido como um raio, o nosso amigo.
- Bom, Gerald é ambicioso. E conta com... o apreço dela.
- Vou ter uma conversa com ele quando for lá a casa. Claro que já
o vi noutras ocasiões, mas você pode apresentar-nos de novo.
- Seria uma honra - disse Nick -; absolutamente. - O homem de
casaco preto começou a remover os pratos e, nesse preciso
momento, Nick sentiu que o poder constante da coca começava
a esbater-se, era uma outra coisa que também estava a ser
removida, a exultação de meia hora antes estava a tornar-se
cada vez mais irregular e dúbia. Dentro de quatro ou cinco
minutos, daria lugar a uma insipidez ainda mais desolada do que
aquela que substituíra. Contudo, pouco depois, os criados
começaram a servir o vinho, o que provocou nele uma divertida
sensação de alívio e dependência.

253

quanto a Bertrand, Nick não deixou de reparar que bebia apenas


água mineral Malvern.
Por um bocado, tentou falar com Emile acerca do negócio de
sucata, o que constituiu um teste muito duro ao seu francês,
aprendido nas páginas de Corneille; mas Bertrand, que tinha
estado a seguir a conversa com um sorriso insincero e um
palpável sentimento de desdém, interrompeu: - Nick, Nick, não
sei o que você e o meu filho andam a tramar, eu não gosto de
fazer demasiadas perguntas...
-Oh...
- Mas espero que, em breve, comece a dar algum dinheiro.
- Vai dar, papá - disse rapidamente Wani, enquanto Nick
enrubescia de horror perante o abismo sobre o qual acabara de
saltar e intervinha de imediato:
- Não se esqueça de que eu sou o esteta! No que toca a questões
de dinheiro, não passo de um ignorante. - Tentou sorrir no meio
da vermelhidão e do calor do seu rosto, mas deu-se conta de que
Bertrand, com as suas pequenas provocações, pretendia apenas
depreciá-lo, dando dele uma imagem muito passiva. Bertrand
retorquiu:
- Você é o escritor... - o que, uma vez mais, era algo de tolerado,
uma rubrica num orçamento, mas sob escrutínio e,
provavelmente, dispensável.
Nick considerava que os escritores eram importantes e, embora
ainda não tivesse produzido nada que se visse, voltou à carga: -
Esse mesmo! - Deu-se conta, com algum atraso e um extremo
mal-estar, que ia ter de improvisar, que teria de intervir para
apoiar Wani, que teria de dar corpo a algo que, na opinião do seu
pai, não passava, por certo, de uma mera fantasia.
- Eu sei que quero começar com a revista, papá - disse Wani.
- Ah, bom - disse Bertrand, com um bufo. - Sim, uma revista pode
ser uma coisa boa. Mas, meu filho, há todo um mundo de
diferença entre dirigir uma revista e ter o raio da nossa cara
numa revista!
- Nunca seria uma revista dessas - disse Wani num tom que, de
algum modo, conseguia associar irritação e cortesia.
- Muito bem. Mas, nesse caso, é muito provável que não venda.!

254

- Vai ser uma revista de arte, fotografias de extrema qualidade,


impressão e papel de extrema qualidade, tudo coisas
extraordinariamente exóticas, edifícios, extravagantes
esculturas indianas. - Wani esquadrinhava mentalmente a lista
que Nick lhe preparara.
- Miniaturas. Tudo. - Nick sentiu que, mesmo ressacado, teria
feito melhor aquele discurso, mas havia algo de tocante e
revelador no modo como Wani fazia a promoção da revista.
- E quem é que tu achas que vai querer comprar isso?
Wani encolheu os ombros e abriu as mãos, as palmas para cima.
- Será um belo projecto.
Nick acrescentou o ponto de que Wani se esquecera. - As
pessoas vão querer coleccionar a revista, tal como gostariam de
coleccionar as coisas que a revista mostra.
Bertrand precisou de alguns segundos para ver se aquilo era ou
não era um disparate. Depois, disse: - Esse raio dessa história da
extrema qualidade... hum... cheira-me a montes de dinheiro. O
que significa que têm de cobrar dez ou quinze libras pela vossa
revista.
- E bebeu um furioso gole de água.
Wani disse: - Publicidade de extrema qualidade. Gucci, Car-tier...
Mercedes - procurando nomes muito mais sonantes do que
Watteau ou Borromini. - Os artigos de luxo são o que as pessoas
querem actualmente. É aí que está o dinheiro.
- Então quer dizer que já têm um nome para o raio da revista,
não?
- É, vamos chamar-lhe Ogee, como a empresa - disse Wani,
muito terra-a-terra.
Bertrand franziu os lábios carnudos. - Não estou a perceber...
Como é que é...? «Oh Gee!» É isso? - disse, mal-humorado, mas
todo satisfeito com o trocadilho. - Vão ter de me explicar tudo de
novo, porque nunca ninguém ouviu falar desse raio desse
«ogee».
- Pensei que Wani tinha dito «Orgy» - disse Martine(1). Wani olhou
para a outra ponta da mesa e, como aquela palavra

*1. Gee! (em vez de Jesus) é uma expressão de origem


americana que, habitualmente, traduz surpresa ou entusiasmo. O
Oh vem apenas reforçá-la. Oh Gee! poderia ser traduzido por «Oh,
chiça!» ou «Oh, incrível!», entre muitas outras possibilidades.
Orgy é, obviamente, «orgia». Num caso destes, é impossível
funcionar com equivalentes em português. (N. do T.)

255

jamais ouvida fora uma ideia sua, Nick apressou-se a explicar:


- Sabe, trata-se de uma dupla curva, igual a certas curvas que
podemos ver, por exemplo, numa janela ou numa cúpula. - Com
as mãos erguidas no ar, Nick desenhou a forma de uma meia
ampulheta, e Monique, num dos seus ocasionais acessos de
cumplicidade, imitou o gesto ao mesmo tempo que sorria para
ele; o todo fazia lembrar um salamaleque.
- Primeiro, vai num sentido, e, depois, no outro - disse ela.
- Exactamente. A dupla curva teve origem... bom, de facto teve
origem no Médio Oriente, e, depois, encontramo-la na
arquitectura inglesa a partir, sensivelmente, do século XIV. É
como a «linha da beleza» de Hogarth - explicou Nick, e, a cada
palavra que dizia, sentia-se um pouco mais ridículo -, só que,
neste caso, é claro que temos duas linhas... Suponho que a linha
da beleza é uma espécie de princípio vital, não é verdade... - Os
seus olhos percorreram a mesa, enquanto a mão mergulhava
sugestivamente a pique das alturas a que se guindara. Não seria
talvez a melhor ilustração do princípio vital.
Bertrand arrumou a faca e o garfo e pôs um sorriso venenoso.
Parecia saborear antecipadamente a sua ironia, bem como a
incerteza, os polidos sorrisos de expectativa, nos rostos dos
outros. Disse:
- Sabe, hum... Nick, eu vim para este país há cerca de vinte anos,
em 1967, por acaso o raio de uma época terrível no Líbano, só
para ver quais seriam as minhas hipóteses na vossa famosa e
moderna Londres. De maneira que faço as minhas pesquisas,
você sabe que, naquela altura, estava a começar a explosão dos
supermercados, você sabe, o self-service, o help-yourself, essas
coisas todas, você está acostumado a elas, se calhar vai lá o
raio dos dias todos ou quase: mas... naquela época...!
Obedientemente, Nick sorriu da ideia de que ele estaria
acostumadíssimo àquelas coisas. Não sabia ao certo se a
conversa em torno do termo Ogee teria acabado, ou se estaria a
ser obsequiado com uma ampla divagação exprobratória. Disse,
num tom sereno:
- Não, eu tenho consciência de toda a... da imensa revolução que
se verificou.
Como outros egotistas, Bertrand contemplou apenas com um
relance momentâneo e dubitativo a possibilidade de haver
naquelas palavras uma flecha de ironia cujo alvo era ele; fosse
como fosse,

256

correu a esmagá-la: - Mas é claro que se ventilou! É mesmo o raio


de uma revolução! - Virou-se e, com um gesto, ordenou ao velho
criado que servisse mais vinho aos outros; com um ar de
paciência adestrada, observou a cena, enquanto o Borgonha
remoinhava nos copos de pé de cristal lapidado. - Sabe, eu tive
uma frutaria, lá para as bandas de Finchley, foi com ela que eu
me lancei nos negócios - E, com o seu outro braço, acenou
afectuosamente para o distante local e o não menos distante
tempo. - Comprei o raio da loja, mandei vir de avião os citrinos
frescos, os quais, já agora, deixe-me que lhe diga, eram um
produto nosso, muito nosso, nós cultivávamos essas coisas
todas, não tínhamos de as mandar vir do raio de outro país
qualquer. O Líbano, uma grande terra para cultivar fruta! Sabe o
que é que tem vindo do Líbano nestes últimos vinte anos? Fruta e
massa cinzenta, fruta e talento. Quem tem alguma massa
cinzenta ou algum talento abandona o raio daquele país.
- Mm, por causa da guerra civil, não é verdade. - Nick quisera
aprender alguma coisa sobre os últimos vinte anos da história do
Líbano, mas, sempre que falava disso, Wani mostrava-se evasivo
e magoado, e, agora, eis que o tema reemergia. Não queria
secundar a severa análise que o anfitrião fazia do seu próprio
país; o assunto, por si só, tinha já qualquer coisa de terreno
minado.
Monique disse: - A nossa casa foi abatida, está a ver, por uma
bomba - como se não estivesse à espera de que a ouvissem.
- Oh, que horror - disse Nick, num tom grato, pois sempre era
outra voz na sala.
- Sim - disse ela -, foi muito terrível.
- Como diz a mãe de Antoine - interveio Bertrand -, a casa da
nossa família foi virtualmente destruída.
- Era uma casa antiga? - perguntou Nick a Monique.
- Sim, era muito antiga. Não tão antiga como esta, claro - e
estremeceu um nada, como se a casa de Lowndes Square
datasse da Idade Média. - Nós temos fotografias, muitas...
- Oh, adoraria vê-las - disse Nick -, interesso-me tanto por esse
género de coisas.
- Seja como for - voltou Bertrand -, em 1969, abro o primeiro Mira
Mart, lá para as bandas de Finchley, lá para as bandas de
Finchley, ainda lá está hoje, se quiser, pode ir até lá e ver a loja.
Sabe qual é o segredo do Mira Mart?
257

- Hum...
- O segredo foi aquilo que eu vi, foi aquilo que vocês tinham em
Londres, naqueles tempos, já lá vão vinte anos. Vocês tinham os
supermercados e tinham as velhas lojas locais, as lojas de
esquina que é uma coisa que existe há centenas de anos. De
maneira que, o que é que eu faço? Junto o raio das duas coisas,
o supermercado e a loja de esquina, e faço o mini-mart, com todo
o tipo de coisas que você pode comprar no Tesco ou num raio de
um supermercado qualquer, mas mantendo aquele ambiente
local, aquele ambiente de loja de esquina. - Ergueu o seu copo e
bebeu como que fazendo um brinde ao seu próprio engenho. - E
sabe qual é a outra coisa, claro?
- Oh!,hum...
- As horas.
- As horas, claro...
- Abrir cedo e fechar tarde, apanhar as pessoas antes do trabalho
e apanhar as pessoas depois do trabalho, não apenas o raio das
simpáticas donas de casa que saem para comprar um maço de
cigarros e dar dois dedos de conversa.
Nick não estava certo se aquele seria o tom especial de Bertrand
para falar com um idiota ou se a simplicidade do tom reflectiria a
sua visão, muito própria, das coisas. Disse, com uma nota crítica:
- Mas algumas das lojas não são nada assim, pois não? Aquela
que existe em Notting Hill, por exemplo, onde nós vamos sempre.
É verdadeiramente magnífica - e deu aos ombros, em sinal de
respeito, ainda que um respeito algo entorpecido.
- Bom, agora você está a falar dos Food Halls! O que dá o raio de
duas coisas diferentes: os Mira Marts e os Mira Food Halls...
Sendo que estes últimos, os Food Halls, são para o raio das
zonas ricas, dos bairros finos. Temos uma loja dessas aqui perto.
Você sabe de onde é que isso vem.
- Do Harrods - disse Wani.
Bertrand lançou-lhe um rápido olhar furibundo. - Claro que vem
do Harrods. A mãe do raio de todos os Food Halls em todo o
mundo!
- Adoro ir ao Harrods Food Hall - disse Monique -, e ver as
grandes... homards...

258

- As lagostas - sussurrou Wani, sem olhar para ela, como se fosse


sua função, uma função implícita, servir de intérprete à mãe.
- Oh, eu sei! - disse Monique, com um sorriso de tímida rebelião.
Nick via-os amiúde a passear pelo Harrods, por vezes, quem
sabe, passariam dias inteiros no Harrods, mesmo ali ao virar da
esquina, mas um outro mundo de possibilidades, um mundo para
toda a gente que tivesse a carteira muito bem recheada.
Como um mestre-escola severo, embora justo, Bertrand deu-lhes
uns pacientes cinco segundos; por fim, disse: - De maneira que
agora, sabe, Nick, tenho trinta e oito Mira Food Halls por todo o
país, em Harrogate tenho um, em Altrincham acabo de abrir
outro; e mais de oitocentos Mira Marts, um raio de um número,
hã? - De súbito, mostrava-se muito cordial, quase dava aos
ombros, também ele, perante a fácil imensidão daquilo tudo. - É
uma grande história, não?
- Espantosa - disse Nick. - É muito amável da sua parte em
contar-me uma história que deve conhecer tão bem -
emprestando à sua expressão uma solenidade especial. Via o
luminoso anúncio cor de laranja do Notting Hill Food Hall, aonde
o próprio Gerald, por vezes, dava um salto, já a noite ia alta; com
um cesto na mão e um ar retraído, como se toda a gente pudesse
reconhecê-lo, comprava pâté e chocolates suíços. E via também
o Mira Mart da esquina em Barwick, com os seus produtos, muito
mais tristes, em prateleiras que ameaçavam ceder, primos
remotos e pobres dos obeliscos de Knightsbridge(1), e quase
sentia o denso e râncido cheiro de uma loja de tectos baixos
onde tudo estava misturado. Uma laranja - tinha de ser - coroada
por duas folhas verdes era o emblema da cadeia. Depois, olhou
para Wani, que, absolutamente inexpressivo, debicava mais do
que comia (a coca matava o apetite). Tinha os olhos fixos no
prato, ou no reluzente verniz vermelho para lá do prato; era
possível que tivesse estado a escutar o discurso do pai, num
jeito pensativo, meditativo, mas Nick sabia que, entretanto, Wani
se escapulira para um mundo que o seu pai nunca havia
imaginado.

*1. Também conhecido como o «palácio» de Knightsbridge, ou


seja, os grandes armazéns Harrods, propriedade, como é sabido,
de Mohamed Al Fayed. Por mera curiosidade, refira-se que estes
grandes armazéns londrinos começaram também por baixo - uma
pequena mercearia situada na zona, em fins do século XIX. (N. do
T.)

259

A sua submissividade face à tirania de Bertrand era o preço da


sua liberdade. Também o tio Emile não despegava os olhos da
mesa, como que esmagado - completamente - pela iniciativa e
pelo êxito do cunhado; o próprio Nick se apercebeu num ápice
dos encantos de uma fuga para o Harrods com as senhoras.
Até que Bertrand acabou mesmo por dizer: - Tudo isto será teu
um dia, meu filho.
- Ah, meu pobre filho! - protestou Monique.
- Eu sei, eu sei - disse Bertrand com uma expressão irritada que
logo deu lugar a um sorriso verdadeiramente aterrador. - Sem
dúvida que esse dia ainda vem muito longe. Vamos deixá-lo ter
as suas revistas e os seus filmes. Vamos deixá-lo aprender o seu
negócio.
Wani disse: - Obrigado, papá - mas o seu sorriso foi para a mãe, e
o seu olhar, breve, porém eloquente, enquanto o sorriso se
esbatia, foi para Nick. Sentia-se à vontade com o estilo do pai,
com a sua jactância nunca contraditada, mas permitir que um
amigo assistisse àqueles números revelava uma confiança
especial nesse amigo. Wani raramente enrubescia ou mostrava
embaraço, fosse de que tipo fosse, para além do sussurrado tom
autopunitivo com que oferecia um lugar a uma senhora ou
confessava a sua ignorância relativamente a uma coisa trivial.
Nick absorveu o seu breve olhar e o secreto calor daquilo que
esse olhar reconhecia.
- Não, não - disse Bertrand, e baixou rapidamente a cabeça, o
queixo quase roçando o peito, como se tivesse sido injustamente
criticado. - Wani é dono e senhor de si mesmo em todas as
coisas da sua vida. Para já, parece que não tem grande interesse
no negócio da fruta e dos legumes. Óptimo. - Abriu as mãos. - Tal
como parece que não tem grande interesse em casar-se com o
raio da sua adorável noiva. Mas nós não fazemos nada, a única
coisa que fazemos é esperar o tempo todo que for preciso. Hã,
Wani? - E riu-se sozinho da sua franqueza, como que para
suavizar o efeito, mas, na realidade, reconhecendo-o e
reforçando-o.
- Primeiro, vamos ganhar montes de dinheiro - disse Wani. - O
papá vai ver.
Bertrand olhou para Nick com um ar conspiratório. - Mas diga-
me, Nick, você sabe qual é a coisa realmente importante,

260

e muito simples, no que diz respeito ao dinheiro? A coisa


realmente importante...
Num jeito delicado, Nick pôs o seu guardanapo em cima da mesa
e murmurou: - Lamento imenso... mas é que tenho mesmo de... -
afastando a cadeira e perguntando-se se aquele atropelo à
etiqueta seria ainda mais grave em Beirute do que ali.
- Hã...? Ah, é o raio da sua bexiga que aguenta pouco...! - disse
Bertrand, como se não estivesse à espera de outra coisa. - É tal
e qual o meu filho. - Nick estava pronto a aceitar qualquer
imputação, desde que lhe permitisse abandonar a sala; e Wani,
com um ar enfadado, quase impaciente, levantou-se também e
disse:
- Eu indico-te o caminho.

261

9.

O afinador veio de manhã e, depois, a pianista em pessoa, a


pequena Nina Não-sei-quê-ova, como Gerald lhe chamava, veio
das duas às cinco para praticar; em suma, um dia extenuante. O
afinador era um sádico de casaco de malha que se desfazia em
sobranceiras agonias perante o estado em que o piano
supostamente se encontrava, e que pensava o pior possível da
sua tonalidade e, em particular, da ínfima dilação das notas e
daquele brilho que fazia pensar em sinos - precisamente os dois
traços que lhe davam todo o seu encanto. («Oh», comentou
Rachel a certa altura, «eu sei que Liszt gostava muito de tocar
nele...»). De quando em quando, interrompia a impiedosa
escalada do teclado para disparar vigorosos acordes e arpejos,
com o ar de um pianista de concerto frustrado, o que ainda era
pior do que a afinação. A pequena Nina - também ela - deixou-os
como loucos com os seus fragmentos de Chopin e Schubert, os
quais se prolongavam o tempo suficiente para prender e embalar
o coração, até que, sem mais nem menos, o largavam de uma
altura considerável - e isso repetiu-se vezes sem conta. Não lhe
faltava temperamento e era dona de uma temível mão esquerda.
Atacava o Scherzo No. 2 de Chopin como um estafeta arrancando
com a mota. Quando a pianista acabou, Nick ajudou Elena a
trazer e a arrumar as velhas cadeiras douradas de salão de baile
que estavam guardadas no trou de gloire. Os sofás foram
empurrados para novos alinhamentos, imponentes arranjos de
flores subiram as escadas com as pernas de Elena, e a sala
ganhou

262

a intimidante aparência de que estava pronta para a runção. Nick


tinha mais uma tarefa na sua agenda - telefonar para Ronnie - e,
enquanto os ponteiros se encaminhavam rapidamente para as
seis, espiava o relógio tão nervosamente como se estivesse ele
mesmo a dar um recital.
Saiu direito a uma cabina telefónica que havia em Ladbroke
Grove, mas era uma cabina dupla e aberta, com escassos
centímetros a separar as pessoas, e pensou que o homem que lá
estava era muito capaz de ouvir o que ele dizia; aliás, até parecia
que o homem estava à espera dele, pois nem sequer usava o
telefone, isso era bem visível, o homem estava apenas encostado
à cabina, à espera sabe-se lá do quê. Além do mais, ficava muito
perto de casa; era como se pudesse envolver Gerald naquela
história. Continuou a descer a colina e, a certa altura, meteu por
uma rua que parecia muito mais adequada ao tráfico de droga; e,
de facto, um homem que poderia muito bem passar por um
drogado acabava de sair de uma cabina telefónica numa esquina
da rua. Nick entrou na cabina e, naquele meio silêncio abafadiço,
tirou a carteira e procurou o papel onde rabiscara o número de
telefone, desejoso de ter já ali uma linha de coca, ou pelo menos
um gin tónico, enfim, uma bateria qualquer capaz de o
recarregar. Lamentou que Wani não tivesse podido fazer aquilo,
como de costume, no carro, com o Talkman. Como lhe dera o
dinheiro, Wani gostava de o pôr à prova, de lhe lançar
determinados desafios, os quais, por norma, eram tarefas que
ele poderia executar com muito mais facilidade. Wani garantia
nunca ter usado uma cabina telefónica; aliás, também nunca
andara de autocarro - devia ser uma experiência aterradora, dizia
ele. Portanto, nunca respirara aquele ar horrível, aquele fedor a
plástico preto, a mijo velho, a fumo de tabaco idem, aquele bafo,
feito de muitos bafos, do bocal.
- Tá.
- Oh, olá... é de casa de Ronnie? -É.
- Oh, olá! Fala Nick - disse Nick, com um sorriso urgente para um
sítio lá muito em baixo na parede da cabina. Era como ligar para
um tipo por quem se sentira atraído numa festa, só que muito
mais assustador. - Lembras-te, eu sou um amigo de, hum,
Antony...

263

Ronnie reflectiu um longo momento, enquanto Nick ofegava


encorajadoramente para o telefone. - Não conheço nenhum
Antony. Não. Não será Andy?
Nick riu-se baixinho, de tão nervoso que estava. - Estás a ver um
tipo assim libanês, tem um Mercedes branco... por vezes usa o
nomedeWani...
- Certo, fixe, já chega! É, Ronnie... - disse Ronnie, e rompeu num
risinho que tanto podia ser afectuoso como trocista, de tal modo
que, por um momento, Nick ficou sem perceber muito bem o que
é que ele próprio pensava de Wani, qualquer visão dele parecia
plausível. - O homem do telefone portátil. Ai ele é libanês? Não
sabia que era libanês.
- Wani? Bom, realmente ele nasceu em Beirute, embora tenha
estudado aqui, já que, de facto, vive em Londres desde os dez
anos - disse Nick, deixando-se enredar, como de costume, nos
meandros das orações subordinadas.
- ... certo... - disse Ronnie, passado um instante. - Bom, nesse
caso, suponho que queres ver-me. Por causa daquilo.
O que Ronnie tinha de bom, como dizia Wani, era que nunca
decepcionava ninguém. O material era de primeira, Ronnie vendia
a alguns nomes sonantes, e, se o preço - cento e vinte libras o
grama - era um bocado puxado, o facto de fazer um desconto a
quem comprasse um quarto de onça - que ficava por trezentos e
cinquenta - redundava, sem sombra de dúvida, numa pechincha.
(Um quarto de onça igual a sete gramas: esse era o único
equivalente métrico que Nick conseguira memorizar.) O lado
menos atraente de Ronnie era um estranho comportamento, feito
de demoras e vagares, que passaria por indolência se não fosse
também uma espécie de vigilância. Nunca se apressava, nunca
chegava a horas, tinha uma memória porosa e confusa. Nick só
estivera com ele uma vez, quando tinham dado uma volta ao
quarteirão no seu Toyota vermelho; não deixara de reparar na
simplicidade com que a transacção era realizada. Ronnie era um
jamaicano perfeitamente assimilado - mais um londrino que outra
coisa - com uma cabeça sobre o longo, toda rapada, e um olhar
melancólico. Falava muito de problemas com namoradas, talvez
apenas para não haver confusões. A sua voz era um murmúrio
íntimo e, como Ronnie lhes estava

264

a dar algo que eles queriam, Nick achara-o simultaneamente


sedutor e tolerável.
Naquele dia, porém, tudo lhe parecia muito menos feliz. Ronnie
pediu-lhe que ligasse dez minutos depois. Nick ligou e o diálogo
da primeira chamada foi repetido quase tintim por tintim. Voltou
a pedir-lhe que ligasse passados dez minutos, para confirmar se
vinha a caminho. Depois de cada chamada, Nick ficava a fazer
tempo nas ruas e sentia-se, de uma forma gritante, um
delinquente, para além de vulnerável, o que não admirava, visto
que tinha trezentas e cinquenta libras no bolso, num rolo
apertado com elásticos. De súbito, a zona parecia-lhe infestada
de carros da polícia. Durante vários minutos, um helicóptero
matraqueou os ares. Nick perguntou-se como é que explicaria o
dinheiro à polícia, mas depois pensou que era mais provável que
a polícia só atacasse depois de ele ter entrado no carro.
Perguntou-se se Gerald seria capaz de impedir que os jornais
falassem do caso, se eles seriam capazes de meter o nome de
Gerald nos jornais, aquilo era mais do que ordinário e inseguro,
Gerald podia perder o seu cargo se se soubesse que havia
consumo de drogas na sua casa. A quantos anos seria
condenado? Dez? Para um primeiro crime... E depois, santo Deus,
como é que um panasca fracote e bonitote e com um acento
oxfordiano ia sobreviver na prisão? A prisão em peso ia querer
comer-lhe o cu. Já se via a chorar convulsivamente numa casa
de banho sem porta. Mas talvez pudesse contar com as
referências abonatórias do professor Ettrick, seria uma grande
ajuda, ou mesmo de alguém do Ministério da Administração
Interna - sim, talvez Gerald não o abandonasse por completo!
Encontrava-se já no sítio combinado, a esquina junto ao
Chepstow Castle - chegara um ou dois minutos antes.
Empoleirou-se numa das mesas de piquenique que havia no
exterior. O pub propriamente dito estava fechado, uma luz
nebulosa derramava-se na rua através do revestimento de
plástico, enquanto as obras prosseguiam depois do horário
normal de trabalho, uma nova cervejaria comprara aquele
espaço todo, estavam a deitar abaixo os pequenos e antigos
bares, iam transformá-los numa única e enorme sala, mais
espaçosa, claro, e mais acolhedora, diziam. Doze minutos
passaram. Era muito suspeito, o modo como aquele homem na
paragem de autocarro olhava para ele, aliás, não parava de olhar
para ele, e a verdade

265
é que nunca entrava para autocarro nenhum. Ronnie estava a
ficar desleixado, era óbvio que a polícia tinha o telefone dele sob
escuta, seria um golpe em cheio, rápido e vigoroso, e num
segundo, toda a gente da rua, o cego, o rapaz das pizzas, a
senhora com o cão, tiraria a máscara - não passavam de polícias
à paisana. O carro encostou, Nick avançou como quem não quer
a coisa, entrou, e logo arrancaram para a volta ao quarteirão.
- Como é que isso vai, Rick? - disse Ronnie, e a sua melancólica
cabeça não se mexia um milímetro, ao contrário do seu olhar,
que se mexia tanto quanto podia mexer-se, para a direita e para
a esquerda e também para o espelho retrovisor. Nick riu-se e
pigarreou. - Muito bem, obrigado. - Uma pessoa ficava muito
baixa naqueles assentos do Célica, Ronnie ainda por cima tinha
umas pernas muito compridas, de maneira que os seus braços
assentavam nos joelhos, como um rapazito num daqueles
carrinhos do karting, os dedos também eram muito compridos e,
para manobrar o volante, Ronnie usava a barra transversal, em
vez do aro. - Sim? - disse Ronnie. - Bom, isso é fixe. E então como
é que vai o Ronnie?
Nick riu-se nervosamente uma vez mais. - Oh, ele está óptimo,
anda muito ocupado. - Era um mundo maravilhosamente
impreciso, aquele em que Ronnie vivia, e talvez ele gostasse que
as coisas fossem assim, todos os seus clientes reduzidos a
diminutivos ou alcunhas ou nomes trocados, além de seguro era
sensato. Voltou a olhar para o espelho e, ao mesmo tempo, levou
a mão ao bolso do colete e passou a Nick o embrulhinho tão bem
feito, invisível na sua mão fechada. Nick estava pronto para isso,
mas, quanto ao rolo de notas, foi uma carga de trabalhos para o
tirar do bolso. Ronnie acelerou num sinal amarelo e, nesse
momento, Nick deu-se conta de que estava a infringir a lei
porque não tinha posto o cinto de segurança. Ronnie também
não tinha posto o cinto, esse era o tipo de mundo em que ele se
movia, e Nick pensou que se pusesse o seu cinto agora, quer
dizer, já estava há alguns minutos no carro e só agora é que ia
pôr o cinto, talvez Ronnie ficasse magoado, não era? O passeio
também já devia estar a acabar, de maneira que as hipóteses de
um acidente eram muito escassas. Mas seria horrível, se a
polícia os mandasse encostar por não terem posto o cinto de
segurança, e, depois, é claro que os agentes iam fazer-lhe
perguntas e, depois das perguntas, seria revistado... Deu uma
cotovelada no braço de Ronnie,

266

que pegou no dinheiro e logo o fez desaparecer uma vez mais


sem olhar.
Pararam nas traseiras da igreja que ficava no cimo de Ladbroke
Grove, no umbroso quarto-crescente de plátanos. - Muito
obrigado - disse Nick. Tinha mesmo de se apressar, mas não
queria parecer desagradável. Com um ar pensativo, Ronnie
contemplava a vista através do pára-brisas.
- Isto aqui é uma igreja antiga, Nick - disse ele. - Deve ser antiga.
- É, bom, é uma igreja vitoriana, suponho eu, não é? - disse Nick,
que, de facto, sabia tudo o que havia para saber acerca da
igreja.
- Ai é? - disse Ronnie e pôs-se a dar à cabeça. - Fogo, a
quantidade de coisas antigas que há por aqui.
Nick não estava a perceber aonde é que ele queria chegar. Disse:
- Não serão assim tão antigas, talvez de 1840 ou à volta disso? -
Sabia que nem toda a gente tinha uma noção precisa do que era
a história, uma imagem útil, como ele tinha, dos séculos como
uma sucessão de salas, um sem-número de salas numa enfiada.
Durante meio segundo, passou em revista aquilo que sabia
acerca da igreja, o retábulo do altar tinha sido concebido por
Aston Webb, a igreja fora construída no local onde, muito tempo
antes, se erguera a tribuna de honra de um hipódromo. Era uma
curiosidade pertinazmente gótica numa rua de estuque.
- Podes crer, pá, vou mudar-me para aqui, caralhos me fodam se
não me mudo para aqui - disse Ronnie, no seu murmúrio
queixoso.
- Mm, devias mudar-te - disse Nick, sem saber por que raio é que
Ronnie estaria a dizer-lhe aquilo. Seria para lhe ser agradável?
Ou seria alguma piada, enfim, francamente tortuosa? Ainda
assim, excitava-o a ideia de o ter como vizinho. Ronnie era um
tipo sexy, à sua maneira, uma maneira desfigurada, espectral...
- Podes crer, tenho mesmo de me afastar daquela mulher - e
abanou a cabeça, rendendo-se a um riso sem ilusões. - Oh pá,
espero que não estejas com problemas destes, com mulheres, ou
estás, Rick?
- Oh... não... não estou - disse Nick. - As coisas estão
assim tão mal?

267

- Podes crer que estão - disse Ronnie.


Nick dava-se conta que Ronnie era muito capaz de ser um tipo
um bocado insuportável; além disso, era natural que o seu tipo
de trabalho incomodasse, e muito, um certo tipo de rapariga.
Apetecia-lhe baixar-se e arrancar à braguilha o seu pénis,
provavelmente um belo e comprido exemplar, e dar-lhe aquele
consolo que um homem compreende de um modo tão perfeito -
ali mesmo, no carro, na sombra mosqueada que caía sobre o
pára-brisas. Mas Ronnie tinha de ir andando - ofereceu-lhe a sua
mão, que descia, num estreito ângulo, de um cotovelo erguido
bem alto.
Nick saiu do carro, virou-lhe costas e começou a caminhar na
direcção da casa, que ficava a apenas duzentos metros dali. Na
rua, sentiu-se de novo aperreado por aquela sensação de perigo,
e as pessoas que passavam por ele, no seu trajecto do trabalho
para casa, carregavam o sobrolho e soltavam risos de puro
escárnio ao verem que ele levava um minúsculo pacote, um erro
crasso, uma pesada condenação, bem apertado na sua mão
enfiada no bolso, pronto para, no tão temido momento, ser
atirado para uma sarjeta. Porém, quando começou a subir os
degraus da casa e olhou para a esquerda e para a direita,
invadiu-o o arrebatador - e reparador - sentimento de que
escapara impune. Claro que ninguém sabia, a coisa era
totalmente segura, ninguém tinha visto coisa nenhuma, e aquilo
ali?, oh, apenas um carro desconhecido que, por um segundo,
passava lento ao fundo da rua. E, agora, uma torrente de prazer
estava à espera que a libertassem. Atravessou à pressa a sala de
entrada, e à pressa subiu as escadas de pedra, já havia vozes na
sala de estar, a tagarelice latida e gemida das trivialidades
inaugurais dos primeiros convidados, para cima era o caminho,
sempre para cima, sentia já o rangido familiar das escadas das
águas-furtadas, entrava agora no seu quarto, quente e
silencioso, o quarto estava à espera dele com o canto dos
pássaros que entrava pela janela e a cama reflectida no espelho
do roupeiro. Fechou a porta, deu a volta à chave, e, durante cinco
sorridentes minutos, mudou de camisa, pôs os botões de punho e
a gravata e enfiou as calças de cerimónia, tudo isso
entrecortado com as diversas tarefas impostas pela coca,
primeiro despejar o conteúdo do pacote, depois moê-la bem
moída e snifar uma linha só para experimentar o material, e, logo
a seguir, esconder o resto na secretária, desenrolar a nota e
voltar a enrolá-la

268

mas ao contrário, limpar o tampo da secretária com um dedo e o


dedo nas gengivas. Por fim, enfiou o casaco, atacou os sapatos,
correu para a sala de estar e conversou brilhantemente com Sir
Maurice Tipper a propósito do test match(1).
Nick sentou-se no extremo de uma fila, como se fora um
arrumador. Do sítio onde estava, conseguia ver o patamar do
primeiro piso, onde a pequena Nina Glaserova, com o seu longo
cabelo ruivo apanhado numa trança que lhe descia pelas costas,
estava de pé e de olhos fixos, não na sala, mas num ponto muito
concreto da escura madeira de carvalho da soleira da porta. Os
olhos dela pareciam trespassar o ponto que fixavam e
embrenhar-se num espaço onde Chopin, Schubert e Beethoven
aguardavam que lhes fosse feita justiça. Escutou a história que
Gerald estava a contar - o pai, um famoso dissidente - preso -
bolsa para estudar no estrangeiro recusada - sem que parecesse
reconhecer nela a sua própria história, e sem saber (como
poderia ela saber?) que dissidente, de um modo geral, não era
um termo apreciativo no léxico de Gerald, o qual evocou - sem
grande ênfase - a liberdade artística, para logo passar a uma
piada, que ela não percebeu, ainda que a tenha levado a erguer
os olhos, na direcção da sala, das filas, daqueles absolutos
desconhecidos que se riam da piada, daquelas pessoas - talvez
muito importantes - que ela tinha por missão encantar. As
palmas começaram, Nick acenou-lhe num jeito encorajador, ela
fez uma breve pausa e logo avançou rapidamente por entre o
público, com um ar de criança desamparada, é certo, mas tão
resoluta, tão decidida, que um suspiro de ternura chocada
pareceu soar como um tom de fundo, brando, suave, sob os
aplausos. A pequena Nina fez uma vénia rápida, sentou-se e
começou de imediato - e foi quase divertido, bem como
excitante, quando a invocação inicial do Scherzo de Chopin
ressoou na sala como uma mota a arrancar.
Estavam cerca de cinquenta pessoas na sala, uma frouxa
agregação de família, colegas e amigos. Nina Glaserova
equivalia a uma quantidade desconhecida e as pretensões de
Gerald em relação a ela

*1. Jogo de cricket ou de rugby entre duas selecções nacionais.


(N. do T.)

269

eram tanto políticas como artísticas, esperava que o concerto


fosse um êxito, mas não estava a fazer um grande esforço social.
Ao lado de Nick, um homem do gabinete do Conselho de
Ministros, cujo traço fisionómico mais saliente era uma quase
ausência de lábios, desatou à procura do programa, uma simples
folha de papel; dir-se-ia que, para ele, a música surgira no meio
daquilo tudo como uma surpresa ligeiramente desagradável - e
não deixou de provocar algum tumulto tanto com o papel, como
com a cadeira. Uma ou duas pessoas fecharam o estojo dos
óculos com o característico estalido; eram espectadores bem-
intencionados, visto que, ao porem os óculos, procuravam
apenas não se perder naquela avassaladora torrente de som.
Tudo aquilo era tão súbito e sério, o piano trepidava, o som
vibrava nas tábuas do soalho, e, nalguns rostos, podia ler-se a
sugestão de que talvez não fosse de muito bom tom fazer um tal
escarcéu na casa de uma pessoa.
Nick podia ver a distante curva da fila da frente, com Lady
Partridge numa ponta, ao lado de Bertrand Ouradi e esposa, e,
logo a seguir, Wani, em anguloso perfil contra a tampa erguida do
piano. Catherine, mesmo atrás deles, encostava a cabeça no
ombro do namorado, Jasper de seu nome, e, do outro lado, Polly
Thompson, como quem não queria a coisa, já se tinha encostado
todo a Jasper. Ao lado de Polly, estava Morgan, do Central
Office(1), uma mulher jovem, de aparência fria e dura, que Polly
levara ao concerto como se ninguém fosse ficar surpreendido.
Para ver Nina, Nick tinha de estar constantemente a esticar o
pescoço, tanto para a direita como para a esquerda, a fim de
evitar a cabeçorra grisalha de Norman Kent, que era tão sensível
à música como aos conservadores, e não parava de se mexer na
sua cadeira. O colarinho coçado do seu blusão de ganga não
deixava de causar sensação no meio de uma dúzia de variações
em torno do mesmo tema, a saber, o tecido escuro de risca fina
dos outros fatos. Penny estava sentada ao lado do pai e toda se
encostava a ele para o acalmar e também para lhe agradecer por
ter vindo. Nick perguntou-se o que pensaria Norman Kent de
Nina, perguntou-se o que pensaria ele próprio de Nina, sentia-se
demasiado subjugado, demasiado invadido, pelo som, pelo
assombroso fenómeno do som,

270

para decidir se ela seria realmente de novo a abertura, aquele


ribombar admonitório, aquela transição brusca, tão destemida
quanto precisa. Não havia dúvida de que Nina fora ferozmente
treinada, fazia lembrar uma daquelas pequenas e implacáveis
ginastas que, num salto arriscado, se escapuliam da Cortina de
Ferro, era como se - também ela - fizesse espirais e acrobacias
ao longo do teclado. Quando a secção média, dolente-mente
interrogativa, começou a ganhar peso, Nina impôs uma intrépida
mudança de velocidade. Reagia aos efeitos que produzia com
uma mímica e uma gesticulação brutais, de tal forma que o
espectador chegava a duvidar que ela conhecesse a causa
desses efeitos. Para o programa, Nick surripiara alguma
informação das contracapas de vários discos, a fim de dar um ar
profissional às coisas, e incluíra a apreciação de Schumann
acerca do Scherzo em Si bemol menor: «uma peça transbordante
de ternura, audácia, amor e desprezo.» Repetia as palavras para
si mesmo enquanto, vencendo as filas, o seu olhar se fixava na
cabeça do amante.
Concluído o Chopin, Nina agradeceu e saiu apressadamente, e
Nick viu-a de novo no patamar, aguardando, de facto como
alguém prestes a saltar, demasiado jovem e orgulhosa para dar
muita importância aos aplausos, ou para saber o que fazer com
eles. Gerald batia palmas no seu jeito ruidoso, regular e
insincero. Uma ou duas pessoas levantaram-se, o homem do
gabinete do Conselho de Ministros estudou o item seguinte do
programa, e a senhora atrás de Nick disse: - Não,
lamentavelmente estivemos em Badminton(2) nesse fim-de-
semana.
Seguiam-se dois dos Impromptus de Schubert, o Dó menor,
primeiro, e, depois, o Mi bemol maior, aquele que fazia lembrar as
águas de um rio e que exigia uma irrepreensível uniformidade de
toque. Nick ouvira-a tocar as primeiras notas do Mi bemol maior
uma dúzia de vezes - à quinta ou sexta vez, já lhe gritava
mentalmente que não parasse, que continuasse até ao fim. Pois
bem, era isso que ela estava a fazer agora, observando a lufa-lufa
das suas próprias mãos como se elas fossem dois espantosos
autómatos que

*1. Central Office é, neste caso, o Conservative Central Office,


ou seja, a sede nacional do Partido Conservador em Londres. (N.
do T.)
2. Badminton House, residência (construída nos séculos
XVII/XVIII) do Duque de Beaufort, situada no Gloucestershire, e
famosa (entre outras razões) pelos concursos de equitação que
organiza todos os anos. (N. do T.)

271

ela pusera em movimento depois de ter carregado no botão


certo, e que se alvoroçavam numa perfeita sincronia para
produzirem aquele prateado fluxo de som. Nina dava àquilo um ar
vagamente de exercício, mas, se o ouvinte estivesse atento, não
tardaria a descobrir que aquela peça era a vida ela mesma, tanto
na sua impetuosidade como na sua evanescência. Nessa peça de
Schubert, as modulações eram como instantes de vertigem. Nick
sentia agora que ela tocara a secção média do Si menor de uma
forma demasiado abrupta, de tal forma que a coerência
visionária da peça se perdera por completo.
Deu por si a fitar a mãe de Gerald e o pai de Wani, que faziam um
curioso par. Bertrand, no vistoso invólucro do seu fato, estava
muito, muito quieto, em sinal de respeito pelo enfadonho
protocolo do evento; de facto, só o fino e negro bigode
denunciava a sua impaciência, enquanto ele franzia e dilatava os
lábios em involuntários beijinhos. A seu lado, Lady Partridge, a
cabeça empinada, o rosto uma máscara de rouge e pó
bronzeador, como alguém que acabasse de chegar de umas
férias na neve, também não estava lá. De quando em quando,
olhava de relance para o vizinho e a esposa, sendo que, no caso
desta, havia o atractivo de um figurino francamente
desmazelado. Nick sabia que, para a mãe de Gerald, era muito
perturbador ficar sentada ao lado de um árabe, mas havia
qualquer coisa que, também nela, parecia inflamar-se perante a
proximidade de tão descomunal fortuna.
Antes do concerto, tinham decidido que não haveria intervalo, de
modo que, depois do Schubert, Gerald levantou-se e disse, no
seu tom penetrante e jovial, o tom de um comandante entre
amigos, que passariam de imediato à última peça, a Sonata «Les
Adieux» de Beethoven, e, depois, todos poderiam deleitar-se com
mais bebidas e um salmão que era uma verdadeira especialidade
- uma ideia que teve o seu quinhão de aplausos. Nina voltou à
sala com um ar de quem tinha sofrido uma grave
desconsideração; ao mesmo tempo, porém, parecia duplamente
determinada; Nick aplaudiu-a com um vigor extremo e, quando
ela tocou as três primeiras notas descendentes, «Le-be-wohl»(1),
sentiu um arrepio pela espinha acima. O homem ao seu lado
mirou-o com um ar desconfiado.

*1. Em alemão, no original. (N. do T.)

272

Mas, para Nick, escutar música, a grande música, aquela música


que era, toda ela, necessidade, e, para mais, ali em casa, onde o
soalho estremecia com a súbita resolução do Allegro, e o piano
vibrava sobre as suas rodas metálicas presas - bom, era uma
experiência assombrosa. Sentia-se abalado e, ao mesmo tempo,
pacificado - a música exprimia a vida e explicava-a e obrigava
aquele que a escutava a questionar-se de novo. Se acreditava
nalguma coisa, então era nisso que acreditava. Claro que nem
toda a gente sentia o mesmo: Lady Kimbolton - ali, não muito
longe dele -, a incansável angariadora de fundos para o Partido,
mantinha um cauteloso cenho carregado, enquanto, com
extrema discrição, espreitava os compromissos da sua agenda;
depois, chocalhando as braceletes, voltou a concentrar-se na
música - mas era a atenção cinzenta, mera boa educação, da
classe dirigente; para ela, estar ali era o mesmo que estar numa
igreja, a assistir a uma missa em memória de um qualquer colega
de quem nunca gostara, num mundo de expressões postiças,
precisamente o oposto de Beethoven. Gerald, na outra ponta da
fila de Nick, adorava música, e, de quando em quando, dava à
cabeça ao sabor da música, um nada descompassado, como
alguém procurando agarrar uma ideia, mas Nick sabia que, no
final, Gerald diria que tudo fora ou «glorioso» ou «muito
divertido» - mesmo o Parsifal merecia dele o comentário de
«muito divertido», quando «glorioso» parecia a opção mais
plausível. Outros mostravam-se claramente tocados: aquilo, no
fim de contas, era Beethoven, e a peça contava uma história, de
partida, ausência e regresso, uma história que qualquer pessoa
poderia seguir ou sentir.
A ausência era o melhor da sonata, e a pequena Nina - era difícil
imaginá-la sem o «pequena» atrás - pareceu crescer de uma
forma quase visível enquanto tocava esse andamento. Era um
andante espressivo com tudo o que isso implicava, um
movimento contínuo, imparável, e ela não exagerava na emoção;
de facto, sentia-se que refreava a sua própria emoção - intensa,
muito particular - para que a sabedoria de Beethoven pudesse
ressaltar, de tal forma que o lânguido desalento da ausência, a
melancólica solidão, os contidos clímaxes do desejo saudoso,
eram dados de uma forma luminosa. Nick procurou uma vez mais
Wani, aquele perfil como que talhado, os caracóis negros que se
apinhavam por detrás da orelha,

273

- e perguntou-se se ele se sentiria tocado por aquela música, e,


se sim, de que maneira. Fitava a sua orelha, mas não sabia o que
é que ela estava a ouvir. Em Wani, era difícil distinguir entre uma
total concentração e uma total abstracção. Nick concentrou o
seu olhar nele, de tal forma que tudo o mais se esbateu, e Wani,
apenas ele, ou o pouco dele que conseguia ver, pulsava contra a
lustrosa dupla curva da tampa do piano. Sentiu-se flutuando na
direcção de um outro local, um local belo, especulativo, perigoso
até, um local criado e rasgado pela música, mas separado dela.
Parecia um daqueles perturbantes sonhos em que nunca se tem
a certeza de nada, ou em que não há nada a que memória possa
solidamente agarrar-se depois de uma pessoa acordar. Que coisa
era afinal - preto no branco - o seu entendimento com Wani? A
busca do amor parecia precisar do refinamento da indiferença. A
profunda intimidade que havia entre eles era tão secreta que, por
vezes, era difícil acreditar na sua existência. Perguntou-se se
alguém saberia - se alguém teria sequer uma vaga, muito vaga,
suspeita, uma intuição que, de tão absurda, logo era rejeitada.
Como é que alguém poderia saber? Sentia que era inevitável
haver indícios de uma ligação secreta, um qualquer gesto -
involuntário - de ternura ou deferência, um jeito especial de não
ligarem um ao outro... Perguntou-se se alguma vez se saberia da
sua ligação - quem sabe se não levariam o segredo para o
túmulo... Por um minuto, sentiu-se incapaz de se mexer, como se
estivesse hipnotizado pela imagem de Wani. Foi preciso um
pequeno estremecimento para que o feitiço se quebrasse.
Apercebeu-se de que a respiração de Norman Kent estava
estranhamente agitada, o que não admirava, visto que não
parava de chorar - num alvoroço talvez exagerado, sempre a tirar
os óculos e a limpar o rosto com a mão. Nick admirava o espírito
da coisa, a sensibilidade assumida como um desafio, mas, ao
mesmo tempo, sentia uma espécie de ressentimento, dado que,
amiúde, a música provocava nele o mesmo efeito; desta feita,
porém, não conseguira chegar a um tal ponto. Penny pousara a
mão no ombro do pai e enfrentava corajosamente aquele
embaraço familiar. Nick reparou que ela enrubescera, mas isso
era uma coisa que lhe acontecia com a maior facilidade. Por
essa altura, a música mudou rapidamente de rumo - começava a
estonteante corrida do final.

274

A maravilhosa anotação - vivissimamente - era, para Nina, o


mesmo que uma capa vermelha para um touro, de tal forma que
a música chispava em delirantes gorjeios e batidas. Nick tinha a
sensação de estar a ver Beethoven, ou antes a própria Nina, num
constante e enérgico vaivém, disparando ao longo de uma sonora
sala com soalho de madeira numa impaciência desvairada face
ao jubiloso regresso. Norman não conteve um nostálgico ronco
de divertimento, e Penny girou na cadeira, como que libertada
pelo rumo, francamente optimista, dos acontecimentos, e olhou,
com um ar doce, e ainda corada, para Gerald, que deu por isso,
baixou os olhos e também enrubesceu um nada. Bom, era
verdade que havia entre os dois homens uma antiga e tremenda
tensão em torno de rígidas questões de princípio; durante anos,
só a pertinácia de Rachel conseguira levá-los a esquecer os seus
princípios, pelo menos o bastante para se encontrarem e
saudarem, após o que trocavam meia dúzia de alfinetadas
raivosas. Claro que tudo isso era muito doloroso para Penny, e,
agora, talvez fosse a sua vez de lhes suplicar que se
reconciliassem. O facto de, todos os dias, ter de dactilografar o
diário de Gerald a partir do que ele lhe deixava gravado,
proporcionara-lhe por certo um conhecimento bastante
proveitoso dos seus sentimentos.
A sonata acabou e logo irromperam os aplausos; aplausos sem
dúvida firmes, mas também aguçados por um novo entusiasmo,
dado que o concerto chegara ao fim - toda aquela experiência
era de súbito vista a uma luz nova e mais brilhante, chegara a
hora das bebidas, todos se tinham comportado muito bem.
Norman Kent bateu palmas com as mãos acima da cabeça
quando Nina voltou à sala, Catherine gritou um febril «Bravo» e
Jasper imitou-a e pôs um sorriso arreganhado como se tivesse
dito uma gracinha no meio de uma aula. Nina postou-se
rigidamente junto ao piano; ao fim de breves segundos, sem uma
palavra, sentou-se e tocou o Prelúdio em Dó sustenido menor, de
Rachmaninov. Era uma peça que os espectadores mais velhos, de
uma maneira geral, conheciam bem, e, embora não tivessem
nenhum desejo especial de a ouvir, resolveram mostrar-se
condescendentes, se bem que trocando alguns sorrisos
ansiosos. Depois do Rachmaninov, ouviram-se aqueles aplausos
que prenunciam a debandada do público, a peça durara um ror de
tempo, algumas pessoas olhavam já para a mesa das bebidas e
para a saída

275

e começavam a conversar, mas Nina voltou e mergulhou na


Tocata e Fuga em Ré menor, de Bach, na famosa transcrição de
Busoni. Perante tão inopinada novidade, Lady Kimbolton olhou
para o relógio como se estivesse virtualmente cega, erguendo o
braço bem alto para a luz, e uma série de pessoas começaram a
abanar-se com as folhas do programa. As abanadelas alastraram
como uma espécie de motim, sublinhado pelo chocalhar de
braceletes, uma consequência inevitável. Quando Nina voltou à
sala depois do Bach, Gerald já se tinha levantado e estava a dizer
«Hum... aah», como que impondo afavelmente a ordem numa
reunião partidária, mas a verdade é que Nina se sentou de novo
ao piano e tocou a Dança do Sabre, de Khatchaturian. Nick
achava tudo aquilo perfeitamente natural, com certeza que
alguém dissera à pequena Nina que deveria ter três encores
preparados, mas ainda havia a possibilidade de que ela tivesse
quatro, de maneira que, obedecendo a um sinal de Gerald, Nick
foi atrás dela mal acabou a Dança do Sabre e deu-lhe os
parabéns e pediu-lhe que parasse. Ela deixou-se ficar no
patamar, os olhos fixos na pomposa curva das escadas,
enquanto os aplausos degeneravam rapidamente num murmúrio
que logo se calou para dar lugar ao sôfrego tumulto da festa.
-Olá Judy!
- Meu caro. - Lady Partridge permaneceu tão direita como um
fuso enquanto ele lhe beijava a rosada face, Nick nunca sabia se
ela encarava um beijo como uma homenagem ou um atrevimento.
Sorriu generosamente para a mãe de Gerald, como se ela
estivesse a divertir-se tanto como ele. - Parece muito jovial -
disse ela.
Ele olhou-se ao espelho, onde, de facto, encontrou um Nick de
olhos brilhantes, partilhando um fecundo segredo consigo
mesmo. - Bom, foi um belo recital, pareceu-me.
- Deveras - disse Lady Partridge; e depois, só para ser agradável:
- Gostei da última peça que ela tocou. Creio que já a tinha
ouvido.
- Oh, o Khatchaturian.
Ela lançou-lhe um olhar absolutamente impassível. - Tem força,
tem ritmo, tem swing.

276

- Mm, sem sombra de dúvida - Nick riu-se silenciosamente,


deliciado com a apreciação, e, um segundo depois, Lady
Partridge compôs também um sorriso matreiro, como se o seu
comentário tivesse revelado uma inteligência de que ela própria
não se apercebia.
Uma criada passou e ambos tiraram da bandeja novos copos de
champanhe. «Uma gente extraordinária...», estava a dizer Lady
Partridge. Por norma, mostrava-se feliz e muito participativa no
inundo político de Gerald, tratava os colegas do filho com
extrema afabilidade, e sentia uma intensa excitação quando, no
meio das insípidas conversas sobre assuntos profissionais que,
infortunada-mente, constituíam o grosso do comércio social
daquela gente, eles lhe davam uma injecção - não diluída - de
política, perorando sobre imperativos vários, todos eles
absolutamente incontornáveis: reduzir a produção, reprimir a
imigração, racionalizar a «saúde mental» (ah, a quantidade de
abusos e desperdícios que havia nessa área!), devolver os
serviços públicos aos privados. Assemelhavam-se a ensaios para
a televisão; aliás, acabavam mesmo por ser mais estimulantes
que as suas prestações televisivas, visto que liquidavam toda e
qualquer dúvida. Nick disse:
- Ali está Lord Toft, não é... o homem que constrói as estradas
todas.
- Bernie Toft não tem nada de extraordinário - disse Lady
Partridge. Claro que o ramo de Sir Jack fora precisamente esse,
a construção de estradas. - Não percebo porque é que Gerald
tem de convidar aquele homem horroroso, aquele... artista.
- Ah, Norman, é de Norman que está a falar? Não é grande coisa
como artista, pois não?
- É um socialista fanático - disse Lady Partridge. Olharam ambos
para Norman Kent, que estava de pé junto ao
piano, agarrando-se simbolicamente ao instrumento, e
porventura ciente de que, na parede por trás dele, estava
pendurada uma obra sua, o retrato de Toby, como se fosse um
elemento do seu próprio retrato. Quase todos os convidados o
evitavam, pondo um sorriso distraído e fingindo andar à procura
de outra pessoa qualquer, mas Catherine e Jasper conversavam
animadamente com ele. A certa altura, a emoção fê-lo elevar a
voz: - Claro que deve, minha querida - disse.

277

- Só tem de fazer uma coisa, pintar, pintar, pintar - e abanou


Catherine pelo ombro.
- Por acaso sabe quem é aquele jovem que está com a minha
neta? - perguntou Lady Partridge.
- Ah, é Jasper, o novo namorado de Catherine.
- Ah... - Lady Partridge deu à cabeça umas quantas vezes,
exprimindo uma clara ausência de ilusões; mas disse: - Bom, de
qualquer modo parece um pouco melhor que o último.
- Sim, Jasper não está nada mal...
- Pelos vistos, até usa sapatos.
- Eu sei! É extraordinário! - No essencial, o que Nick sentia em
relação ao namorado de Catherine, e, nesse momento, isso
tornou-se muito claro para ele, era que Jasper precisava de ser
amarrado a uma cama, de barriga para baixo, durante uma ou
duas horas.
- Ah, devo dizer que ele é agente imobiliário.
- Muito bem-parecido - disse Lady Partridge, naquele jeito lascivo
e, sem dúvida, bizarro, que só ela tinha. - Deve vender montanhas
de casas.
Trudi Titchfield passou por eles com uma careta, como se não
estivesse à espera de que se lembrassem dela. - Um encanto de
festa - disse. - É uma sala tão boa para uma festa. Infelizmente,
nós só temos o rés-do-chão. Bom, claro que temos o jardim, mas
as salas são bastante baixas.
- Sim - disse Lady Partridge.
Trudi baixou a voz. - Não faltará muito tempo para que haja uma
festa muito especial. As bodas de prata...? Ouvi dizer que vem a
primeira-ministra.
- Não creio que a rainha venha - disse Lady Partridge.
- Não, não estou a falar da rainha, a primeira-ministra - num
murmúrio radiante. - A rainha! Não, não...
Lady Partridge pestanejou majestosamente. - É tudo muito
secreto - disse.
Sam Zenman passou numa pressa e disse: - Estás a fazer de mim
um homem rico, meu caro! - o que era sem dúvida encantador e
divertido, só que Sam não parou para desenvolver. Talvez fosse
apenas a lei dos negócios, mas Nick sentia que tinham gasto
toda a sua provisão de amizade no ginásio e no restaurante e que
a intimidade de outros tempos nunca mais voltaria.

278

Na multidão à volta do buffet (uma avalanche de cortesia


trocista e crueldade furtiva), a pequena Nina misturava-se com o
seu público, o qual, salvo raríssimas excepções, era simpático o
bastante para a saudar com um «Muito bem!», logo seguido da
pergunta: «Mas onde é que a menina aprendeu a tocar tão bem?»
Nina falava um inglês simples, inexpressivo, e o público, inglês,
falava com ela do mesmo jeito, ainda que num tom francamente
mais alto: «Então o seu pai, está na prisão"! Pobre menina!»
Mesmo em frente de Nick, Lady Kimbolton cumprimentava os
Tipper. O primeiro nome de Lady Kimbolton era Dolly, e mesmo
os seus amigos mais chegados arranjavam maneiras de evitar a
saudação que seria mais
natural(1).
- Boa-noite, Dolly - disse Sir Maurice, com uma pequena e satírica
vénia.
- Olá! - disse Sally Tipper. - Bom, foi muito agradável, o recital.
- Eu sei, verdadeiramente comovedor, não foi - disse Lady
Kimbolton. - Imagino que tenha lido o Telegraph esta manhã?
- Claro que li - disse Sir Maurice. - Os meus parabéns!
- Não há dúvida, gosto mesmo de recitais em casa - disse Lady
Tipper. - É como nos tempos de Beethoven e Schubert.
- Pois é... - disse Lady Kimbolton, inclinando para a direita e para
a esquerda o rosto quadrado, onde brilhava uma expressão
eminentemente prática, na esperança de abarcar tudo o que a
mesa oferecia.
- Nigel deve estar radiante - disse Sir Maurice.
- Ultimamente, Maurice e eu temos ido a uma série de concertos
em casas de amigos, acho uma excelente ideia - disse Lady
Tipper, que passava por ter uma pronunciada inclinação para as
artes.
- Eu sei, parece que há uma verdadeira loucura por concertos -
disse Lady Kimbolton. - Este é o segundo a que assisto este ano.
- Ouvi dizer que Lionel Kessler, conhece-o, não é verdade?, teve o
Mediei Quartet em Hawkeswood para uma maravilhosa soirée
musical com Giscard d'Estaing.

*1. Referência ao célebre musical Hello, Dolly, realizado por Gene


Kelly e protagonizado por Barbra Streisand e Walter Matthau. (N.
do T.)

279

- Creio que foi precisamente aí que Gerald foi buscar a ideia -


gracejou Nick, intrometendo-se na conversa no instante em que
finalmente se abeiravam da mesa.
- Oh, olá...
- Olá, Dolly - disse Nick. Sabia que poderia fazer um número
particularmente divertido em torno das avassaladoras
preocupações de Gerald com aquela história do concerto, as
quais haviam atingido um pico de competitiva ansiedade quando
Denis Beck-with, um velho e bem-parecido sáurio da direita que,
nos últimos tempos, vinha recuperando alguma da sua antiga
popularidade, contratara Kiri te Kanawa para cantar Mozart e
Strauss por ocasião do seu octogésimo quinto aniversário. Mas
houve qualquer coisa que o fez avançar com todo o cuidado. -
Todos sabem por certo que Gerald é uma pessoa muito
competitiva - disse.
- Mas nós somos todos a favor da competição! - exclamou Dolly
Kimbolton, ao mesmo tempo que reivindicava o seu prato de
salmão junto do criado.
- Muito bem, muito bem... - disse Gerald, serpeando por entre a
multidão a fim de se juntar a eles.
- Foi muito inteligente da sua parte, dar-nos a conhecer uma nova
artista - disse Sally Tipper.
- Gostei da última coisa que ela tocou - comentou Sir Maurice.
Gerald olhou à sua volta, não fosse a pequena Nina andar por
ali. - Achámos que seria preferível a um nome consagrado...
A senhora que estivera em Badminton disparara por entre o
grupo para arrepanhar um pãozinho. - E tem toda a razão...! -
asseverou. - Ouvi dizer que Michael decidiu contratar a Royal
Philarmonic para a festa de Verão da família.
- Michael...? - disse Gerald.
- Oh?... Heseltine(1)? Sim... sim... - E curvou-se, num arremedo de
pedido de desculpas, ao afastar-se da mesa. - É, a Royal
Philarmonic Orchestra em peso! Deve sair-lhe muitíssimo
dispendioso.

*1. Michael Heseltine, político conservador britânico, integrou os


governos Heath (1970-74) e Thatcher. Foi ministro do Ambiente
de Thatcher entre 1979 e 1983. A partir de 1983, foi ministro da
Defesa de Thatcher. Resignou precisamente em 1986, na
sequência de uma fuga de informações confidenciais. Recorda-se
que 1986 é o ano em que se passa este capítulo. (N. do T.)

280

- Mas eles tiveram um óptimo ano - acrescentou, num tom


brandamente provocante.
- Pensava que nós também tínhamos tido um óptimo ano -
murmurou Gerald.
Nick andava a evitar Bertrand Ourani, mas, ao desviar-se da
mesa com o prato na mão, lá estava o pai de Wani à sua espera. -
Ah, o meu amigo, o esteta! - disse, e Nick lembrou-se de um
irritante criado estrangeiro, ou seria um motorista de táxi?, que o
definia recorrendo a uma graça do género. Mas foi capaz de
dizer, com um ar excitado:
- Como tem passado?
Bertrand não respondeu, parecia sugerir que a pergunta era tão
trivial quanto impertinente. Deu uma olhadela à sala, onde as
pessoas começavam a agrupar-se nos sofás, à volta de mesinhas
trazidas pelos criados e rapidamente cobertas com toalhas
brancas. Bertrand não sabia onde se instalar, no meio daqueles
ruidosos snobs ingleses; a sua expressão era altiva e
desconfiada. - Está um raio de um calor aqui dentro, não está? -
disse ele para Nick. - Venha comigo, vamos conversar um pouco -
e conduziu-o, de novo como um criado, com espreitadelas algo
impacientes por cima do ombro, por entre as mesas salpicadas
de comes; não para o fresco da grande varanda das traseiras,
mas para o banco de pedra de uma janela da frente, que dava
para a rua. Empoleirados no banco, joelho contra joelho,
parcialmente encobertos pelos cortinados presos em cordões
rematados por borlas, Bertrand e Nick desfrutavam de um
inquietante grau de privacidade. - Que raio de calor - repetiu
Bertrand. - Graças a Deus que aquele animal tem o raio do ar
condicionado - e apontou para o Rolls-Royce Silver Shadow
castanho-avermelhado, estacionado na berma.
- Ah - disse Nick, incapaz de se erguer à altura de tão deplorável
fanfarrice. Na janela de trás do carro, luziam umas quantas
almofadas brancas primorosamente alinhadas; não conseguia ver
a matrícula, mas a ideia de que devia ser BO qualquer coisa fê-lo
desenhar um sorriso superior, que logo contraiu num medonho
sorriso de admiração. Uma das neuroses de Catherine traduzia-
se por um horror absoluto a tudo o que fosse castanho-
avermelhado; era até mais violenta que a sua fobia ao som au, ou
talvez a ampliasse,

281
por via de alguma sugestão ainda mais terrível. Agora é que Nick
entendia as razões de Catherine.
Bertrand fez-lhe algumas perguntas acerca do recital e prestou
toda a atenção às respostas, como se estivesse num briefing
para profissionais que lhe poderia ser muito útil. «Técnica
espantosa» repetia. «Ainda muito jovem», dizia, e abanava a
cabeça enquanto retalhava o seu salmão. Não obstante toda a
sua erudição e capacidade, Nick hesitava em desempenhar
plenamente o papel de esteta, hesitava em ser ele mesmo, não
fosse o seu tom tornar-se demasiado íntimo e revelador. A
influência de Bertrand era, à sua maneira, tão forte como a da
coca; de tal forma que Nick deu por si a falar com o pai de Wani
num tom francamente ríspido. Na realidade, perguntava-se se a
pequena Nina, apesar da intensidade dos seus sentimentos, seria
de facto grande coisa como pianista. O facto de ela ser tão
jovem tendia a enviesar as reacções. Fez de conta que era Dolly
Kimbolton e disse: - O Beethoven foi verdadeiramente comovedor
- mas Bertrand não via grande uso nessa frase. Olhou para ele
fixamente e disse: - O raio da última coisa que ela tocou era
mesmo boa.
Nick deu uma olhadela para a sala à procura de Wani, que estava
sentado a uma mesa com a mãe e uma mulher de meia-idade, a
qual emitia todos os sinais de uma extrema susceptibilidade e
confusão ao ver-se percorrida por aquele olhar velado por tão
longas pestanas. Da parte de Wani, era quase um engodo
irresistível, deixar que o seu olhar pousasse, vazio mas sedutor,
numa mulher. Não trocara ainda uma palavra com Nick desde
que chegara; virara-se para ele, acenara-lhe e suspirara, como
que a dizer: «Ah, estas multidões, estes deveres», no momento
em que ocupavam os seus lugares na sala. Se se sentia
constrangido por ver o pai e o amante num tête-à-tête, era
demasiado inteligente para o mostrar. Bertrand disse: - Este meu
filho... A quem é que ele está a fazer-se agora?
Nick riu-se facilmente e respondeu: - Oh, não sei. À mulher de
algum deputado, imagino eu.
- O raio do rapaz, a única coisa que sabe fazer é fazer-se às
mulheres! Todo ele é flerte! - disse Bertrand, dando muito às
pestanas, num jeito obviamente sarcástico. Cultivava uma
aparência tão esmerada, tão primorosa, tão embonecada, que
quase corria o risco de parecer camp. Nick imaginou as
canseiras

282

diárias de Bertrand diante do espelho; ah, os cuidados a que


aquele fino bigode o obrigava! Rapar um nada acima do lábio,
rapar um nada abaixo do nariz, as alegrias do aço matutino, e,
depois, as alegrias de um quarto inteiro só para ele se vestir, um
quarto que mais parecia uma secção de uma loja. Disse:
- É natural que Wani goste de flertar, mas, sabe, na realidade ele
nunca olha para outra mulher - e ficou todo excitado com a sua
própria perversidade.
- Eu sei, eu sei - disse Bertrand, como que irritado por ter sido
levado a sério, mas também, porventura, tranquilizado. - Então e
como é que as coisas vão, no escritório?
- Oh, óptimas, creio.
- Ainda têm lá aqueles tipos, todos tão mariconços, tão... abafa-a-
palhinha?
- Hum...
- Não percebo por que raio é que ele tem de dar emprego àqueles
rabetas.
- Bom, devo dizer que eles são muito bons naquilo que fazem -
disse Nick, tão horrorizado que quase parecia estar a pedir
desculpa. - Simon Jones é um excelente designer gráfico e
Howard Wasserstein é um magnífico revisor de provas.
- E quando é que começam a rodar o raio do filme?
- Ah, isso vai ter de perguntar a Wani.
Bertrand enfiou mais uma batata na boca, disse: - Já perguntei
mas ele nunca me diz nada - e sacudiu o guardanapo. - Mas que
raio de filme é que vão fazer?
- Bom, nós estamos a pensar numa adaptação de The Spoils of
Poynton, hum...
- Com montes de marmelada e montes de acção - disse Bertrand.
Nick pôs um sorriso que nem meio era e, numa revista rápida,
constatou que esses dois elementos estavam inteiramente
ausentes do romance. Disse: - Wani está confiante quanto à
participação de James Stallard.
Bertrand lançou-lhe um olhar desconfiado. - O quê? Outro
tnariconço?
- Bom, quanto a isso, as opiniões são unânimes,

283

toda a gente o considera muito bem-parecido. É uma das jovens


estrelas em ascensão.
- Li qualquer coisa acerca dele...
- Bom, ele casou-se há pouco tempo com Sophie Tipper - disse
Nick. - A filha de Sir Maurice Tipper. Veio em todos os jornais.
Claro que ela andava com Toby, o filho de Gerald e Rachel. -
Apresentava todas estas ninharias hetero como provas
susceptíveis de distraírem o seu interlocutor; e fazia sinceros
votos para que, em situações normais, não assumisse uma
atitude tão cobardemente conciliadora.
Bertrand sorriu como se nada pudesse já surpreendê-lo. - Ouvi
dizer que ele teve um grande peixe no anzol e que o deixou
escapar.
Nick corou por alguma razão e, sem mais, rompeu a falar da
revista com a vivacidade de um vendedor recém-chegado à
profissão, ainda sem o empenho, mas também sem o cinismo,
dos colegas mais experientes; a certa altura, revelou que ele e
Wani iam fazer uma viagem a fim de pesquisarem temas para a
revista - e mais longe do que isso não podia ir; uma palavra mais
e correria o risco de estar a apontar para o terrível facto da sua
ligação. Por um segundo, imaginou que estava a contar-lhe a
verdade, a verdade em toda a sua chocante beleza, imaginou-se
a descrever, como se fosse uma iniciativa comercial digna de
todos os elogios, o prostituto - um skinhead - que tinham
engatado na semana anterior para um ménage à trois. Nesse
preciso momento, sentiu uma espécie de tristeza - bom, as
coisas perdiam o brilho, sempre estivera consciente disso, a sua
vivacidade reduzia-se a cinzas, a uma inquietação cinzenta. Com
Bertrand, sentia-se condenado a isso. Era exactamente o mesmo
que acontecera em Lowndes Square: aquela secreta segurança
que se esbatia ao fim de meia hora e dava lugar a um estado de
dúvida de algum modo ampliado. A inofensiva graça de Bertrand
transformava-se numa penitência. Nick sentia-se impotente,
nervoso, sombriamente apaziguador, nas mãos de um homem
que lhe parecia ser, a todos os níveis, o exacto oposto de si
mesmo, uma pequena e compacta massa de vaidade enfiada num
fato vistoso. Foi então que aconteceu uma coisa horrível com
uma criada que, de garrafa de vinho na mão, ia enchendo os
copos dos convidados. Era uma jovem negra e Nick já tinha
reparado nos trejeitos constrangidos, por parte de uns, e nas
teatrais exibições de liberalidade,

284

por parte de outros, enquanto ela avançava pela sala e dava a


todos os convidados o que eles queriam. Bertrand estendeu-lhe o
copo e ela encheu-o com Chablis - ele observou-a fazendo isso e,
quando ela, com um sorriso, se virou para Nick num jeito
interrogativo, Bertrand atirou-lhe: «Não, sua idiota dum raio,
você acha que eu vou beber isto? Eu quero água mineral!» A
rapariga encolheu-se por não mais que um segundo perante a
violência do tom, perante a intempestiva rejeição do serviço, e,
depois, pediu desculpa com uma inflexível insinceridade. Nick
disse: «Oh, estou certo de que podemos arranjar-lhe água, nós
temos rios de água!», num jeito docemente ansioso, como que
para amaciar o tom de Bertrand, para pedir desculpa pelo
comportamento deste, para que corresse uma brisa de riso num
momento tão sufocante; entretanto, Bertrand continuava de copo
na mão, rigidamente erguido na direcção da criada, exibindo um
rosto que seria totalmente inexpressivo, não fosse um constante
pestanejo de desprezo. A mulher manteve a sua dignidade por um
momento mais, enquanto o sorriso de Nick suplicava a Bertrand
que moderasse os seus modos e à criada que não desse
importância àquilo. Contudo, Bertrand voltou à carga: «Será que
você não sabe o raio de coisa nenhuma? Leve já isto daqui!», e
lançou a Nick um olhar feroz como que para o aliciar a tomar o
seu partido ou para excitar nele idêntica indignação. Depois,
quando a rapariga já se tinha ido embora, sem dizer palavra,
Bertrand baixou os olhos, suspirou, e sorriu pesarosamente -
quase ternamente - para Nick, como que a dizer que teria
preferido poupá-lo a uma tal cena, mas que ele - Bertrand Ourani
- não tinha medo de ninguém.
Nick sabia que deveria ter desandado nesse preciso momento,
mas ainda não tinha acabado o prato principal; refugiou-se
vergonhosamente nesse pormenor como uma razão para não
fazer - também ele - uma cena. Era possível que outras pessoas
tivessem ouvido. Deviam estar com um ar de perfeitos
conspiradores, assim escondidos no banco da janela. Bertrand,
agora, estava a falar de imobiliário; comparava os méritos da Wl
com os da SW3(1); parecia

*1. Zonas de Londres situadas no borough de Kensington and


Chelsea, ambas com parcelas residenciais particularmente
dispendiosas. Wl 1 é a zona onde Nick vive (inclui Notting Hill e
Holland Park), SW3, aquela onde Ourani vive (Knigthsbridge). (N.
do T.)

285

que também ele estava a pensar mudar-se para aquela zona.


Olhava para a sala como que a desafiá-la. «Bom, esta zona, de
facto, é um encanto», disse Nick num tom triste, e pôs-se a olhar
para aquela rua que conhecia tão bem, para o horrível carro
castanho-avermelhado de Bertrand, para a vida nocturna, só em
parte reconhecida das casas em frente, e para o matulão louro
que saiu de uma dessas casas, tirou a corrente da enorme mota
preta que estava no passeio se escarranchou nela, enfiou e
prendeu o capacete, com duas ou três pezadas devolveu à mota
toda a sua ávida animação, e, três segundos depois,
desaparecia. Apenas um zumbido, uma zoada que se esbatia ao
mesmo tempo que crescia, podia ser ouvido no meio da
tremenda barulheira das conversas da sala. Era como se a
invocação do Scherzo de Chopin houvesse encontrado uma
resposta e a liberdade tivesse sido agarrada, aproveitada, por
uma afortunada terceira pessoa.
- Aah... - estava a dizer Gerald, rondando como um criado, o
melhor de todos os criados - espero que esteja tudo bem. - Trazia
uma garrafa de água numa mão e uma garrafa acabada de abrir
de Taittinger na outra, como que fazendo a mais segura das
apostas.
- Maravilhoso! - disse Bertrand, fingindo não reparar nas garrafas,
e, depois, fazendo um gesto muito gaulês de surpresa lisonjeada.
- É muito amável da sua parte, tomar a iniciativa de me vir servir.
- Estas raparigas novas nem sempre sabem do seu ofício - disse
Gerald.
Nick disse: - Gerald, com certeza que já conhece... Mr. Ouradi.
- Para dizer a verdade, nunca nos encontrámos - disse Gerald,
com uma vénia e um sorriso dissimulados -, mas não poderia
estar mais contente por o ter aqui.
- Bom, foi um concerto maravilhoso! - disse Bertrand. - A pianista
tinha uma técnica espantosa. Para alguém tão jovem...
- Espantosa, de facto - concordou Gerald. - Pois bem, foi na minha
casa que pôde assistir à sua estreia!
Como se fora uma velha carripana diplomática que rangia e
chiava a cada movimento, Dolly Kimbolton foi-se chegando ao
trio como quem não queria a coisa; mal a viu, Bertrand levantou-
se

286

e, no acto, não deixou de passar o seu prato, com faca e garfo


em cima, para as mãos de Nick. - Olá! - disse ela.
- Já conhecia Lady Kimbolton? Mr. Bertram Ouradi, um dos
nossos grandes apoiantes.
Enquanto se cumprimentavam, Dolly curvou-se para a frente com
o ar de uma directora de escola militante arrebanhando
eventuais retardatários para participarem num colossal esforço
colectivo. No seu tom de pura e pueril empáfia, Bertrand disse: -
Sim, de facto tenho contribuído de uma forma avultada. Uma
contribuição de peso para o Partido!
- Esplêndido! - exclamou Dolly, premiando-o com um sorriso em
que o zelo político quase conseguia disfarçar por completo um
qualquer instinto mais antigo, atiçado por lojistas médio-
orientais. - Talvez pudéssemos ter uma conversinha...? - sugeriu
Gerald, erguendo a garrafa de champanhe. - E creio que vamos
precisar disto. - A sugestão, obviamente, não incluía Nick, o qual,
como tantas vezes acontecia, não tinha visibilidade nem,
seguramente, relevância, e que, quando os outros três se foram,
ficou plantado junto à janela, com duas ceias inacabadas nas
mãos.
Fechou a porta, deu a volta à chave e atirou-se a Wani, que o
afagou e lhe deu um beijo no nariz para logo se afastar.
- O material? - perguntou Wani.
Nick foi até à secretária, infeliz, mas agarrado, também ele,
àquela cena da coca, a qual - bastava que fosse um pouco
paciente...! - poderia fazer deles, de novo, um casal feliz. Tirou a
latinha da gaveta de baixo.
Wani disse: - Uma lata? É um sítio tão óbvio para guardar a
coca...!
- Querido, ninguém suspeita sequer que eu possa ter alguma
coisa para esconder! - Passou o pacote a Wani, com um sorriso
que era uma acusação. - É como a nossa maravilhosa e
secretíssima relação.
Wani puxou da cadeira e sentou-se à secretária; no seu rosto,
perpassavam pequenos clarões e nuvens de possíveis réplicas.
Examinou a pilha de livros da biblioteca e seleccionou Henry
James

287

and the Question of Romance, de Midred R. Pullman, que tinha


uma lustrosa sobrecapa plastificada a proteger a escura capa. -
Acho que este serve - disse. Nunca tinha estado no quarto de
Nick e era evidente que, para ele, não havia a menor magia
naquele espaço; o exacto oposto do que Nick sentira no quarto
de Wani em Lowndes Square. Bom, Wani também não era aquele
género de pessoa que reparava em tais coisas. Não agradeceu a
Nick por ter ido encontrar-se com Ronnie, nem tão-pouco
mostrou a menor intuição do susto constante por que ele
passara. Nick disse-lhe, para o lembrar:
- Tive uma conversa tão agradável com Ronnie... Parece que está
com vontade de mudar-se para esta zona. - Wani não disse nada;
limitou-se a deitar um pouco do pó, ainda grosso, em cima do
livro. - É um tipo muito simpático, não achas? - prosseguiu Nick. -
Foi cá uma cena, telefonar-lhe e esperar por ele e telefonar-lhe
outra vez... E está claro que chegou atrasado...!
Wani disse: - Tu só gostas dele porque ele é preto. Se calhar até
gostavas de o fazer.
- Não especialmente - disse Nick, cuja onda de atracção sexual
por Ronnie fora apenas um elemento da excitação provocada
pelo facto de estar a cometer um crime, tensão e alívio ao
mesmo tempo, o sentimento de que Ronnie não só aceitava o seu
dinheiro, mas também o aceitava a ele; e depois, para acabar
com aquela história: - Ficaria muito contente se não usasses
esse tipo de vocabulário. Faço um esforço tremendo para
acreditar que não és um caso tão desesperado como o teu pai.
Wani avaliou por um momento o que acabava de ouvir. - Então de
que é que o papá esteve a falar contigo? - perguntou.
Nick suspirou e pôs-se a andar pelo quarto, onde ambos
estavam, também, na luz e na profundidade subtilmente
glamorosas do espelho do roupeiro. Tantas vezes imaginara Wani
no seu quarto, em secretas noites de cama, e ainda, numa outra
distribuição de papéis, livre e abertamente, como seu amante e
companheiro. Disse: - Oh, pelos vistos, ele também quer mudar-
se para esta zona. - E, com um risinho desdenhoso, acrescentou:
- Devia pô-lo em contacto com Jasper.
- Esse Jasper é uma putinha bem sexy - disse Wani, e aquele não
era, de maneira nenhuma, o seu tom usual.

288

- Ah sim...? A mim, os rapazes brancos parecem-me todos iguais -


disse Nick.
- Ah ah, deixa-me rir. - Wani examinou o seu trabalho. - E o que é
que ele disse mais?
- O teu velho? Oh, esteve apenas a tentar arrancar-me
informações a teu respeito e acerca do filme. Claro que ele não
faz a mínima ideia do que se passa, mas creio que concluiu que
eu sou a chave do mistério. Fiz tudo o que pude para o convencer
de que não havia mistério nenhum.
- Talvez o mistério sejas tu - disse Wani. - Ele não sabe o que é
que há-de pensar de ti.
O que talvez fosse verdade, mas também era tremendamente
injusto. Nick estava doido por fazer uma declaração solene, e,
além disso, agora, sentia-se violento em relação a Wani: sentia o
sangue martelando-lhe no pescoço, ali, de pé, atrás dele; depois,
pousou as mãos nos ombros dele. Toda a noite sentira aquela
necessidade de tocar nele e, quando surgiu, o contacto só podia
ser convulsivo. Wani estava a trabalhar diligentemente, e
também, um pouco, na defensiva, usando o seu cartão dourado,
em rápidos movimentos - como um desenhador fazendo
sombreados - para a frente e para trás, ao longo dos traços em
parte visíveis de Henry James - não o grande Mestre calvo, mas
o jovem de vinte e dois anos, de olhar intenso, terno, brilhante,
com irreprimíveis entradas no cabelo escuro.
Nick sublinhou cada uma das três proposições dando um ligeiro
aperto no pescoço de Wani: - Daria tudo para não termos de
continuar assim, sinto que tenho de contar a alguém, quem me
dera que pudéssemos contar às pessoas.
- Se contas a uma pessoa, estás a contar a toda a gente - disse
Wani. - Seria o mesmo que pores um anúncio de página inteira no
Telegraph.
- Bom, eu sei que tu és muito importante, claro...
- Achas que estaríamos numa festa como esta, se as pessoas
soubessem o que fazemos?
- Mm. Não vejo porque não.
- Achas que serias tu cá tu lá com Dolly Kimbolton se ela
soubesse que abafas a palhinha?
- Mas ela sabe que eu sou... Que expressão mais idiota!

289

- Achas que sim?


- E, além disso, o tu cá tu lá, como tu dizes, com Dolly Kim-
bolton, não é, nem por sombras, um elemento indispensável da
minha vida. Eu nunca fingi que não era gay. Tu é que fazes isso
meu caro. Estamos em 1986. As coisas mudaram.
- Sim, de facto mudaram. As bichas estão todas a morrer, a cair
que nem moscas. Não achas que a mãe e o pai de Antoine iam
ficar um pouco preocupados com isso?
- A questão não é essa, pois não?
Wani pôs um ar ligeiramente amuado. - É parte da questão -
disse. - Tu sabes que tenho de ser incrivelmente cuidadoso. Tu
conheces a situação... Já está! - Ergueu as mãos como se
estivesse a pesar qualquer coisa. - Aí tens uma linha da beleza! -
E olhou de lado para o espelho, primeiro para Nick e depois para
si mesmo. - Acho que nos temos divertido e muito - disse, num
súbito e ténue apelo, mas Nick queria mais, muito mais, do que
isso.
Qualquer coisa acontecia quando duas pessoas olhavam para o
espelho juntas. Uma pessoa, como sempre, perguntava qualquer
coisa ao espelho, e as duas pessoas perguntavam também
qualquer coisa uma à outra; e aquele espaço vago, indeciso mas
reluzente, o quarto mais fundo em que essas duas pessoas se
viam, como que num palco, vibrava de ironias e de confissões
sentimentais. Ou pelo menos era o que Nick achava. Agora, o
espelho era como uma entrada para o passado, para o momento
em que pensara «Oh, ainda bem», o momento em que Ouradi
aparecera pela primeira vez, depois de ter perdido o início do
período, na aula de Anglo-Saxão, e fora chamado para traduzir
um pequeno texto do rei Alfredo (e até nem se saíra nada mal) -
Nick já o tinha marcado, por assim dizer, e esperava que ele, um
estrangeiro que, para mais, entrara quase a meio do período,
procurasse um amigo naquele grupo de turbulentos rapazes de
dezoito anos. Mas Wani, sem mais nem menos, voltara a
desaparecer, como que levado para um qualquer outro mundo;
entre Nick e esse mundo erguia-se o nevoeiro que, ao entardecer,
se formava em torno do lago do Worcester College. E o «Oh,
ainda bem», o «Sim!» do seu regresso, a visão da sua bela
cabeça e do seu pequeno e provocante pénis: isso era tudo - tão
pouco - o que Nick conseguira de Wani naqueles anos de Oxford,
quando ele próprio se encobria, se disfarçava, por detrás de
livros e cerveja,

290

«assumindo-se» como um esteta com um nadinha de poeta, «o


homem que gosta de Bruckner!», mas cheio de medo de si
mesmo. E, agora, ali estava ele com Wani, posando para aquele
efémero retrato, numa atitude que era quase de desafio, de
desafio no espelho - e tudo voltava a ser como na primeira
semana em Oxford: o pavor de que ele pudesse desaparecer.
Disse: - Alguma vez foste para a cama com Martine? - Doía-lhe
fazer uma pergunta dessas; o seu rosto crispou-se ciumento à
espera da resposta.
Wani olhou à sua volta à procura da carteira. - Mas que pergunta
mais extraordinária.
- Bom, mas tu és uma pessoa absolutamente extraordinária,
querido - disse Nick, pensando ele, que abominava a discórdia,
que fora demasiado brusco, e passando com a mão pelos dóceis
caracóis negros de Wani.
- Olha, serve-te e cala-te - disse Wani, e apalpou-lhe o entre-
pernas quando se levantou e contornou a cadeira, como se
fossem dois miúdos no recreio da escola, e talvez com a mesma
avidez e confusão de um miúdo. Nick não resistiu. Snifou a sua
linha e afastou-se. Depois, Wani voltou a enrolar a nota e, no
preciso momento em que baixava a cabeça para atacar o pó,
ouviram um vago ruído de passos, muito perto, já na volta das
escadas; e uma voz, ofegante, indistinguível. Wani virou-se num
ápice e lançou um olhar dardejante para a fechadura da porta, e
Nick, com o coração numa disparada, reviu na sua memória o
momento em que dera a volta à chave. Wani snifou a sua linha,
só por uma narina, meteu ao bolso a nota e o pacote e virou o
livro, tudo num segundo ou dois. - O que é que nós estamos a
fazer? - sussurrou.
Nick abanou a cabeça. - O que é que nós estamos a fazer...?!
Estamos só a discutir o argumento do filme, nada mais...
Wani soltou um suspiro absurdo, como que a dizer: - Enfim, pode
ser que passe... - Nick nunca o vira tão ansioso; e, de algum
modo, enquanto o olhava nos olhos, Nick sabia que Wani
acabaria por puni-lo pelo simples facto de ele ter presenciado
aquele momento de pânico. O problema era menos a droga do
que a sugestão de uma intimidade culpada. E, agora que a coisa
estava feita, o único elemento que poderia levantar suspeitas era
o facto de a porta estar fechada à chave. «Não, só dez minutos,
amor», disse a mesma

291

voz. Nick sorriu e fechou os olhos, era a voz afectada de Jasper,


o soalho à saída da casa de banho, que ele conhecia tão bem,
rangeu um pouco, um vestido roçou na parede, e, um segundo
depois, ouviram uma porta a fechar-se, era a porta do quarto de
Catherine! e, quase ao mesmo tempo, o ruído de uma chave na
fechadura! Nick e Wani acenaram lentamente um para o outro e,
nos seus rostos, sorrisos de alívio e divertimento e antecipação
desenharam-se numa sequência quase perfeita.
Para Wani, o primeiro impacto da coca traduzia-se sempre por
uma urgência erótica; e para Nick também. O primeiro beijo viera
com a primeira linha de coca que tinham snifado juntos, a boca
de Wani azeda de vinho, a língua disparando sôfrega, os olhos
timidamente fechados. Cada vez depois dessa era o reviver de
uma excitante primeira vez. Tudo parecia possível - o mundo era
não só praticável, conquistável, mas também susceptível de ser
amado: o mundo mostrava as suas fraquezas e uma pessoa sabia
que ele acabaria por se submeter à sua vontade, uma pessoa via
o seu próprio encanto reflectido nos olhos do mundo. Nick beijou
Wani no meio do quarto - dois ou três divinos minutos que tinham
estado à espera de acontecer, uma colisão incandescente, uma
secreta ruptura no final do dia. Deixaram-se ficar ali, no meio do
quarto, Wani com o seu fato italiano «cinzento» - preto, de facto -
de um tecido muito leve, como um dos fatos do pai, mas feito
para fluir e sugerir, Nick, com o fato de risca fina - finíssima, de
facto - que Wani lhe comprara, parecia mesmo um daqueles
jovens, exemplares típicos da época, que se entregavam
intensamente, agressivamente, a uma profissão liberal ou a uma
carreira nos negócios, o banqueiro, o traficante, ou mesmo o
agente imobiliário...
Curioso, o modo como o som viajava numa casa antiga - através
de espaços obstruídos da chaminé, ao longo das traves que
suportavam os tectos. Um ritmo quase inaudível para o
cauteloso casal ou para o incauto solista que o produziam, era
transmitido como as marteladas de um diligente operário através
do tecto, ou como - era o caso - um turbulento rangido no quarto
ao lado. Enquanto afagava o pénis de Wani através da braguilha
aberta e lhe beijava o pescoço, fazendo com que a pele dele se
crispasse de arrepios, Nick ria-se, mas, ao mesmo tempo, sentia-
se embaraçado, quase chocado, por estar a ouvi-los naquilo (e
era a primeira vez

292

que isso lhe acontecia) e, para mais, com tanta voracidade e


rapidez. Não, ali não se perdia tempo com preliminares - ficou a
pensar se Catherine estaria a gostar, se Jasper não estaria a
portar-se que nem uma besta, quando ela - sim, quanto a isso não
tinha a menor dúvida - quando ela precisava que a tratassem
com extremo cuidado e carinho. Sentiu a mão de Wani cravando-
se no seu ombro, empurrando-o para baixo, e Nick ajoelhou-se,
primeiro só com um joelho, e olhou para ele com um ar grave e,
depois, pôs o outro joelho no chão e meteu a picha dele na boca.
Wani não tinha uma picha grande, mas era muito bonita, e as
suas erecções, pelo menos enquanto a coca batia a um nível
muito profundo, eram tão violentas e rígidas como as de um
adolescente.
Nick manobrava-o de uma forma fácil e constante, com a sua
picha ainda encerrada na braguilha, numa entesada diagonal,
uma outra coisa que estava à espera de acontecer, e o revelador
- denunciador - rangido do soalho soando em rápidas corridas,
como um rato louco, e, depois, com uma impressiva
intermitência; Nick quase seguia o seu ritmo, mas também era
uma distracção, como as vozes no cimo das escadas, uma
espécie de travão ou advertência. Deviam ter mudado a cama, ou
então estavam a foder no chão, talvez estivessem. Imaginou-os
aos dois, Catherine de uma forma imprecisa e ansiosa, Jasper de
uma forma muito mais nítida.
As mãos de Wani afagavam e agarravam-se aos cabelos de Nick,
puxavam-nos com uma violência desagradável. «Mas que grande
foda que eles estão a dar...», murmurou. «Que duas putas...»
Nick olhou de relance para cima e viu-o a sorrir, no seu transe
erótico, não para ele directamente, mas para os dois, para as
suas imagens no espelho; e, também (Nick sabia), vendo para lá
do espelho, para lá do próprio roupeiro, vendo o quarto para lá da
parede, um quarto que Wani nunca vira e que podia transformar-
se - sem grande esforço - no quarto de motel de uma qualquer
fita porno de segunda. «Mas que grande foda que eles estão a
dar. Que duas putas» - Nick deu-se conta do gozo que Wani tinha
em repetir aquilo, sempre num murmúrio, e roncava enquanto as
pequenas investidas de Wani contra o seu rosto ganhavam o
ritmo cada vez mais acelerado dos jovens do quarto ao lado.
Sentia-se constrangido, usado para satisfazer uma fantasia que
não podia, de maneira nenhuma,

293

partilhar - tentou uma vez mais, já tinha batido umas quantas


punhetas à custa de Jasper, mas Catherine era sua irmã, e ainda
por cima uma doente que dependia do lítio, e, bom... uma
rapariga. Ouvia a voz dela agora, rápidos gemidos em staccato...
e a respiração de Wani, que se escapulia da sua boca no preciso
momento em que ele o apanhava. E, então, ocorreu-lhe uma
outra ideia, um segundo recurso, uma maneira cómica e secreta
de se vingar de Wani enquanto o conduzia ao orgasmo - fora
Ronnie quem ele convidara para o seu quarto, para o consolar
dos problemas com a mulher, para lhe dar dez minutos de
assistência como devia ser, de homem para homem. Claro que
isso exigia um pequeno ajustamento, um pequeno e novo desvio
no faz-de-conta, visto que, na sua imaginação, Ronnie tinha uma
picha que era o dobro da de Wani - pelo menos. Porém, enquanto
Wani saía da sua boca no último momento e Nick cerrava os
olhos tanto quanto podia cerrá-los, era quase como se, de facto,
tivesse Ronnie à sua frente, em vez do homem que amava.
Na sala de estar, um pouco mais tarde, soava já a coda da festa,
e Gerald abria mais garrafas de champanhe como se não fizesse
a menor distinção entre os chatarrões dos bêbedos que nunca
mais se iam embora e os raros privilegiados do seu círculo
íntimo, reunidos em torno da lareira de mármore vazia. Estavam
lá os Timms, e Barry Groom, conversando cada um ao seu jeito,
jeitos diversos, é certo, mas todos eles fanáticos, com as suas
nuances de zelo e exasperação - todo um mundo nos antípodas
de Nick, e agora mais do que nunca, naquela quietude, naquela
calmaria, depois das drogas e do sexo. Viu que Polly Tompkins
estava sentado com eles, como que entre iguais, e revelando já
alguma avidez por qualquer coisa de superior. Pelos vistos,
Gerald ainda não tivera oportunidade de examinar o último
documento sobre a dívida do Terceiro Mundo. - Não se esqueça
de dar uma olhadela - disse Polly, e acenou-lhe como um
catedrático num raro acesso de cordialidade. O que aquele
aceno de cabeça tinha de estranho era o facto de imitar o aceno
de Gerald, tal como o colarinho branco de Polly imitava o
colarinho de Gerald. Era uma imitação hábil, ligeiramente
amorosa, e, visto que o amor em causa era um caso
desesperado, também um nada irónica. Não havia dúvida: tudo o
que havia de agradável em Polly era o efeito de um cálculo.

294

Entretanto, Morgan, a mulher que Polly levara à festa, apareceu


na sala e logo se juntou ao grupo de Gerald, que se afadigava a
repisar a escandalosa recusa de Oxford em atribuir um grau
honorário à primeira-ministra. John Timms, que padecia de uma
inflamada crença nas convenções, encarava o incidente como
um verdadeiro ultraje, mas Barry Groom, que não se tinha
preocupado minimamente com o caso, comentou: - Eles que se
vão... lixar todos, é o que eu digo - num tom franco e rude que fez
com que Morgan corasse e logo se envolvesse na disputa num
jeito tão masculino quanto o dos homens. A única coisa de
tocante que havia nela era uma incerteza notória quanto à
eventual comicidade dos comentários dos outros; Morgan, pura e
simplesmente, não sabia quando é que determinado comentário
era cómico - tal como não sabia por que razão o era. «Parece que
acham que a nossa grande dama é contra a instrução e o
conhecimento», disse Gerald. E Morgan olhou com um ar
desconcertado para aqueles rostos que se desfaziam em
gargalhadas.
Vistos da varanda, naquele entardecer de fins de Julho, os
jardins ganhavam uma profundidade extrema, como se houvesse
sempre um outro verde para lá do último verde, como num
misterioso quadro de Hodgkin, e, no ponto mais longínquo da
paisagem, era possível ver um casal desmaiadamente luminoso
reclinado na relva. O assombroso verde de Londres no Verão. A
imensidão pálida do céu logo após o crepúsculo, pássaros que
piavam para logo se calarem, uma invencível solidão que se
estendia desde o passado como o levante que lentamente
escurecia. A escuridão galgava o céu e as cores rendiam-se, o
verde convertia-se numa dúzia de cinzentos e pretos, o longínquo
casal esvaecia-se e desaparecia.
- Olá...!
- Ah, olá, Jasper.
- Então como é que estás, querido? - e a mão de Jasper quase se
cravava nas suas costelas.
- Muito bem. E tu?
- Ooh, não estou mal. Um pouco cansado...
- Hmm. O que é que andaste a fazer?
O jovem Jasper, provavelmente não mais jovem que Nick mas
com aquele aspecto incerto de quem acabara de sair da
faculdade, rápido e indolente ao mesmo tempo, com aquele seu
jeito de flertar,

295

aquela presunção de que conhecia uma pessoa, como se, por ir


para a cama, ou para o chão, com Catherine, ganhasse direitos
iguais, um passado instantâneo, perante o velho amigo íntimo de
Catherine... Jasper não fazia seguramente ideia de que alguém,
por mero acaso, ouvira o que se passara no quarto dela, mas o
sorrisinho, tão pretensioso quanto tolo, que, como um pisca, lhe
ia iluminando o rosto, era um convite para que os outros
adivinhassem o óbvio - que ele andara a fazer das suas. O rosa do
sexo perdurava ainda nas suas faces. Encostou-se ao parapeito
da varanda, junto a Nick; de uma coisa não havia dúvida: estava
bastante bêbedo.
- Catherine está bem?
- Está... Um bocado para o exausto, já foi para a cama. Estas
cenas não são nada o género dela.
Nick contemplou a complexa presunção desta análise e disse:
- As coisas entre vocês estão a correr bem?
- A ah sim - disse Jasper, com um momentâneo beicinho e um
sobrolho que se franzia num jeito dolorido, como que a dizer que
aquela era, de facto, uma ligação tórrida. - Não, ela é uma mulher
incrível.
Nick não conseguia estar à altura de tais observações. Passado
um momento, disse, do modo mais afável que lhe era possível:
- Jasper, tu preocupas-te com os problemas dela?
- Atenção! Falou o tio Nick! - disse Jasper, melindrado e, de
algum modo, furtivo.
- Quer dizer, ela parece bastante estável neste momento, mas
seria pura e simplesmente desastroso se voltasse a deixar a
medicação.
- Acho que ela tem isso tudo sob controlo - disse Jasper, após
uma pausa, ajustando o seu tom, todo o seu acento. Recuou um
nada e afastou com a mão direita a lustrosa madeixa castanha
que lhe caía sobre a testa e que, uma fracção de segundo depois,
ficou como estava; logo a seguir, a mão enfiou-se no bolso do
casaco, só com o polegar de fora: gestos levemente irritantes
com que pretenderia talvez transmitir empenho e energia
perante o eventual, e ainda cheio de dúvidas, comprador de casa.
- Ela adora-te, Nick
- disse.
Nesse instante, Polly Tompkins apareceu na varanda, talvez com
ciúmes por ver Nick com o rapaz a quem, horas antes, se
encostara

296

com tanto denodo e sem nenhum resultado prático. NicK


apresentou-os num tom tenuemente divertido que era a
afirmação de uma indiferença por ambos. - Pensava que andavas
a evitar-me - disse.
Jasper deixou-se ficar na varanda, aguardando, como quem não
queria a coisa, para ver no que é que aquilo dava, e também para
ver se aquele tipo grande e gordo de casaco assertoado, que
podia ter uma idade qualquer entre os vinte e cinco e os
cinquenta anos, fazia parte da conspiração gay ou da
conspiração straigth. Polly retorquiu: - Tu és uma verdadeira
borboleta social, como é que eu ia apanhar-te com a minha rede?
- e olhou para Jasper como que a dizer-lhe que saberia encontrar
um osso para ele, já que, pelos vistos, Nick não sabia.
Nick disse: - Bom, eu fui uma lagarta social durante muitos anos.
Polly sorriu e tirou um maço de tabaco. - Pareces muito íntimo do
nosso amigo Mr. Ouradi. De que é que estiveste a falar com ele?
- Oh, tu sabes... cinema... Beethoven... Henry James.
- Mmm... - Polly olhou para o Silk Cut, um maço de dez cigarros,
próprio para quem queria deixar de fumar, mas não o abriu. - Ou
Lord Ouradi, como, suponho eu, estaremos a chamar-lhe em
breve.
Nick fez um esforço para não parecer surpreendido, enquanto
tentava descobrir por que razão estaria Polly a gozar com ele.
Disse: - Não me surpreenderia, actualmente, há uma espécie de
gravidade social invertida, não é. As pessoas caem, afundam-se,
para cima.
- Creio que Bertrand merece bastante mais do que isso - disse
Polly, resistindo com êxito ao apelo dos cigarros e devolvendo o
maço ao bolso.
- De qualquer modo, ele não é britânico, pois não? - disse Nick
num tom ligeiro, e bastante orgulhoso da sua objecção. Porque,
no fim de contas, fora Polly quem, em tempos, chamara a
Bertrand Ouradi «um merceeiro do Levante».
- Aí está um problema que não será difícil superar - disse Polly
com um rápido e compadecido sorriso. - Bom, temos de ir
andando. Só queria despedir-me. Morgan tem de se levantar cedo
amanhã. Vai ter de voar para Edimburgo.

297

- Bom, meu caro - disse Nick -, nestes últimos tempos, quase


ninguém te vê. Já desisti de guardar o teu lugar no Shaftesbury,
uma amabilidade, um vago gesto sentimental com que saudava o
tipo de amizade que, na realidade, nunca tinham tido.
E Polly fez uma coisa ínfima, mas extraordinária: olhou para Nick
e disse: - Não que eu esteja minimamente de acordo com o que
disseste ainda agora, acerca da atribuição do título de Lord. -
Não se inflamou de indignação, não franziu o sobrolho, não fez
nenhum esgar, mas o seu rosto comprido e gordo parecia ter
endurecido sob um verniz de ameaça e rejeição.
Polly entrou na sala e Jasper seguiu-o, virando-se apenas para
saudar Nick com um breve e abrupto aceno, numa imitação
inconsciente de Polly; pelos vistos, um tal maneirismo tinha
tendência a espalhar-se, uma nota de desdém que era um sinal
de vassalagem.

298

10.

As escadas de serviço ficavam mesmo ao lado das escadas


principais, só uma parede as separava, mas havia entre elas uma
diferença abismal: as estreitas escadas de serviço, perigosas
porque desprovidas de corrimão, sob a pálida e desolada luz de
uma clarabóia, em cada degrau uma cova brutal cavada pelo
desgaste, giravam apertadamente num profundo poço cinzento;
ao passo que a grandiosa curva das escadas principais, um
milagre de cantiléveres, apartando-se e voltando a juntar-se, era
acompanhada pelos retratos de bispos-príncipes e tinha espigas
de milho nos corrimões de ferro forjado que estremeciam ao
sabor dos passos. Era por fim a glória, uma escalada deliciosa, a
partir da qual pequenas portas com soberbas almofadas,
movidas por alavancas situadas um nada abaixo dos sapatos de
salto alto, ornados de rosetas, dos bispos-príncipes, davam
acesso, em cada patamar, às escadas de serviço e à sua
traiçoeira obscuridade. Quão rapidamente, quase sem dar por
isso, um tipo corria de umas escadas para as outras, no encalce
do altivo Coelho Branco, uma famosa estrela porno, antigo aluno
da Harrow School(1), que apertava e distendia o esfíncter como
quem pisca o olho, enquanto sinos repicavam, multidões
murmuravam e pombos cirandavam em torno das águas-furtadas,
e Nick acordava e dava por si,

*1. Famosa e muito antiga public school britânica, situada em


Londres e actualmente integrada na Universidade de
Westminster. Byron e Churchill, só para citar dois exemplos,
foram seus alunos. (N. do T.)

299

de novo, no seu pequeno quarto, no confortável anti-clímax do


lar.
Deitado de costas, na luz coada pelos cortinados, os inveterados
hábitos do lar tomavam conta dele sem uma palavra... Wani,
claro... sim, Wani... no carro... e aquela vez com Ricky, a
indignidade de toda essa história... se bem que o lar,
historicamente, fosse um santuário das saudades de Toby, quase
extinto agora, reavivado apenas quando se rendia a uma
nostalgia mórbida... ainda assim, parecia possível... Toby, três
anos antes... em Hawkeswood... a manhã depois da grande
festa... quando o chamou para o Quarto do Rei, suado da
ressaca, sob um lençol todo amarfanhado ... «Foda-se, que
noite...!», e, depois, disparou para a casa de banho... a única vez
que o viu nu... um enorme e inocente cu de remador... mas isso -
teria acontecido mesmo...? e o que aconteceu a seguir teria
realmente acontecido...? e Wani nessa noite... encontrou-o nas
escadas... quem teria imaginado... veludo verde-escuro... oh
santo deus, Wani no apartamento... amarrado à cabeceira da
cama... a cama com a dupla curva em S...
Devia ser Mrs. Creeley com a mãe dele no caminho. Estavam a
falar do carro, o pequeno Mazda de Nick, «um belo utilitário»,
como lhe chamara o pai, para minimizar a evidente ansiedade
tanto dele como da mãe, porque, para eles, a questão era só
esta: como é que o filho pudera ter acesso a um luxo daqueles?
NG 2485: Mrs. Creeley estava toda excitada com a matrícula,
Mrs. Guest talvez reticente. («Deve estar a correr-te bem a vida,
meu querido», dissera a mãe, no mesmo tom em que costumava
dizer «Não estás nada com bom ar, meu querido».) Pombos
torcazes nas árvores, nos densos espruces do jardim da frente,
entretidos nos seus cismáticos chamamentos, censurando,
perdoando - quem poderia saber? As duas mulheres afastaram-
se, levadas pela lenta rede da bisbilhotice ao longo do caminho
de cascalho: conversas sobre a venda do campo, sílabas apenas,
trazidas pela ténue brisa que entrava pelas janelas abertas,
obscurecidas pelos pombos, sílabas enfileiradas como contas,
soando como as horas, rítmicas e sem sentido, a brisa
levantando e baixando os cortinados com um único sopro
indolente, silenciando as vozes. Deixar-se ficar na cama: a
tradicional concessão das férias escolares, das raras visitas de
fim-de-semana. O pai teria ido para a loja - se calhar, acordara
com o ruído arrastado,

300

tão familiar, da porta da garagem, com a porta do carro a bater,


e, depois, deitara-se de lado e perdera-se de novo em sonhos
com escadas. Mrs. Creeley foi-se embora, não ouviu a mãe
entrar, devia andar com as suas calças de jardinagem, uma blusa
velha qualquer. Gerald ia fazer-lhes uma visita naquela noite, e a
casa, tanto por dentro como por fora, tinha de estar em
condições para a inspecção... Pouco depois, veio o toque-toque
pachorrento de um cavalo, sons tão abstractos e tranquilizantes
como o som dos esforços dos outros nos courts de ténis em casa
- na sua outra casa. Não tinha a certeza, mas parecia-lhe que
fazia sentido, nenhum cavalo devia ter o mesmo tom ou
ressonância nos quatro cascos, aquele cavalo, ao afastar-se,
produzia uma estranha impressão de lento passeio, como se
deambulasse, numa constante síncope musical, até que, por fim,
apenas um casco continuava, desmaiadamente, a ouvir-se.
Bem no extremo da vila, era onde eles viviam, onde, precavidos,
cautelosos, tinham escolhido viver, em Cherry Tree Lane, casas
do pós-guerra, casas decentes, com imenso espaço para o
jardim, e não mais que uma vista de campos nas traseiras, e os
cavalos que, uma vez por outra, se abeiravam da cerca e se
punham a remoer os delfínios e as folhas do salgueiro-chorão. E,
agora, aquilo que mais temiam acontecera, Sidney Hayes
comprara os terrenos vizinhos, e, desse modo, conseguira
finalmente um acesso da estrada ao campo onde guardava os
seus cavalos; tal como conseguira - com uma rapidez
assombrosa - autorização para construir cinco moradias em
quatro mil metros quadrados. Toda a gente protestara contra os
planos, tinham mesmo convencido Nick, que coisa mais
embaraçosa, a levar o caso ao conhecimento de Gerald, na
qualidade de deputado por Barwick; Gerald disse,
evidentemente, que poria cobro a tal situação, mas depressa se
desinteressou do caso visto que não havia nenhuma
irregularidade, de facto aquela história até era regular de mais,
havia uma explosão do imobiliário, ter casa própria estava ao
alcance de todos, e, mesmo com esse novo empreendimento em
cima deles, valia a pena, pois o valor da vivenda Linnells, tão
certo como dois e dois serem quatro, ia subir, subir, subir... Tudo
isto lançava uma perturbante e contínua sombra sobre as vidas
de Don e Dot Guest. Nunca tinham estado tão bem na vida, o
negócio agora ia melhor,

301

e, no entanto, naquelas vistas que eram o seu encanto, uma


preocupação durante muito tempo contida estava prestes a
materializar-se em tijolos e ardósia.
Apesar da longa e silenciosa presença da casa na sua vida, Nick
sentia uma extrema dificuldade em interessar-se por ela, por
aquelas paredes pintadas num tom rosa e aquelas janelas com
molduras metálicas; faltava-lhe poesia. Na vivenda Linnells,
como Gerald dissera a propósito de Hawkeswood, o que contava
era o conteúdo: uma multidão de móveis, famílias apinhadas de
figurinhas de porcelana de Staffordshire e Chelsea, três
competitivos relógios tiquetaqueando numa sala onde a família
de carne e osso se reunia, controlada e mesmo um pouco
oprimida pelos seus próprios bens. Um estado de coisas que se
alterava, de um modo imprevisível, sempre que chegava à loja
alguma coisa com que Don queria viver, ou quando, de súbito,
encontravam um comprador para qualquer coisa que tinham em
casa. E era assim que o mercado os pressionava, de uma forma
aceitável, divertida, e, então, deixavam partir um baú ou um
relógio de pêndulo, coisas que, na infância e adolescência de
Nick, possuíam já o estatuto de bens a integrar na herança.
Durante anos, tivera uma bela e ampla cama de nogueira, um
confortável duplo de imaginadas noites de sexo - as espirais e os
leques no grão da nogueira eram as flores subaquáticas do
pensamento adolescente, uma pálida vida vegetal, em águas
represadas, de uma centena de manhãs em que se deixara ficar
na cama. Porém, certo Natal, mais exactamente o Natal depois
de ter assumido a sua homossexualidade, Nick chegou a casa e
verificou que lhe haviam tirado a cama debaixo do corpo, ou seja,
o pai vendera-a e substituíra-a por uma coisa banal, moderna,
single, e que rangia de uma maneira capaz de inibir o mais
ousado dos jovens. No ano anterior, ou à volta disso, com o
florescimento do negócio, Don começara a pedir «preços de
Londres», expressão que, no código da família, significava
roubalheira. Entretanto, os preços de Londres também tinham
subido, de maneira que a loja de Guest continuava a ser mais
barata do que as suas congéneres de Londres - ou seja, valia
bem a pena a viagem. No dia anterior, após a grande e
embaraçosa surpresa do carro, Nick tivera a sua própria
surpresa: a escrivaninha desaparecida. «Nunca adivinharás
quanto cobrei por ela», disse o pai - com um ar de cobiça
inusitado e ainda constrangido.

302

Nick desceu e, não sem alguma timidez, deu uma espreitadela ao


carro. Gostava de proporcionar a si mesmo essa pequena
surpresa preparada, aquilo era novo o bastante para que a
excitação do momento da sua chegada se reacendesse
belamente todas as manhãs. Como uma prenda nova de uma
criança, o carro iluminava um dia cinzento e fazia com que
valesse a pena levantar-se, arranjar-se e sair, nem que fosse para
ficar parado no pára-arranca do trânsito de Londres, para sentir
apenas a emoção da posse. Se o carro chocara os pais, a
verdade é que também o chocara a ele, a cor, aquele ar
arreganhadamente radioso, a matrícula, tudo coisas que ele não
teria escolhido para si mesmo. Porém, o fardo da escolha e da
decisão fora-lhe retirado, aquilo era o que Wani queria que ele
tivesse e Nick limitou-se a aceitar. O carro era o lado mais baixo
da sua natureza, embrulhado com um bonito lacinho de prenda, e
o certo é que se acomodou rapidamente a ele e acabou por
achar que, afinal, o carro não era assim tão mau nem tão baixo
como o pintara. Um primeiro carro era um grande dia para
qualquer rapaz e, se havia coisa que Nick desejava, era que os
pais se deixassem envolver por aquela onda de alegria e
desatassem a bater palmas; mas os pais não eram pessoas
desse género, eles não batiam palmas por coisa nenhuma.
Explicou, com ansiosos sorrisos, que tudo aquilo tinha a ver com
trabalho, tinham-lhe devolvido montes de dinheiro dos impostos,
enfim, uma coisa tão complicada que ele próprio não entendia.
Tentou entretê-los com o mecanismo do capot, abriu a capota
para o pai dar uma espreitadela aos cilindros e mais não sei o
quê, coisa que o pai fez com um aceno da cabeça e um «hum...
hum...»; o seu interesse por óleos limitava-se àqueles que usava
para reparar os relógios. Nick perguntava-se por que raio é que
eles não eram capazes de partilhar a sua excitação; mas, ao fim
de dez minutos, teve de admitir que, de algum modo, sempre
soubera que não partilhariam - quando imaginara a alegria, a
efusividade, da sua chegada, não fizera outra coisa senão iludir-
se. Lembrou-se de um obscuro incidente da sua infância, quando
roubara dez xelins à mãe para lhe comprar um presente - uma
pequena galinha de porcelana; negara o roubo com tal profusão
de lágrimas que, agora, já não tinha a certeza se roubara ou não
o dinheiro; quase se convencera da sua inocência. O episódio
continuava a ensombrar a sua mente como uma tentativa de
agradar obscuramente culpada

303

- e que fracassara por completo. O mesmo se passava com o


carro, eles não conseguiam perceber de onde é que lhe vinha o
dinheiro para ter uma coisa daquelas, e tinham razão, sim, num
certo sentido tinham razão, visto que o conheciam tão bem:
havia qualquer coisa de muito importante que ele omitira. Para
usar as palavras de Rachel, o Mazda era sem dúvida ordinário e
potencialmente inseguro; porém, para Don e Dot, o seu reluzente
focinho vermelho no caminho da casa era mais do que isso, era o
choque de quem Nick era, e a decepção.
Gerald deslocava-se a Barwick no cumprimento de vários
deveres, primeiro a Festa de Verão, que inauguraria às duas
horas, e, mais tarde, no Crown, um jantar de homenagem ao
mandatário local do Partido Conservador, que se ia retirar da
coisa pública; entre a festa e o jantar, estava previsto que
passasse por Cherry Tree Lane para uma bebida. Era o último
fim-de-semana antes de partirem para França, e o seu habitual
mau humor relativamente a tudo o que tivesse a ver com Barwick
só era mitigado pela perspectiva de que ia discursar em pelo
menos dois desses eventos. Rachel ficara em casa e Penny viera
com Gerald para tomar nota dos nomes das pessoas em tiras de
papel e evitar, desse modo, as confusões que, no passado,
haviam causado tão má impressão.
A festa de Barwick, a que Nick não assistia desde os seus
tempos de escola, decorria no Abbots' Field, um parque situado
perto do centro da vila. Numa tarde de sábado normal, o parque
tinha duas obscuras atracções, um fragmento daquela que, em
tempos, fora a grande abadia agostiniana, e uns urinóis públicos
cujos graf-fiti, com uma quantidade de desvairadas réplicas e
obliterações, haviam provocado no adolescente Nick um
interesse ainda mais intenso do que o curvilíneo entrelaçado do
coro dos monges. Nunca tivera contacto nenhum nos urinóis,
nunca acrescentara nem riscara nada nos grafitti, mas, sempre
que passava por ali, num passeio com a mãe, e ouvia as
movimentadas descargas, forçosamente produzidas pelos seus
utilizadores, visto que não havia nenhum funcionário a zelar
pelos urinóis, ficava com um ar tenso e cuidadoso, sentia os
laços que o uniam a uma multidão desconhecida. No dia da festa,
um amplo círculo de tendas ocupava o parque, havia um espaço
para a prática do boliche, murado com fardos de palha, um velho
tractor a vapor soltava estridentes assobios e a banda
filarmónica local tentava erguer bem alto a bandeira da
harmonia numa dura batalha contra o desafinado escarcéu de
um velho carrossel. Nick deambulava pelo parque, sentindo-se ao
mesmo tempo ilustre e invisível. Parava para falar com amigos
dos pais, que se mostravam afáveis, embora - de um modo quase
imperceptível - lacónicos, por causa do que sabiam ou
adivinhavam acerca dele. A afabilidade, uma nota de uma muito
viva solidariedade, ia toda, de facto, para os seus pais, não para
ele. O que, por um momento, o levou a perguntar-se que coisas
diriam dele; devia ser difícil para a mãe gabar-se de um tal filho.
Ser uma espécie de assessor artístico numa revista não
existente era algo de tão obscuro e insatisfatório como ser gay.
Suspeitava que havia ali um falso respeito, o qual,
provavelmente, era apenas uma fachada cortês, uma exibição de
boas maneiras; uma relutância em entrar em conversas que
pudessem revelar verdades. Viu Mr. Leverton, o seu velho
professor de Inglês, que preparara com ele A Volta do Parafuso e
o mandara para Oxford, e conversaram um pouco acerca do
doutoramento de Nick. Agora, Nick tratava-o por Stanley, com
uma sensação residual de transgressão. Sentia que, por detrás
dos óculos de armação escura de Mr. Leverton, havia uma
espécie de desejo arreigado e incumprido pelo amplo campo de
especulação em que Nick se movia agora, e também por outras
coisas. O velho tom de vivo entusiasmo vacilava devido a uma
nova ansiedade, a ansiedade de estar ao nível do seu antigo
aluno. Disse: «Volte e faça-nos uma visita! Podia conversar com
os nossos melhores alunos. Este ano, temos um grupo de estudo
da obra de Hopkins, é um belo grupo.» Mais tarde, Nick
cumprimentou Miss Avison, que, muitos anos antes, lhe ensinara
danças de salão; a mãe tinha-lhe dito que era uma coisa pela
qual se sentiria eternamente grato. Miss Avison lembrava-se de
todos os miúdos que haviam sido seus alunos e não se dava
conta de que eles tinham crescido e mudado e não dançavam
uma valsa ou um two-step há vinte anos. Nick sentiu por um
momento que era ainda um rapazinho muito querido e
ditosamente submisso.
O sistema de som crepitava e gemia. Nick encontrava-se num
extremo do campo, flanando atrás de um grupo de rapazes
locais, fingindo que admirava uma tenda de cerâmica local muito
primitiva. A presidente da Câmara fez um discurso
absolutamente insípido,
304 - 305

mas que contou com a boa vontade da assistência e com a


esperança de que acabasse muito mais cedo do que, de facto,
acabou. As famílias erravam pelo parque com um ar meio atento.
Na plataforma baixa onde a presidente da Câmara discursava,
ressaltavam as insígnias do seu cargo - uma corrente que trazia
ao pescoço -a cintilação dos óculos, e o vestido primo-
ministerial, uma coisa de um tom azul vivo rematada com
laçarotes brancos; e Gerald, de pé atrás dela, com uma
impaciência sorridente. A presidente fez um comentário infeliz
sobre o facto de não ter conseguido levar nenhuma celebridade
para inaugurar a festa, mas, pelo menos, a pessoa que tinham
arranjado chegara a tempo - «ao contrário de uma certa estrela
das ondas sonoras, o ano passado!» Depois disto, Gerald atirou-
se ao microfone como se estivesse a arrancar o volante de um
autocarro das mãos de um motorista bêbedo.
Ouviram-se aplausos, difíceis de medir, perdidos no amplo
espaço ao ar livre; bem como um ou dois gritos e buzinadelas
para que Gerald não se esquecesse de que, embora tivesse
obtido uma larga maioria, ainda havia eleitores que não tinham
ficado sedados com a habitação social da Câmara nem com as
descidas nos impostos. «Eu gostei quando veio Derek
Nimmo»(1), disse uma mulher a Nick. Nick sabia aonde é que ela
queria chegar, absorvia sem um protesto as críticas que as
pessoas faziam a Gerald, mas continuava a sentir aquele velho e
secreto orgulho pelo simples facto de o conhecer. Olhou
atentamente à sua volta, seguiu - com os olhos - o espantoso cu
do filho dos Cárter, sorriu lealmente das graças de Gerald, e
sentiu nelas uma mistura de comiseração e superioridade, no
fundo uma mistura muito próxima daquilo que ele sentia. Ficava
com um ar tão decadente, ali, naquele campo, naquela festa... E,
francamente, como é que se podia esperar que Gerald, a um
passo de entrar para o governo, contando com os favores da
Dama, um divertido orador no Parlamento, se preocupasse
minimamente com uma assistência de miúdos aos berros e de
pensionistas surdos? Catherine dizia que Gerald desprezava os
seus eleitores. «Se ao menos os nossos deputados não tivessem
de ser deputados por um sítio qualquer...», dizia ela. «Se o meu
pai não fosse deputado por,

*1. Actor britânico bastante popular na altura, em particular


devido à sua participação em séries televisivas cómicas e na
rádio. (N. do T.)

306

seria o mais feliz dos homens. Tu sabes que ele odeia Barwick,
não sabes.» Nick rira-se disto, mas perguntava-se se os seus
«queridos mãe e pai» escapariam, de facto, a esse ódio. «Este é
um dia inglês clássico», estava Gerald a dizer, «e este é um
cenário inglês clássico». E Nick achou que devia recorrer da
sentença de Catherine. De certeza que, sob esta bem-disposta
impostura, há outra coisa qualquer que está a acontecer: isto
não pode deixar de ter alguma importância para ele - enquanto
diz estas banalidades todas, vai-se convencendo de que, afinal,
até está a fazer um belo discurso, deixa-se levar numa onda de
retórica e auto-estima. Saiu-se com uma graça sobre um francês
que resolveu fazer um daqueles programas de férias de bicicleta
- não correu nada mal; e, ao aproximar-se do desfecho - mesmo,
mesmo, no momento exacto - cometeu a proeza de sugerir que,
longe de ser um abastado homem de negócios que viera de
Londres para exercitar o seu ódio em relação àquela gente, ele
era, de facto, o espírito de Barwick, o Pick-wick(1) de Barwick,
abrindo a festa para o povo como se fosse a sua própria casa.
Numa investida decisiva, cortou a fita, que não delimitava nada:
o microfone espalhou pelo parque o deslizante estalido da
tesoura.
Depois disto, Gerald foi conduzido numa volta quase régia pelo
recinto da festa, tolhido, no que tocava ao seu estilo, pela
presidente da Câmara, que se encaixava com toda a naturalidade
no papel de consorte. Nick queria ficar de olho nos
frequentadores dos urinóis, mas sentia também a atracção do
grupo de Londres e acabou por se juntar a Penny. - Correu bem, o
discurso - disse.
- Gerald foi excelente, claro - disse Penny. - Não estamos nada
satisfeitos com a presidente da Câmara. - Observaram a
presidente, que parara na tenda das geleias e examinava os
preços como se estivessem a tentar ludibriá-la, pelo que talvez
fosse necessário regateá-los; perante o que, movido por um
súbito impulso, o deputado por Barwick, que não sabia o preço
de coisa nenhuma, tirando os do barbeiro e das várias marcas de
champanhe, pegou em cinco libras e comprou dois frascos de
geleia,

*1. A personagem central de As Aventuras Extraordinárias do Sr.


Pickwick, de Charles Dickens, de 1836. Ou seja, alguém que se
caracteriza por uma grande simplicidade e generosidade. (N. do
T.)

307

com os quais se apressou a posar para a imprensa local. «Deixe-


se estar com os frascos um bocadinho, sir!» - e Gerald, para
quem a presença dos fotógrafos tinha sempre um efeito
apaziguador, estendeu os braços os frascos nas mãos em taça,
num jeito que roçava o lascivo, até que Penny, como se fora o
agente silencioso de um desejo, avançou para lhe tirar os
frascos; ele ainda os agarrou por um momento, o tempo
necessário para segredar à secretária: «Je dois me séparer de
cette femme commune.»(1)
Na tômbola, Gerald comprou dez senhas e deixou-se ficar para
ver o que dava o sorteio. Os prémios eram garrafas, de todos os
tipos, desde HP Sauce atéjohnnie Walker. O seu traje era o
menos apropriado possível para um dia no campo, a
inconfundível camisa azul com colarinho branco e gravata
vermelha, e o fato de risca fina com o casaco assertoado,
ressaltavam como um salpico de West-minster no meio das
mangas de camisa e dos jeans e dos vestidos baratos de
algodão. Acenou e sorriu para uma mulher que estava ao seu
lado e perguntou-lhe: - Então, está a ter um dia agradável?
- Não me posso queixar - disse a mulher. - Quero ver se ganho
aquela garrafa de cherry brandy.
- Muito bem, bom, então boa sorte. Quanto a mim, creio que não
vou ganhar coisa nenhuma.
- Mas também não precisa, pois não?
- Vamos a isto, Mr. Fedden, sir! - disse o homem da tômbola.
- Olá! Muito gosto em vê-lo... - disse Gerald; era a sua fórmula de
político para cobrir a possibilidade de já se ter encontrado com
um interlocutor.
- Cá vamos nós, então! Um bom prémio para si seria o HP Sauce,
não é verdade, sir?
- Ninguém sabe a sua sorte, não é? - disse Gerald, e depois,
enquanto o tambor hexagonal rodava ao sabor da manivela: - Há
coisas para toda a gente! Todos devem receber um prémio!
- Ah, essa já não é nada nova! - comentou um homem com uns
óculos de armação dourada, o qual, obviamente, se integrava na
categoria «socialista sabe-tudo», um espécime que fazia
perguntas cheias de estatísticas que ninguém podia verificar.

*1. Em francês, no original. (N. do T.)

308

- Muito gosto em vê-lo - disse Gerald, centrando a sua atenção


nos números.
- Hah! - ripostou o homem.
A senhora do cherry brandy ganhou uma garrafa tamanho médio
de gin Mira Mart e desatou a rir-se e enrubesceu violentamente,
como se já a tivesse bebido e feito a mais triste das figuras. A
seguir, saíram uma garrafa de limonada e outra de Guinness. Por
fim, Gerald ganhou uma garrafa de Lambrusco. - Ah, esplêndido...
- disse ele, e riu-se num jeito galhofeiro.
- Ouvi dizer que gosta da sua pinga de vinho, sir - disse o homem
da tômbola, entregando-lhe a garrafa.
- Absolutamente! - disse Gerald.
- Não fique com isso - sussurrou Penny, quase colada a ele.
- Mmm...?
- Não se fica com o prémio... Parece mal...
- Parece horrível - sussurrou Gerald; após o que, obsequioso,
atroou: - Creio que não me ficaria bem roubar os louros da vitória
aos meus próprios eleitores. - Soaram tímidos aplausos. -
Barbara, quer dar-me o prazer de aceitar... ?
A presidente da Câmara pareceu encontrar pelo menos três
insultos nesta proposta - ao seu estatuto, ao seu bom gosto e à
sua tão propagandeada abstinência. Além disso, Nick estava
capaz de jurar que ela não se chamava Barbara. Brenda, talvez.
Sim - Bren-da Nelson, não era? A garrafa ficou por um momento
nas mãos de Gerald, como que oferecida por um escanção
sarcástico. Depois, numa pressa, devolveu-a à mesa de desarmar
onde o homem da tômbola expunha os seus prémios. - Olhe, meu
amigo, sempre é uma maneira de dar uma alegria a outra pessoa!
- disse, com um aceno de despedida.
Ainda assim, o sentimento de que lhe deveria ter sido permitido
ganhar qualquer coisa apossara-se dele de uma forma gritante.
Aproveitando um momento favorável, esticando o pescoço e
mirando à sua volta como se tivesse perdido alguém, disparou
sozinho por entre a multidão. A paciente Penny quase corria
atrás dele, os frascos de geleia bem agarrados contra o peito;
Nick vinha um pouco atrás, na esteira de risos e agitação
produzida pela passagem de Gerald.

309

O jogo do arremesso da galocha era desconhecido no Surrey da


juventude de Gerald, tal como, obviamente, na contemporânea
Notting Hill; as únicas galochas em que alguma vez mexera na
sua meia-idade eram as galochas verdes que arrancava ao
sossego do corredor da cave quando ia passar fins-de-semana de
Inverno com amigos da província. Porém, em Barwick, que ainda
tinha uma feira de gado regular e palha voando pelas ruas, a
galocha - preta com sucedâneos das velhas tachas de chumbo na
sola, folgada no calcanhar - era uma presença comum, e
arremessá-la um passatempo popular. Gerald abeirou-se do frágil
arco feito com duas varas e uma faixa, sob o qual uma linha fora
desenhada com gesso branco. - Eu sou a seguir, quero
experimentar! - disse. Exibia a expressão de quem estava naquilo
por puro desporto, tanto mais que o jogo era para ele uma
novidade absoluta; porém, sob essa superfície bem-disposta,
espreitava o brilho do aço.
- É vinte e cinco pence o arremesso, sir, ou uma libra cada
cinco.
- Eh pá, cá para mim tem que ser cinco! - disse Gerald, com uma
voz especial, cheia, suave, quase roçando a afectação, que ele
punha sempre que falava como o povo. Desatou a procurar nos
seus bolsos, mas já tinha gasto todo o dinheiro miúdo. Tirou a
carteira e estava a oferecer hesitantemente uma nota de vinte
libras quando Penny avançou e pôs uma moeda de uma libra em
cima da mesa. - Ah, esplêndido... - disse Gerald, observando um
par de rapazes que não estavam a esforçar-se nada, a galocha
caiu pesada na terra poucos metros à frente deles. - OK...!
Pegou na galocha e sentiu-lhe o peso. As pessoas começaram a
juntar-se à volta dele, visto que aquilo era uma coisa que não
acontecia todos os dias, o seu representante no Parlamento,
com o seu fato de risca fina feito por medida e a sua gravata
vermelha, agarrado a uma velha galocha e prestes a arremessá-
la pelos ares. - Sabe como é que se atira a galocha, Gerald? -
disse um local, talvez bem-intencionado. Gerald pôs uma cara de
poucos amigos, como que a dizer que, para arremessar uma
galocha, ninguém precisava de lições. Já tinha visto o ineficaz
balão dos rapazes, não precisava de ver mais. Fez o seu primeiro
arremesso com a mão à altura do peito, talvez numa atabalhoada
imitação de um atirador de setas ou de um lançador de peso,
com a sola virada para a frente.

310

Mas subestimara o peso da coisa, a qual foi aterrar entre as


primeiras duas linhas. - Sabe, tem mesmo de arremessar a
galocha - disse uma mulher de físico possante, embora com um
ar ansioso, e fez um imenso gesto imitando um arco. Um miúdo
devolveu-lhe a galocha e Gerald tentou uma segunda vez, com
um sorriso francamente divertido, como que a dizer que receber
conselhos de mulheres da classe trabalhadora, para mais com
rolos no penteado protegido por um lenço, fazia parte das suas
funções como deputado por Barwick. Imitou respeitosamente o
amplíssimo gesto da mulher, mas, talvez por causa da restrição
imposta no topo do arco pelo casaco que o alfaiate deixara bem
justo, Gerald deu à galocha como que um efeito de pião e a
galocha rodopiou duas ou três vezes no ar antes de cair com um
baque em cima da relva. - Já foi um bocadinho melhor -
murmurou alguém. - Está quase lá! - Um outro homem bradou,
num tom inflamado: - Vivam os Conservadores! - Com uma
comoção moderada, Nick deu-se conta de que, entre a multidão,
havia uma pronunciada benevolência relativamente a Gerald,
para além daquele vulgar sentimento de regozijo por estarem a
ver uma pessoa famosa a executar a mais simples das tarefas;
uma atmosfera que parecia dar uma nova força a Gerald, agora
que se preparava para a terceira tentativa. Desabotoou o casaco,
uma acção que, por si só, desencadeou reacções de aprovação
diversas, e, com o braço bem esticado para baixo, lançou a
galocha num vigoroso balão, ainda - um desperdício - demasiado
alta, embora conseguisse que ela aterrasse para lá da marca dos
vinte metros. Houve aplausos e conselhos vários sobre as
diferentes maneiras de agarrar na galocha - em cima, a meio ou
no calcanhar - e Gerald, amavelmente, experimentou-as a todas.
A quarta tentativa saiu-lhe tão mal como quando, no ténis, na
resposta a um serviço, acertava na bola com a quina da raqueta.
Os espectadores reagiram com alguma exasperação, de novo
misturada com uma espécie de solicitude, e uma voz muito
irónica, que, como depressa se viu, pertencia ao socialista sabe-
tudo, disse: - Não faz mal, uma pessoa tem de estar preparada
para fazer figura de parva. - Veio então a quinta e última
tentativa. Com uma violenta fungadela no momento do
arremesso, Gerald fez com que o projéctil descrevesse um arco
longo e baixo; a galocha foi aterrar, caindo de lado após
titubeante ressalto, na zona não assinalada para lá dos vinte
metros.

311

O miúdo deu uma corrida e enfiou um tee de golfe azul no ponto


de contacto. Ouviram-se fortes aplausos e a imprensa e o público
desataram a tirar fotografias. - Espero ter ganho um prémio -
disse Gerald.
- Ah, ainda não se sabe, Gerald... - esclareceu um solícito
habitante local. Seria talvez um prolongamento da falsa
camaradagem dos tempos da campanha eleitoral, das amizades
cegamente forjadas, o facto de os eleitores se sentirem à
vontade para tratarem o seu deputado pelo nome próprio, e, no
rosto de Gerald, uma momentânea frieza foi encoberta por uma
espécie de acanhamento, falso ou não, perante aquela realidade;
ele era propriedade pública, ele era o amigo do povo.
- Mr. Trevor - murmurou Penny, muito chegada a ele. - Fossa
séptica.
- Olá, Trevor - disse Gerald, e, pelo tom, quase parecia o
jardineiro.
- Às cinco horas - disse Mr. Trevor. - Só então saberemos: aquele
que tiver atirado a galocha mais longe ganhará o porco. - E
apontou para um pequeno curral, até então oculto pela multidão,
no qual um Gloucester Old Spot fossava no meio de uma
montanha de talos de couve.
- Santo Deus... - disse Gerald, rindo-se nervosamente, como se
lhe tivessem acabado de mostrar um pitão num tanque.
- Pequeno-almoço, jantar e chá para um mês! - disse Mr. Trevor.
- De facto... O problema é que nós não comemos porco - disse
Gerald, e preparava-se para prosseguir o seu passeio quando viu
o homem dos óculos com armação dourada aproximar-se da linha
de arremesso e sentir o peso da galocha na mão com um ar de
perito.
- Ah, Cecil é que lhe vai mostrar como é que se faz! - gritou a
mulher de rolos no cabelo, a qual, vendo bem, talvez não fosse
amiga de Gerald, nunca se sabia, com aquela gente. Cecil era
magro, mas rijo e determinado, e tudo o que fazia, fazia-o com
um muito leve sorriso. Gerald aguardou para ver o que acontecia
e Nick e Penny acercaram-se ainda mais dele e tentaram meter
conversa sobre qualquer outro assunto que não o arremesso de
galochas. - Aposto que ele sabe algum truque... - disse Gerald. -
Hã? O que é que foi...?

312

O truque de Cecil consistia em ganhar algum impulso e, depois,


com uma rotação completa do braço, lançar a galocha como se
do outro lado estivesse um batedor à espera dela - e a galocha
caiu abruptamente num sítio que ficava um metro para lá do tee
de Gerald; o miúdo correu e enfiou na terra um tee de golfe
vermelho. Depois, Cecil exibiu um outro truque, que consistia em
lançar a galocha com o braço todo estirado para baixo; a galocha
não subiu demasiado alto e foi cair perto da sua primeira marca,
mas, uma vez mais, para lá do tee azul de Gerald. Cecil possuía
um profundo entendimento do peso e da direcção da coisa, da
trajectória; com ele, a galocha não vacilava nem cambalhotava
no ar. O homem refinava estes métodos, introduzindo pequenas
variações, e, na última tentativa, conseguiu bater o seu próprio
recorde com um lançamento de, pelo menos, mais três metros.
Depois, enquanto limpava as mãos, no rosto um sorriso
tremulamente controlado, foi plantar-se não ao lado de Gerald,
mas perto dele. - É pena, mas é mesmo assim - disse Mr. Trevor. -
De qualquer modo, como não ia dar uso ao bicho...
- Oh, que se lixe o animal - disse Gerald num jeito muito vivo, e,
por um momento, o seu olhar andou num vaivém entre Penny e
Nick até que se fixou na figura aguerridamente despreocupada
de Cecil. Começou a tirar o casaco, com minúsculas e rápidas
sacudidelas da cabeça, cada vez mais afogueado, caricaturando
o seu próprio temperamento, franzindo muito o sobrolho e
sorrindo que nem um tolo ao mesmo tempo. - Sinto que isto não
pode passar sem uma firme réplica! - disse ele, no seu tom
parlamentar, espirituoso, é certo, mas também muito
significativo. Houve vivas e também alguns assobios quando
despiu o casaco e revelou os suspensórios azuis e as manchas
escuras de suor: consoante os pontos de vista, os populares
consideravam que ele estava a portar-se como um tipo porreiro
ou, então, que estava a fazer figura de parvo, como dissera Cecil.
Penny, sempre vigilante, pegou no casaco; as suas sobrancelhas
ergueram-se um nada, em jeito de advertência, mas o seu sorriso
transmitia, de uma forma clara, um apoio público e notório.
Depois, pôs-se à procura de mais uma moeda na sua malinha de
mão.

313
- Com que então ganhou um porco! - disse a mãe de Nick
conduzindo Gerald à sala de estar da vivenda Linnells. - Santo
Deus...
- Eu sei... - disse Gerald. Estava ainda com um ar um tanto
afogueado por causa do esforço despendido, ainda um pouco
efervescente de adrenalina, talvez a precisar de um duche, o
cabelo todo suado, penteado para trás. - Foram cinco séries,
mas, no fim levei a melhor! Foi uma vitória concludente! - Dot
Guest percorreu com os olhos a sala densamente mobilada,
apontou para uma cadeira após outra, parecia sentir que a casa,
toda aquela casa, era demasiado pequena para Gerald. Ele
chocava contra as coisas, estava com uma disposição
verdadeiramente indomável, era quase como se o porco tivesse
vindo atrás dele. Abeirou-se da janela que dava para as traseiras
e disse: - Que bela vista! Vocês, aqui, é como se vivessem no
campo, não é.
Num jeito cortês e muito tímido, enquanto retirava objectos
vários da mesinha que ia receber as bebidas, Dot murmurou: -
Sim... vivemos... praticamente... - e, um segundo depois, olhou
com um ar grato para Don, que trazia os gins tónicos numa
bandeja de prata. Gerald já se tinha esquecido por completo do
problema do campo.
- Bom, que dia este, hã, se me tivessem contado, não acreditava -
disse, e logo acrescentou: - Arremesso da galocha: mais um item
para o meu currículo! - E afundou-se na poltrona de Don como se
estivesse na sua própria casa, só para os pôr à vontade. -
Muitíssimo obrigado, Don - pegando no seu copo. - Acho que é
bem merecida, esta bebida.
- Onde é que está o porco? - disse o pai de Nick.
- Oh, dei-o ao hospital. Claro que, nestas ocasiões, uma pessoa
não deve ficar com o prémio, parece mal, não é. À vossa!
Nick observou-os refugiando-se no primeiro sorvo. Sentia
vergonha da mesquinhez das bebidas, do facto de o pai as ter
preparado na cozinha e de as ter levado para a sala como quem
oferecia uma preciosidade. Os pais olhavam para Gerald num
jeito orgulhoso, mas não isento de ansiedade. Eram tão
pequenos e tão arrumadinhos, tão certinhos, quase como
crianças, e Gerald era tão intenso e grande e aberto e maior do
que a vida local... Don pusera um lacinho de um vermelho muito
vivo. Na sua infância,

314

Nick sentira uma espécie de adoração pelos lacinhos do pai, pelo


truque de prestidigitação quando ele os prendia à volta do
pescoço, pelos contrastes e implicações de ordem estética dos
diferentes padrões e cores - tivera os seus favoritos, os seus
muito adorados favoritos, e quase um horror em relação a um ou
dois, vivera no drama diário dessas tiras de seda com um padrão
paisley(1) ou de terilene com um padrão de pintinhas, tão
superiores às corriqueiras gravatas dos outros pais. Agora,
porém, sentia-se constrangido ao ver aquele laço escarlate sob a
barba branca primorosamente aparada; achava que o pai ficava -
sim, um pouco - com um ar de artolas.
Dot disse: - É uma sorte, o senhor ter tido tempo para nos fazer
uma visita. Eu sei que deve andar tremendamente ocupado. E
está prestes a ir de férias, não é? - Era uma das suas
inquietações «profissionais», todas elas parte da imensa
inquietação que era a própria Londres; nesse capítulo,
destacavam-se também os guardas que desmaiavam ao fim de
várias horas em sentido e os actores que integravam o elenco de
The Mousetrap(1), acometidos, por certo, de um tédio mortal;
sim, pensava Dot, como era possível que os deputados
conseguissem despachar uma tão grande carga de trabalho?
Quando Nick fora viver para a casa de Gerald, não se esquecera
de lhe pedir que a esclarecesse quanto a este ponto. A conclusão
de Nick - que Gerald, no fundo, pouco trabalhava, que Gerald
dependia inteiramente dos briefings preparados por assessores e
secretárias que, esses sim, trabalhavam que nem uns loucos - foi
taxada de cínica pela mãe; e, sendo cínica, seguia-se que só
podia ser falsa.
Gerald disse: - Sim, partimos na segunda-feira - e encolheu os
ombros tanto quanto pôde, numa copiosa manifestação de alívio.
Nick apercebeu-se de que o deputado, chateado e sugestionável,
começou, nesse mesmo instante, a cogitar nos superiores prazer
do manoir.
- É uma coisa que me intriga:

*1. Padrão com formas curvas, tendencialmente abstractas, de


influência indiana, normalmente em estampados muito vivos. O
nome deriva do principal centro que, no século XIX, produzia
tecidos com tal padrão: Paisley, na Escócia. (N. do T.)
2. «A Ratoeira», peça de Agatha Christie, célebre por bater todos
os records de permanência em cena da história do teatro. (N. do
T.)

315

como é que o senhor consegue ter tempo para fazer tantas


coisas? - disse Dot. - Tantos documentos para ler... Eu penso
muito nisso. Nick diz que é uma tolice da minha parte... Se calhar
nunca dorme, não é, não vejo como é que arranja tempo para
dormir! É o que dizem da... da Dama, não é? Que ela nunca
dorme?
Nick incutira nos pais o uso da fórmula que Gerald privilegiava -
a Dama -, mas sentia-se embaraçado quando os pais a usavam na
presença do deputado. No entanto, Gerald parecia encará-la
como um tributo tanto à Dama propriamente dita, como a si
mesmo. - O quê, talvez quatro horas por noite? - disse ele, com
um risinho de admiração. - Sim, mas a primeira-ministra é um
fenómeno, um poço de energia! Eu sou um simples mortal,
preciso do meu sono de beleza, não me envergonho de o
confessar.
- Bom, a verdade é que, mesmo sem dormir, ela tem sempre um
ar tão bonito...! - disse Dot, num acesso de evidente devoção, e
Don limitou-se a aquiescer, demasiado tímido, por ora, para fazer
a pergunta que os obcecava: como é que ela era?
Gerald, sabendo que eles queriam perguntar-lhe isso, mostrou
que não perdera de vista a pergunta original. - Mas é claro que
têm razão. - E, num tom confidente, acrescentou: - Por vezes,
uma pessoa fica verdadeiramente assoberbada de trabalho;
tanto documento, tanta coisa para ler e escrever...! Mas eu tenho
a sorte de ser um leitor rápido. E tenho uma memória de
avestruz. Consigo despachar o Telegraph em dez minutos e o
Mail em quatro; é uma queda que uma pessoa tem, tão simples
como isso!
- Ah - disse Dot, e aquiesceu lentamente com a cabeça. - E a sua
filha, como é que vai? - Estava a ser atenciosa e cortês, e Nick
deu-se conta de que ela iria abordar questões que a
perturbavam, na esperança de obter de Gerald respostas mais
conclusivas do que aquelas que o filho lhe dava. - Tem andado
preocupado com ela, não tem?
- Oh, ela está bem - disse Gerald, num tom ligeiro; e, depois,
vendo alguma utilidade na ideia de que andava preocupado,
acrescentou: - Ela tem os seus altos e baixos, não é, Nick, a
nossa querida Puss? Não é nada fácil estar na pele dela. Mas,
sabem, aquela coisa que ela está a tomar, o Librium, foi uma
verdadeira dádiva de Deus. Uma espécie de droga-maravilha...
- Mm... lítio - disse Nick.

316

- Ah sim...? - disse Dot, o olhar num descontortável vaivém entre


o filho e o deputado.
- É verdade, a minha gatinha agora anda muito mais feliz... Creio
que o pior já passou.
Nick disse: - Catherine agora está em St. Martin's. Tem feito
coisas verdadeiramente notáveis.
- Sim, colagens e outras coisas do género... Uma maravilha, de
facto - disse Gerald.
- Ah, arte moderna, sem dúvida - disse Don, olhando para o filho
com um sombrio ar irónico.
- Ora, pai, não faça de conta que é um filisteu em coisas de arte,
porque não é - disse Nick, e apercebeu-se de que o pai não
conseguia separar o elogio da crítica; a pronúncia francesa da
palavra philistine(1) também não ajudava nada.
- Seja como for, parece que, com ela, resulta - disse Gerald, que
gostava da desculpa terapêutica para os amplos esforços
abstractos de Catherine. - E arranjou um namorado que é um
espanto, estamos todos muito contentes com isso. Porque, nesse
capítulo, nem sempre fomos muito afortunados.
- Oh... - disse Dot, e pôs-se a olhar para a sua bebida, como que a
dizer que eles, na verdade, também não.
- Mm, nós temos imenso orgulho nela - disse Gerald num tom
majestoso, tão majestoso, de facto, que até pareceu ficar um
pouco envergonhado. - E este ano vamos estar todos juntos em
França, Rachel e eu não podíamos sentir-nos mais contentes... É
a primeira vez em não sei quantos anos... E Nick, como sabem,
Nick também irá juntar-se a nós... pelo menos por uns dias... uma
coisa que já devia ter acontecido há muito tempo... - e Gerald
emborcou o resto do seu gin tónico.
- Oh - disse Dot -, tu não nos contaste nada, meu querido.
- Ah, sim... - disse Nick. - Bom, eu vou com Wani Ouradi, vocês
sabem, a pessoa com quem eu estou a trabalhar na revista,
vamos a Itália e à Alemanha pesquisar coisas para a revista, e,
depois, contamos passar pelo... manoir, por uns dias, no
regresso.

*1. «Filisteu.» Obviamente, na tradução não seria possível falar


da pronúncia francesa de «filisteu». (N. do T.)

317

- Vai ser uma experiência maravilhosa para ti, meu rapaz - disse
Don. E Nick pensou: Coitados dos velhos, realmente fazem o
melhor que podem; mas, por um minuto, quase os censurava por
não saberem que ele ia dar uma volta pela Europa com Wani, e
por o obrigarem a contar-lhes um projecto tão prenhe de
significados ocultos. Claro que eles não tinham culpa de não
saberem, Nick não podia contar-lhe aquelas e outras coisas, e,
por isso, tudo o que dizia e fazia transformava-se numa surpresa,
grande ou pequena mas, de algum modo, nunca inteiramente
benigna, visto que eram réplicas do terramoto, da surpresa,
original, a saber, o facto de que ele era, como dizia a mãe, um
não-sei-quê.
- Porque, normalmente, é Nick quem fica a cuidar da casa, não é
- disse ela. - Quando vão de férias. - Dot agarrava-se a este facto
como uma prova de que havia pessoas importantes que
consideravam o filho um indivíduo digno de confiança, pessoas
que, pelos vistos, se estavam borrifando para o facto de ele ser,
para todos os efeitos, um não-sei-quê.
- É verdade, coitado do Nick, foi tão sacrificado com isso no
passado... Mas este ano, a nossa governanta e a filha vão ficar lá
em casa, de maneira que até podem fazer uma limpeza de alto a
baixo sem ninguém a atrapalhá-las... No fundo, para elas, acaba
por ser uma espécie de férias. - E Gerald gesticulou
generosamente com o seu copo vazio.
- Parece mesmo o género de férias a que eu estou habituada! -
disse Dott, que ansiava pelos regalos e mimos de um bom hotel,
mas que era obrigada a passar o mês de Setembro na casa da
cunhada, em Holkham(1).
Don voltou à cozinha, de onde trouxe um segundo gin tónico para
Gerald, e não mais que um dedal para ele; os pais de Nick não
estavam habituados a um ritmo tão desenfreado. - É um bom tipo,
esse Ouradi, não é? - disse.
- Não o conhecem... não... Oh, é um encanto de pessoa,
absolutamente. O meu filho Tobias e ele eram muito amigos em
Oxford, bom, vocês eram todos muito amigos, não é verdade,
Nick?

*1. Aldeia da costa norte do condado de Norfolk, integrada numa


ampla reserva natural. (N. do T.)

318

- Eu só o conheci já mais para o fim - disse Nick, armado de


cautelas, ao mesmo tempo que recordava a casa de banho da
mansão dos Flintshire, em Mayfair, os lábios dormentes da coca
enquanto se beijavam. Sentiu um formigueiro, só de pensar
nesse outro mundo que estava à sua espera.
- Uma pessoa na posição dele não pode deixar de se sair bem na
vida - disse Don.
- É o que me parece... - disse Gerald, pestanejando num jeito
superior. - Sei que a família deposita nele grandes esperanças...
O pai é uma personagem extraordinária, claro.
- É aquele sujeito dos supermercados, não é.
- Bertrand? Oh, um grande homem! - disse Gerald, que usava a
palavra de um modo muito liberal, como que na esperança de
que ela se colasse a ele com a mesma facilidade. - Quer dizer,
um homem de negócios notável, obviamente... Não sei se sabem,
eu só soube do caso há dias, mas houve na vida deles um
acontecimento muito triste, horrível, de facto: é que eles
perderam o primeiro filho.
- Oh, não me diga...
- É verdade, foi atropelado por um camião, na rua, em Beirute,
claro. A criança e a ama, ou lá como é que lhe chamam no
Líbano, foram ambos mortos pelo camião. Bertrand Ouradi
contou-me isso há apenas uns dias.
Nick tinha de fingir que já sabia; com um ar sombrio, pôs-se a
acenar com a cabeça para os pais, em jeito de confirmação; os
pais, por sua vez, murmuraram a sua solidariedade, mas
pareceram não ligar muito ao caso, como se uma morte em
Beirute fosse a coisa mais previsível deste mundo. - Sim, foi
horrível - disse Nick. Era uma surpresa total. A primeira coisa em
que pensou foi que as suas presunçosas suposições de
intimidade com Wani pareciam, de facto, uma tontice completa.
Aquele era afinal o mistério da família, um mistério tenazmente
oculto, muito mais forte e negro do que o seu pequeno conluio
sexual. E Wani carregava com esse fardo... De um momento para
o outro, parecia mais tocante, mais glamoroso e mais perdoável.
- A noiva tem um ar tão querido, tão doce... - disse Dot. - Vi-a no
cabeleireiro.
- Deveras...

319

- Quer dizer, na Tatler?


- Ah, sim...
- Claro que Nick também apareceu na Tatler, por causa daquela
maravilhosa festa que o senhor deu. Durante meses, só por
causa disso, tivemos um sucesso social que nem imagina. - Esta
era uma das gabarolices favoritas da mãe, e não passava de
facto de uma figura de estilo, visto que os pais só jantavam fora
umas três vezes ao ano. - Quem é o outro que aparece muito?
Aquele muito gordo e grande, que Nick conhece? Lord Shepton: é
rara a revista em que não aparece.
- E o que me diz do pequeno utilitário de Nick? - disse Don com
um entusiasmo ansioso.
- Mm, é um belo carrinho, de facto - disse Gerald.
- Tu disseste que ele te tinha dado o carro, meu querido, eu não
percebi muito bem...
- Eu expliquei-lhe, mãe - disse Nick -, é como um carro da
empresa. Posso usá-lo desde que esteja a trabalhar para ele.
- Ele deve ter-te em muito boa conta - disse Dot, num tom
dubitativo. - Bom, é um mundo completamente diferente do
nosso, não é? - Não encontrando nenhum sinal de assentimento
por parte dos outros, Dot, passado um instante, prosseguiu: - E
como é que está o seu filho?
- Oh, Toby está em grande forma. Criou a sua própria empresa,
uma coisa pequena, vamos ver como é que ele se sai.
- Víamos tantas vezes o nome dele no jornal! - disse Don, como
se os parágrafos de Toby sobre as perspectivas do mercado
accionista, perdidos numa remota página do jornal, tivessem
constituído os momentos culminantes das suas vidas.
- Mm, penso que aí houve um certo equívoco na direcção que ele
tomou... Sabem, é que Toby é aquele tipo de pessoa que só se
sente bem nos grandes espaços, as quatro paredes do jornal,
para ele, eram uma prisão... Bom, a coisa não durou mais que
cinco minutos; mas foi bom para ele, ter feito a experiência...
- Oh, sem dúvida...
- Foi um pouco mais que cinco minutos - disse Nick.
- Mm? Sim, Nick é capaz de ter razão - disse Gerald. - Quanto
tempo foi... Seis meses no Guardian, onde, creio,

320

Toby não se sentiu minimamente à vontade, e depois um ano, ou


à volta disso, no Telegraph, na secção de assuntos financeiros...
é, foi isso.
- Ao que parece, alguns dos amigos de Nick dos tempos de
Oxford construíram já verdadeiras fortunas - disse Dot. - Como é
que se chama aquele que comprou um castelo, meu querido?
Ainda noutro dia nos falaste disso. Se não era um castelo, era
parecido...
- Oh... - disse Nick, lamentando ter usado tal história para se
pavonear perante os pais. - Sim, um deles comprou um castelo,
enfim, um castelo muito pequeno...! Mas, sabem, ele tem feito
carreira nos resseguros.
- Ah - disse Dot. Nick só esperava que ela não lhe perguntasse o
que eram resseguros. - Nos tempos que correm, os jovens vão cá
a uma velocidade! - disse ela, como se Gerald pudesse estar tão
espantado como ela.
- O filho de Lord Exmouth está a sair-se muito bem - disse Don.
- Ah sim - disse Gerald. - Um dos nossos aristocratas locais! - De
súbito, só porque ouvira falar da aristocracia indígena,
transformara-se num homem de Barwick.
- Precisamente - disse Don. - Bom, eu trato dos relógios de
Monksbury, de maneira que tenho acompanhado Lord David
desde a sua infância, enfim, com alguns intervalos, claro.
- Deveras...? - Gerald fitou-o com extrema atenção por sobre a
borda do seu copo. - E por acaso não vai aos Noseleys?
- Não, não vou lá desde que a senhora morreu - disse Don. - Tive
uma trabalheira dos diabos na casa deles, oh, já lá vão... talvez
uns dez anos. Claro que eles tinham os chamados besouros da
madeira, xestóbios, mais exactamente, em Noseley Abbey. Foi o
cabo dos trabalhos para se verem livres daqueles diabretes!
Nick levantou-se para oferecer um prato de azeitonas de
conserva e também para, aproveitando o facto de estar a servir,
provocar alguma perturbação capaz de distrair o pai, na
esperança de que ele não dissesse aquilo que, quanto a isso não
tinha a menor dúvida, se preparava para dizer. - Muitíssimo
obrigado - disse Gerald.
- Não, é um prazer fazer estes trabalhos naquelas grandes casas
- disse Don. - Mesmo quando não são muito rápidos a pagar as
contas... - Olhou à sua volta com um ar afectuoso e acrescentou:

321

- Temos tantas casas dessas por aqui... Nick está farto de ouvir
isto, mas é a pura verdade: entre os meus clientes, tenho dois
condes, um visconde, um barão e dois baronetes!
- Uma lista notável - disse Gerald. - Temos de ver se conseguimos
arranjar-lhe um duque.
- Claro, o que é realmente fabuloso - disse Nick, num acesso de
vergonha -, é a qualidade do mobiliário em todas essas casas.
Coisas que estão lá há séculos.
- Sem dúvida... - aquiesceu Gerald, como se ele próprio levasse
muito a sério a questão. Ergueu e baixou as sobrancelhas, num
sinal de perplexidade perante o seu copo vazio.
Don disse: - Nick contou-me que tem algumas belas peças na sua
casa de Londres. -Oh...
- Uma boa parte são coisas francesas, não é?
- Bastantes coisas francesas, sim - disse Gerald, que não fazia a
menor ideia quanto à proveniência da esmagadora maioria do
seu mobiliário.
- E também algumas belas pinturas.
Gerald brindou os pais de Nick com um amável olhar de caridade,
colorido com um nada de impaciência, e mesmo com uma
espécie de desdém, pelo menos foi o que pareceu a Nick, que
tomava o partido de ambas as partes, como se estivesse a
assistir a uma discussão consigo mesmo. - Sabem, um dia destes
deviam fazer-nos uma visita, não lhe parece, Nick?, ou então
podiam aparecer quando nós estivéssemos fora. Olhem,
apareçam em Kensington Park Gardens enquanto nós estivermos
em França e façam de conta que estão na vossa casa. Podem
servir-se da casa à vontade. E, enquanto lá estiverem, podem
apreciar todo o conteúdo, e depois dizem-nos de onde é que veio
tal peça, quais as influências de determinado móvel, enfim,
essas coisas todas...
- Bom, é extremamente amável da sua parte - disse Don, sorrindo
de uma ideia tão sedutora.
- Oh, não creio que possamos... - disse Dot, cujo medo das
liberdades em geral incluía até aquelas que poderiam ser-lhe
permitidas. - Quer dizer, é muitíssimo amável da sua parte,
claro... - Parecia esmagada pela oferta, e mascava em seco
enquanto espiava a reacção de Don. Nick, por vezes, considerava
a mãe obtusa e tacanha,

322
deplorava a sua tontice, e, ao mesmo tempo, estava tão
sintonizado com os seus estados de espírito, com as correntes
de sugestão que existem entre uma mãe e um filho único, que
era capaz de traçar as linhas da sua ansiedade sem o menor
esforço. Ir para Kensington Park Gardens, ficar naquela casa,
bisbilhotar, sempre de um modo hesitante, aquelas salas,
aquelas preciosidades, bom, isso seria satisfazer uma
curiosidade; contudo, daria também uma forma e um detalhe,
impossíveis de esquecer, ao mundo em que Nick vivia, esse
mundo tolerante e gastador, com as suas adegas e as suas
governantas que mal falavam inglês, e o Ministro da
Administração Interna a telefonar para lá sem mais nem menos,
coisa que, a crer no filho, era relativamente frequente. Seria uma
torrente de conhecimento e, de um modo geral, Dot, segundo as
suas próprias palavras, preferia não conhecer mais nada.
- De qualquer modo, pensem no assunto - disse Gerald; e,
enquanto os pais murmuravam, de olhos brilhantes e faces
afogueadas, Nick sabia que o assunto nunca mais seria
mencionado.
Meteu pela Market Square e abrandou mal se aproximaram da
tabuleta relógios D. N. Guest ANTIGUIDADES: - Ali está a nossa
loja! - e ergueu o braço como se estivesse a mostrar ao deputado
o Palácio do Doge ou qualquer outra coisa grandiosa que ele
pretendesse visitar.
- Claro! - disse Gerald. Nick só pôde vê-la de relance, mas nem
precisaria de vê-la; a loja era, para ele, uma presença demasiado
forte, era como uma surpresa que tivesse preparado para outra
pessoa que nunca conseguiria senti-la tão intensamente como
ele. Aquele lado da praça estava agora à sombra, embora o sol
banhasse ainda o outro lado, a fachada de estuque branco do
Crown Hotel. Um céu sem nuvens por sobre os telhados, as lojas
todas fechadas, o esvaziamento de uma vila de província num
entardecer de meados do Verão; não inteiramente vazia, já que
havia turistas de fim-de-semana dando os seus passeios antes do
jantar, espreitando pelas montras das lojas fechadas, com um ar
de quem esperava tirar o melhor partido do sítio, e alguns
rapazes, ou, mais exactamente, rufias, errando sob as arcadas
do mercado. O mercado era a jóia da vila, uma gaiola de vidro e
pedra com uma cobertura particularmente alta

323

e que, na terra, era ainda reivindicada, apesar de todas as provas


em contrário, como uma obra de Sir Christopher Wren. O
mercado fora o orgulho da infância de Nick, na escola fizera um
trabalho sobre a obra, com plantas e alçados, tudo devidamente
medido e muito certinho, quando tinha doze anos, no seu paraíso
arquitectónico privado, o mercado de Barwick estava ao mesmo
nível que o Taj Mahal e o edifício do Parlamento, em Ottawa. O
momento em que tivera de aceitar que o autor não era Wren fora
tão desolado e excitante como a puberdade. Resolveu dar uma
volta acelerada ao mercado e os rapazes puseram-se a olhar e
ele saboreou o triunfo que era regressar a casa no seu ruidoso e
pequeno utilitário. Era como se as conquistas do sexo e das
acções e títulos e drogas se desfraldassem numa longa écharpe
atrás dele. Não, de facto aquilo era a verdadeira superioridade,
era quase solitário, um mundo de prazeres e privilégios que
aqueles rapazes não conseguiriam sequer imaginar, e que, por
isso mesmo, era imune à sua inveja. Encostou em frente ao
Crown e Gerald saiu de um salto, passando com a mão pelo
cabelo, dividido entre o seu exibicionismo desportivo e uma
sugestão de dignidade comprometida, ou mesmo de alguma
anomalia mais grave pelo facto de ter sido visto num tal carro e
com um jovem que era gay. Penny estava à espera dele, com o
seu rubor e o seu sorriso tenso, a sua rigidez obediente, e foi
com um ar grato que Gerald se encaminhou na direcção dela. -
Divirta-se! - disse Nick, e deu mais uma ruidosa meia-volta à
praça, pensando que divertir-se era precisamente o que ele mais
desejaria fazer naquele momento.
Parou o carro num espaço para estacionamento no meio da
praça, onde havia um mercado ao ar livre às quintas-feiras, e
desligou o motor. Daí a um minuto teria de ir para casa, onde o
esperavam o jantar e uma cautelosa autópsia da visita de Gerald.
E, durante o jantar, emergiria a sensação de que novas avenidas
de preocupação tinham sido abertas... a suspeita, agora que
Gerald partira, de que eles, de facto, não confiavam nele: apesar
de todos os seus nervos e boas maneiras, os pais tinham um
ouvido muito aguçado para aquela linguagem empolada e falsa,
eram mais sensíveis a isso do que admitiam; teriam reparado,
por certo, que Gerald não lhes perguntara nada - rigorosamente
nada - acerca deles mesmos; e, a partir de agora, quando
pensassem na vida que Nick levava em Londres,

324

quando imaginassem essa vida, sentir-se-iam menos tranquilos.


Os olhos de Nick percorreram de novo a loja, que parecia muito,
muito fechada, vazia, é certo, mas prenhe de significado, toda
envolta em sombras para lá das cadeiras na montra, parecia-lhe
estranho - de uma estranheza nova - ter o seu apelido ali, na
fachada de uma loja, sentia o seu orgulho de miúdo e o seu
snobismo de Oxford digladiando-se no campo de batalha da
tabuleta, no seu próprio nome, N. Gues, escarrapachado no meio.
Observou um grupo de rapazes passar lentamente atrás dele,
moveu a cabeça para os seguir no espelho, onde pareciam
pavonear-se, lentos, ociosos, num impreciso longe. Ouviu uma
lata de cerveja a chocalhar, vítima dos pontapés de um rapaz, um
arroto que ecoou pela praça. Pensou: e se eu tivesse ficado por
aqui, tão longe daquelas coisas básicas que constituíam o
Paraíso, da Ópera, das entregas de Ronnie...? Por um momento,
divagou em torno da ficção dessa vida alternativa - havia
pessoas cultas na vila, claro que havia, tinham livros e gira-
discos: quando tentou imaginá-las, verificou que todas elas
tinham os rostos dos seus professores da escola básica de
Barwick, Mr. Leverton e o seu grupo de estudos de Hopkins.
Havia um ou dois amigos dos tempos de escola com quem talvez
pudesse contar. Estatisticamente, Barwick deveria ter cinco ou
seis bichas, escondidos, enfim, mais ou menos, por detrás
daquelas fachadas de lojas e daquelas inescrutáveis janelas dos
andares de cima. Os urinóis de Abbots' Field tornar-se-iam um
íman esgotante, um símbolo aterrador.
Do outro lado da rua, meio cegos pelo sol que se despedia,
casais chegavam ao Crown para o jantar, as mulheres em
vestidos de noite, penteados primorosos, os homens de fato
completo, saudando-se uns aos outros com pancadinhas nas
costas e vénias de «faz favor, primeiro você», confusas
tentativas de beijos sociais (não entre os homens, claro), todos
eles muito excitados só porque, depois do jantar, iam ouvir o
discurso do seu deputado, mas também calmos - uma calma que
lhes vinha da noção de que havia uma sólida justeza no facto de
serem Conservadores. E, porra, também Gary Cárter andava por
ali, em busca da sua própria noite de sábado, com um blusão de
ganga curto e uns jeans novos tão apertados quanto seria
possível e aquele penteado terrível de tão sexy; a certa altura,
chamou por um amigo sob as arcadas do mercado e,

325

de algum modo, exibiu-se para o outro ver, com a divertida e


irrefutável bichice de um atraente rapaz straight numa vila de
província. Ainda que, pelos vistos, as raparigas também
gostassem dos rabos dos rapazes - com o que revelavam um
notável discernimento, embora Nick não fizesse ideia do que
quereriam elas fazer com eles. Gary passou sob a galeria do
mercado e saiu pelo outro lado e, num passo lento, meteu pelo
passeio, no sentido contrário. Eram horas de voltar para casa;
Nick sentia já a atmosfera da vivenda Linnells à sua espera, essa
atmosfera marcada por uma obstinada inocência relativamente
àquilo que o levava a fugir-lhe. Depois, forçou-se a despertar,
chocado por se deixar enlear naqueles sonhos de vila de
província. De uma maneira ou de outra, aquela terra tinha de ser
abandonada; sentiu a sua longa adolescência, com o seu tédio e
luxúria e êxtases estéticos, preservada em âmbar na espessa luz
do sol daquele entardecer na praça; e a afeição que sempre
dedicara àquele sítio, e a ânsia de Londres que sentira na
adolescência, essa ânsia que o levava a ver Londres para lá dos
imaginados quilómetros de campos de trigo, suiniculturas e
ramais que conduziam a complexos industriais. Pensou em dar
ainda um breve giro, passaria por Gary para que ele visse o
carro; Gary não deixaria de se interessar pelo carro e Nick
ficaria com uma imagem mais nítida dele - para mais tarde. Ligou
o motor e, ao virar-se para fazer marcha atrás, viu a pasta com o
discurso de Gerald no banco traseiro.
De certeza que Penny tinha uma cópia no hotel, ainda que - era
quase certo - sem aquelas piadas escritas à mão, sem os
sublinhados, sem os lembretes: para um orador tão confiante nas
suas capacidades, não deixava de ser revelador que o texto
estivesse tão cheio de marcas, sinais, comentários. No cimo da
primeira página, anéis vermelhos rodeavam os nomes «Archie» e
«Verónica». Só havia uma coisa a fazer: procurar Penny e
devolver o discurso a Gerald, de preferência sem que ninguém
desse por isso. Por essa altura, já estariam a servir as bebidas, e
Nick imaginou de imediato uma das «suítes» ferozmente
decorosas onde decorreria a função, normalmente usadas para
jantares do Rotary Club e reuniões de negócios de terceira
ordem. Vestia apenas umas calças de linho amarrotadas e uma
camisa de manga curta, mas poderia disparar pela suíte como
um ajudante de maquinista com um adereço esquecido,

326

poderia tornar-se funcionalmente invisível, e a incredulidade dos


Conservadores de Barwick não chegaria a consolidar-se.
Na recepção do hotel, Nick era ainda o motorista, o mensageiro,
e, se algum dos convidados (um ou outro membro do Clube de
Amadores de Ópera, homens que lhe tinham chumbado os dentes
e tirado as medidas para os blazers da escola) o reconheceu, a
verdade é que não o demonstrou. Era uma humilhação, mas
também um alívio. Perguntou por Gerald na recepção e a
rapariga achava que o deputado fora até ao parque de
estacionamento das traseiras «talvez para apanhar um pouco de
ar fresco», disse. Nick deslizou furtivo e, logo que pôde, meteu
pelo longo corredor que serpenteava e subia e descia ao longo
de diversos anexos mais ou menos horríveis, na direcção das
traseiras do edifício. Nas paredes do corredor, viam-se gravuras
de caça e reproduções de velhos mapas do condado, da autoria
de John Speed, penduradas contra um papel de parede vermelho
de textura aveludada; e a alcatifa era vermelha, com um
opressivo padrão de redemoinhos escuros, como um monstruoso
paisley. Casais vinham na direcção dele, meio sorridentes, o
marido tranquilizando a mulher, ou vice-versa, quanto ao carro -
sim, as portas ficaram trancadas, claro que o alarme estava
ligado -, tinham-se excedido nos penteados, uma mão afagava as
placas comemorativas no bolso do casaco. Pareciam satisfeitos
com aqueles bastidores, com aquele corredor, com a primária
imitação histórica daquilo tudo, com os cheiros a cerveja e a
borrego nos espaços entre as portas de segurança. E, sim, lá
estava Gerald, na esquina seguinte, relanceando para a esquerda
e para a direita como que planeando uma fuga, um último e
rápido minuto da sua vida real antes de o espectáculo começar -
Nick não chamou por ele por causa das pessoas que
continuavam a entrar, formando uma barreira entre os dois, mas
viu-o abrir uma porta lateral, por onde, num abrir e fechar de
olhos, desapareceu.
O letreiro dizia «Entrada de Pessoal», de maneira que Nick parou
e pôs-se também a olhar à sua volta, para a esquerda e para a
direita, para a direita e para a esquerda - uma porta dos fundos
que devia dar acesso à suíte Fairfax, pensou. Lá dentro, havia
uma passagem de serviço, menos gritantemente iluminada, e
Nick viu a cabeça de Gerald através da pequena janela de arame
numa outra porta de vaivém - e também a cabeça de Penny, nos
lábios um risinho:

327

um bom sinal, pelos vistos as coisas estavam sob controlo. O


vaivém da porta ainda não tinha parado, as duas metades
balouçavam ainda indolentes, e foi talvez por isso que o ruído
que Nick fez ao abri-la não lhes chamou a atenção - era apenas
mais um rítmico deslocamento de ar viciado. Acabou por
provocar algum tumulto, pois virou-lhes as costas tanto quanto
pôde, e, com uma perna presa na outra, deixou cair a pasta, e
tudo isso para que nenhum deles soubesse que ele vira a mão de
Penny - tal e qual a mão de uma rapariguinha apaixonada -
enfiada no bolso de trás das calças de Gerald.
No entanto, ele vira a mão e, por obra desse choque, trivial mas
imenso, caiu num aturdimento que se prolongou por todo o
jantar; como esperava, a meio da refeição, os pais lançaram-se
numa oblíqua conversa em torno de Gerald. Concordou, num jeito
especialmente azedo, com as críticas chistosas dos pais, e falou
de Gerald como se nunca tivesse sentido por ele grande afeição -
o que os deixou ainda mais constrangidos. Na ITV, passavam o
Sedley, era uma repetição de Verão, e, depois do jantar,
sentaram-se no sofá a ver a série naquele seu jeito excitado e
cerimonioso, e Dot, já bastante tocada, não se coibia de dizer: -
Sabe, o meu filho conhece o actor que faz de Sedley! Nick é um
grande amigo de Patrick Gray-son! - e, Nick não se coibia de
pensar: Como é possível que esta mulher não perceba que aquele
tipo é uma bicha velha e horrorosa?
Quando foram para a cama, inacreditavelmente cedo, o
crepúsculo do pino do Verão ainda muito belo lá fora, Nick
despediu-se com um «Durmam bem!» e fechou a porta do seu
quarto com uma desconcertante sensação de perda, como se os
seus verdadeiros pais fossem Gerald e Rachel e não aquele velho
e inabalável casal nas suas camas separadas no quarto ao lado.
Mais tarde, ouviu o pai a ressonar e a cama da mãe a ranger -
imaginou-a a puxar os cobertores para tapar os ouvidos. Rachel,
em tempos, confessara que Gerald também ressonava, embora o
tivesse feito naquele jeito com que, por vezes, dissimulava uma
desvantagem, e que era o resultado de uma consciência cortês
da sua própria boa sorte («Eu sei, nós nunca poderemos entrar
no La Tante Claire(1)!»): «Ah sim», dissera ela,

*1. La Tante Claire é um famoso (e muito dispendioso)


restaurante da chamada haute-cuisine francesa, então na zona
de Knightsbridge. (N. do T.)

328

«quando lhe dá para isso, é capaz de ser bem barulhento». Nick


tirou - e rejeitou - várias conclusões daquilo que vira; sentia-se
ávido de sensações desagradáveis; um segundo depois,
encarava-as com a maior relutância. Pensou que talvez estivesse
a ser um tanto ou quanto moralista. Pensou nas visitas regulares
de Gerald a Barwick, sempre com Penny, quase sempre sem
Rachel. Era um sistema, um segredo que, de tão rotineiro, devia
ter acabado por parecer seguro. E aquele disfarce constante,
claro, aquele pretenso «ódio» a Barwick, todo aquele trabalho da
«cirurgia», a maçada que eram as reuniões com Archie
Manning... E em Londres - como é que era em Londres?
Presumivelmente, não podiam fazer aquilo em Londres, o risco de
serem apanhados seria demasiado grande. Ou, quem sabe, talvez
não se passasse grande coisa...? Mas Penny... Seria Penny o tipo
de rapariga para isso? Podia ser que houvesse outras
explicações para aquilo que vira de relance no hotel. Impossível.
Impossível encontrar uma só. Perguntou-se se Gerald estaria a
ressonar naquele exacto momento, e a imagem do que Gerald
estaria provavelmente a fazer impôs-se, de um modo alarmante,
no canal de sexo da mente de Nick. Ou, se estava a ressonar,
então a sua parceira acharia que era um castigo tolerável para
uma ligação ilícita... Nick parou e recuou, cheio de repugnância
pelo modo como a coisa se disseminava na sua própria
imaginação. Um pouco mais tarde, acordou e a casa estava de
novo silenciosa, e o choque do que estava a acontecer dominou-o
por completo, o seu escárnio de adulto perante a rematada
banalidade do caso e, também, a sua dor, uma dor de criança,
feita de desespero. Apercebeu-se de que aquilo se transformara
já num segredo só seu, uma coisa que transportaria consigo
contra sua vontade, uma amarga confusão de deveres. Deixou-se
ficar na cama, escutando o silêncio, um silêncio que era ilusório,
não mais que um manto que impedia o registo de outros sons... o
suspiro de um álamo cinzento, a cisterna que, por cima do
quarto, acabava de encher-se, as últimas gotas soando algures
numa vaga região da sua consciência, e, nos seus ouvidos,
percussões suaves, remotas, como portas fechando-se em alas
da casa que não existiam.

329

11.

(I)
Toby disse: - À vossa esquerda, podem dar uma espreitadela ao
château - e abrandou mal surgiu algum espaço entre as árvores.
Viram íngremes telhados de lousa, tijolo de um escuro tom
púrpura, vidro laminado, a dureza, tão particular, do século XIX.
- Certo... - disse Wani. - Mas já não é vosso, pois não?
- O meu avô vendeu-o depois da guerra - disse Toby.
- Então quem é que lá vive agora? - perguntou Nick, que se perdia
sempre de amores por uma pequena casa de campo numa
estrada secundária ou por um pináculo no meio das árvores, e
pelo Revivalismo Gótico mais do que pelo Gótico propriamente
dito.
- Pode-se visitá-lo?
- Aquilo agora é um lar para velhos gendarmes - disse Toby.
- Eu já lá estive, é muito deprimente -; e retomou a velocidade
normal para uma estrada esburacada.
- Ah - disse Nick, num tom dubitativo.
- E os gendarmes não vos causam problemas? - queria saber
Wani.
- Oh, quando lhes dá para isso, são bem capazes de armar a
maior das confusões - disse Toby. - Já tivemos de chamar a
polícia umas quantas vezes - e olhou para o espelho, a ver se
Nick sorrira da sua graça. Ah, as graças de Toby! que faziam com
que Nick sentisse uma vontade louca de o esmagar num abraço
de protesto.
- Nesse caso, a casa para onde nós vamos... - disse Wani.

330

- O manoir... é a mansão original da propriedade. É bastante


antiga, por volta do século xvi, creio, bom, vocês vão ver. Não é
tão grande como o château, mas é muito mais bonita. Pelo
menos é que todos nós achamos.
- Certo... - disse Wani, de novo com uma leve nota de enfado, com
uma ténue sugestão de que talvez tivesse preferido o château, se
bem que estivesse pronto a partilhar a seca do manoir. - E isto
pertence ainda a Lionel?
- De um ponto de vista estritamente formal, sim, pertence -
disse Toby.
Wani pôs-se a espreitar pela janela como se conhecesse o valor
de tudo. - Da maneira que, meu velho, um dia, tudo isto será teu -
disse, com uma mistura de rivalidade e satisfação.
- Enfim, meu e da minha irmã, é claro. - A conversa estava a
definir um futuro que Nick dificilmente conseguiria imaginar.
- E quem é que lá está agora? - perguntou Wani.
- Para já, só estamos nós - disse Toby. - A mãe e o pai, eu e
Catherine, oh, e Jasper.
- Oh, esse é o namoradinho dela, não é...
- É, não sei se o conheces, é agente imobiliário.
- Creio que sei de quem estás a falar - disse Wani.
- Jasper e o meu pai, pelo menos é o que parece, tornaram-se
muito amigos. Ou muito me engano, ou, quando partirmos, já
teremos a casa à venda.
No banco de trás, Nick soltou um risinho fungado e pensou em
Jasper, naquela terrível formiga que Jasper era, sempre a abrir
caminho - neste caso, o caminho para a família Fedden - com
muita, muita graxa, mais aquela voz manhosa e a madeixa que
não lhe largava a testa; e também pensou em Wani - impecável,
impecável era a palavra, fazendo o seu rápido reconhecimento
social, mas furtivamente, claro, escondendo tudo de Toby, o seu
velho amigo. Olhou para as nucas deles, os caracóis negros de
Wani, a nuca bronzeada de Toby sob o cabelo curto, e, por um
momento, um estranho, misterioso, momento, sentiu até que
ponto aqueles dois eram uns estranhos, uns perfeitos estranhos,
para ele, e também, talvez, um para o outro. Não passavam de
uns rapazes, mas a altura e a presunção territorial do Range
Rover fazia com que parecessem homens experimentados,
conhecedores da vida e do mundo, Toby,

331

Toby, divertido e falho de imaginação, Wani, lânguido, um


espelho da amenidade e vigilância do dinheiro. Talvez o facto de
serem velhos amigos não significasse grande coisa, eles
partilhavam ideias feitas e não vidas.
Wani disse: - Ah, a propósito, comprei o edifício de Clerkenwell.
- Ah, sim - disse Toby -, óptimo.
- Quatrocentas mil. Pensei, francamente...
- É... - disse Toby, o rosto fixo, um ar enfastiado. Havia neles
qualquer coisa de rígido, mas aceitavelmente adulto, que advinha
daquela parcimónia com as palavras. Wani nem sequer falara do
negócio a Nick. Era típico do secretismo que mantinha,
simultaneamente grandioso e mesquinho, desde que lhe tinha
passado o cheque de cinco mil libras: Wani fazia-o sentir até que
ponto essa soma era eclipsada pela sublimidade, nunca
nomeada, das suas próprias transacções.
Nick disse: - Oh, mas isso é estupendo, estou ansioso por ver a
tua compra. - Dava-se conta do esforço que fazia, pela primeira
vez na sua vida, para manter um certo nível, como que para
mostrar que tinha dinheiro; porém, o facto de ter algum dinheiro,
associado à circunstância de estar sentado num carro atrás de
Toby e Wani, dava-lhe uma consciência ainda mais aguda do
pouco dinheiro que tinha; agora, sentia perante eles um
constrangimento que nunca conhecera quando tinha os bolsos
vazios.
- Então não há hipótese nenhuma de Martine vir ter connosco? -
perguntou Toby.
- Não creio que a minha mãe possa dispensá-la - disse Wani, num
tom de imponderável ironia.
- Vai ter de dispensá-la um dia - disse Toby, e rompeu numa
gargalhada.
- Eu sei... - disse Wani. - A propósito, então e tu, meu grande
fodilhão, andas com alguém agora?
- Não... - disse Toby, com um amargo sorriso de independência, e,
depois, num tom grato, como se a graça resultasse sempre: - Ah!
Aí vem o nosso enrugado servidor!(1)

*1. No original, «.Ah! Here's our wrinkled retainer». A graça


perde-se na tradução, tanto mais que a frase vem de um filme (e
também de um livro e de um disco), Sir Henry at Rawlinson End,
sendo que uma das personagens é o criado Old Scroturn («Velho
Escroto») e a frase de Toby é uma fala do filme (e livro, etc.)-
Podemos lê-la como: «Ah! Aí vem o nosso enrugado (velho) criado
(empregado)», mas também como «Ah! Aí vem o nosso enrugado
retentor» (junte-se «Velho Escroto» e percebe-se a piada). (N. do
T.)

332

- Um velho conduzia uma bicicleta na direcção deles, ao longo do


remendado alcatrão da estrada, os joelhos, numa lenta subida e
descida, projectando-se de lado, parou e, meio trôpego, arrumou-
se na berma cheia de ervas enquanto Toby encostava. - Bonjour,
Dédé... Et comment va Liliane aujourd'hui?
O velho agarrou-se ao carro e espiou os ocupantes com alguma
cautela e uma nota de manha. - Pas bien - disse.
- Ah, je suis désolé(1) - disse Toby, e pareceu a Nick que de um
modo insincero, mas, enfim, aquilo não passava de teatro, a
imposição de uma nova personagem, um Toby competente,
eficiente, que advinha do facto de falar uma língua estrangeira.
Seguiu-se uma conversa algo longa, Toby sem dúvida fluente,
mas sem se esforçar grande coisa para pôr um sotaque francês,
a sensação de uma benevolência e uma simplicidade exageradas
entre os dois, e as respostas lacónicas do velho ressaltando
como marcas de autenticidade para os recém-chegados, que
tentavam ouvir e acompanhar aquilo que estava a ser dito. Claro
que Wani não tinha o menor problema em entendê-los, pois a sua
língua materna era o francês; não era esse o caso de Nick, que
experimentava uma reconfortante sensação de sucesso sempre
que conseguia perceber as palavras de Dédé. As graças
compreendidas numa língua estrangeira tornavam-se divertidas
de um modo novo, exemplar: começava já a fazer uma colecção
dessas graças como se elas fossem palavras acabadas de
inventar, o jargão da sua visita de dez dias. Recostou-se, com um
sorriso tolerante, rendido ao calor e à luz do sol que lhe
chegavam através dos velhos carvalhos e castanheiros da berma
da estrada, e com a sensação de uma surpresa preparada, como
se um guia estivesse a levá-lo através de caminhos recônditos
para que, no fim, pudessem admirar uma bela vista. Havia no ar
aquele zunido que se sente mesmo em regiões modestamente
montanhosas, a iminência de um declive, de espaço em vez de
massa.
Toby deu por terminada a conversa, todos acenaram
solicitamente para Dédé, e o Range Rover prosseguiu a sua
arrastada subida. Nick disse:
- Espero que a tua avó não tenha desistido de vir.

1. Em francês, no original. (N. do T.)

333

- Não te preocupes - disse Toby -, chega na terça-feira. E os


Tipper também vêm, lamento, mas vêm.
- Que bom - disse Wani.
- É bestial tê-los aos dois aqui - disse Toby e voltou a olhar
afectuosamente para Nick no espelho.
- É fabuloso estar aqui - disse Nick, com não mais do que um
vago eco, enquanto passavam os pilares coroados de vasos do
portão, do velho sentimento, do primeiro dia em Oxford, da
primeira manhã em Kensington Park Gardens, de inocência e
desejo.
Havia um pátio triangular formado pela soturna fachada da casa,
coberta de trepadeiras e com janelas pequenas, uma ala mais
baixa à esquerda e um velho celeiro e estábulo à direita. A
própria casa ocultava a vista; só quando a porta da frente se
abriu para um hall mergulhado numa quase total obscuridade, é
que Nick se apercebeu do fulgor do sol para lá da casa, como se,
ao fundo, se tivesse aberto uma nova e pequena porta de luz.
Tirou as suas malas do carro e observou os gestos de protesto -
um protesto atrasado, claro - de Wani para Toby, que pegara nas
malas dele e avançava já na direcção da casa, os pés, apenas
com umas sandálias, pisando vigorosos as lajes de pedra, os
músculos das barrigas das pernas quadrados e bronzeados. Por
um momento, enquanto ele caminhava, emoldurado pela casa, a
silhueta desenhada pela luz, Nick teve a sensação de que estava
a vê-lo de novo na portaria do Worcester College, tantos anos
antes, sob a arcada que conduzia do mundo exterior ao jardim
interior: Toby, que nascera para usar a porta, a arcada, as
escadas, sem olhar para elas, sem sequer pensar nelas. E outra
coisa regressou também, vinda dessoutra primeira manhã, mais
tarde, em Kensington Park Gardens: uma sensação de que a
casa servia não só para realçar - como um adorno - o interesse
de Toby, mas também para compensar a ausência desse
interesse.
Da sala de entrada, puderam ver num relance uma série de salas
que, apesar da protecção dos cortinados, eram trespassadas,
aqui e ali, pela luz do sol. Havia taças de porcelana, mesas de
carvalho, livros e jornais, chapéus de palha, a atmosfera
remotamente ameaçadora das rotinas de férias, do lazer dos
outros, de jogos que os mais dados ao jogo ensinariam aos
iniciados, coisas que os Fedden já tinham dito e feito pairando
nas sombras, no meio das velhas poltronas, já muito amaciadas
pelo uso. As salas eram altas,

334

com paredes de pedra e imponentes vigamentos nos tectos, de


tal forma que produziam nos seus habitantes a sensação de que
se encontravam em espaços profundos, como as salas de um
castelo ou de uma velha escola. Para já, porém, encontravam-se
desertas; o grupo estava todo noutro sítio.
Toby conduziu-os ao longo das escadas, que eram largas, embora
com degraus baixos. O piso de cima era percorrido de uma ponta
à outra por um corredor de tijoleira ocre, com quartos abrindo-se
à direita e à esquerda, lembrando celas agradavelmente
mobiladas. Os quartos de Nick e Wani ficavam no fim do
corredor. - A mãe pô-los em quartos fronteiros - disse Toby. - Só
espero que vocês não estejam fartos um do outro, porque vão ter
mesmo de ser vizinhos. - Wani ergueu as sobrancelhas, soprou e
encolheu os ombros como um francês: os quartos adequavam-se
na perfeição àquele teatro dúplice que ele e Nick mantinham. Por
um momento, era difícil acreditar que aquele não era o habitual e
muito discreto ordenamento para um casal não casado, que Toby
não estava a par do segredo, que Toby não nutria a menor
suspeita. Nick estava habituado a ludibriar adultos, mas sentia-
se triste por ter de enganar Toby. Se um dia descobrisse... Via já
a ferida no seu coração, tão benévolo como o de uma criança, se
um dia viesse a descobrir... Wani, porém, já devia estar calejado
contra tais ansiedades. Nick olhou para ele e teve uma breve e
fria intuição do alívio que sentiam em relação aos quartos; mais
exactamente, das suas diferentes nuances de alívio: ele sentia-
se aliviado porque os quartos ficavam perto um do outro, Wani
porque eram quartos separados. O quarto de Wani ficava na
parte da frente; Nick, talvez porque o consideravam como
fazendo parte da família, ficara com o quarto mais pequeno e
escuro, com vista, no extremo da casa, para os ramos de um
velho plátano. - Fantástico! - exclamou. Começou a desfazer as
malas, a pendurar os fatos que trouxera, sempre cauteloso
quanto ao que as pessoas ricas queriam dizer com «informal».
Deixara toda a sua roupa entregue aos cuidados da lavandaria do
hotel em Munique e, agora, encontrava todas as peças separadas
por papel de seda, de tal forma que, sempre que tirava uma peça,
se ouvia um rumor como que de um vestido roçagando o chão.
Reparou que, na sua casa de banho, havia uma torneira que
pingava, deixando no lavatório uma mancha de ferrugem. Junto à
cama, havia uma estante

335

com velhos romances franceses, obras de Frederick Forsyth que


alguém deixara ficar, uns quantos volumes encadernados de
história e memórias com o ex-líbris - uma pequena coroa - dos
Kessler. Havia um par de pequenas e estranhas pinturas em
vidro, com molduras de pereira envernizada. Tomou posse do
espaço que lhe fora atribuído e convenceu-se a ignorar uma
ínfima sensação de desapontamento com o quarto.
Toby estava ainda na soleira da porta a cavaquear com Wani, as
mãos nos bolsos dos calções, a irrefutável barriguinha que
surgira nos últimos tempos; havia nele qualquer coisa de
confortável e tranquilo, mas também de passivo e perplexo. Nick
amava-o com aquela ternura de uma velha amizade que aceita
um certo grau de tédio, e que é amenizada e mesmo sustentada
por ele. Aquilo que ele sentia era uma afeição refinada,
purificada, uma afeição que não exigia nada, mas que também
não dispensava os princípios. - Ah, de certeza que ele sabe -
disse Toby.
- Nick, como é que se chamava aquele bordel que nós visitámos
em Veneza? - perguntou Wani. Também estava a desfazer as
malas, embora num jeito tão pudico e demorado como quando se
despira naquele dia no lago.
- Oh, o ridotto} - disse Nick. - Sim, é um pequeno casino
verdadeiramente requintado; suponho que, na realidade, era um
bordel. ridotto della Procuratoressa Venier. Fica mesmo por trás
de San Marco.
- Aí tens - disse Wani.
- Foi recuperado pela secção americana de Venice in Peril(1).
Tocas à campainha e a senhora mostra-te aquilo tudo.
- OK... - disse Toby. - Então, não é um bordel em actividade...
- Se há no mundo pessoa com menos ar de patroa de bordel é por
certo a senhora do Venice in Peril - disse Wani. - No primeiro
número da revista, vou fazer um especial sobre os grandes
bordéis do mundo.
- Os vossos anunciantes vão adorar - disse Toby.

*1. «Veneza em perigo», conhecida organização internacional


criada nos anos 1970 (por iniciativa de um antigo embaixador
britânico em Itália) com o intuito de obviar à destruição de
Veneza, uma eventualidade cada vez menos remota. (N. do T.)

336

- Não vão mesmo? - disse Wani. - Enfim, bordéis requintados,


claro. - Olhou para Nick, a quem pertencia por inteiro a ideia de
fazer o especial sobre bordéis. - Estás a ver, risottos.
Toby disse: - Devias ter-me levado contigo. Não se pode contar
com o pobre do Guest para andar a espiolhar em casas de putas.
- Pois não, tu terias sido muito mais útil - disse Wani, e brindou-o
com um firme sorriso arreganhado, de tal forma que Nick ficou
com ciúmes por uns breves segundos e logo deu por si a pensar,
a coisa nunca fora clara, se Wani gostaria de Toby. Bom, era
possível, mas improvável, por uma qualquer, e por certo ampla,
razão social, a qual se resumiria talvez ao facto de que Toby não
podia ser comprado.
- Bebidas às seis - disse Toby. - Mas primeiro venham dar um
mergulho na piscina. Está toda a gente lá fora - e logo se ouviram
os seus passos rápidos e firmes ecoando no corredor.
Depois, Nick foi até ao quarto de Wani, abriu as venezianas, que
não encaixavam muito bem uma na outra, e deu a sua primeira
espreitadela para a vista de esporões de madeira caindo ao
encontro um do outro como dedos entrelaçados, e, para lá deles,
a curva reluzente do Dronne sobrepujada por um penhasco
rochoso, reluzente também sob aquele sol de fim de tarde. Era a
luz forte e ofuscante de França no pino do Verão, as cores
simplificadas, secas e monótonas, mas vibrantes de luz, e as
sombras desconcertantes, como uma profunda gaze cinzenta. Lá
em baixo, no seguimento da casa, três ou quatro socalcos de
pedra, ligados por escadas; da janela, não era fácil distingui-los. -
Bom, vou mudar de roupa - disse Wani.
- Boa ideia - disse Nick, virando-se e sorrindo.
- Hmm. ok... - com a relutância birrenta de um miúdo.
- Querido, eu passei metade da noite passada com a minha língua
enfiada no teu cu, por isso é muito natural que não fique chocado
se despires a camisa.
Wani deu um risinho seco e arrumou os seus diversos pares de
mocassins e outros sapatos leves no estrado do guarda-fatos. - É
só por causa do que as pessoas possam dizer - murmurou.
- O quê? Por eu ser gay, é o que tu queres dizer? - disse Nick,
erguendo expressivamente as sobrancelhas. - Bom, acontece
que não há mais ninguém em casa. E está descansado que eu
vou

337

continuar a olhar pela janela... Se quiseres, eu até me iço pela


janela. - E içou-se mesmo e foi então que viu que, directamente
sob a janela, havia um toldo branco, cobrindo, presumivelmente,
a mesa, a famosa mesa evocada por Gerald, com desculpas a
Napoleão, como a primeira sala de jantar da Europa. A mesa e o
toldo é que constituíam a vista deles, aquela que Gerald tantas
vezes referia como a sua, muito sua, paisagem, uma das poucas
coisas, como a música de Strauss, em relação às quais todo ele
era sensibilidade, uma sensibilidade sem barreiras. Claro que
não era disso que Nick estava propriamente à espera; uma vez
mais, precisou de um minuto para que a realidade se dissipasse
e apagasse a vista durante tanto tempo imaginada, aquela vista
mais bela, subtilmente mais bela.
Para lá do toldo, os degraus conduziam, à esquerda, sob a
sombra de uma exuberante figueira, a uma nova estrutura que
mal se distinguia, de tão baixa; seria sem dúvida o vestiário da
piscina, pensou Nick. E, nesse preciso instante, Catherine
começou a subir os degraus, silenciosamente descalça, em
bicos dos pés por causa do calor das pedras, uma toalha azul
envolvendo-lhe os ombros e o cabelo ainda molhado. Parecia uma
rapariga, uma miúda, aos pulinhos pelo terraço, perscrutando
tudo à sua volta; e com um vago ar de crise, sentiu Nick, como
se ela estivesse numa rua de Londres assim vestida. Toby saiu
nesse momento de casa e ela perguntou-lhe: «Já chegaram?» -
naquele seu jeito tão particular, como se não desse inteiramente
pela presença do irmão, apesar de lhe estar a fazer uma
pergunta. «Descem num minuto», disse Toby, avançando na
direcção dos degraus que davam acesso à piscina. Sem largar a
toalha, Catherine sentou-se no muro baixo do terraço, alisou o
cabelo, e os seus olhos vaguearam lentos pela fachada da casa
até que viram Nick debruçado da última janela, sorrindo para ela
com todos os dentes que tinha. - Olá, querido!
- Olá, querida! - Nick abriu os braços para a vista e, depois, num
daqueles números de um camp completamente pateta que ela
adorava, fez de conta que estava a lançar flores para uma
multidão de fiéis admiradores. Com uma expressão radiante,
Catherine ergueu as mãos num aplauso silencioso.
- Venham depressa! - gritou ela.
- Já está quase...

338

Wani vestira os calções de banho sob as calças de linho brancas,


de modo que os calções ressaltavam com uma provocadora
sombra preta. Nick tinha alguma prática no que tocava ao uso
dos diferentes tipos de calções de banho e aos diferentes
registos do social à beira da piscina. Os Speedos que faziam
sobressair o equipamento, apropriados para actividades muito
pouco sociais como fazer cinquenta piscinas ou entregar o corpo
a um científico banho de sol de uma hora, podiam resultar muito
mal em cocktails ou no pingue-pongue, ocasiões em que os
calções folgados e assexuados seriam, sem dúvida, preferíveis.
Mas talvez não; a adoração do sol era pelo menos meia razão
para se ter uma casa em França e os Fedden podiam não sentir,
como Nick de algum modo sentia, que, se os contornos do seu
pénis se tornavam visíveis, então a questão do que ele gostava
de fazer com o dito pénis dominava os pensamentos de toda a
gente.
Catherine beijou os dois rapazes de modo diferente: investiu
literalmente com o seu rosto contra o rosto de Wani e berrou
«Olá!» e mostrou que realmente não o conhecia nem esperava
grande coisa dele. Quanto a Nick, puxou-o para um abraço
cingido pela toalha, de modo que o seu corpo magro, com o fato
de banho húmido, se comprimiu contra o dele; Nick abraçou-a,
mas, perdido de riso, logo tentou escapar a tão molhado abraço. -
Ainda bem que chegaste! Finalmente! - disse ela.
- Como é que estás, querida?
- Estou bem. Sabias que Gerald tem um caso?
Nick pestanejou e encolheu-se com um ar ofendido, mas, um
segundo depois, fez um esforço para continuar a sorrir. - Gerald?
- Toda a sua imagem dos dez dias seguintes estava a alterar-se;
teria de descobrir quem mais sabia e, claro, o que é que
Catherine sabia. Sentia-se horrivelmente culpado por saber e não
fazer nada, e o seu maior desejo, nesse primeiro instante, era
sair limpo daquilo tudo. - Não podes estar a falar a sério - disse,
adiando por mais uns segundos a pergunta a que não poderia
fugir: com quem?
- Não, é verdade. Gerald tem um caso com Jasper.
Nick soltou um gutural «ah» de espanto. - Querida! Que horror!
- Pois é, é um escândalo.
- E já dura há muito tempo?

339

- Uma semana, a semana inteira, desde que chegámos. Estás a


ver aquela sala odiosa, o Manoir? Metem-se os dois lá dentro e
passam um ror de tempo a jogar xadrez e a fumar charuto. Bom,
tu verás. Nenhum de nós aguenta entrar lá dentro, de maneira
que ninguém sabe exactamente a que género de actividades é
que eles se entregam, quer dizer, para além do xadrez e dos
charutos.
- Esperemos que a coisa não chegue aos ouvidos da imprensa -
disse Nick, com um vertiginoso sentimento de alívio misturado
com uma sensação de risco bem real e, agora, reactivada.
- É como ser beijada por uma sanita.
- Oh... os charutos...?
- A propósito - disse ela para Wani -, nós aqui só temos fossa, de
modo que nada de deitar coisas esquisitas pela retrete abaixo.
- Não... certo... - disse Wani e, com o cenho carregado, soltou um
risinho. Aquilo era só teatro, um número de rispidez cómica, um
desejo irresistível de embaralhar aquele recém-chegado tão
cheio de requintes, mas havia também na observação de
Catherine algo de clarividente, como se ela adivinhasse que
estava perante um cocainómano não assumido e que, como tal,
não largaria a casa de banho. Conduziu-os pelas escadas, sob as
amplas folhas da figueira, na direcção do espaço lajeado em
torno da piscina.
A piscina ocupava um outro longo socalco, aberto a sul, de tal
forma que a reverberação da luz na água parecia perder-se na
distância. À entrada, ficava o vestiário, por si só uma casinha,
com janelas protegidas por venezianas e pegadas molhadas
entrando e saindo. Espreguiçadeiras espessamente almofadadas,
viradas para o sol em diferentes alturas do dia, permaneciam
abandonadas em torno da piscina e não muito longe, sob um
enorme guarda-sol vermelho, Rachel estava deitada com os
olhos fechados, as alças do fato de banho preto descaídas. Tinha
a boca ligeiramente aberta; podia estar a dormir, ou algures
naquela fronteira de vozes em que a mente, entorpecida pelo sol,
se entrega ao sono por uns breves instantes. Era bela e
vulnerável; de uma beleza e vulnerabilidade para que Nick não
estava preparado; nunca a tinha visto assim, com um simples
fato de banho - considerou que era uma imagem privada que ela
talvez não desejasse partilhar com Wani. A poucos metros de
Rachel, num canto, estava Gerald, reclinado,

340

com o gelo derretido de uma longa bebida num copo ao seu lado,
os óculos escuros postos, a cabeça curvada sobre um livro no
colo, mas sem dúvida a dormir, visto que as páginas do livro se
erguiam numa crista trémula. Para lá deles, Jasper estava
estirado na água, de barriga para baixo, agarrado aos ladrilhos
azuis da borda da piscina, o olhar perdido na paisagem, e dando
uma impressão de tédio adolescente. Vestia uns calções
folgados, enormes, multicoloridos, e, enquanto pontapeava
indolente a água, os calções cintilavam e entufavam-se,
desinchavam e colavam-se às nádegas, uma rosa, a outra verde-
lima. Nick surpreendeu Wani a olhar para ele. Nesse instante,
Toby saiu do vestiário no seu passo decidido e Catherine, como
que competindo por imaginários louros, gritou - Aqui estão eles! -
e acordou-os a todos. - Parecem mesmo uns destroços que
vieram dar à piscina - disse e rompeu num riso cacarejado,
aquele estilo «amalucado» que ela agora se permitia. Gerald
desatou de imediato a falar, Rachel toda se contorceu enquanto
se espreguiçava e sentava e os dois rapazes se curvavam, como
dois rivais, para a beijarem. Jasper atravessou a piscina num
estilo tumultuoso. Havia já algum tempo que Nick não estava
com eles e, ao encontrá-los ali, no torpor quase nu do seu mundo
privado, deu-se conta de tudo o que eles tinham de maravilhoso,
e de algo mais, como numa das fulgurantes intuições de
Catherine - a prontidão com que, sem a menor suspeita, se
ofereciam ao sofrimento.
Ao jantar, sob o toldo, Nick e Wani foram obsequiados com o
segundo e último capítulo da recepção, o qual tinha por objectivo
fazê-los sentir até que ponto a vida sem eles fora monótona e
desinteressante e até que ponto ia ser agradável agora que eles
tinham chegado. Todos revelaram as suas frustrações e
incitaram os recém-chegados a fazer as coisas que haviam
desejado fazer mas não tinham feito. Ao fim de uma semana de
impasse familiar, ou de tédios que se entrosavam tão bem como
os fios de um tecido, anunciava-se uma explosão de actividade,
um pico sustentado de realizações. Wani concordava
polidamente com tudo o que lhes era proposto, embora
parecesse um pouco confrangido ao ouvir os planos de Toby para
descobrir um lago subterrâneo. Gerald disse a certa altura: -
Temos mesmo de voltar a fazer a caminhada até Hautefort,

341

são vinte quilómetros, levamos o dia todo se for preciso. - Jasper


apertou o joelho de Nick sob a mesa e disse-lhe que, em Podier,
havia um pequeno bar que «um homem de gostos requintados
como tu» não poderia deixar de visitar; e Catherine, talvez com
uma intenção satírica, confessou que sempre desejara fazer asa
delta. Depois, garantiu que ia pintar o retrato de Nick mas toda a
gente contrapôs que, se tivesse de posar, Nick ficaria sem tempo
para mais nada. Coube a Rachel dizer, com aquele seu tremor
irónico, que Nick e Wani deviam sentir-se à vontade para não
fazerem rigorosamente nada.
- Não, claro - disse Gerald, e não estava a ser sincero. O
deputado era uma pessoa indolente, mas não se dava bem com a
pura ociosidade, a qual, para ele, equivalia a uma falência da
auto-afirmação. Era óbvio que estava a achar a sua jornada anual
(sempre à beira da piscina) ao longo de um dos mais gordos
volumes de Trollope um exercício fatigantemente passivo,
embora garantisse que o livro era esplêndido e tão, mas tão
divertido. - Creio que eles são capazes de gostar da caminhada -
disse. - Não a fazemos desde 83. - Encheu o seu copo e passou a
garrafa de vinho ao longo da mesa iluminada pelas velas.
- E que acharam de Veneza? - disse Rachel. Estava a olhar para
Nick, mas Nick, com um olhar firme, passou a pergunta a Wani.
- Fascinante! - disse Wani. - Uma cidade verdadeiramente
fascinante.
- Eu sei... é fascinante, de facto - disse Rachel. - Nunca tinha lá
estado?
- Imagine só, nunca tinha lá estado. - Wani, que mal conhecia
Gerald e Rachel, absorvera num ápice o seu estilo de
conversação, ecoante e afirmativo.
- Onde ficaram?
- Ficámos no Gritti - disse Wani, com um encolhimento geral,
ainda que mais pronunciado nos ombros, como que a dizer que
tinham seguido a lei do menor esforço.
- Santo Deus...! Bom...! - disse Rachel, numa rendição
deslumbrada perante a magnificência do facto, mas
concordando, de algum modo, que podiam ter feito uma escolha
mais subtil e mais profundamente informada.

342

- Já lá deve ter estado - disse Wani.


Rachel abanou a cabeça. - Creio que talvez uma vez...
- Mm, onde é que foi que nós ficámos, Puss? - perguntou Gerald.
- Não sei - disse Catherine. Após a crise do ano anterior,
Catherine fora com os pais para Veneza numa tensa tentativa de
recuperação; agora, porém, garantia que não se lembrava de
nada.
- Devo dizer que passámos um tempo maravilhoso - asseverou
Gerald, com uma jovial falta de memória.
- É, é um sítio espantoso - disse Jasper, e sorriu para o deputado,
com a luz das velas nos seus olhos, como que rememorando um
qualquer momento íntimo.
- Oh, quando é que foi a última vez que lá estiveste? - inquiriu
Nick num tom afectado.
- Ooh, deve ter sido há dois... ou talvez três anos - disse Jasper,
baixando a cabeça para que a madeixa lhe caísse sobre a testa.
- E onde é que você ficou? - perguntou Wani e esperou pela
resposta como que, também ele, imaginando uma qualquer
intimidade: lençóis húmidos do suor, toalhas espalhadas pelo
chão. Muito rapidamente, Jasper pareceu considerar várias
respostas possíveis, antes de dizer:
- É, acontece que uns amigos nossos têm um apartamento em
Veneza.
- Ah, bom, que sorte a sua - disse Rachel num jeito afável,
deixando uma dúvida quanto à eventualidade de acreditar nele
ou não.
- Perto de San Marco? - disse Nick.
- Não muito longe - disse Jasper e logo tratou de devolver a
garrafa de vinho a Gerald, que a esvaziou e disse:
- Adorámos os Caravaggios.
Nick não disse nada e não conseguiu decidir se queria que Wani
fizesse uma triste figura na sequência da conversa. Wani teve o
cuidado de dizer: - Não estou a ver... - Rachel pestanejou, como
que surpresa, e disse: - Não, querido, não eram Caravaggios... -; e
Catherine logo esclareceu: - Eram Carpaccios - e bateu com a
mão na mesa.

343

Gerald pôs um sorriso magoado e disse: - Ao menos disso


lembras-te.
Wani, sempre imperturbável, quase sinistramente encantador,
disse: - O que provocou em mim uma impressão tremenda foi a
arquitectura rococó em Munique.
Os outros deixaram que esta declaração ressoasse por um
momento enquanto revolviam as várias maneiras possíveis de
lidar com ela. O olhar de Wani percorreu a mesa com uma
incapacidade de auto-ironia que era muito parecida com a do seu
pai - e, à luz ascendente das velas, a escultura angulosa do seu
rosto era também idêntica à do pai. Para Nick, o que havia de
tocante no seu comportamento era, em parte, a indecorosa
apropriação de tudo o que de útil Nick pudesse dizer, mas
também o facto de Wani sentir, de uma forma muito evidente,
que, em França, no pátio de uma bela mansão antiga, perante a
«família» de Nick, poderia desempenhar o papel de esteta com a
mesma desenvoltura com que Nick o fazia em Lowndes Square. A
verdadeira história daqueles dias em Veneza e Munique, a coca,
o sexo, os dias que começavam à noite, era um glamoroso
segredo dos dois; a outra história, de tesouros que não tinham
visto, de tempo perdido e dinheiro desperdiçado, o amargo
confronto com a verdade - com o facto de que o seu amante era
um filisteu consumado -, tudo isso era também segredo, mas um
segredo só de Nick. Foi o primeiro a falar: - É, tu adoraste o
rococó, não foi.
- Tu estiveste em Munique, querido... - disse Rachel a Gerald.
- Ah, sim - disse Gerald, com aquele ar afectuoso e embaraçado
que ele punha quando rememorava a sua vida, bastante mais
humilde, antes de Rachel. - Badger e eu parámos em Munique,
não foi, na nossa célebre viagem à Grécia? Pensando bem,
parece que foi Badger que me impediu de ir ver a coisa mais
rococó que havia na cidade... a... hum...
- Há uma igreja que é realmente fabulosa - disse Nick. Toby, que
se mantinha muito calado desde a história do lago
subterrâneo, perguntou: - Qual é a diferença entre barroco e
rococó.
- Oh - disse Wani, sorrindo pacientemente para o amigo -, bom, o
barroco é mais musculado, o rococó é mais leve e mais
decorativo. E assimétrico - lembrou-se, fazendo um gesto lento
no ar,

344

com a mão esquerda e dando muito às longas pestanas, e Nick


pensou que o amante absorvera muito melhor os seus
ensinamentos do que aqueles manuais condensados sobre estilo
que lera; era extraordinário que os Fedden ainda não tivessem
percebido aquilo que Wani realmente era. - O rococó é a
deliquescência final do barroco - rematou Wani, como que a
dizer: «Desculpem lá, mas mais directo e simples não consigo
ser.»
- Mm, coisas extraordinárias - disse Gerald, num jeito vago.
- Uuh - disse Catherine com um ar enojado. - Não suporto esse
género de coisas, é tudo tão vazio, muito espectáculo para tão
pouco sumo.
- Bom, minha querida, o que era difícil era tu gostares. Pois se
nós gostamos... - disse Gerald.
- É só faz-de-conta para gente rica - disse Catherine. - É como
lingerie brejeira.
- Certo... - disse Toby, como que se abeirasse lentamente de uma
imagem precisa, se bem que também corasse com a comparação
da irmã.
Wani, como não queria controvérsia, anunciou: - De facto, trata-
se apenas de um tema, um grande tema, para a revista. Objectos
artísticos de luxo: é a nossa proposta para os leitores! - E, um
segundo depois: - O seu a seu dono: a ideia foi de Nick. - Ah bom,
assim já faz sentido - disse Toby.
- Oh, espero que faça tudo menos isso - disse Nick, e todos se
riram do seu espirituoso murmúrio e da sugestão de um
paradoxo.
Deixou-se ficar na cama, na escuridão, enquanto o cheiro do
repelente anti-mosquitos se espalhava pelo quarto. A noite
estava muito silenciosa, entre as portas e o soalho havia frestas
de alguns milímetros, de modo que podia ouvir Wani às voltas no
seu quarto, do outro lado do corredor. Queria estar com ele como
estivera, mais ou menos, nos dez dias anteriores, no luxo
descuidado de hotéis para ricos; mas também sentia o alívio que
era estar sozinho, e uma coisa mais profunda, a esquecida
solidão que mede e verifica a força de uma ligação, e que, sendo
temporária, se torna uma espécie de prazer. Ouviu Wani a apagar
o candeeiro, e a sua própria escuridão adensou-se um pouco
mais,

345

sem aquela vaga luz que se infiltrava sob a porta. Perguntou-se


se estariam a partilhar aquela sensação de espectral
proximidade, se Wani estaria deitado na cama com os olhos
abertos, pensando nele, à escuta dele, masturbando-se talvez,
como Nick, meio conscientemente, estava - nem mesmo isso,
apenas um conforto de rapaz, um reflexo adolescente de estar
sozinho, a amizade cega da mão... Ou teria ajeitado a almofada
para que ela ficasse mais cheia e, não sem alguma luta,
acomodado a cabeça e o ombro à almofada, com um suspiro
final, e erguido as pernas naquela posição defensiva que fazia
com que a Nick só lhe apetecesse enroscar-se atrás dele e
protegê-lo? Seria fácil ir ter com ele agora, ambos tinham camas
largas, mas era como se estivesse já a ouvir o eco dos fechos
das portas no longo corredor, como espoletas do sentimento de
perigo de Wani.
Ao fim de uma hora acordou de um sonho com Veneza e pôs-se a
olhar fixamente, com uma espécie de pânico, para o quadrado
cinzento da janela e a irreconhecível massa da cómoda. Um
segundo depois, voltou à terra e tudo lhe voltou à mente, o
momento em que subira para se ir deitar, os choques e as
conexões das últimas vinte e quatro horas. Sentia um calor
horrível e afastou o lençol com os pés e bebeu o copo de água,
que mal se via no escuro do quarto. No sonho, Wani estava a
afogar-se: encontrava-se junto ao canal, os joelhos flectidos num
tenso agachamento, olhando por cima do ombro com uma
expressão indecisa mas acusatória, e, um instante depois, caía à
água com uma pancada abafada.
Estivera muito calor durante toda a viagem, Nick nunca
suportara tanto calor na sua vida; em Veneza, não obstante o
puro fascínio da cidade, um fedor a podre, provocado pela onda
de calor, acompanhara todos os seus passos; em Munique, nas
avenidas fulgurantes de luz, a temperatura atingira os quarenta
graus. O calor induzia neles uma tensão que nenhum deles
reconhecia perante o outro. Foram à Asamkirche, que deixou
Nick radiante e suspirante de prazer; Wani vagueou pela igreja
com um ar de provisória boa vontade, como que à espera de uma
explicação. Nick demorou-se o mais que pôde, na esperança de
partilhar com ele a beleza da igreja, de comunicar com ele
através dela, mas Wani, fosse por timidez ou por orgulho, reagia
num jeito ligeiramente trocista às observações de Nick. Na
realidade, só se podia dizer a Wani uma coisa útil de cada vez -
um excesso de informação constituía uma afronta à sua auto-
estima.

346

Wani saiu e Nick ficou e a solidão só fez aumentar o seu prazer -


e o orgulho que sentia pelo simples facto de ser uma pessoa
sensível. No palácio de Nymphenburg, no meio das vagas de
turistas despejadas por autocarros, foi mais difícil conquistar
esse prazer, mas Nick sentiu que merecia desfrutar daquelas
maravilhas do rococó - sim, seriam talvez uma espécie de faz-de-
conta para gente rica quando foram construídas, mas, agora,
eram mais do que isso, eram celebrações em si mesmas e de si
mesmas.
Na primeira tarde em Munique, Nick foi a uma loja gay chamada
Follow Me - e Wani lá acabou por acompanhá-lo com um risinho
desdenhoso. Rodeados de arreios e de uma pornografia
assustadoramente juvenil, compraram o guia gay Spartacus,
edição internacional, e uma provisão desmesurada de
preservativos; Wani fazia o seu papel, como se não tivesse nada
a ver com aquelas coisas: pegou no livro com as pontas dos
dedos, como que pesando a ameaça que tinha entre mãos, como
que avaliando o peso da coisa, daquele espesso volume de
sedoso papel da índia, uma espécie de bíblia herética.
Apanharam um táxi para o Jardim Inglês e, ao fim de uns cem
metros sob as árvores, deram-se conta de que as pessoas
estavam nuas. Havia famílias que, bem ao estilo germânico, ou
seja, imunes a qualquer espécie de constrangimento, faziam os
seus piqueniques, e velhos com os cocurutos das cabeças
pelados do sol, dispersos e sós como professores da escola - de
ginástica ou actividades desportivas, claro - esquecidos pelos
alunos, e, depois, uma zona frequentada essencialmente por
homens jovens, sentados e estirados com um ar de descontraída
tensão, tão palpável como a poeira e os insectos na luz do sol já
declinante. Um rio maravilhosamente fresco, o Elsbach, corria
num murmúrio ridente por entre margens íngremes, e Nick
despiu-se e, não sem algum esforço, desceu o declive até às
águas - mal ergueu os pés dos seixos que cobriam o fundo,
deixou-se ir ao sabor da corrente, rindo-se, ofegante, retribuindo
os acenos de Wani, e, depois, já longe dele, invisível aos seus
olhos, passando disparado por relvados, pelas figuras nuas e
sorridentes nas margens, rapazes com guitarras, jogos com
bolas de borracha, numa torrente de abandono, de um belo e frio
abandono, na direcção de um bosque e de um distante pagode...
até que viu que os rapazes estavam a apontar e a zombar dele e
que as pessoas que passeavam os cães estavam vestidas e
severamente normais,

347

como se não pudessem ter a menor ligação com a feliz espécie


nua que se ocultava para lá da curva no rio. E foi assim que,
armando-se de todo o seu vigor, desatou a lutar contra a
corrente decidido a regressar ao ponto de partida, os pés
enroscados por causa das pedras escorregadias, doíam-lhe já de
tanto bater com eles nos seixos do rio, até que, por fim, pôde sair
da água e avançar meio oculto ao longo da margem, dando
rápidos e furtivos puxões no seu pénis embaraçosamente
engelhado.
Voltou a acordar e precisou de um longo e ansioso momento para
se certificar de que aquilo não tinha acontecido. Deixara-se
embalar pelas recordações intensamente coloridas dos minutos
que antecedem o sono, e a história de férias escapulira-se e
fugira com a sua própria corrente - rapidíssima - e desaguara
numa historieta mais bizarra do que a tarde que eles tinham
vivido, os vivos esforços - quase uma fixação - de Wani para
engatar o rapaz que vagueava pelos jardins com um balde,
gritando «Pepsi! Pepsi!» - o seu espanto perante o facto de o
rapaz não ser susceptível de ser comprado. Nick virou a
almofada, tossiu, acomodou-se de novo. Afundou-se em nuvens
que o sol iluminava por trás, cor-de-rosa e cinzentas, a aterragem
no aeroporto de Bordéus nessa manhã. Tinha havido uma
tempestade, mas estava a desviar-se, e, de súbito, deram-se
conta de que o chão estava perto, muito perto, a luz do sol
deslizando numa trémula cintilação ao longo de lagos, estufas e
canais, veios de ouro trespassando o vapor num flamejante
conluio.

(II)

Na segunda-feira de manhã, Wani perguntou se podia fazer


algumas chamadas. Rachel disse: «Mas é claro!», e Gerald: «Por
favor... meu caro!», apontando na direcção da divisão da casa -
que mais fazia lembrar um armário - onde se encontravam o
telefone e o novo e expectante fax.
- É só por causa destas coisas dos negócios que tenho de tratar -
suspirou Wani, todo ele um pedido de desculpas, sem dúvida
inteligente, pela faceta que Gerald mais apreciava nele. Entrou
na salinha e, numa iniciativa particularmente desastrada, visto
que não havia ninguém a observá-lo, fechou a porta. Na noite
anterior,

348

falara-lhes da propriedade que acabara de comprar em


ClerkenweJl e pedira conselho a Gerald relativamente a diversos
aspectos da venda e aos planos de desenvolvimento para a zona:
uma parede do edifício caíra e, de súbito, tinham encontrado
uma maneira de avançar com os projectos. Quando Wani emergiu
da salinha do telefone, perguntou a Gerald se não se importava
de lhe emprestar o Range Rover para ir a Périgueux e, desta vez,
o pretexto foi o muito mais vago «negócio» da revista. Nick
conhecia aquele sobrolho franzido de pretenso enfado, o
impudente desprezo pelos obstáculos que se erguiam no
caminho do prazer, e não podia deixar de ficar nervoso. Mas
Gerald, pigarreando e, por assim dizer, despertando para a sua
própria generosidade e razoabilidade, disse: - Bom... sim...
porque não! Esteja à sua vontade... - E logo acrescentou: - Tudo
pelos negócios!
- É só porque, em Périgueux, posso encontrar-me com um
fotógrafo que é, de facto, muito bom, e, depois das coisas
fascinantes que nos disse acerca da catedral...
- Oh, Saint Front - disse Gerald, lisonjeado, é certo, embora
armado de alguma prudência. - Sim, de facto...
Nick por pouco não dizia: - Oh, mas tu sabes que aquilo foi tudo
reconstruído no século XIX...
- Volta a tempo de almoçar? - disse Rachel. Wani prometeu que
sim. Não sugeriu sequer a hipótese de levar Nick e este sentiu-se
ao mesmo tempo aliviado e ciumento. Foram para a porta e
ficaram a ver o carro desaparecer do pátio. Num momento assim,
em Londres, a família ter-se-ia lançado num ousado e divertido
inquérito acerca da pessoa ausente; hoje, porém, pareceria mal
fazerem uma coisa dessas.
Saíram para o pátio e Gerald, por várias vezes, acenou que sim
com a cabeça para Nick, acabando por comentar: - Uma pessoa
encantadora, o seu amigo.
- Sem dúvida, sem dúvida - disse Nick, apercebendo-se de que
Gerald queria uma confirmação, e notando que, agora, Wani era
visto, adequadamente, como um amigo dele e não de Toby.
- Uma pessoa não sabe se deve ou não falar-lhe da noiva - disse
Gerald.
- Oh, eu falei - disse Rachel. - E está tudo bem. Ele contou-me
tudo. Pelos vistos, vão casar na próxima Primavera.

349

- Ah, óptimo - disse Gerald, enquanto Nick lhes virava as costas,


com um baque de protesto no coração, para apreciar a vista.
O correio da manhã trouxe diversos e espessos pacotes de
papéis para Gerald que, com um suspiro petulante, os levou para
a sala das traseiras. Era claro que, sem Penny, o deputado se
sentia incapaz de dar conta do trabalho, tal como era claro,
presumivelmente, que não podia convidar Penny para a casa de
férias. Fizera da sala das traseiras o seu escritório; Nick não
estava lá muito certo do que ele faria lá fechado, mas, quando
saía, saía sempre com um sorriso muito vivo, por vezes punha-se
a andar na ponta dos pés, como alguém prestes a revelar uma
notícia bombástica. A questão «Penny» oprimia Nick, e, ao
mesmo tempo, parecia tão remota e insubstancial que quase
poderia dizer que a tinha imaginado. Gerald mostrava-se tão
afectuoso com Rachel... Quando se deitavam lado a lado ao sol,
pareciam imersos na sua própria história íntima, para além de
desconcertantemente jovens e sexy. Ainda assim, havia em
Gerald qualquer coisa de quezilento e auto-indulgente, como se
as férias fossem um espaço tanto de licença como de penitência.
Nick afastou-se para explorar os recantos ocultos da pequena
propriedade. Deu-se conta de que a manhã, e a liberdade de
desfrutar dela como muito bem entendesse, lhe pesavam como
uma carga quase insuportável, agora que Wani partira para
Périgueux. Desceu os degraus gastos, esboroados, de socalco
em socalco, como se imergisse na sua própria melancolia. Os
últimos níveis caíam de uma forma mais íngreme, não se viam da
casa e tinham um ar negligenciado: o solo pedregoso e
ressequido emergia por entre a esparsa erva. Era evidente que
Dédé e o filho pouco ou nada se maçavam com aquela zona da
propriedade - provavelmente, só os convidados, nas suas
deambulações contemplativas, é que se davam ao trabalho de
descer até àquelas paragens. Havia uma atmosfera de jardins
esquecidos, tanto como de socalcos que, em tempos, teriam sido
cultivados; um distante queixume de maquinaria agrícola, a
correria das lagartixas que disparavam por sobre as folhas
mortas. Em cada nível, havia nogueiras cheias de frutos verdes
meio ocultos pelos ramos. Nick meteu por um buraco numa sebe

350

e encontrou alguns velhos abrigos de pedra, uma pilha de lenha


já coberta de ervas, um tractor enferrujado. Estava a fazer o que
sempre fazia, explorando e memorizando, possuindo o local - e
possuía-o conhecendo-o melhor do que os seus anfitriões. Se
Rachel, por acaso, se lembrasse de dizer: «Ah, se ao menos
ainda tivéssemos aquele pogo-stick(1)», seria muito natural que
Nick respondesse, como uma criança pungentemente
pressurosa: «Mas nós temos um pogo-stick! Está na velha
arrecadação, com a batedeira de manteiga que se avariou e as
medalhas que foram atribuídas às cebolas da quinta na Feira de
Produtos Agrícolas, aquelas medalhas que estão pregadas nas
vigas!» Sentia que um dos sinais da verdadeira posse era uma
espécie de negligência; o verdadeiro proprietário tinha um velho
quintal para cortar e guardar lenha de cuja existência já mal se
lembrava.
Foi buscar o seu livro ao quarto e desceu até à piscina. A
temperatura subia e um longínquo farrapo de nuvem depressa se
dissipara no imenso azul. Jasper e Catherine já estavam na água
e Jasper parecia satisfeito por ser visto a lutar com ela, quase
que a fornicar com ela; piscou o olho a Nick quando o viu entrar
no vestiário. A piscadela de olho pareceu acompanhá-lo no
interior da casinha. Havia uma atmosfera sugestivamente
despojada no vestiário, que parecia sempre fresco e secreto
depois da ofuscação da piscina; era como se a casinha da
piscina abrigasse uma memória cifrada - ou uma promessa - de
um encontro. Na noite anterior, Nick teria fornicado com Wani no
vestiário, se por acaso Gerald não tivesse resolvido demorar-se
na piscina, como um vigilante decidido a bisbilhotar tudo. Havia
a primeira divisão, com um lava-loiça e um frigorífico e adereços
de plástico para a piscina - colchões e bóias de cores berrantes
-, uma velha máquina para praticar remo, de pé, encostada à
parede; e o vestiário propriamente dito logo a seguir, com um
banco de ripas e ganchos para pendurar a roupa, e o duche ao
fundo, por detrás de uma cortina azul. Só a sanita,
particularmente malcheirosa, tinha uma porta que podia ser
fechada à chave.
Nick saiu com os seus novos e reduzidos Speedos e avançou ao
longo da beira da piscina. A água era a resposta clara e reluzente
à manhã,

*1. Brinquedo usado para saltar, constituído por uma barra


vertical, uma mole forte e suportes para os pés e as mãos. (N. do
T.)

351

um hipnótico jogo de luz e profundidade. Umas quantas folhas


mortas flutuavam e outras tinham-se afundado e mosqueavam o
cimento azul do fundo. Libélulas disparavam em sóbrias visitas.
Agachou-se e agitou a superfície da água com a mão. No outro
lado da piscina, Jasper erguera Catherine para que esta se
sentasse nos ladrilhos da beira da piscina, com a água
lambendo-a entre as pernas, e ele agarrado a ela, como se lhe
apetecesse fazer o mesmo. Catherine fez uma qualquer
observação rápida acerca da presença de Nick, e, um segundo
depois, saudou-o: «Olá, querido!» Jasper virou-se e desatou a
flutuar com manifesto desembaraço, ao mesmo tempo que
brindava Nick com o seu infalível sorriso; sem dizer nada,
demorava-se indolente na água, sem nunca tirar os olhos dele.
Tinha um pequeno repertório - uma espécie de kit de principiante
- de truques de sedutor, que usava com uma satisfação óbvia,
independentemente dos resultados. Nick achava-o incomodativo
e resistível, o que não obstava a que ele figurasse nalgumas das
suas mais punitivas fantasias: para dizer a verdade, isso só
contribuía para as tornar ainda mais contundentes. Jasper
avançou pela piscina na direcção dele e, de início, naquele
alvoroço de refracções, Nick teve a sensação de que o namorado
de Catherine estava nu; depois, quando ele saltou para a beira da
piscina, todo a escorrer água, viu que usava uma tanga cor de
carne. - O que é que achas da tanga de Jaz? - perguntou
Catherine que, obviamente, imaginava que Nick se sentia atraído
pelo seu namorado.
- É, eu não gosto de usar isto quando a mãe dela está presente -
disse Jasper num tom circunspecto. Posou para Nick, meteu
para dentro a barriga bronzeada e disparou-lhe o seu sorriso
número dois.
- Que achas? - disse Catherine, com um sorriso arreganhado, um
pouco ofegante, naquele seu tom de fixação sexual.
- Hmm - disse Nick, examinando a lustrosa bolsa onde as jóias da
coroa de Jaz, era assim que ele lhes chamava, se afundavam
como os genitais de um menino. - Quer-me parecer, minha
querida, que deixa muito pouco espaço à imaginação; para dizer
a verdade, um espaço decepcionantemente reduzido. - Fez um
trejeito como que a pedir desculpa por não poder estar mais
tempo com eles e desandou, em ritmo de passeio, na direcção
dos fundos da piscina e da espreguiçadeira onde deixara o seu
livro.
Estava a ler as memórias de infância de Henry James, A Small
Boy and Others, e, ao mesmo tempo, sentia um tesão tremendo,
ao fim de três dias sem ter direito sequer a uma beijoca de Wani.
Com A Small Boy and Others, encontrava James no final da vida
e também na sua fase mais evasiva; o livro exigia uma entrega
total, improvável num leitor manifestamente preocupado com o
seu namorado e que não deixava de espiar, protegido pelos
óculos escuros, um outro rapaz que se exibia diante dele e que,
de uma maneira muito clara, tudo fazia para o excitar. De quando
em quando, o livro inclinava-se e vacilava no seu colo, e o peso
das ásperas e grossas páginas comprimia-se contra a erecção
através do lustroso nylon preto. Sublinhava expressões
singulares que, mais tarde, poderia usar: «um composto
farináceo de forma oblonga» era o eufemismo de James para
uma waffle - composto era sublime na sua categórica vagueza.
Perguntava-se que raio é que Wani teria ido fazer a Périgueux.
Suspeitava que fora comprar coca, o que parecia uma vergonha e
um perigo - daria tudo para que Wani não gostasse tanto daquilo;
logo a seguir, porém, sentiu, com manifesta frustração, depois de
três dias também sem coca, quão delicioso - e justo - seria snifar
uma linha. Era assombroso - quando muito, só explicável em
termos de uma mística - que Wani soubesse como encontrar a
droga em qualquer cidade europeia. Em Munique, Nick esperara
no táxi à saída de um banco, passara dez minutos a fitar
tensamente a alvenaria estriada das paredes e o maciço e
espiralado trabalho de ferro das portas, enquanto Wani estava lá
dentro «a visitar um amigo». O fotógrafo de Périgueux era sem
dúvida mais um desses amigos. Da piscina, vinham gritinhos
infantis: Jasper mergulhava por entre as pernas de Catherine.
Nick estava deliciado com o facto de Wani ter perdido aquela
tanga que Jasper, na ausência de Rachel, resolvera arejar - ou
encharcar; mais tarde, quando estivessem a snifar a primeira
linha, Wani teria usado a tanga, por assim dizer, para o provocar.
Apetecia-lhe muito meter-se na água; o problema é que a
barafunda na piscina era cada vez maior; agora, Jasper e
Catherine estavam de pé, com água até ao pescoço, e riam-se e
diziam coisas entarameladas enquanto se beijavam: a piscina
era deles, como um quarto. Estavam desvairados de sexo,
apaixonados pelo seu próprio atrevimento; Nick sentia que, se
fosse para a água, Jasper seria muito capaz de também o tentar
envolver.

352 - 353

A sua personagem era o do Tio Nick, adulto e céptico, uma


personagem que deixava Jasper desconcertado, mas que o
tornava cada vez mais provocante. Pensou que, se quisesse,
talvez não fosse difícil fazê-lo, mas Nick não lhe queria dar essa
satisfação. Um minuto depois, saíram da água com um ar
decididamente descontraído, a compacta e grossa erecção de
Jasper espetando-se enviesada, e foram para a casinha da
piscina e fecharam a porta. Edgar Allan Poe, dizia James, apesar
de ter sido um vulto na sua infância, não estivera «pessoalmente
presente» - de facto, «a extremidade da ausência pessoal tinha
acabado de alcançá-lo». Um minuto passou e outro e outros
mais, agora podia ouvir-se o assobio do duche do vestiário, e
Nick deixou-se ficar na sua cadeira e enxotou uma mosca que
andava de volta da sua perna e sentiu o descontentamento da
manhã crescer e transformar-se em inveja e impaciência. «A
extremidade da ausência pessoal»: por vezes, o Mestre mostrava
tanto tacto que quase se tornava brutal. Lembrou-se do que
Rachel dissera acerca do casamento de Wani e a imagem de
Wani fazendo com Martine aquilo que Jasper estava a fazer com
Catherine encheu-o de um ciúme amargo - bom, era um
disparate, sem dúvida, era uma... waffle(1). As palavras
deslizavam e encalhavam sem o menor sentido diante dos seus
olhos.

(III)

No dia seguinte, Toby resolveu ensinar ojeu de boules a Nick e


Wani e, para tal, ocuparam o poeirento rectângulo que havia no
pátio. De início, Wani teve nítidas dificuldades, mas, a partir de
certa altura, revelou-se um bom jogador, e, agora, mostrava-se
concentrado e muito sério, correndo ligeiro atrás da bola,
fazendo um grande escarcéu e sorrindo de orelha a orelha
sempre que afastava as outras boules do alvo, ou cochonnet.
«Bien tiré!»(2) dizia Toby, com uma espécie de felicidade mais
doce, pois o jogo dava-lhe a

*1. Waffle, para além da conhecida bolacha (o «composto


farináceo» de que fala Henry James), acabou por ter uma série
de outros significados - neste caso, «nonsense», «disparate». (N.
do T.)
2. Em francês, no original. (N. do T.)

354

possibilidade de avivar as cores de uma velha amizade, e


também com uma cómica atrapalhação, visto que, normalmente,
quem ganhava os jogos era ele. Nick recebeu aplausos quando
fez um bom lançamento (de facto, mais o produto de um acaso
do que outra coisa), mas o combate era realmente entre Wani e
Toby. Agora que tinha droga, Wani tornara-se mais natural e mais
popular. «É, parece estar já perfeitamente integrado», dizia
Gerald, atribuindo-se os louros da mudança, como o gerente de
um hotel que se tivesse tornado célebre pelo seu regime
eminentemente salutar. «Pois é...», dizia Rachel, que tivera de
suportar todo o impacto do principesco charme de Wani: «Parece
estar a entrar no ambiente de férias.» E rendiam-se a uma
condescendência que lhes permitia tolerar as reservas iniciais e
os levava a descobrir uma inclinação solidária - mesmo, mesmo
na hora H, ou seja, imediatamente antes da chegada dos Tipper e
de Lady Partridge. A única pessoa que estava interessada em ver
os Tipper era Gerald, e Nick errava pelo caminho da casa,
francamente entediado com o jogo, mas saudoso já das
pequenas rotinas do grupo no manoir, e também do seu esotérico
sucesso, do facto de se encontrar na França profunda, numa
adorável mansão antiga, com os seus dois belos rapazes.
Toby acabara de lançar o cochonnet ao longo do pátio quando
um grande Audi branco, com Sir Maurice Tipper ao volante,
meteu pelo portão e avançou pelo caminho. «Que droga...!»,
disse Toby, e acenou e sorriu com um ar resignado. No banco de
trás, vinham a avó e Lady Tipper, as quais exibiam aquele ar
passivo que é comum às mulheres de todas as classes,
tagarelando zelosamente enquanto o motorista as conduzia mal
elas sabiam para onde. Lady Partridge fez um gesto vago na
direcção da casa, como que a dizer que lhe parecia que era
mesmo aquela. Nick correu a abrir-lhe a porta e, no momentâneo
contacto com o ar condicionado do carro, pareceu-lhe que o
cheiro a cabedal e a laca veiculava a história de toda a viagem.
«Pois é», disse Lady Partridge, fixando os pés no chão antes de
se erguer, e procurando atenção, mas não ajuda. «Eu vim sempre
de comboio.»
- O voo foi bom, avó? - perguntou Toby, dando-lhe um beijo na
face.
- Perfeitamente normal - disse Lady Partridge, com a sua habitual
indiferença aos beijos. - Porém, do aeroporto até aqui,
355

é cá uma viagem! Sally teve tempo para me explicar tudo sobre


ópera - e lançou um sorriso mordaz aos três rapazes.
Sally Tipper disse: - A primeira classe era igualzinha à classe
turística; a única diferença é que, na primeira classe, tivemos
direito a chávenas de porcelana. Maurice vai escrever a John
acerca disto. - Observou o marido, que saiu e cumprimentou Toby
e disse «Tobias» num tom friamente compadecido.
- Bem-vindo, bem-vindo! - disse Toby, num frouxo floreio de boas
maneiras, evitando o olhar do homem que poderia ter sido seu
sogro, e seguindo de imediato na direcção do porta-bagagens, a
fim de tratar das malas. Nick teve direito a um desatento olá de
cada um deles, e ao sentimento, que já não era novo, de ser um
elemento que eles não conseguiam aceitar nem ignorar.
Catherine saiu nesse momento da casa, como que para se
inteirar dalgum acidente.
- Oh, como está, Cathy? - disse Sally Tipper.
- Continuo louca! - disse Catherine.
Gerald e Rachel apareceram nesse momento. - Muito bem, muito
bem... - disse Gerald. - Conseguiram dar com a casa...
- De início, pensámos que só podia ser aquele esplêndido châ-
teau, quando a estrada começa a subir - disse Lady Tipper.
- Ah não - disse Gerald -, nós já não ficamos no château; agora,
contentamo-nos com isto aqui. - Seguiu-se uma dupla troca de
beijos, algo complicada, que terminou com Sir Maurice
confrontando-se com Gerald e dizendo: - Oh, não, nem mesmo em
França...! - uma observação sublinhada por um risinho contido.
Os Tipper não pertenciam à classe dos veraneantes naturais.
Vinham belamente equipados, com quatro pesadas malas
protegidas por cantos de aço, e uma série de outras pequenas
malas que tinham de ser manuseadas com todo o cuidado, mas
havia qualquer coisa que faltava - e que lhes passava
despercebida. Murmuravam perguntas um ao outro e davam uma
impressão de ansiedade dissimulada, ou seria talvez irritação.
Quando desceram nessa primeira tarde, Sir Maurice disse que
estava à espera de receber uma quantidade de faxes e pediu-lhes
que providenciassem no sentido de abastecer a máquina de
papel. Não havia dúvida de que, acima de tudo, aquilo que
esperava das férias era a chegada dos faxes. Wani, num jeito
adulador, disse-lhe que também estava à espera de alguns faxes,
com o que pretendia significar que estaria atento à máquina,
mas Sir Maurice brindou-o com um olhar penetrante e comentou
que fazia votos para que os faxes de Wani não atrasassem os
seus. Eram só quatro e meia da tarde, mas Gerald já estava a
assinalar a chegada dos convidados com um Pimm's, e Lady
Partridge, com a presença do filho funcionando como uma
espécie de licença, tratou de acompanhá-lo com um gin com
Dubonnet. Os Tipper pediram chá e sentaram-se sob o toldo,
relanceando a paisagem com um ar apreensivo. Quando Liliane,
vagarosa, estóica, e claramente adoentada, apareceu com a
bandeja, Sally Tipper apressou-se a dar-lhe instruções quanto às
diferentes almofadas de que precisava. Sir Maurice pôs-se a falar
com Gerald sobre a compra de uma empresa em que ambos
estavam interessados, ainda que Gerald, com um copo atulhado
de pedaços de fruta na mão, não parecesse ter um ar muito
sério, ou, enfim, o ar mais adequado para tratar de negócios.
Lady Tipper queixou-se a Rachel do cheiro a cachorros quentes
no Royal Festival Hall. Rachel retorquiu que tudo isso iria mudar,
agora que se tinham visto livres de Red Ken(1), mas Lady Tipper
abanou a cabeça, como que surda a um tal conforto. Nick, sem
dúvida ingénuo, tentou despertar o interesse de Maurice Tipper
pelos mais belos locais da região, locais que ele próprio ainda
não tinha visto. «É caso para dizer: olha quem fala!», disse Sir
Maurice - sorrindo num ápice para Gerald e Toby, para mostrar
que não era fácil deixar-se seduzir pelas belas palavras. Estava
habituado a uma deferência absoluta e a mera amabilidade
deixava-o desconfiado. Não iria aceitar de bom grado a
democracia da vida no manoir. E Nick viu aquele rosto, de uma
macieza clerical, com os óculos de armação dourada, à luz de
uma nova ideia, a saber, que o facto de se possuir uma imensa
riqueza podia não estar associado ao prazer - ou, pelo menos, o
prazer como era procurado e inconscientemente definido pelas
outras pessoas presentes.
*1. Ken Livingstone (a imprensa deu-lhe a alcunha de Red
(«vermelho», ou seja, «comunista», devido à sua política de
esquerda), político britânico nascido em 1945. Eleito para o
Greater London Council (GLC), uma associação dos diversos
municípios da Grande Londres, tornou-se seu líder em 1981. As
suas opções de esquerda foram um dos principais factores que
levaram Margaret Thatcher a conduzir uma agressiva campanha
para acabar com o GLC. Conseguiu-o em 1986 (é a isso que o
texto se refere). Em 1999, como candidato independente, tornou-
se o primeiro mayor de Londres eleito por sufrágio universal.
Suspenso do Partido Trabalhista, foi reeleito em 2004. (N. do T.)

356 - 357

Sally Tipper tinha uma montanha de cabelo louro moldada numa


dispendiosa confusão e uma quantidade considerável de
tilintante chocalhante e deslizante joalharia. Impunha à sua
cabeça uma ginástica constante; ora a abanava, ora a sacudia
num jeito aprovador. Era virtualmente um tique - de irritação ou
de concordância, mas de uma concordância quase mais
exasperada que a irritação. Tinha um sorriso que mais parecia
um pisca-pisca, pois abria-se num ápice para logo se fechar,
como se não contemplasse a menor gradação humorística. Antes
do jantar, anunciou que gostaria que as bebidas fossem servidas
dentro de casa, o que não augurava nada de bom, visto que, para
os Fedden, o interesse e fascínio do manoir consistia
precisamente em fazerem tudo o que fosse possível ao ar livre.
Sentaram-se na sala de estar com todas as luzes do tecto
acesas, como numa sala de espera. Nick vira os nomes «Sir
Maurice e Lady Tipper», gravados a letras douradas nos
programas do Covent Garden, visto que integravam a Comissão
de Mecenato, e vira-a a ela em pessoa, por vezes com Sophie,
mas nunca com o marido. Pensou que a ópera poderia ser um
tema para toda a semana e, num tom sóbrio, disse que a recente
produção do Tannháuser não tinha sido muito boa.
- Muito boa... Pois... Eu achei... - disse Lady Tipper, e abanou a
cabeça num magoado desafio a todos os críticos e maldizentes. -
Olhe, Judy, aí tem uma ópera que devia realmente ver -
prosseguiu, agora quase a plenos pulmões. - Conhece-a com toda
a certeza, é aquela que tem o Coro dos Peregrinos.
Lady Partridge, fortificada pelo facto de estar en famille(1) e
meio bêbeda, retorquiu: - Não vale a pena insistir, minha querida.
Eu nunca pus os pés num teatro de ópera, excepto uma vez, e
isso já foi há trinta anos, quando... quando o meu filho me levou -
e acenou abstrusamente na direcção de Gerald.
- O que é que foi ver, Judy? - perguntou Nick.
- Creio que foi Salomé - disse Lady Partridge ao fim de um
minuto.
- Que maravilha! - disse Lady Tipper.
- Pois, foi uma coisa medonha! - disse Lady Partridge.
- Oh, mãe! - disse Gerald, dividido entre uma conversa sobre
acções com Sir Maurice e o desejo, marcado por um sorriso
ansioso, de apanhar o que a mãe dizia.
- Aplaudo o seu bom gosto, Judy - disse Nick, com a ênfase
necessária para levar a sua avante, e deu-se conta da figura de
pateta que estava a fazer.
- Mm, creio que era de Stravinsky.
- Não, não - disse Nick -, Salomé é uma ópera do temível...:
Richard Strauss. Oh, a propósito, Gerald, encontrei uma citação
verdadeiramente maravilhosa acerca do temível, é de Stravinsky,
precisamente.
- Desculpe, Maurice... - murmurou Gerald.
- Robert Craft(2) pergunta-lhe: «Agora já acolhe melhor alguma
das óperas de Richard Strauss?», e Stravinsky responde - e Nick
marcou o ritmo da citação, conduzindo-a como um maestro, na
bizarra sobreexcitação da contenda straussiana - «Eu gostaria
de acolher todas as óperas de Strauss, mas para as conduzir
àquele purgatório, e estou em crer que tal purgatório existe, que
castiga a banalidade triunfante. A substância musical dessas
óperas é medíocre e de muito mau gosto; não apresenta o menor
interesse para um músico dos nossos dias.»
- O quê? - bufou Gerald.
- Bom, eu prefiro Strauss a Stravinsky, mas incomparavelmente!
Deus nos livre! - exclamou Lady Tipper. Sir Maurice olhou para
Nick, ainda inflamado pelo seu secreto triunfo, com uma
repugnância desconcertada.
Ao jantar, Gerald já estava francamente bêbedo. Parecia ter tido
a ideia de fazer de Maurice Tipper seu parceiro na bebida e de
transformar a sua primeira noite num tumulto de animação,
seguido, na manhã seguinte, pelo pesaroso elo de uma ressaca
partilhada. Porém, Sir Maurice bebia com a mesma desconfiança
com que conduzia os seus negócios, tapando o seu copo num
jeito divertido - cada vez mais apagado, é certo - sempre que
Gerald se inclinava sobre o seu ombro com a garrafa na mão. O
rosto de Gerald, ao abeirar-se da luz das velas, exibia o brilho de
um gáudio obstinado.

*1. Em francês, no original. (N. do T.)


2. Maestro americano, nascido em 1923, com uma extensa
bibliografia sobre música. (N. do T.)

358 - 359

Sentou-se e, pela segunda vez, resumiu a divisão do Périgord em


quatro áreas: a verde, a branca, a preta e a roxa. - E nós estamos
na branca - disse Maurice Tipper, com evidente frieza.
A conversa, como tantas vezes acontecia com os Fedden,
acabou por se centrar na primeira-ministra. Nick viu Catherine
cerrando os dentes de exasperação quando a avó disse: - Foi ela
que pôs este país de pé! - claramente esquecida, no seu fervor,
do país onde estava naquele momento. - Ela mostrou-lhes como é
que era no caso das Falklands, não mostrou?
- Ou seja, ela é uma velha megera odiosa - murmurou Catherine.
- Uma coisa é ela de certeza: tão temível como o manxome
foel(1) - disse Gerald. Sir Maurice era a perplexidade em pessoa.
- Ai daquele que se atravessa no seu caminho!
- Sem dúvida - disse Sir Maurice.
Wani, fosse lá pelo que fosse, conseguiu atrair a atenção dos
outros e logo aproveitou para intervir: - As pessoas dizem isso,
mas, sabem, eu sempre encontrei nela uma faceta muito
diferente... Uma mulher de uma bondade extrema... - e deixou
que os outros vissem que ele mergulhara nas profundezas de
uma qualquer historieta reconfortante, retemperadora, mas,
depois, em vez de contar o episódio, disse, num tom discreto: -
Ela passa por tantos tormentos para ajudar aqueles por quem...
se preocupa.
Maurice Tipper, com um soturno pigarreio, manifestou tanto
respeito como ressentimento, e Gerald retorquiu:
- Claro, mas você conhece-a na qualidade de amiga da família
- sorrindo resolutamente enquanto concedia a Wani aquilo que,
de uma forma tão gritante, ansiava para si mesmo.
- Bom... - disse Wani -, é um facto...!
- Eu amo-a! - exclamou Sally Tipper, talvez na esperança de

*1. A expressão manxome foe vem de Lewis Carroll, Through the


Looking-Glass and What Alice Found There, de 1872, mais
exactamente do poema, intitulado «Jabberwocky», que Alice
encontra no primeiro capítulo. Por ser um texto quase
incompreensível, Alice pede a Humpty-Dumpty, no sexto capítulo,
que a ajude a decifrá-lo (Humpty-Dumpty só a ajuda
relativamente à primeira estrofe). Este célebre poema em que
Carroll inventa palavras, muitas vezes através da justaposição,
continua a suscitar longos debates e suadas tentativas de
tradução. O manxome foe é o «Jabberwock», um inimigo sem
dúvida temível, uma criatura com todas as características de um
monstro. (N. do T.)

360

que os outros considerassem que o amor não só incluía a


amizade, como ainda a ultrapassava.
- Pois é - disse Gerald. - São aqueles olhos azuis... Quando uma
pessoa olha para aqueles olhos azuis, só lhe apetece é nadar
neles, não é, o quê?
Sir Maurice não parecia disponível para tais extremidades e
Rachel apressou-se a comentar, num tom ligeiro, embora
significativo: - Nem toda a gente está tão apaixonada como o
meu marido.
Nick olhou por cima daquelas cabeças para a vasta paisagem
nocturna, onde as luzes das quintas e das estradas, invisíveis de
dia, cintilavam numa misteriosa proeminência. Falou muito
pouco, agarrando-se ao ignorado romance do local e da hora, às
brandas lufadas que beijavam as árvores, às estrelas que
espreitavam no cinzento por sobre as silhuetas dos bosques.
Como se veio a ver, foi Wani quem salvou a noite. Sentia uma
clara admiração por Maurice Tipper e tentou diverti-lo e também
impressioná-lo - e nenhuma dessas tarefas era fácil. Após o prato
principal, fez uma significativa pausa para ir à casa de banho, e,
na meia hora seguinte, abasteceu o jantar daquele sentido de
finalidade e diversão que os outros tinham tentado - sem o menor
êxito - encontrar. Até Catherine se riu da sua exagerada imitação
de Michael Foot(1), e Lady Partridge, que estava constantemente
a acordar de breves sonos com uma tosse e uma mirada furtiva,
também se riu.
De manhã, antes que estivesse demasiado calor, os Tipper
desceram até à piscina, ela com uma mancheia de protectores
solares e um chapéu descomunal, ele com o último Dick Francis
numa mão, como um engodo para a pasta que trazia na outra.
Era a hora em que Nick gostava de fazer as suas cinquenta
piscinas - bom, pelo menos inventara tal tradição para canalizar
a sua animosidade em relação aos recém-chegados. Quando
desceu pouco depois, Lady Partridge, uma entusiasta da natação
que, chegada à piscina, mal se movia, encontrava-se no meio da
ponta mais rasa e, pelos vistos,

*1. Abreviando muito, Michael Foot (n. 1913) foi líder do Partido
Trabalhista britânico entre 1980 e 1983, depois de, nos anos 70,
ter passado pelo governo Wilson. Dentro do seu partido, assumiu
sempre posições claramente de esquerda. (N. do T.)

361

nem se dava conta de que Sally Tipper, a seu lado na água,


estava a inquiri-la acerca da cirurgia à anca a que se submetera:
de quando em quando, a mãe de Gerald olhava de relance para
Sally com moderada apreensão. Maurice Tipper mandara pôr uma
mesa e uma cadeira sob um guarda-sol e sentou-se, com uns
calções de um tom castanho-claro bastante justos, lendo e
anotando um molho de faxes. Os lábios dele tremiam e
contraíam-se com aquela vigilância sarcástica que era a sua
variedade muito peculiar de felicidade. Desapossado da piscina,
Nick foi para o seu recanto favorito num terraço mais baixo e leu
A Small Boy and Others na companhia de uma lagartixa.
Ao meio-dia surgiram vozes e chamamentos vindos das alturas
do pátio, enquanto um grupo se reunia para o almoço. Nick subiu
para se despedir deles. Toby armara os bancos sobressalentes
na traseira do Range Rover e procedia agora a uma diligente
vistoria de segurança; ou seja, dedicava-se àquele tipo de
trabalhos extra que atrasam uma partida e disfarçam o alívio da
pessoa que fica. - Não queremos que a senhora saia disparada
pelo pára-brisas - disse ele a Lady Tipper.
- Creio que vão achar este restaurante aceitável - balbuciou
Gerald num jeito brincalhão, indicando a Maurice Tipper o lugar
do passageiro.
- O problema é que ele não pode comer coisas demasiado
condimentadas - disse Sally. - Ah, as úlceras... Um horror... - E o
seu rosto todo se contraiu numa expressão de profundo
desânimo. - Temo que o jantar de ontem quase tenha acabado
com ele.
- Oh, eles vão ter todos os cuidados com vocês, vão fazer tudo o
que puderem - disse Rachel, com uma doçura inexorável. Gerald,
melancolicamente frustrado com o facto de os seus novos
convidados não repararem nas belezas do manoir, ia levá-los ao
Chez Claude, em Périgueux, por norma a prenda da última noite
de férias, na esperança de lhes arrancar uma palavra elogiosa.
- Nós achamos que o Chez Claude merecia uma terceira estrela
Michelin - disse Gerald. - Vamos a ver se concordam connosco.
- Oh, nós ao almoço pouco comemos - disse Sally Tipper.
Catherine e Jasper apareceram finalmente e Wani espremeu-se
todo excitado com eles na terceira fila. Toby fechou as portas
como se fosse um segurança, e lá foram eles, como um suave
rugido de superioridade,

362

empoleirados e apinhados, para aquilo que Nick descrevia para


si mesmo como um pequeno passeio ao inferno - não o estrelado
Chez Claude, não a paisagem campestre semeada de torrinhas,
mas a atmosfera que aquela gente transportava consigo. Toby
pôs o braço à volta dos ombros de Nick e desandaram para a
casa silenciosa - ambos levemente excitados e constrangidos.
Toby desatou a fazer sanduíches para o almoço num jeito
resolutamente entusiástico, empilhando bocados de galinha fria
e alface e azeitonas e rodelas de tomate que, com a primeira
mordidela, esguichariam ou cairiam das pontas. As sanduíches
ficaram uma verdadeira salgalhada e Toby não se esqueceu
sequer de as borrifar com montes de molho - era quase como se
estivesse a dizer a Nick, que em tempos trabalhara numa loja de
sanduíches: «Estás a ver, eu não sou panilas, eu não tenho estilo,
o que é que hei-de fazer, é mais forte do que eu.» Levaram as
sanduíches para a piscina, sentaram-se à sombra de um guarda-
sol e trataram de comê-las; como seria de esperar, o molho e os
tomates esguicharam e bocados de alface caíram-lhes nas
pernas.
-Mm, está tudo muito calmo, uma maravilha, não é? - disse Toby
passado um bocado.
- Pois é - disse Nick com um sorriso arreganhado. Tinham ambos
óculos escuros, o que os obrigava a procurar o olhar um do outro.
- Queres uma cerveja? - disse Toby.
- Porque não - disse Nick. Toby foi até à casinha da piscina e
voltou com duas Stellas bem frescas. As cervejas pareciam
assinalar um desejo de conversa, mas Toby não sabia como
começar. Nick perguntou: - Então quando é que Maurice e Sally
se vão embora? - ainda que soubesse a resposta.
- Tem piada que faças essa pergunta - disse Toby. - Estava
precisamente a pensar nisso.
- Não sei como, mas até me dou bem com ela.
Toby olhou para ele com um ar que roçava a censura: - Tens sido
um herói com ela! Claro que Sally é uma grande rainha(1) da
ópera, não é.

*1. No original, opera queen, uma expressão que pode ser lida
como «bicha da ópera» (e é conhecida a ligação entre gays e
ópera). (N. do T.)

363
Não obstante os dois pares de óculos, Nick tentou perceber se
aquilo seria uma graça - mas parecia que Toby usara a expressão
com igual inocência tanto quanto às «rainhas» como quanto à
ópera.
- Ele é um filisteu consumado - disse.
- Oh, ele é um tratante da pior espécie - disse Toby, o qual ao
contrário do pai, raramente recorria à obscenidade.
Nick fê-lo por ele. - É um filho da puta.
- Não, de facto é isso que ele é.
- Mas afinal por que raio é que eles vieram para aqui?
- Oh, negócios, claro... - Toby parecia constrangido ao ouvir-se
criticar o pai: - Sabes, creio que o pai achava que nós íamos ser
uma grande família, uma família muito feliz... Mas depois houve...
enfim... o caso Sophie, mas seja como for, ele continua a
comportar-se como se nada tivesse corrido mal.
- Os negócios, como de costume - disse Nick, relutante em
abordar, pela enésima vez, o caso Sophie. - Imagino que Tipper
seja um tipo muito poderoso, é isso, não é?
- Mas é claro... Ele é um dos maiores!
- O que é que ele tem, exactamente?
- Nick, francamente...! Por amor de Deus, com certeza que
ouviste falar da TipperCo, é um gigantesco grupo de empresas.
- Não, claro...
- Foi uma história que deu imenso que falar nos anos 70, a
empresa de Tipper comprou uma outra empresa que estava
falida por um preço muito reduzido e depois tratou de
desmembrá-la e de vender todos os seus bens com um lucro
altíssimo. Tipper tornou-se muito impopular, mas a verdade é que
arrecadou milhões.
- Certo...
- É, na semana em que isso aconteceu devias andar muito
entretido com o teu Chaucer.
Como de costume, Nick não resistiu a uma muito branda
excitação amorosa pelo facto de Toby estar a meter-se com ele;
enrubesceu e riu-se num jeito complacente. Claro que Toby era
um especialista naquelas matérias, mas uma pessoa esquecia-se
disso. Era maravilhoso - enfim, à sua maneira, à sua escala, não
deixava de ser - que ele tivesse escrito artigos em jornais;

364

tão maravilhoso como o facto de o pai estar agora ligado à


política de imigração ou às leis que determinavam quem ia ou
não ia para a prisão.
- Dei uma espreitadela a alguns dos faxes de Tipper, mas
estavam escritos numa língua estrangeira.
- Gostava de saber o que é que viria nesses faxes...
- O costume, números e coisas de negócios, tu sabes como é.
- Ah! É, para dizer a verdade eu também dei uma espreitadela.
Actualmente, há uma explosão no mercado imobiliário, deve ser
por isso que o pai está tão interessado.
- Sam Zeman diz que Gerald está a sair-se tremendamente bem.
- É, ele anda a conspirar qualquer coisa.
- Mas ele é um conspirador, não...?
- Ah, sim, completamente. Bom, tu tens visto como ele anda
chateado...
- Sim, de facto...
- Quer dizer, o manoir para ele é uma chatice de morte.
- Mas está sempre a dizer que adora passar férias aqui.
- O que ele adora é a ideia da coisa, não a coisa. Tu sabes... -
Esta era, em si mesma, uma ideia interessante, e, de algum
modo, saíra-lhe com a precisão de uma fórmula, como aquelas
coisas tão inteligentes que Toby costumava dizer em Oxford,
coisas em segunda mão, ouvidas a amigos da família.
- Se calhar sente a falta de Londres - disse Nick, perguntando-se
se Toby faria alguma ideia do que ele pretendia dizer.
- Creio que sente a falta do trabalho - disse Toby.
Nick deu um risinho hesitante, mas não disse mais nada.
Levantou-se e despiu a T-shirt.
- Boa ideia - disse Toby, e fez o mesmo, e espreguiçou-se muito;
desnecessariamente. Para Nick, nesse instante, a carga sexual
da tarde adensou-se um pouco. Toby continuava a ser um belo
homem, apesar do desmazelo em que caíra. A sua beleza
conseguia manter um misterioso equilíbrio com a própria
negligência a que era votada. Toby baixou a cabeça, o queixo
quase encostado ao peito, e os cantos da sua boca contraíram-
se para baixo enquanto apreciava o seu corpo. Era uma pena,
mas também era estranhamente reconfortante, ou até levemente
excitante, que ele se tivesse deixado engordar, ao passo que
Wani, cuja suave elegância fora um dos elementos do seu
charme,

365

parecia - aos olhos de Nick - cada vez mais magro e aquilino.


Toby voltou a sentar-se, olhou para Nick e bebeu uns goles
rápidos da garrafa, numa exibição de timidez por causa do queria
dizer. - É, tu agora estás numa forma bestial - disse ele por fim. -
Estava a reparar nisso.
Nick meteu o peito para fora e contraiu a barriga. - É - disse, e
bebeu um rápido e orgulhoso gole.
- Não andas com ninguém agora, pois não?
Nick não podia deixar de se sentir comovido com estes pequenos
passos no sentido de uma intimidade, com a sensação de que
falar francamente com um amigo era, para Toby, uma espécie de
novidade, um luxo intrigante. Aquilo era um eco dos tempos de
Oxford, quando Nick inventava ocasiões, forjava conversas e
conseguia pôr Toby a falar, num jeito solene e ligeiramente
aturdido, dos seus sentimentos e da sua família. Era uma pena
que, agora, tivesse de lhe responder, num tom tão espontâneo
quanto possível: - Não, de facto não. - Suspirou. - Mas tu tens
toda a razão, Toby! - prosseguiu. - Por que raio é que eu não ando
com alguém? É um escândalo! - E depois, incauto: - E tu, já
agora? Andas de olho nalguma pessoa?
- Não - disse Toby -, ainda não. - Ofereceu a Nick um sorriso triste
e disse: - Tu sabes, aquela maldita história com Sophie... -
Abanou lentamente a cabeça, invocando o choque do caso. -
Quer dizer, o que é que houve de errado na nossa relação, Nick?
Nós íamos casar-nos e tudo...
- Eu sei... - disse Nick -, eu sei... - pressentindo uma oportunidade
para pôr tudo preto no branco, o que, por vezes, era um prazer
questionável.
- Quer dizer, trocar-me por um dos meus melhores amigos!
- Creio que acabarás por encarar tudo isso como uma saída feliz
para um problema sério - disse Nick, ciente de que já tinha dito a
mesma frase a Toby umas quatro ou cinco vezes.
- O sacana do Jamie - disse Toby.
- Claro que ela foi uma idiota - disse Nick, com rectidão fraternal
e uma secreta ternura. - Mas imagina só a seca: teres de passar
todas as tuas férias de Verão com Maurice e Sally!
- Claro que Maurice me critica por não ter insistido com ela, por
não ter lutado por ela. Ele achava que era um bom casamento.

366

- Por amor de Deus, meu querido, era um bom casamento, mas


para ela: demasiado bom! Uma porra de uma maravilha de
casamento, para ela!
- Mm, obrigado, Nick. - Toby bebeu mais um gole da garrafa e pôs-
se a fitar a água. A linguagem de Nick parecia ter atiçado uma
fiada de pensamentos. Disse: - Acho que também não era tão
bom como isso, estás a ver, o lado sexual. - Havia na sua
expressão alguma amargura, e também um pouco de culpa, por
estar a dizer isto.
-Oh...
- Sabes como é que ela chamava ao sexo? «Aquela maçada.»
- Nada auspicioso, de facto.
- Ela era um bocado... infantil. Para dizer a verdade, não creio que
gostasse muito.
Nick não resistiu a dizer: - A sério...?
Toby suspirou. - Ela costumava dizer que eu a magoava, e... não
sei.
Havia várias explicações possíveis para isto: Sophie, filha dos
gélidos Tipper, era, ela mesma, frígida; ou, claro, o material de
Toby era demasiado grande; ou ele não sabia o que fazer com
ele; ou então ele era, muito simplesmente, demasiado grande e
desajeitado para uma jovem tão frágil como ela. Nick disse: -
Bom, se o sexo não prestava, aí tens mais uma razão para
achares que foi uma saída feliz para um problema difícil. - Não
deixava de o impressionar que o homem que fora o seu objecto
de desejo durante três anos ou mais, e que participara
incansavelmente nas suas fantasias, talvez não fosse afinal
grande coisa em termos sexuais, ou pelo menos ainda não, que
esse homem fosse desajeitado na cama, ou por inexperiência, ou
por ter escolhido o parceiro errado. Nick considerava-se feliz,
muito feliz, por ter sido guiado por alguém que tinha tanta prática
e que era tão insaciavelmente fogoso. E, por um segundo ou dois,
no calor meridional, a excitação daquele primeiro Outono em
Londres comoveu-o e arrepiou-o.
Toby remoeu um pouco mais o caso, esvaziou a garrafa e foi até
à casinha da piscina buscar mais duas cervejas.
Mais tarde, nadaram um bocado, sem nunca dizerem se estavam
ou não a competir. Nick gostava de vencer Toby, mas depois
tinha pena de o vencer. Sentia-se excitado e entristecido com os
seus segredos de sexo e de droga,

367

como um pai adúltero brincando com um filho que não suspeita


rigorosamente de nada. Parecia-lhe estranho que isso estivesse
a acontecer, quando, durante anos, a ideia de se divertir com
Toby na água, os dois quase nus, teria desencadeado nele,
inevitavelmente, uma sufocante sensação de romance. Ergueu-se
da água e sentou-se na saliência meio submersa da piscina, com
a água a bater-lhe nos tomates, e pôs-se a olhar para a vista e
depois para o lado oposto, para a casinha da piscina, os degraus
sob a figueira, e a alta fachada da casa com as venezianas todas
fechadas por causa do sol. A sensualidade da tarde, o
sentimento de que não havia mais ninguém por ali, o silêncio e a
plenitude do momento - Nick observou Toby a sair da água com
um salto magnífico e uma não menos magnífica sacudidela do
seu maciço e inocente traseiro.
Beberam mais uma cerveja, os dois estirados ao sol. - Adorava
saber como é que estão a correr as coisas lá no restaurante -
disse Toby.
- Estou tão contente por não ter ido - disse Nick. - Quer dizer,
tenho a certeza de que o restaurante é óptimo...
- Tem sido bestial, poder passar algum tempo contigo, meu velho
- disse Toby, como se de facto eles tivessem aproveitado esse
tempo. - A propósito, como é que te tens dado com Wani?
- Bom, de facto tenho-me dado bem - disse Nick. - Ele tem sido
muito generoso comigo.
- Wani disse-me que tem imensa confiança em ti.
- Oh... Ah sim...? Sim... Ele é uma pessoa muito especial.
- Sempre foi. Mas, com o tempo, acabas por te habituar. Ao fim
de tantos anos, posso dizer que o conheço por dentro e por fora.
- Sim, vocês são velhos amigos, não é? Muito velhos mesmo...
- Se somos... - disse Toby.
Nick espalhou algum protector solar e Toby pôs-lhe o creme nas
costas, num jeito particularmente ansioso, descrevendo, a cada
momento, aquilo que estava a fazer. Depois, Toby deitou-se de
barriga para baixo na sua espreguiçadeira e Nick, pela primeira
vez ao fim de tantos anos, agachou-se sobre ele e comprimiu o
tubo e esguichou o pouco creme que havia ao longo das suas
omoplatas e tratou de o espalhar num jeito enérgico, embora
zeloso. Sentiu a
ferroada premonitória de uma dor de cabeça (com tanto sol e
cerveja, não admirava), sentia a pele a arder e um peso
tremendo nas pálpebras, e tinha uma erecção muitíssimo
inconveniente. As suas mãos moviam-se macias ao longo das
costas de Toby, numa bizarra e muito concreta imitação de mil e
uma fantasias. O seu coração desatou a martelar quando chegou
à curva ao fundo das costas; tentou dar às suas carícias um tom
de massagem, um toque de método, quando as suas mãos se
abeiraram da curva ascendente das nádegas de Toby, da cintura
baixa e lassa do seu calção de banho. E Toby para ali estava,
rendido às suas mãos, incutindo nele a obsessiva e tumultuosa
noção de até onde poderia chegar caso continuasse. Pôs um
ponto final naquilo, afastou-se de um salto e deitou-se num ápice
- e com manifesto desconforto - de barriga para baixo. Por uns
quantos minutos, os dois rapazes mantiveram uma indolente
conversa, marcada por amplos silêncios, pedindo um ao outro
não mais que respostas murmuradas, como um casal na cama.
Nick acordou com um estranho ruído explosivo, como que de um
motor que teimava em não arrancar. Uma respiração intensa,
vocalizada, acompanhava ritmicamente esse ruído. Virou-se,
olhou estremunhado à sua volta e viu que Toby trouxera para a
piscina a máquina de praticar remo que estava na casinha. Tinha
um assento que se movia ao sabor dos movimentos do remador e
também estribos para os pés e um manípulo com que Toby
puxava um cabo branco que, depois de puxado, se retraía
violentamente. Nick deitou-se de lado a apreciá-lo, com a
suspeita de que Toby estava a exibir-se para ele, disparando para
a frente e para trás ao sabor de cada investida e de cada recuo.
Ele tinha uma força imensa. O sol batia-lhe nas costas e o suor
pingava-lhe das axilas. Os músculos da barriga retesavam-se e
relaxavam, retesavam-se e relaxavam. Respirava de uma forma
brutal e severa, os lábios afunilados num rígido beijo. Era surreal,
estar a remar com tal violência em terra seca, mesmo ao pé de
um lençol de água azul parada. A máquina fazia o seu ruído, era
como se alguém estivesse a serrar ou a aplainar qualquer coisa
ao longe, num rítmico vaivém. E Nick lembrou-se de um
entardecer em Oxford em que vagueara pelos Meadows, na
direcção do Isis, junto às casas dos barcos, todos os shells de
oito na água e com as respectivas equipas, embora um ou dois
remadores ainda andassem por ali às voltas, como que detidos
pela luz do fim do dia,

368 - 369

pela atmosfera de liberdade e disciplina junto ao rio. No largo


caminho de saibro, os barcos encharcados haviam deixado
traços de água e pequenas poças. Continuou vagueando junto ao
rio até que viu aquilo que esperava ver, Toby num single scull, de
tronco nu, reluzente, movendo-se com assombrosa velocidade ao
sabor da corrente.
Nick estava debaixo do toldo a ler quando ouviu as portas de um
carro a baterem e, um instante depois, uma série de vozes
cansadas e muito pouco afáveis. Durante breves segundos,
sentiu-se dominado pelo seu velho reflexo de posse, como se os
verdadeiros proprietários fossem afinal uns intrusos. A grande
jarra de vidro quebrara-se e a tarde quente parecia ter-se
derramado para todo o sempre. Catherine saiu do Range Rover
com grande estardalhaço, toda curvada, como que mimando a
exaustão e a náusea.
- Foi bom o almoço? - disse Nick.
- Oh! Nick! Santo Deus... - Disse já as últimas palavras num
murmúrio e, meio cega pela luz, tacteou à procura dele, à
procura da ponta da mesa.
- Senta-te, querida, senta-te.
- Os Tipper. - Arrastou uma cadeira pelas lajes do pátio e deixou-
se cair nela. - Só visto, Nick. Contado, não se acredita. São
ignorantes como a merda. E tão mesquinhos como... como...
- Como a merda...?
- São mesquinhos como a merda! Ele permitiu que o pai pagasse
tudo. Foram mais de quinhentas libras, pelos meus cálculos... E
nem uma palavra de agradecimento.
- Não creio que eles desejassem realmente ir.
- Depois, em Podier, fomos à igreja...
- Olá, Sally! - disse Nick, levantando-se e sorrindo com um ar
deleitado, na esperança de dissipar qualquer coisa que ela
pudesse ter ouvido. - Divertiram-se?
Sally Tipper pareceu considerar a pergunta inesperada, ou
mesmo vagamente ofensiva e, enquanto a digeria, meneou a
cabeleira para trás umas quantas vezes. Até que, num tom
severo, respondeu: - Suponho que sim. Sim. Sim, divertimo-nos!

370

- Oh, ainda bem. Ao que parece, é um restaurante maravilhoso,


não é. Bom, voltaram mesmo a tempo das bebidas. Toby está a
fazer um jarro de Pimm's. Pensámos que, desta vez, talvez fosse
boa ideia servi-las cá fora.
- Mm. Por mim... E o que é que fizeram o dia todo? - Sally Tipper
fitava-o com um toque crítico. Nick sabia que, no rosto dele, se
podia ler a maliciosa satisfação de alguém que fora deixado em
paz durante uma tarde inteira, indolentes sugestões de que podia
ter andado a fazer algo de censurável, mas que, de facto, não
fizera rigorosamente nada, o que, para além de inexplicável,
provocava uma inveja muito maior.
- Lamentavelmente, deixámo-nos vencer pela preguiça -
retorquiu, e, nesse mesmo instante, Toby, vermelho da sesta ao
sol, apareceu com a jarra de Pimm's. Nick deu-se conta de que
era mesmo aquilo que queria que ela compreendesse: a sua
profunda e ociosa intimidade com o filho da casa.
Gerald e Rachel tardavam em aparecer, de modo que os Tipper
sentaram-se com os jovens para uma bebida. Toby deu a Sir
Maurice um copo tão cheio de fruta e legumes que o convidado
acabou por deixá-lo na mesa sem sequer ter provado a bebida.
Catherine não parava de pestanejar e, a certa altura, inclinou a
cabeça num jeito reflexivo. Ao fim de um bocado, disse: - Sir
Maurice, o senhor é mesmo muito rico, não é?
- Sim, sou - disse ele, com uma fungadela de franqueza.
- Quanto dinheiro tem?
Havia alguma ferocidade na expressão dele, mas também algum
prazer. - É difícil dar um número exacto.
Sally disse: - Nunca se pode dar um número exacto, não é,
cresce tão rapidamente o tempo todo... actualmente.
- Enfim, mais ou menos - disse Catherine.
- Quer dizer, como se eu fosse morrer amanhã.
Sally pôs um ar solene, mas interessado. - Meu querido...! -
murmurou.
- Digamos, cento e cinquenta milhões.
- É... - disse Sally, aquiescendo num jeito pragmático. Catherine
ficou sem expressão, tal era o espanto que, no entanto,
conseguia ocultar. - Cento e cinquenta milhões de libras.

371

- Bom, claro que não são liras, minha cara jovem, isso posso
garantir-lhe. Nem bolivianos da Bolívia.
Houve uma pausa enquanto Catherine lhes permitia que
desfrutassem da sua confusão. Toby aproveitou para dizer
qualquer coisa de tolerável acerca dos mercados; Sir Maurice
limitou-se a encolher os ombros, para mostrar que uma pessoa
como ele não falaria de tais coisas com pessoas de tão baixo
nível.
Catherine pôs-se a remexer num pedaço de pepino que boiava na
sua bebida e, a certa altura, disse: - Reparei que o senhor deu
algum dinheiro para o peditório na igreja de Podier.
- Oh, nós contribuímos para um sem-número de igrejas e
peditórios.
- Quanto é que deu?
- Não me recordo do montante exacto.
- Conhecendo Maurice como eu conheço - disse a mulher -, só
pode ter dado muito! - Sir Maurice pusera o ar enfatuado de
alguém que estava a ser alvo de críticas.
- Deu cinco francos - disse Catherine. - O que anda à volta de
cinquenta pence novos. Mas podia ter dado - e ergueu o seu copo
e fê-lo girar, como uma espécie de telescópio, de modo a abarcar
toda a vista, incluindo os montes e a distante linha do rio -, podia
ter dado um milhão de francos e nem sequer daria pela falta do
dinheiro... E esse gesto bastaria para salvar o nártex românico!
Aí estavam duas palavras com que Maurice Tipper nunca tivera
de lidar isoladamente, quanto mais juntas. - Quanto a não dar
pela falta do dinheiro, tenho as minhas dúvidas - disse ele, num
tom francamente tolerante.
- O problema é que uma pessoa não pode contribuir para tudo -
disse Sally. - Como sabem, nós temos o Covent Garden...
- Não, com certeza - disse Catherine, tacticamente, como se, até
então, não tivesse feito outra coisa senão dizer patetices.
- O que é que se passa...? - disse Gerald, aparecendo finalmente,
de calções e sapatos de lona e com uma toalha ao ombro.
- A jovem Catherine tem estado a brindar-me com as suas
críticas. Pelos vistos, sou uma pessoa muito mesquinha.
- Não o disse de uma forma tão explícita... - corrigiu Catherine.
- Sejamos realistas - propôs Sally. - O que se passa é que
algumas pessoas são, pura e simplesmente, muito ricas.
Gerald, claramente farto dos seus convidados, olhou num tenso
relance para os degraus da piscina e disse: - A minha filha tende
a pensar que nós deveríamos repartir tudo aquilo que ganhámos
graças ao nosso trabalho.
- Nem tudo, é óbvio. Mas seria sem dúvida simpático se
ajudassem sempre que possível. - E ofereceu-lhes um sorriso de
orelha a orelha.
- Mas diga-me uma coisa, minha cara jovem: pôs alguma coisa na
caixa? - disse Sir Maurice.
- Não tinha nenhum dinheiro comigo - disse Catherine. Gerald
prosseguiu: - A minha filha vive na estranha ilusão de
que é uma indigente, em vez de... enfim, daquilo que realmente é.
Infelizmente, é impossível discutir com ela. Por muitas voltas que
a discussão dê, acaba sempre a dizer o mesmo.
- Não é isso - disse Catherine num tom vago e irritado. - O que se
passa é que eu não percebo por que raio é que uma pessoa,
quando já arrecadou, digamos, quarenta milhões, tem
forçosamente de os transformar em oitenta milhões.
- Oh...! - disse Sir Maurice, como se tivesse acabado de ouvir um
disparate absurdamente juvenil.
- Na verdade, o dinheiro, de certo modo, acaba por crescer
sozinho - disse Toby.
- O que eu quero dizer é isto: há alguém que precise de ter tanto
dinheiro? É tal e qual como o poder, não é? Porque é que as
pessoas querem o poder? Quer dizer, qual é o interesse de se ter
poder?
- O interesse de se ter poder - disse Gerald -, é que o poder
permite melhorar o mundo.
- Precisamente - disse Sir Maurice.
- Portanto, uma pessoa começa a acumular dinheiro porque quer
fazer coisas específicas, concretas, ou é só para ter a sensação
do poder, para saber que, se quiser, poderá fazer coisas?
- É a questão do ovo e da galinha, não é - disse Sally com
manifesta convicção.
- É uma óptima questão - disse Toby, apercebendo-se de que
Maurice estava a ficar pelos cabelos.

372 - 373

- Se eu tivesse poder - disse Catherine -, quer dizer, Deus me livre


de algum dia ter...
- Ámen a isso - murmurou Gerald.
- Creio que acabaria com a possibilidade de as pessoas terem
cento e cinquenta milhões de libras.
- Pois aí tem - disse Maurice -, acaba de responder à sua própria
questão. - E deu um risinho breve. - Devo dizer que não estava à
espera de ouvir este género de argumentos num sítio destes.
Gerald afastou-se dizendo: - Lamento imenso, Maurice... Com
estudantes de Arte, não é de esperar outra coisa... - mas não
parecia lá muito seguro de que esta rotineira depreciação
agradasse mais ao seu convidado do que o almoço no Chez
Claude.
(IV)
Nessa noite, durante o jantar, o telefone tocou. Toda a gente que
estava no pátio parecia pronta para receber uma chamada e um
sorriso falsamente indiferente espalhou-se pela mesa enquanto
escutavam a voz de Liliane atendendo o telefonema. Nick não
estava à espera de nenhuma chamada, mas imaginava já os
Tipper regressando de urgência a casa por obra e graça de
algum oportuno desastre. Liliane abeirou-se da luz das velas e
disse que era para madame. A conversa à mesa prosseguiu com
óbvia parcimónia e com um vago e bem-disposto interesse pelas
raras palavras que conseguiam ouvir a Rachel; até que deixaram
de ouvi-la, sinal de que Rachel fechara a porta da minúscula
divisão onde tinham instalado o telefone e o fax. Breves minutos
passaram e Nick viu a luz do quarto de Rachel acesa; a sua truta
grelhada, apenas meio comida, e o pratinho de salada, em que
não chegara a tocar, ganharam de súbito um ar de crise. Quando
voltou e disse: «Sim, por favor», com um gracioso sorriso perante
a oferta de mais vinho por parte de Gerald, parecia encorajar as
perguntas e, ao mesmo tempo, proibi-las. - Não foram más
notícias, espero - disse Sally Tipper. - Nós, quando vamos de
férias, recebemos sempre más notícias.
Rachel suspirou, hesitou e, por fim, olhou nos olhos a filha;
encontrou um olhar vigilante e apreensivo.

374

- É uma notícia tremendamente triste, minha querida - disse. - O


padrinho Pat. É terrível, Pat morreu esta manhã.
Catherine, com a faca e o garfo maquinalmente suspensos no ar,
esqueceu-se de mastigar enquanto fitava a mãe e as lágrimas lhe
corriam pelas faces.
- Oh, lamento imenso - disse Nick, tocado pela abrupta tristeza
de Catherine mais do que pela notícia propriamente dita, e
sentindo a questão da SIDA a perfilar-se num horizonte muito
próximo, súbita e inexorável, e, de algum modo, como uma
responsabilidade sua, visto que, entre os presentes, era o único
homem gay como tal reconhecido. Ainda assim, notava-se um
esforço comum do resto da família para encobrir o caso.
- Tremendamente triste - disse Gerald, e explicou: - Pat Grayson,
devem conhecer, o actor de TV...? Um velho amigo de Rachel,
uma amizade de adolescência... - Nick deu-se conta de que
Gerald estava já a expressar alguma distância em relação ao
caso e ao falecido e lembrou-se do seu discurso, três anos antes,
em Hawkeswood, quando chamara a Pat «uma estrela de
cinema». Nessa altura, Pat tinha sucesso e estava bem. - Quem é
que ligou, querida?
- Oh, foi Terry - disse Rachel, com tanto tacto e num tom tão
íntimo que quase se tornava inaudível.
- Nós vemos tão pouca TV - disse Sally Tipper. - Não temos
tempo! Com o trabalho de Maurice e todas as nossas viagens... E,
sinceramente, não creio que sinta a falta da televisão. Em que
séries é que ele entrava, o vosso amigo?
Toby, manifestamente comovido, disse: - Era o protagonista da
série Sedley. Para dizer a verdade, era incrivelmente divertido.
- Oh, sitcoms - disse Sally Tipper, com um meneio.
- Que acha, Nick? - disse Gerald. - Não era propriamente uma
sitcom...
- Era uma espécie de thriller com laivos de comédia - disse Nick,
que queria que eles gostassem de Pat antes de descobrirem a
verdade. - Sedley era uma figura típica, o patife encantador que
sai sempre incólume de todas as manigâncias em que se
envolve.
- Mm, um verdadeiro galã - disse Gerald.
Wani disse: - Pareceu-me uma pessoa tão encantadora quando o
conheci... em casa de Lionel, devia ser uma série...
tremendamente divertida!

375

- Pois era... - disse Rachel num tom perturbado, enquanto afagava


a mão de Catherine do outro lado da mesa, facilitando e
contendo aquele pequeno episódio de dor. Provavelmente
estivera a chorar no seu quarto e, agora, encontrava alguma
força no facto de ter de cuidar da filha.
A cabeceira da mesa, Gerald, naquele jeito grave e contristado
com que costumava solidarizar-se com os sentimentos alheios,
ainda que estes não o afectassem minimamente e lhe
provocassem mesmo uma ligeira repulsa, não parava de soltar
pequenos suspiros e ronquidos. - Minha pobre Puss - disse. - O tio
Pat era padrinho dela. Não um tio verdadeiro, obviamente...!
- Um esquerdista furioso - disse Lady Partridge, embora com um
risinho de indulgência póstuma, como se as opções políticas de
Pat Grayson fossem mais um traço da superlativa malandrice
que, afinal, caracterizava a personagem Sedley. - Catherine tinha
dois: um conservador, o outro, um socialista muito vermelho.
Padrinhos.
- Bom, ele até podia ser um socialista muito vermelho quando a
mãe o conheceu - disse Toby. - Mas se o ouvissem falar da
Dama...!
- O quê...? - disse Gerald.
- Ele adorava a Dama!
- Claro que adorava - disse Gerald, todo entusiasmado, e
determinado a sufocar as velhas piadas acerca dos amigos de
esquerda de Rachel diante dos Tipper. - A madrinha, claro, é
Sharon, hum, Flintshire... conhecem-na por certo, é a duquesa.
- Eram velhos amigos, não é verdade, Rachel? - disse Wani, com o
seu instinto para as conexões sociais. - Foram colegas em
Oxford.
- Ele foi o Benedick para a minha Beatrice - disse Rachel com um
belo sorriso que parecia consciente do foco de solidariedade que
emanava de Wani -, e, é claro, o Hector Hushabye para a minha
Hesione!(1)

*1. Benedick e Beatrice são um dos casais de apaixonados de


Muito Barulho por Nada, de Shakespeare. Hector e Hesione
Hushabye são um casal com problemas de fidelidade (da parte
dele) na peça The Heartbreak House de George Bernard Shaw.
(N. do T.)

376
- Mm, muito bem! - disse Gerald, eclipsado e subtilmente
constrangido.
Isto chegou para acicatar Maurice Tipper, que, naquele jeito
ligeiro e imune a todo o tipo de surpresas que é típico das
pessoas desconfiadas, perguntou: - E de que é que ele morreu?
Gerald fez uma espécie de ruído ofegante e Rachel, num tom
sereno, tratou de explicar: - Foi uma pneumonia. Mas, coitado do
Pat, ele já não andava bem há algum tempo.
- Oh - disse Maurice Tipper.
Rachel perscrutou um longínquo ponto algures sob a saladeira de
barro vidrado. - O ano passado, quando esteve no Extremo
Oriente, apanhou um vírus ou um micróbio, não sei bem, enfim,
algo de absolutamente invulgar. Ninguém sabia o que era. Julga-
se que seja uma daquelas coisas incrivelmente raras. Enfim, um
tremendo azar.
Nick sentiu uma espécie de alívio pelo facto de a família
continuar a defender aquela sinistra ficção e espreitou para o
ignorante e encolhido Jasper, que acenava que sim com a
cabeça a tudo o que ouvia e evitava o mais possível o olhar da
namorada. De súbito, viu-o encolher-se ainda mais, como se
soubesse o que aí vinha.
- Mãe, por amor de Deus! - exclamou Catherine. - Ele tinha sida! -
com a voz embargada pela expectoração, um embargo que a sua
fúria tentava anular. - Ele era gay... ele gostava de sexo fortuito...
anónimo... ele gostava...
- Querida, o que é que tu sabes dessas coisas... - disse Rachel.
Não era muito claro sobre que parte ou partes da história Rachel
procurava lançar a sombra da dúvida.
- Claro que gostava - disse Catherine, cuja visão do sexo gay
remetia simultaneamente para a tragédia e para os desenhos
animados. Ofereceu a toda a mesa um sorriso de incredulidade.
Nick sentiu que o desprezo de Catherine também o visava a ele.
- Seja como for...! - disse Gerald, e sorriu e respirou fundo como
se o momento de crise já tivesse passado, erguendo e inclinando
a garrafa, num jeito inquiridor, na direcção da mãe.
- Oh, tudo isto é patético! - berrou Catherine, com o furor e a
fixidez de olhar de alguém que era presa fácil nas garras de uma
nova e violenta mistura de emoções. - Quer dizer, o mínimo que
podemos fazer é dizer a verdade acerca dele, não acham?

377

- e bateu com toda a força na mesa, se bem que, de algum modo,


num jeito infantil e cómico; houve um ou dois sorrisos nervosos.
Num repente, atirou a cadeira ao chão e correu para casa.
- Hum... acham que devo...? - disse Jasper, sufocando um risinho.
- Não, não, eu vou - disse Rachel. - Daqui a um bocado.
- A experiência diz-nos que é melhor esperarmos um pouco -
disse Gerald, como se estivesse a explicar aos convidados mais
um dos muitos costumes locais.
- Uma jovem emotiva - comentou Maurice Tipper, com um trejeito
de desagrado.
- Ela é uma jovem muito emotiva - disse Jasper, numa cobarde
mistura de bazófia e troça.
- É muito desequilibrada - concordou Lady Partridge num tom
confidencial.
Gerald hesitou, espreitando por cima do seu copo erguido, mas lá
acabou por tomar o partido da filha. - Em minha opinião,
Catherine é muito simplesmente uma rapariga com um coração
de ouro - precisamente aquilo que ela não era, na opinião de
Nick.
Rachel disse, com um toque de gelo: - Sophie nunca tem crises?
Sir Maurice pareceu considerar a pergunta impertinente. A
mulher apressou-se a retorquir: - Se tem, não o demonstra.
Excepto quando está no palco, claro. Então, toda ela é paixão. -
Nick lembrou-se da sua actuação em O Leque de Lady
Windermere, onde tudo o que tinha que dizer era «Sim, mamã».
Terminada a refeição, os quatro rapazes instalaram-se na sala de
estar, ainda que Jasper, incapaz de conter o seu nervosismo,
depressa tivesse ido para cima rondar a porta do quarto de
Catherine. Wani estava a ler o Financial Times de Sir Maurice e
Toby rendera-se ao aturdimento da perda, limitando-se a inclinar
para a direita e para a esquerda o copo de conhaque e a virar-se
de quando em quando para Nick, numa tentativa de reformulação
da mesma ideia: - Meu Deus, é horrível, coitado do Pat, não posso
acreditar que tenha acontecido.
Nick baixou o livro que começara a ler, sorriu para sugerir que o
livro, só o livro, era uma seca. - Eu sei - disse. - É horrível, de
facto. Sinto muito. - Pensou neles dois junto à piscina, depois de
almoço, e a voluptuosa ternura que sentiu por Toby pareceu
iluminar e encher a sala. A dor de Toby excitava-o, bem como a
necessidade infantil que parecia sentir do seu conforto, de
qualquer coisa de sensato que Nick pudesse dizer-lhe. Quanto a
Nick, era óbvio que estava impressionado com a morte de Pat; ao
mesmo tempo, insinuara-se nele um sentimento de culpa, apenas
remotamente reconhecido, pelo facto de não ter feito nada por
Pat, ainda que pat, num outro sentido, também não tivesse feito
nada por ele; Nick não gostara daquele seu estilo afectado
dissimulado, adoptara em relação a ele uma atitude sobranceira,
ou mesmo pedante: de tal forma que, o que ainda era mais
vergonhoso, se sentia subtilmente libertado pela morte de Pat,
visto que ela apagava a memória da sua própria má vontade. -
Pergunto-me como é que Terry estará a reagir - disse ele, na
esperança de canalizar os pensamentos de Toby para outro
aspecto do problema.
- É, coitado. Meu Deus, é horrível, esta maldita peste.
- Eu sei.
- Por amor de Deus, Nick, tem cuidado para não apanhares essa
merda - disse Toby.
- Não vai haver problemas comigo, Toby - disse Nick. - Eu tenho
tomado todas as precauções desde... bom, desde que se sabe da
doença. - Olhou de relance para Wani, que estava tapado, dos
joelhos para cima, pela página cor-de-rosa com os seus títulos
sobre acções que tinham atingido valores nunca antes vistos e
preços de imóveis que haviam batido todos os recordes. De
quando em quando, espalmava a página. - Não precisas de te
preocupar comigo - disse Nick.
Toby parecia um pouco envergonhado. - Sabes, eu não sabia que
Pat... enfim... tinha montes de parceiros.
- Bom... - disse Nick. Sabia muito bem, porque Catherine era
indiscreta, que Pat, em termos de sexo, gostava de situações
escabrosas e violentas. - Não acredites em tudo o que Catherine
diz. Ela vive num mundo moldado por uma visão hiperbólica das
coisas.
- Sim, mas ela e Pat eram muito chegados, Nick, ele convidava-a
tantas vezes para jantar... Ela ficou em Haslemere três ou quatro
vezes. Se ela diz que ele gostava de sexo fortuito...

378 - 379

Nick deu-se conta de que os Tipper tinham acabado de entrar.


Após uma breve passagem pelo quarto, desciam à sala de estar
com um ar circunspecto, compungido, os dois muito juntinhos,
como se se sentissem obrigados a passar mais meia hora com os
amigos do falecido. Maurice ficara claramente muito incomodado
com a cena do jantar e, agora, parecia suspeitar que todo o
grupo padecia de algum tipo de comportamento desviante. Os
rapazes levantaram-se todos e Nick arrumou o seu livro, com a
capa para baixo, no braço da cadeira. Sally Tipper espiou o livro,
na esperança de desviar o seu desconforto para um objecto
neutral e disse: - Ah, estou a ver, é um livro de Maurice.
- Hum... oh - disse Nick, seguro de si, mas confuso quanto ao
raciocínio de Sally; era um estudo da poesia de John Berryman. -
Não creio...
- Já viste, querido?
Maurice dignou-se apontar as suas cintilantes lentes na direcção
do livro. - O quê? Ah, pois - disse. E avançou para Wani, que
estava a dobrar rapidamente o FT.
- Se quiser lê-lo, esteja à vontade - disse Nick, com um risi-nho
franco -, mas o livro é mesmo meu; veio pelo correio esta manhã.
Vou fazer uma recensão para a THES.
- Ah, estou a ver, não, não - disse Sally, com um sorriso friamente
diplomático. - Não, Maurice é dono da Pegasus, reparei logo que
o livro foi publicado pela Pegasus.
- Não sabia disso.
- Comprei a editora - disse Sir Maurice. - Comprei o grupo todo.
Vem no jornal. - Sentou-se e fixou com um olhar feroz o vaso de
cardos e lunária seca que estava na lareira.
- Vou só lá acima ver se a minha irmã está bem - disse Toby,
como se o aparecimento dos Tipper e a conversa subsequente
tivessem contribuído de forma determinante para uma tal
decisão.
Nick sentiu que não podia ir atrás dele. Sentou-se novamente,
defronte de Sally, mas, de certo modo, fechado a qualquer
possibilidade de relacionamento, como se fossem dois hóspedes
numa sala de hotel. Disse: - Está visto que a notícia estragou por
completo a noite.
- Sim - disse Sally. - É muito triste, de facto.
- É terrível perder um velho amigo - disse Nick.
- Mm - disse Sally com um meneio da cabeça, como que a dizer
que o significado das suas palavras fora deturpado. - Então quer
dizer que também o conhecia, ao tal homem?
- Pat... sim, um pouco - disse Nick. - Era o que se chama um
grande sedutor. - Sorriu e a palavra pareceu ficar no ar,
insistente, persistente, como se fosse uma passagem de uma
mensagem em código.
Sally disse: - Como já tive ocasião de afirmar, nós nunca o vimos.
- Pegou num exemplar da Country Life e deteve-se a perscrutar
os anúncios das agências imobiliárias. Havia na sua expressão
uma dureza notória, como se estivesse a regatear os preços
propostos; mas também uma boa dose de constrangimento, sem
dúvida um sinal de que quereria abordar o assunto. Ergueu os
olhos e, com um monumental meneio de cabeça, soltou: - Quer
dizer, eles devem ter-se apercebido do que ia acontecer.
- Ah... - disse Nick - estou a ver. Não sei. Talvez. Uma pessoa está
sempre à espera de que não aconteça o pior, não é. E mesmo
quando se sabe que vai acontecer, nem por isso é menos horrível
quando acontece. - De súbito, ficara com dúvidas sobre se Sally
Tipper saberia que ele era gay; convencera-se de que essa era a
razão para a sua frieza, para o facto de lhe não prestar a menor
atenção, mas, agora, começava a suspeitar que Sally poderia
estar completamente a leste. Sentia que a ampla questão da sua
homossexualidade estava a ganhar densidade e volume, a impor-
se com uma lógica e uma violência próprias. Haveria a tensão
social de ter de se assumir perante tais criaturas e num tal local,
e a questão, mais ampla ainda, da SIDA, envolvendo-os a todos,
enfim, mais ou menos. Disse: - Creio que ouvi dizer que a sua
mãe também morreu de uma doença prolongada, com uma longa
fase terminal.
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra - disparou Sir
Maurice.
- Foi um alívio abençoado - disse Sally -, quando a mãe finalmente
partiu.
- A mãe de Sally não fez nada para ficar doente - insistiu Sir
Maurice.
- Não, isso é verdade - suspirou Sally. - Quer dizer, eles, os
homossexuais, vão ter mesmo de aprender, não é?

380 - 381

- É uma dura e amarga aprendizagem... - disse Nick. - Mas sim,


nós estamos a aprender a comportar-nos de uma forma segura.
Sally Tipper ficou de olhos pregados nele. - Certo... - disse.
Sir Maurice pareceu não dar por nada, mas, em Sally, havia um
pequeno espectáculo de ingestão. Nick queria pôr as coisas na
linguagem dela, mas não encontrava o léxico adequado. - Sabe,
há coisas muito simples que têm de ser feitas. Por exemplo, as
pessoas têm de usar protecção... está a ver, quando estão a...
quando dão... as suas voltas.
- Claro - disse Sally, com nova sacudidela da cabeça. Nick não
tinha a certeza de que ela estivesse a entender. Aquelas
palavras, tão gentilmente polidas, serviriam para alguma coisa?
Sally tinha um ar de quem estava disposta a assimilar as coisas,
e, simultaneamente, um ar de perplexa e atemorizada
indignação. - Era isso que ele costumava fazer, não era, enfim,
imagino eu, o vosso amigo, o actor? Dar as suas voltas?
- Isso quase sem dúvida - disse Nick. Sir Maurice emitiu um ruído
áspero, dispéptico, como se estivesse a mascar um bombom de
menta. - Mas, como todos nós sabemos - prosseguiu Nick num
jeito insinuante, e com uma espécie de zelo enfastiado, agora
que o momento chegara -, há outras coisas que podem ser feitas.
Por exemplo, há o sexo oral, que pode ser perigoso, mas que é
seguramente menos perigoso.
Sally aparou isto estoicamente. - Está a falar de beijos, não é?
Sir Maurice fuzilou Nick com o olhar. - Francamente - disse -,
aquilo que você está a dizer provoca em mim uma profunda
repugnância física - e parecia estar a rir-se, de tão enojado que
se sentia. - Se há coisa que não entendo é que as pessoas fiquem
surpreendidas. Não há razão nenhuma para surpresas Toda essa
história tinha ficado completamente fora de controlo. Eles
tiveram o que mereciam.
Sally, por um instante iluminada pela sua invulgar conversa com
Nick, disse, indomável: - Oh, Maurice, no que toca a esta
questão, é perfeitamente medieval! Tal e qual a rainha Vitória! -
Era uma pequena experiência de liberdade, a tontice do seu tom
quase convidava à repreensão.
- Eu não me envergonho daquilo que penso - disse Sir Maurice.

382

- Claro que não, querido - disse Sally.


- Bom, na realidade, eu também não me envergonho nada daquilo
que penso - ripostou Nick.
- Que acha disto tudo, Wani - disse Sally -, quer dizer, como uma
pessoa mais jovem, se bem que, como dizer... noutro género de
filme?
Wani seguira as palavras de Nick com uma paciência maliciosa. -
Sabe... suponho que Nick deve ter razão... toda a gente vai ter de
ser mais cuidadosa, não é. Agora, não há de facto a menor
desculpa para se contrair essa coisa. - Pôs um sorriso sábio e
acrescentou: - Acho tão triste quando se trata de crianças,
inclusive bebés que nascem com aquilo.
- Ah sim, é um horror, um horror - disse Sally.
- É possível que eu seja muito antiquado quanto a estas coisas,
mas, certamente por influência da minha educação, sinto-me
inclinado a pensar que não deve haver sexo antes do casamento.
- Totalmente de acordo - disse Sir Maurice, mas num tom tão
agressivo que mais parecia discordar.
Nick, fervendo de ironias e espanto, limitou-se a dizer: - Mas se
nós nunca nos vamos casar...
- É um mundo louco, sexualmente louco, não é, aquele em que
vivemos - disse Sally, como se essa fosse a lição a tirar da
conversa.
- De facto... - disse Wani.
(V)

Na manhã seguinte, por um breve momento, Gerald e Catherine


desataram aos gritos na piscina. Nick não conseguiu ficar sequer
com uma ideia do teor da discussão. Surpreendeu-se com a
gritaria, escassas horas após a morte de Pat; Gerald poderia ter
feito um esforço para adoçar as coisas; porém, ao mesmo tempo,
a discussão parecia fazer algum sentido, como se fosse uma
inoportuna réplica do terramoto da noite anterior. Durante todo o
dia, nada mais foi dito sobre o caso.
À tarde, quando Nick subiu ao primeiro piso, Catherine fez o
mesmo; vinha um pouco atrás dele e, por isso, não era claro se o
seguia;

383

Nick olhou de relance para trás, a meio do longo corredor, e viu a


sua expressão conspiradora. Deixou a porta aberta e, segundos
depois, Catherine apareceu, num jeito descontraído, como quem
não queria a coisa. - Olá, querida - disse Nick.
- Mm, olá outra vez, querido - disse Catherine, lançando-lhe um
olhar rápido e, um instante depois, perscrutando
misteriosamente o quarto.
- Estás bem?
- Ah, sim... óptima. Estou óptima.
Nick sorriu-lhe com ternura, mas Catherine parecia quase
irritada com a pergunta, e Nick pensou que ela talvez já tivesse
superado a morte de Pat; não seria de admirar, tendo em conta a
sua estranha economia emocional, feita de sentimentos que
eram violentamente vividos para logo serem enjeitados. Vestia
uns calções brancos justos e uma camisola de alças cinzenta de
Jasper, sob o qual os seus pequenos seios se moviam num jeito
eloquente. Era a primeira vez que alguém entrava no quarto de
Nick; era uma sensação íntima, e agradavelmente tensa, como
num primeiro encontro. Catherine sentou-se na cama e testou as
molas.
- Pobrezinho, ficas sempre com o pior quarto.
- Eu adoro o meu quarto - disse Nick, olhando para a esquerda e
para a direita.
- Este costumava ser o meu quarto. Era aqui que eles punham as
crianças. Deus do céu, lembro-me tão bem dessas pinturas,
metiam-me cá um medo...!
- São um bocadinho assustadoras, não são. - Estavam a falar das
pequenas pinturas em vidro alemãs: Outono, onde uma mulher
com uma aigrette no chapéu colhia descansadamente frutos com
que enchia o avental de uma rapariga, e Inverno, onde homens de
capotes vermelhos corriam e patinavam na neve enquanto um
pássaro cantava num ramo nu. Era difícil definir aquelas
pinturas, mas havia nelas uma espécie de jovialidade sinistra.
- De qualquer modo, tu estás bem aqui; e mesmo ao pé do teu
amigo.
- Sim, até dá para ouvir o velho Ouradi a ressonar - disse Nick
num jeito assaz cordial, após o que se sentou à secretária.
- Para dizer a verdade, até nem desgosto do velho Ouradi - disse
Catherine.

384

- É um tipo porreiro, não é.


- Sempre achei que ele não passava de um mariquinhas todo
cheio de nove horas e completamente estragado pela família,
mas, agora, concedo que o rapaz é um bocadinho mais do que
isso. Até consegue ser bastante divertido.
- Pois é... - disse Nick, que se achava muito mais divertido que
Wani.
- Quer dizer, o tipo é mesmo para onde lhe dá: umas vezes,
parece que não está cá, faz lembrar um manequim de loja só que
com voz, uma espécie de autómato a debitar sempre as mesmas
coisas: Ah, é um encanto... duquesa... etc, etc; outras vezes, é a
animação em pessoa, a alma da festa.
- Percebo perfeitamente - disse Nick, com um risinho desconfiado
ao vê-la imitar Wani. - Uma pessoa acaba por se habituar a essas
mudanças de humor.
Catherine recostou-se, as mãos atrás da cabeça, as pernas em
cima do braço da poltrona. - Mas deixa-me que te diga: não
gostava de estar na pele da noiva dele.
- Julgo que ela já deve ter-se habituado às alterações de humor
de Wani.
- Também já teve tempo de sobra para se habituar...
Nick baixou os olhos, reordenou os livros na secretária, os
cadernos, as memórias de Henry James tapando o guia
internacional Spartacus. Estava certo e seguro de que aquela
visita tinha um objectivo preciso. Ela olhou à sua volta por um
instante e, depois, levantou-se e fechou a porta, naquele jeito
absorto de alguém que já está a preparar o próximo passo.
- Devo dizer que o velho Wani começa a intrigar-me - disse ela.
- De que modo...?
- Não, ele é de facto notável, verdadeiramente brilhante. -Ah...?
- O velho Wani está farto de lançar areia para os teus olhos azuis.
Uma camioneta inteira de areia.
Nick pôs um sorriso ténue, marcado pela ansiedade e por uma
vaga sensação de lisonja. - É muito provável - disse.
Catherine sentou-se e disse: - O meu pequeno Jaz tem uma
teoria.

385

- Ah sim? - disse Nick. - Se fosse a ti, não daria tanto crédito, e


de forma tão incondicional, às teorias do teu pequeno Jaz.
Catherine prosseguiu como se o facto de Nick lhe estar a falar
num tom idêntico ao do pai não a afectasse minimamente. -
Talvez não, mas... Sabes, Jasper é muito observador, bom, se
calhar não és da mesma opinião... de qualquer modo, Jasper
acha que Wani é bicha.
- Oh! - Nick soltou um «Tch...» desapontado e acrescentou: - É, as
pessoas estão sempre a dizer isso. E tudo porque ele toma
imensos banhos e usa calças transparentes. - O que era
realmente estranho, pensou Nick, era o facto de serem
raríssimas as pessoas que diziam que ele era bicha.
- Jasper diz que Wani se farta de andar atrás dele, sempre a
espreitar-lhe o material.
- Mm... Francamente, querida, cheira-me um bocado a vaidade da
parte do teu namorado... Jasper farta-se de andar atrás de mim,
numa constante tentativa de exibição do seu material. - Talvez
estivesse a ser demasiado franco. - Uma coisa tens de admitir,
minha querida: Jasper adora fazer-se ao piso ao seu
semelhante... - Nick estava surpreendido com a sua presença de
espírito, mas, mesmo assim, não conseguiu evitar um risinho que
logo sufocou, após o que cruzou as pernas num complexo acesso
de desconforto.
- Então quer dizer que Wani não disse uma palavra acerca disto?
Acerca de Jaz? Enfim, imagino que tenha todo o cuidado do
mundo para que a coisa não chegue ao teu conhecimento, não é,
não fosses tu ter uma ideia errada a seu respeito! É que não lhe
dava mesmo jeito nenhum! - disse Catherine, talvez não
convencida pela sua própria teoria.
Nick estava a corar, mas nem por isso deixava de a olhar nos
olhos. - Não sei, querida - disse, e mordeu o lábio inferior. - Eles
não estão os dois sozinhos na piscina neste preciso momento?
Sabe-se lá o que estarão a fazer...
- Pelo menos hoje Jaz não pôs a tanga - disse Catherine.
- Não, de facto não pôs... - Nick, defensivamente, resolveu
prolongar a sua tosca brincadeira: - Se bem que... a partir do
momento em que entrem os dois juntos na casinha da piscina...
Catherine lançou-lhe um olhar incomodado e enrubesceu,
também ela, um pouco. Claro que ela sabia que Nick sabia que
Jasper ia foder com ela para a casinha da piscina; e que, para
eles, aquilo era uma espécie de fanfarronice envergonhada; mas
também era muito claro - mais claro ainda - que ela não sabia
que, na noite anterior, depois daquele jantar horroroso, numa
explosão de raiva durante tantos dias recalcada, Nick tinha ido
foder com Wani para a casinha da piscina. - Por amor de Deus,
nem uma palavra sobre a casinha - disse ela.
- O quê...?
- Esta manhã, o meu pai fartou-se de me chatear por causa da
casinha. Devo dizer que, no geral, se comportou como um
verdadeiro macaco.
- Oh, querida... Eu vi que se estava a passar qualquer coisa - e
era verdade: de certo modo, a imagem de Gerald, de pé junto à
piscina, a cabeça baixa, os ombros espetados, num jeito de
decepção acusatória, fazia lembrar um macaco.
- Pelos vistos, Sua Majestade, a Princesa Sally encontrou uma
camisa a flutuar na sanita. Como podes imaginar, foi um choque
tremendo para Sua Majestade. Estragou-lhe por completo o
banho madrugador.
- Hurra! - disse Nick e ofereceu-lhe um sorriso imenso, enquanto
a sua mente disparava por uma série de curvas apertadas.
- Eu pensei que ele tinha puxado o autoclismo, mas o meu pai
apareceu por ali a rondar e nós só escapámos por uma unha
negra.
- Só me espanta que ela soubesse o que era.
- É demasiado patético - disse Catherine, que, obviamente,
perdera a aula de educação sexual da noite anterior. - Por amor
de Deus, somos todos adultos!
- Pois somos...
- Não se pode fazer nada em casa porque se ouve tudo.
- E isso, de facto, deve ser um problema.
- Para dizer a verdade... Meu Deus, porra, é mesmo muito
esquisito...! - Catherine olhou-o fixamente, numa excitação de
dúvidas acerca de si mesma, enquanto Nick se rendia à estranha
sensação de que o seu disfarce estava a tornar-se cada vez mais
transparente. Limitou-se a sorrir, visto que não sabia se fora
apanhado, ou se, reagindo calmamente, conseguiria evitar que
Catherine o apanhasse. - Porque tenho a certeza de que ontem
não usámos camisa.
- Deves usar sempre preservativo - disse Nick.

386 - 387

- Não faz sentido usar-se umas vezes e outras não. Não sabes por
onde é que ele anda.
- Oh, Nick, ele é a inocência em pessoa. Jasper nunca esteve
com mais ninguém.
- Não, enfim...
Catherine ficou por um segundo embasbacada. - Portanto, se não
fomos nós...
- Podia ter ficado na sanita desde a noite anterior... É uma
hipótese... - disse Nick com uma despreocupação condenada,
observando a amiga enquanto ela, ao jeito de uma Agatha
Christie, passava em revista todos os suspeitos, tanto os
possíveis como os francamente impossíveis. Pensou que talvez
Catherine, como Poi-rot, conhecesse já a solução antes de ter
entrado no seu quarto; porém, quando ela se levantou e se
encaminhou para a janela e, por fim, se virou, Nick encontrou no
rosto dela o choque, ou mesmo a repulsa, da descoberta.
- Santo Deus, que estúpida que eu sou - disse ela.
Nick olhou para ela e ela olhou para ele. Sentiu, também ele, a
dolorosa estupidez da descoberta, e também uma espécie de
orgulho, rondando ainda apenas, aguardando por um aceno de
permissão para se consubstanciar num sorriso. Catherine não
conseguia encobrir a natureza e a escala do logro em que caíra.
Julgou ver nela uma rápida recuperação, o reemergir da sua
simpatia por todo o tipo de libertinagem. - Sim - disse Nick -,
talvez ele seja, de facto, verdadeiramente brilhante.
Catherine deixou a janela e voltou para a sua poltrona,
envergando um ar tão digno quanto lhe era possível. - Já não o
acho nada brilhante - disse.
Nick retorquiu cuidadosamente: - Quer dizer, ele era brilhante
quando pensavas que me enganava... Mas deixa de ser brilhante
quando descobres que é a ti que ele engana. - Sentiu, sem tempo
para aprofundar a questão, que podia haver uma ocultação
brilhante de uma coisa simples ou mesmo sórdida; e que podia
haver uma ocultação simples e pateta de algo fulgurantemente
inesperado. Enredado naquela ocultação específica, acostumado
a ela, não sabia em que categoria integrá-la. - Claro que isto é
tudo ideia dele - disse.
- Quer dizer, como é que ele consegue aguentar?
- O secretismo? Ou a minha pessoa?
- Deixa-me rir.
- Bom, o secretismo... - Ao longo da sua vida, Nick sentira-se
amiúde um advogado incapaz de desenvolver eficazmente as
suas alegações; dificilmente conseguiria defender a sua própria
causa, quanto mais a de outra pessoa; porém, neste caso
específico, mostrava-se categórico, nem que fosse pela
necessidade regular de se convencer a si mesmo. Conferiu,
erguendo os dedos de uma mão, os cinco pontos da sua defesa: -
Wani é um milionário, é libanês, é filho único, vai casar-se, o pai
é um psicopata.
- Mas como é que tudo isso começou? - disse Catherine,
considerando os cinco pontos ou demasiado óbvios ou
demasiado complicados para que merecessem a sua atenção. -
Há quanto tempo é que isso dura? Quer dizer, meu Deus,
francamente, Nick!
- Ooh, há cerca de seis meses.
- Seis meses?! - e, uma vez mais, Nick ficou sem saber se seria
demasiado tempo ou se, pelo contrário, não seria tempo
bastante. Catherine olhava-o fixamente. - Vou escrever uma carta
àquela rapariga francesa! Coitada, o sofrimento em que ela
vive... e há um ror de tempo!
- Não vais fazer isso nem nada que se pareça. Daqui a um ano,
essa pobre rapariga francesa será uma ditosa mulher casada.
- Com uma bicha libanesa que tem um pai psicopata...
- Não, querida, com um jovem muito belo e muito rico que a fará
muito feliz e lhe dará montes de belas e ricas crianças. - Era uma
perspectiva penosamente ampla.
- Então e tu?
- Oh, eu vou ficar bem.
- Não vais continuar a comê-lo depois de ele se casar com a
pobre rapariga francesa, espero...
- Claro que não - disse Nick, considerando com um sorriso
cristalino a única coisa em que não queria pensar. - Não, nessa
altura, arranjo outro!
Catherine fitava-o e não parava de abanar a cabeça; já podia tirar
a conclusão moral que mais lhe agradava: - Santo Deus, os
homens...! - disse. Nick riu-se com algum constrangimento;
sentia-se objecto tanto de compaixão como de ataque.
- Mas agora a sério, tens de me jurar que não dizes nem uma
palavra a ninguém.

388 - 389

Catherine avaliou o pedido com um ar provocador e, neste caso,


a provocação era mais importante para ela do que para ele.
Catherine estava do lado da dissidência e do sexo, mas ainda se
sentia melindrada com a sua descoberta, com o facto de Nick a
ter enganado e não ter confiado nela. Na pausa que se seguiu,
ouviram um vago rangido de passos nas escadas e, depois, o
rápido toque-toque de uns sapatos leves de sola de couro, que
Nick reconheceu de imediato, ao longo da tijoleira do corredor.
Mordeu o lábio, encolheu-se, baixou a cabeça como se estivesse
a rezar, numa tentativa de impor o silêncio. Wani subia ao seu
quarto, provavelmente para mudar de roupa, uma coisa que ele
fazia mais vezes do que qualquer outro membro do grupo, como
que respeitando escrupulosamente uma etiqueta a que os outros
já não ligavam. E também por uma outra razão, de tal forma que
o seu reaparecimento, com as calças brancas de linho com o
vinco perfeito ou a camisa de seda brilhante, era um disfarce e
quase uma explicação para a sua nova vivacidade; era como se
ele regressasse num ápice ao palco para receber os aplausos
silenciosos do público. Entrou no quarto e, um segundo depois,
Nick e Catherine viram-no hesitando, a sua sombra na tijoleira
polida sob a porta de Nick, que normalmente não estava fechada.
De seguida, encostou a sua própria porta e, segundos depois, o
fecho saltou para logo se aquietar. Naquela casa, os fechos das
portas tinham uma vida própria e disparavam e chocalhavam
com uma energia acumulada, em saltos denunciadores.
Enquanto assim estavam, quietos e calados, comprometidos,
olhando fixamente, atentamente, mas não um para o outro,
aguardando que Wani fizesse o que tinha a fazer, Nick imaginou-o
a sni-far uma linha com aquele seu ar desenvolto e superior, e
quase desejou que pudessem ouvi-lo e que esse segredo fosse
também revelado. Ouvir esse segredo, como se ouvia um
encontro amoroso, um ritmo, um ritual: uma prova da outra
grande ligação na vida de Wani. Mas Wani devia estar na casa de
banho. Uma avioneta zuniu e vibrou nas alturas, um daqueles
sons de Verão que ficam e se esbatem para logo voltarem e de
novo se esbaterem.
Depois de Wani ter descido, Catherine disse: - Claro que os
bissexuais são um pesadelo. Toda a gente sabe disso.
- Não creio que toda a gente saiba disso - disse Nick.
- Santo Deus, lembras-te de Roger?
- Roger? Era o Não Precisa de Passar a Ferro, não era? - Nick
sentia-se irritado, amesquinhado, mas, ao mesmo tempo, o facto
de Catherine ter resolvido embaraçá-lo com aquela conversa
acerca dos seus namorados era, inegavelmente, um alívio. -
Quando íamos para a cama, havia sempre qualquer coisa um
bocadinho estranha, como se ele desejasse que eu tivesse um
peito peludo... enfim... essas coisas... E o sentimento de que
nunca tinha toda a sua atenção.
- Não estou lá muito certo de que uma pessoa deseje realmente
isso: toda a atenção do outro - disse Nick, sem que, de facto, o
pensasse, mas apercebendo-se, ao dizê-lo, de que talvez
houvesse ali uma espécie de sabedoria útil, sobretudo para quem
partilhava o amante com uma mulher e também com drogas.
- Eles dizem que nos amam, mas, na realidade, nós temos mais
razões do que é costume para não acreditarmos neles. - A
verdade é que Wani nunca lhe dissera «Amo-te» e Nick deixara
de o dizer por causa do desconfortável silêncio que se seguia. -
Devo dizer que estou surpreendida: nunca me teria passado pela
cabeça que ele pudesse fazer o teu género.
Nick pensou em Wani e saiu-lhe um «Oh!» quase sufocado de
espanto.
- Quer dizer, ele não é negro, enfim, não se pode dizer que seja...
Além disso, tem um curso universitário.
Nick sorriu com desdém deste esboço dos seus gostos. Sentia-se
embaraçado, não com a conversa sobre sexo, pois tais conversas
continham sempre uma boa dose de agradável abandono, um
jogo de rubores arriscados e desfrutados, mas sim com a
exposição de qualquer coisa que era mais privada do que sexo,
além de bizarramente cavalheiresca. Disse: - É muito simples: eu
acho que ele é o mais belo dos homens que jamais conheci.
- Querido - disse Catherine, num protesto murmurado, como se
ele tivesse dito algo de muito infantil e insustentável. - Não é
possível que aches uma coisa dessas, pois não? - Nick olhou
para a sua secretária e encolheu-se irritado. - De certo modo, até
percebo o que queres dizer... - disse Catherine. - Ele é uma
espécie de paródia de uma pessoa bem-parecida, é isso, não é. -
E sorriu. - Dá-me a tua caneta - e, na primeira página do bloco de
apontamentos de Nick, fez um desenho rápido, umas quantas
curvas,
390 - 391

maçãs do rosto, lábios, pestanas, grossos caracóis de tinta para


o cabelo. - Aqui tens! Não, espera, tenho de o assinar - e rabiscou
«Wonnie por Cath» por baixo. Nick deu-se conta de que o
desenho era extremamente fiel e comentou: - Não parece nada
ele, de maneira nenhuma.
- Hmm? - disse Catherine num jeito provocador, sentindo que
chegara onde queria, mas sem saber aonde é que isso a levava.
- Tudo o que eu posso dizer é que, quando ele entra num sítio,
como há dias, quando ele chegou atrasado ao almoço, nós
tínhamos estado na coscuvilhice acerca dele, não sei se te
lembras, eu até entrei no teu jogo, na realidade até concordei
contigo, bom, mas quando ele apareceu, eu só pensei: Sim, eu
estou do lado certo, isto basta-me.
Catherine disse: - Acho isso tremendamente perigoso, Nick. Para
dizer a verdade, acho uma loucura.
- Bom, tu és uma artista - disse Nick -, não és? - De todas as
vezes que se imaginara a contar isto a alguém, a reacção à sua
história, à sua ideia, fora sempre de concordância excitada;
haveria como que uma sensação de revelação na partilha
daquela história. Nunca esperara que aquilo em que acreditava
fosse contestado de uma ponta à outra. Disse: - Bom, sinto
muito, mas é assim mesmo que eu sou, conheces-me há tempo
suficiente para saber que é assim que eu sou.
- Tu apaixonar-te-ias por todos os tipos, desde que fossem belos,
como tu dizes.
- Todos não, obviamente. Isso é que seria loucura. - Sentia-se
ofendido com o modo como Catherine, agora que acedera à sua
fantasia, apoucava o seu ponto de vista. Era como a sua atitude
em relação ao quarto onde se encontravam agora. - É algo que
não podemos discutir, é um facto da vida - acrescentou.
Catherine, solícita, tratou de relembrar o passado. - Quer dizer,
Denton, por exemplo... Ninguém poderia dizer que ele era belo,
pois não?
- Denny tinha um belo traseiro - disse Nick, empertigando-se na
correcção do nome. - Na altura, era isso que contava. Eu não
estava apaixonado por ele.
- Então e aquele... aquele que era um querido? Leo, não era? Não
se pode dizer que fosse belo, quer dizer, eu nunca teria dito.

392

Mas tu estavas louco por ele. - Catherine fitou-o com um ar


interessado. Queria ver se teria ido longe de mais.
Num tom solene, embora algo frágil, Nick retorquiu: - Bom, para
mim, ele era belo.
- Precisamente! - disse Catherine. - As pessoas são amorá-veis
porque nós lhes temos amor, porque nós as amamos; é assim que
é, e não ao contrário.
- Hmm.
- A propósito, tens sabido alguma coisa dele?
- Não, não tenho notícias dele desde a Primavera do ano passado
- disse Nick, e levantou-se para ir à casa de banho.
Da janela da casa de banho, para lá do pátio da frente e da
estrada, via-se a outra vista, aquela que não era mencionada,
para norte: pastagens ao longo de colinas que rumavam a um
horizonte branco - e, mais além, num longe que só a mente
poderia abarcar, o Norte de França, o Canal, Inglaterra, Londres,
banhados pela mesma luz, o portão dos jardins que dava acesso
ao caminho de pedrinhas, e os plátanos, e aquele recanto com a
arrecadação utilizada pelos homens que tratavam do jardins, o
carrinho de mão e a pilha de adubo. A imagem desceu sobre Nick
num lampejo de pungente nostalgia, como se estivesse escrito
que nunca mais poderia visitar esse palco de felicidade.
Aguardou um minuto mais, no isolamento ampliado de alguém
que, por um minuto, se escapuliu de uma sala de aulas, de uma
reunião, o eco das palavras ainda nos ouvidos, o rosto ainda
solene, para um outro mundo de corredores silenciosos, a luz
neutral do dia. Não, não podia desenrolar a linha da beleza para
Catherine, porque a linha da beleza explicava quase tudo, e
Catherine vê-la-ia como um logro, uma ilusão trivial, parecer-lhe-
ia uma loucura, como ela dizia. Ele não estaria ali naquele
quarto, naquele país, se não tivesse visto Toby naquela manhã,
na portaria do Worcester College, se a imagem de Toby, em
apenas cinco segundos, não tivesse ficado indelevelmente
gravada no ávido vazio da sua mente. O modo como corria atrás
de Toby, a perseguição oculta, dissimulada, a coragem nem
sequer pressentida, os súbitos cem, duzentos metros de avanço,
como se corresse num sonho, quando Toby o convidou para ir
viver para Londres - não, ele nunca poderia contar isso a
Catherine. «Uma massa vazia»: era assim que ela definia o
irmão.

393

Quando voltou para o quarto, Catherine já tinha descoberto o


guia Spartacus; ergueu os olhos para ele com um ar
ironicamente embasbacado, como se aquilo fosse a mais tola de
todas as coisas tolas. - É demasiado histérico - comentou.
- Um espanto, não é - disse Nick, um pouco irritado, mas
satisfeito com a distracção.
- Espera aí... Paris... Paris... Deixa ver se têm Paraquat. Este livro
não dá para acreditar. - Examinou a página, no seu excitável jeito
de iletrada.
- Não deve haver grande coisa... - disse Nick, que já tinha
examinado a entrada e que imaginara, com uma mistura de
desejo e sátira, a única discoteca da cidade e o parque referido
pelo guia.
- Pois olha, querido, há uma discoteca... De quarta a sábado, das
onze às três da manhã. L'An des Roys - disse ela, com o seu
arrepiante sotaque francês. - Temos de ir até lá! Que coisa mais
cómica...!
- Ainda bem que achas tão divertido.
- Vamos sugerir a discoteca a Ouradi, para ver o que é que ele
diz... Santo Deus, isto traz tudo...!
- Sim, é muito útil - disse Nick.
- Meu Deus... locais de engate! Olha-me só para isto: rue Saint-
Front, estivemos lá ontem com os Tipper...! Que pena eles não
saberem... O que é que significa PSCR?
- PSCR? Por sua conta e risco.
- Oh... certo... Certo... E tem o mundo inteiro!
- Procura o Afeganistão - disse Nick, porque havia uma famosa
advertência acerca dos perigos do sexo afegão. Mas Catherine
continuou a folhear o guia. Nick disfarçou o seu interesse, a vaga
e cómica libertinagem que ele parecia admitir pelo simples facto
de ter o livro, e foi sentar-se na cama.
- Estou só à procura do Líbano - disse ela ao fim de um minuto.
- Ah, sim... - disse Nick.
- Pelo que diz aqui, deve ser uma maravilha. Clima
mediterrânico... Bom, isso sabemos nós... Ah, diz que a
homossexualidade é uma delícia.
- A sério? - disse Nick.

394

- A sério. «Uhomosexualité est un délit» - leu ela, soando como o


General de Gaulle.
- Sim, délit significa crime, infelizmente.
- Oh! Ah sim?
- Delícia é délice, délit é um delito.
- Enfim, délice, délit... parece quase a mesma coisa...
- E parece, de facto, muitas vezes - disse Nick, particularmente
satisfeito consigo mesmo.
Catherine já estava farta do guia. Olhou Nick nos olhos e
perguntou-lhe: - Mas diz-me lá: do que é que ele gosta, o velho
Ouradi?
- Gosta de mim.
- Sim, claro - disse Catherine, como se dispensasse a informação.
- Está bem, ele gosta que o fodam - retorquiu abruptamente Nick,
e levantou-se como se, realmente, ela não fosse arrancar-lhe
mais nada.
- Sempre achei que ele devia gostar de alguma cena gay
especialmente bizarra.
- Há dez minutos, nem sequer sabias que ele era gay.
- Sabia, sim... Lá muito no fundo, sabia.
Nick brindou-a com um sorriso crítico. Acabara de contar a sua
história pela primeira vez, e, no entanto, Catherine já não sentia
o impacto da novidade; o choque, pelos vistos, esbatera-se
rapidamente; e Nick voltava a sentir a obrigação de não a
desapontar. Era aquele velho jogo em que falavam de homens,
em que se gabavam e ridicularizavam, e ele conhecia o lado
compulsivo que havia nesse jogo, a pulsação acelerada da
rivalidade e o risco da confiança. Havia expressões acerca de
Wani que tinha construído e polido para uma ocasião como
aquela e imaginava-se a dizê-las agora e imaginava o efeito em si
mesmo tal como em Catherine, imaginava uma mera e relutante
concessão dissolvendo-se no alívio da confissão. Para dizer a
verdade, não havia nada para confessar. O secretismo daqueles
seis meses não podia ser confundido com a opressão da culpa.
Pensou: Não lhe vou contar a história dos filmes pornográficos
no hotel. Voltou a sentar-se para marcar uma cautelosa transição
no sentido da franqueza. - Bom, ele gosta muito de ménage a
trois - disse.
- Mm, não é nada o meu género - disse Catherine.

395

- Está descansada que nós não te vamos propor um ménage a


trois.
Ela pôs um sorriso sarcástico. - E quem é que costumam levar
para a cama?
- Oh, só estranhos. Ele pede-me que eu engate tipos para ele. Ou
então arranjamos um prostituto, sabes como é. Um stricher.
- Um quê?
- É como lhes chamam em Munique.
- Estou a ver - disse Catherine. - E isso não é um bocado
arriscado, quer dizer, para quem quer manter tudo no mais
absoluto segredo?
- Oh, creio que o risco é o grande atractivo da coisa - disse Nick.
- Ele gosta do perigo. E gosta de se submeter. Eu próprio não
entendo muito bem a coisa, mas ele gosta de ter uma
testemunha. Gosta de todas as coisas que são o oposto daquilo
que parecem.
- Não sei explicar bem, mas tudo isso me parece perfeitamente
patético - disse Catherine.
Nick prosseguiu, sem saber se a prova que ia apresentar
interessava à defesa ou à acusação. - E farta-se de gritar, lá isso
é verdade.
- O quê? É uma daquelas bichas que anda sempre aos gritinhos?
- Não, grita muito, mas é na cama, faz uma barulheira tremenda. -
Talvez fosse melhor não lhe contar o que se passara naquela
manhã em Munique. - Uma manhã, em Munique, foi hilariante... -
disse. - Fez tanto barulho no quarto, creio que ele não deu por
isso que, quando saímos, as criadas estavam todas a rir-se no
corredor.
Catherine fungou. - Russell ficava sempre todo satisfeito quando
eu gritava - disse.
Uma vez mais, Nick permitiu a alusão; ouviu-a com um vago
sorriso, pensou e, por fim, disse, com um estremecimento de
desagrado: - Bom, acontece que ele tem uma pancada horrível
por pornografia.
-Oh...?
- Quer dizer, não vejo problema nenhum na pornografia, mas, por
vezes, uma pessoa sente que a pornografia é a verdadeira bitola,
a bitola profunda, para a sua vida.
Catherine ergueu as sobrancelhas e soltou um suspiro profundo. -
Santo Deus... - disse.
Nick desviou o olhar, para a janela aberta, primeiro,

396

para a porta fechada, depois. - Na realidade, enquanto estivemos


na Alemanha, as coisas ficaram um pouco fora de controlo...
Sabes, é que na televisão do hotel havia pornografia a toda a
hora.
- Oh... - disse Catherine, para quem a pornografia era um mistério
estritamente masculino.
- Passou a noite toda a ver aquilo: pornografia hetero, claro, ele
gosta tanto da hetero como da homo, se não mesmo mais. Certa
noite, lamentavelmente, tive de ir jantar sozinho. Ele recusava-se
a desligar o televisor.
Catherine riu-se e Nick também, ainda que a imagem fosse triste,
ou mesmo patética, como ela dizia: Wani, com as calças pelos
tornozelos, demasiado empanturrado de coca para conseguir ter
uma erecção, numa abjecta sujeição à orgia que passava no
ecrã, enquanto Nick, na sala de estar da pequena e abafada
suíte, fazia do sofá a sua cama. Podia ouvir Wani, para lá da
porta, falando com as pessoas no filme. Catherine disse: -
Querido, o que tu estás a contar parece de facto um pesadelo...
- Ele também é muito excitante, mas...
- Quer dizer, fico mesmo preocupada contigo... Se tu gostas tanto
dele como dizes e ele te trata assim... Aliás, começo a pensar se
gostarás realmente dele, não sei se me faço entender.
Nick apercebeu-se de que Catherine assumira a sua habitual
visão hiperbólica das coisas, para além de ter dado início ao seu
habitual trabalho de sabotagem das ligações, quaisquer que elas
fossem, que ele mantinha. - Não, não - replicou ele, com um
risinho desdenhoso. Não que ela lhe tivesse revelado a verdade,
não, a questão era outra: a questão era que, ao contar-lhe uns
quantos pormenores divertidos, Nick contara a si mesmo algo
que, agora, não mais poderia escamotear. Ele, agora, também
tinha uma testemunha. - De qualquer modo - disse -, talvez
tivesse sido melhor não te ter contado estas coisas.

(VI)

Os Tipper partiram no dia seguinte. Secretos sorrisos de alívio


admitiam também um vago sentimento de culpa, do que
resultava uma tendência para a intransigência e o confronto.

397

Gerald mostrava-se sombriamente absorto; parecia carregar aos


ombros uma pesada carga de censura e não saber onde poderia
alijá-la. Wani foi o único que manifestou uma surpresa e uma
tristeza sinceras; sentira-se à vontade com os Tipper, eles
correspondiam àquele género de pessoas que fora ensinado a
respeitar. De todos, foi Rachel quem mais se esforçou por
adoptar uma atitude diplomática; com a docilidade das suas boas
maneiras, tentava limitar os efeitos da embaraçosa reviravolta;
em atenção a Gerald, tratou de enfrentar a crise sozinha.
A questão da partida foi tratada de uma forma muito abrupta. Sir
Maurice mostrava-se ofendido, activo, surpreendentemente
satisfeito - encontrara aquilo de que andava à procura, uma
antipatia clarificada, uma total ausência de confiança que, de
algum modo, acabava por tranquilizá-lo. - Não estávamos a
gostar muito disto aqui - disse ele; e a mulher, como de costume,
encontrava um singular prazer na dureza e brutalidade do
marido; eram inclusive o que a animava, os sentimentos do
marido eram tão conclusivos, tão irrefutáveis como as suas
úlceras... Toby levou a bagagem para o carro com o ar
impassivelmente satisfeito de um porteiro.
Logo que os Tipper partiram, Wani, atento e amável, sugeriu um
jogo de boules a Gerald; um minuto depois, já estavam a jogar no
espaço de terra batida que fora ocupado pelo carro dos Tipper.
Por uma vez, havia nuvens no céu e Nick foi para a sala de estar
com o seu livro. A sensação de liberdade dificultava um pouco a
concentração: sentia-se consciente do prazer, da primazia da
leitura, mas o conteúdo parecia cintilar ao longe, como que para
lá de um nevoeiro. Até que Lady Partridge entrou no seu passo
vacilante, com o seu vestido de Verão, manifestamente
satisfeita, reapossando-se da casa, mas também sem saber o
que fazer, agora que tinha os ouvidos livres do agente irritante
que Sally era. Os Tipper haviam constituído um assunto para ela,
tinham-na maçado e excitado com o puro e duro fascínio do
dinheiro. Sentou-se numa poltrona. Não dizia nada, mas Nick
sabia que ela estava com ciúmes do livro. Através da porta da
frente, escancarada, chegavam-lhes os estalos e estalidos e os
gritos e gritinhos do jeu de boules.
- Mm, o que é que está a ler? - disse Lady Partridge.
- Oh... - disse Nick, renunciando ao livro com um abanar de
cabeça -, só estou a lê-lo porque tenho de escrever uma
recensão.

398

- Lady Partridge assestou o ouvido num jeito inquiridor. - É um


estudo sobre John Berryman.
- Ah...! - disse Lady Partridge, recostando-se com a satisfação
derrisória do não-leitor. - O poeta... Um homem com imensa
graça.
- Oh... hum...! - exclamou Nick, não sem algum espanto.
- Sim, ele tinha sem dúvida a sua graça, creio... enfim, num certo
sentido.
- Sempre achei.
Nick ofereceu-lhe um sorriso vago e resolveu testar o terreno:
- Teve uma vida triste, claro. Sofria de depressões terríveis.
Lady Partridge produziu um estalido com os lábios, no que
parecia ser a sugestão de uma total ausência de ilusões, e quase
revi-rava os olhos; o efeito era mais terrível do que ela alguma
vez poderia imaginar. - Como... hum... a nossa jovem - disse ela.
- Bom, de facto... - disse Nick. - Se bem que... esperemos que não
acabe do mesmo modo! Sabe, ele bebia imenso, um horror.
- Aí está uma coisa que não me surpreenderia rigorosamente
nada - disse Lady Partridge com uma nota de solidariedade.
- E depois, claro - avançou Nick, num golpe decisivo, mas fazendo
pender tristemente a cabeça -, atirou-se do alto de uma ponte
para as águas do Mississipi.
Lady Partridge reflectiu um pouco sobre o que acabara de ouvir,
como se considerasse extremamente improvável que o poeta
tivesse feito uma coisa daquelas. - Eu sempre gostei muito de o
ver na TV. Tinha uma presença óptima. Talvez você nunca tenha
visto esses programas... Lembro-me de o ver muitas vezes à
beira-mar... Ou então, está a ver, andava a vasculhar em velhas
igrejas e mais não sei o quê. Mesmo esses programas não eram
nada maus. Ele tinha aquilo a que eu chamaria um riso
contagiante. Julgo que não estou enganada, ele foi nomeado
Poeta Laureado, não é verdade?(1)
- Ah... Não - disse Nick. - Não, na realidade...

*1. Por óbvias razões de surdez, Lady Partridge confunde o poeta


americano John Berryman (1914/1972) com John Betjeman
(1906/1984), também poeta, embora britânico, que teve vários
programas de televisão bastante populares nas décadas de 1960
e 1970. (N. doT.)

399

Foi interrompido por um sonoro «Porra!» vindo do pátio e


atribuível a Gerald, se bem que não fosse nada fácil reconhecer-
lhe a voz. O olhar de Lady Partridge deslizou pela sala num jeito
notoriamente confuso. Nick levantou-se com um risinho brando e
foi à sala de entrada ver o que acontecera. Gerald entrou nesse
instante em casa, o rosto num espasmo de emoção que, à
primeira vista, tanto poderia ser raiva como júbilo, e, já muito
perto de Nick, guinou na direcção da cozinha, onde Toby e
Rachel estavam a beber café. Nick deu uma espreitadela para o
pátio e viu Wani recolhendo as boules com uma expressão que,
apesar de respeitosa, não revelava o menor sinal de
arrependimento.
- Querido...? - disse Rachel, com uma nota de irritação, mas
examinando-o rapidamente de alto a baixo, não fosse ele ter-se
magoado.
- Pai - disse Toby, e abanou a cabeça num tom decepcionado.
Gerald ficou plantado a olhar para a mulher e o filho e, depois,
curvando-se para eles com um sorriso arreganhado, disparou: -
Eu estou de férias!
- Sim, querido, claro que estás - disse Rachel. - Tens de te
acalmar. - Mostrava-se solícita, mas firme: a sua própria calma
era já uma repreensão. Nick, na soleira da porta, apreciava-os
com um brilho nos olhos. Havia um sentimento colectivo de que
seriam capazes de domar Gerald.
- Derrotado no jeu de boules por um maldito árabe! - disse Gerald,
e suspirou um «Ah!» de espanto perante a sua própria candura e
como se a sua derrota pudesse ser uma piada, obviamente de
mau gosto.
- Por amor de Deus, pai - disse Toby.
- O que é que foi...? - disse Gerald.
- Já só lhe falta chamar-me maldito judeu.
- Eu nunca faria uma coisa dessas - disse Gerald. - Não sejas
monstruoso.
- Bom, espero que não - disse Toby, e o seu rosto tingiu-se do
vermelho da sua própria emoção. - Wani é meu amigo - disse,
num tom de simples decoro, de tal forma que Gerald, por um
instante, fitou-o e reflectiu e logo abandonou a cozinha. Ouviram-
no chamar Wani. «Wani! Wani! As minhas desculpas! Está bem...?
É! Peço imensa desculpa...», disse ele com uma jovialidade
inadequada,

400

a voz diminuindo de intensidade mal entrou de novo em casa,


como se aquilo não passasse de mera rotina. Voltou para a
cozinha com um sorriso plantado no rosto, visto que Wani não
ouvira o comentário que suscitara o pedido de desculpas.
Vagueou com um ar ausente na direcção da despensa e emergiu
com uma garrafa de Bordeaux cheia de pó.
- E se fosses nadar um bocado, Gerald? - recomendou Rachel. -
Ou então chama Jasper e leva-o a dar um passeio.
- Não sei se sabes, mas Jasper não é um cocker spaniel - disse
Gerald, num tom divertido, mas não isento de aspereza.
- Bom, lá isso é verdade - disse Rachel.
Com um entusiasmo furtivo, Gerald fez rodar o pequeno saca-
rolhas com cabo de madeira. - Bom, já falta pouco para domingo
e para a visita de Lionel! - disse ele para agradar a Rachel e
disfarçar o exuberante estalido da rolha.
- É um bocado cedo para isso, não achas, Gerald? - disse Rachel.
- Por amor de Deus, pai - repetiu Toby.
- É para que o vinho possa respirar - disse Nick com um riso
ansioso.
Gerald olhou para todos eles e, nesse instante, pairou na cozinha
uma estranha carga de infelicidade, um instinto de família que
contagiava todos os seus membros mas que não era
inteiramente entendido. - Está-me só a apetecer a porra de um
copo de vinho, está bem? - disse Gerald e desandou com a
garrafa para a sala das traseiras.
Pouco antes do almoço, à sombra do toldo, já estava mais jovial,
mas também mais sensível aos seus problemas. - Os cabrões dos
Tipper! - exclamou, descuidadamente fiado na surdez da mãe. -
Só Deus sabe quais serão as consequências deste pequeno
episódio... para os negócios, claro.
- Estou certa de que te sairás muitíssimo bem sem ele - disse
Rachel. - Até agora, sempre te saíste lindamente e a verdade é
que nunca tiveste a ajuda dele.
- Sem dúvida - disse Gerald. - Sem dúvida. - Olhou de esguelha
para a mesa sobre a qual imperava. - Quer-me parecer que eles
não encaixavam bem aqui, pois não?

401

- Não se pode dizer que se tenham integrado no ambiente de


férias - disse Rachel.
- É verdade, porque é que eles se foram embora? - disse Jasper.
- Oh, sabe-se lá...! - disse Rachel. - Judy! Os espargos! Gerald
fungava e parecia ponderar a questão, como se estivesse
perante um irresolúvel conflito de lealdades ou uma mágoa
irreprimível. Nick reparou (era tão evidente que não podia deixar
de reparar) que, naquele dia, sempre que abria a boca, as
reacções da família eram particularmente frias. Por vezes,
chegavam ao ponto de o ignorar; outras vezes, tinha de se calar
porque era pura e simplesmente atropelado pelas conversas dos
outros.
No final do almoço, Gerald pôs-se novamente a desfiar o seu
rosário de queixas; era notório que se deixara dominar pelas
suas próprias maquinações e que, depois de ter bebido garrafa e
meia de vinho, se limitava a uma espécie de presença meio
atenta enquanto as conversas e as bicadas da família se
sucediam. Havia no seu tom qualquer coisa de ensaiado e
implausível. Não parava de falar do trabalho e dos «documentos
importantes» que tinha de analisar.
- Vocês não fazem ideia de como isto é - disse ele a certa altura.
- Vocês até podem sentir-se em férias. Para mim, estes dias aqui
até podem ser uma pausa, um intervalo, mas a verdade é que o
trabalho pura e simplesmente não nos larga. Enfim, vocês viram
a quantidade de faxes que chegaram... E já estou terrivelmente
atrasado com o diário.
Aguardou, suspiroso mas vigilante, até que Rachel disse: - Bom,
se assim é, porque é que não procuras alguém que te ajude?
Gerald bufou e curvou-se, como que a dizer que isso era
praticamente impossível; porém, um momento depois, lançou: -
Para dizer a verdade, começo a perguntar-me se não teremos
mesmo de mandar vir Penny.
- Não, Penny, a Horripilante, não! - protestou Catherine. - De
qualquer modo, ela não pode apanhar sol.
Rachel não contradisse a filha, mas ofereceu, em jeito de
autorização, o seu encolher de ombros. - Por amor de Deus,
querido, se tu precisas realmente de Penny, pede-lhe para vir.
- Achas que sim...?

402

- Enfim, Penny é uma companhia perfeitamente agradável. Se ela


não se importar, claro...
- Oh, ela é tudo menos uma companhia agradável - disse
Catherine. - Aquela nojenta barata branca não tem o menor
sentido de humor...
- Então e Eileen? - sugeriu Toby. - Estou certo de que ela viria
num instante. Vocês sabem como ela adora o pai!
Gerald reagiu com um breve e nervoso riso a esta absurda
alternativa. Nick olhou para ele com um sorriso tenso, com um
aterrador sentimento de cumplicidade. Não dissera nada,
dissimulara de uma forma muito mais inteligente do que o
próprio Gerald: sentia que era ele - com toda a sua passividade,
com o seu imenso desejo de paz e harmonia - quem, de facto,
permitiria que aquilo acontecesse.
- De facto, não estou lá muito certa quanto a Eileen... - disse
Rachel.
- Muito bem, nesse caso... - disse Gerald, como que cedendo a
um desejo colectivo. Havia nele uma complexa reacção de
vergonha no triunfo, da qual, provavelmente, só Nick conseguia
aperceber-se. O grupo puxou as cadeiras para trás,
contemplando vagamente eventuais programas para aquela
tarde, e Gerald encaminhou-se para a salinha do telefone com
um ar de tensa relutância, como alguém que tinha de ir dar uma
má notícia.

403

12.
Por ocasião das bodas de prata dos Fedden, Lionel Kessler deu
duas prendas a Gerald e Rachel. A primeira apareceu de manhã,
no banco de trás do seu Bentley, e foi o próprio chauffeur quem
levou para a cozinha a robusta caixa de madeira.
- O tio Lionel é mesmo um querido - disse Toby, ainda antes de
saberem o que vinha lá dentro.
- Espero que seja prata - disse Gerald, com uma chave de
parafusos na mão e um ar que associava a cupidez a algum
enfado.
Lá dentro, encaixado num suporte metálico e protegido por
vários anéis de espuma de borracha, estava um jarro de prata
roco-có. O corpo da coisa tinha a forma de uma concha e o bico
era suportado por um tritão barbado. «Santo Deus, Nick...», disse
Gerald e com tal ênfase que Nick assumiu de imediato o seu
papel de intérprete - disse que, em sua opinião, o jarro devia ser
obra de um dos prateiros huguenotes que tinham trabalhado na
capital britânica em meados do século XVIII, provavelmente Paul
de Lamerie, já que o artista mais importante nessa área era
também o único que lhe ocorria, e, com Lionel, tudo parecia
possível. «É maravilhoso», disse Gerald: «uma obra de raro
engenho.» Espreitou para dentro da caixa, a ver se trazia alguma
nota, como as instruções de rega que acompanham uma planta
mais frágil, mas não havia nota nenhuma. Nick explicou que a
pequena cena em relevo, com Eros brincando com a espada da
Justiça, significava Omnia Vincit Amor. «Ah, absolutamente
adequado», disse Gerald, timidamente pomposo,

404

enlaçando por segundos a mulher. De qualquer modo, talvez


suspeitasse que o jarro era uma daquelas coisas que Lionel tinha
algures em Hawkeswood, mais ou menos esquecidas, mais ou
menos perdidas. Nick não parava de sorrir para o jarro, evocando
vagamente aquilo que o seu pai teria feito perante tal peça:
quase podia vê-lo curvado sobre a caixa, pegando no jarro com
um pano; lembrou-se das visitas - tão longínquas já - a
Monksbury, onde a prata possuía uma cor brônzea, iridescente, já
que os criados estavam proibidos de a limpar e polir. «Vamos ter
de pedir que avaliem isto, por causa do seguro», disse Gerald.
A prenda de Toby e Catherine também era uma peça de prata,
uma salva georgiana com uma bordadura imitando as nervuras
de uma vieira e na qual tinham mandado gravar, numa caligrafia
arrebicada, «Gerald e Rachel - 5 de Novembro de 1986». A salva
não podia deixar de parecer uma coisa desenxabida, ou mesmo
vagamente satírica, ao pé do jarro, e Gerald apreciou-a com uma
expressão falsamente modesta, como se fosse uma prenda para
alguém que estivesse prestes a reformar-se ou que tivesse ganho
um torneio de golfe local. «É absolutamente adorável», disse
Rachel. Ambos pareciam encantados, mas não propriamente
entusiasmados, e era notório que sentiam que, na realidade,
ninguém poderia desejar um objecto daqueles.
Um pouco mais tarde, estavam todos a beber um copo de
champanhe, quando Nick espreitou pela janela da sala de estar e
viu o Bentley estacionar defronte da casa uma segunda vez.
Agora, era o próprio Lionel quem saía do carro, trazendo debaixo
do braço um pequeno embrulho. Lord Kessler olhou de relance
para a janela e levou o indicador aos lábios a pedir silêncio, mas
de tal forma que parecia estar a fazer uma careta e, ao mesmo
tempo, a mandar um beijo. Nick, saboreando a agradável
associação do champanhe a uma primeira e pequena linha de
coca, retribuiu com um sorriso secreto. A subtil afinidade de
celibatários que se firmara entre ele e o calvo e pequeno par do
reino deixou-lhe uma lágrima no canto do olho - por um momento,
sentiu-se perfeitamente tonto por estar tão «apaixonado» pela
família e por aquele membro em particular. Um minuto depois,
Lionel era conduzido à sala entre murmúrios de gratidão. Beijou
a irmã e os sobrinhos e cumprimentou Gerald e Nick, que não
deixou de procurar algum sinal

405

de ardor na vivacidade do barão. O jarro estava no consolo da


lareira, nesse dia atravancado de lírios brancos e de exuberantes
crisântemos igualmente brancos. - Bom, é evidente que vocês
tinham de receber uma prenda de prata - disse Lionel -, mas eu
também queria oferecer-lhes isto. Veio de Paris a semana
passada e, como todos nós nos sentimos um pouco em delírio,
não é... - Uma coisa baptizada de Big Bang acabara de acontecer,
Nick não entendia de uma forma precisa o seu significado, mas
toda a gente que tinha dinheiro, isto é, muito dinheiro, parecia
ter sucumbido a uma euforia extrema, e ele suspeitava que
também iria beneficiar com aquilo. Ali estava Lord Kessler, com
um embrulho debaixo do braço, e tudo nele apontava para uma
aprovação, superior, muito particular, do referido Big Bang.
Foi Rachel quem pegou no embrulho e o abriu; Nick manteve-se
por perto, como se aquela fosse a sua prenda, como se estivesse
a dá-la e talvez, também, a recebê-la; sentia-se simultaneamente
generoso e possessivo. Conteve uma exclamação de espanto
quando Rachel retirou uma pequena pintura a óleo. Determinado,
forçou-se ao silêncio. - Meu caro... - disse Rachel, fascinada,
hesitante, mas controlada, como se uma eventual reacção de
surpresa significasse uma fraqueza de que alguém poderia
aproveitar-se grosseiramente. Ergueu o quadro para que toda a
gente o pudesse ver. - É absolutamente adorável - disse.
- Mm... - disse Lionel com o sorrisinho matreiro de alguém que
tomou uma boa decisão.
Gerald disse: - É demasiado amável, francamente... - e fitou a
pintura com um ar grave, esperando que alguém dissesse o que
era. Era uma paisagem, com cerca de vinte e três centímetros de
largura por trinta de altura, inteiramente pintada com pinceladas
verticais de um pincel muito fino, de tal forma que as bétulas e o
prado pareciam tremular na brisa e no agradável calor de uma
manhã de Primavera. Em primeiro plano, no fundo de uma ladeira,
via-se uma vaca, toda pintada a preto e branco; no caminho, não
muito longe, uma mulher com um xaile branco pelas costas
conversava com um homem que tinha na cabeça um chapéu
castanho. A moldura era simples, de um dourado baço.
- Ah, é mesmo bonito - disse Toby.

406

Catherine examinava comicamente todos os pormenores do


quadro, como que à espera de descobrir uma marosca qualquer.
A certa altura, disse: - É um Gauguin, não é - e Nick que, afinal,
não conseguiu conter-se, disse ao mesmo tempo: - É um Gauguin.
- É um Gauguin bem interessante, não é - disse Lionel. - le Matin
aux Champs: é um estudo, ou uma versão em formato pequeno,
do quadro que está em Bruxelas. Arranquei-o literalmente aos
dentes do presidente da Sony. Para dizer a verdade, creio que,
para ele, era um quadro um tanto ou quanto pequeno... Não
propriamente aquele quadro muitíssimo dispendioso que, para
ele, seria o ideal... - e trocou um risinho com Nick, como se
ambos soubessem na perfeição o que havia a esperar de uma
pessoa como o presidente da Sony.
- Francamente... Lionel... - estava Gerald a dizer, abanando
lentamente a cabeça e pestanejando para disfarçar os seus
cálculos sob a capa de um outro tipo de deslumbramento. - Isto é
a prata... hum...
Catherine abanou também a cabeça e disse. - Santo Deus...! -
num tom que combinava o júbilo e o escárnio perante a riqueza
da sua família.
O quadro foi passando de mão em mão e cada um deles sorria e
suspirava e virava-o para a luz e passava-o com um vago
estremecimento, como se, por um instante, cada um deles, sob o
sortilégio da pura posse física, se tivesse alheado de tudo o
mais. - Onde raio é que havemos de pô-lo? - disse Gerald, quando
o quadro voltou às suas mãos; Nick riu-se na esperança de
encobrir o tom manifestamente deselegante do deputado.
Nesse exacto momento, a porta da frente fechou-se com algum
estrondo e Rachel foi ao patamar para ver quem poderia ser;
aquele era sem dúvida um dia de chegadas incessantes. - Oh,
suba, querida, suba - disse ela. E, um segundo depois, já na sala:
- É Penny.
- Ah, pode ser que ela tenha alguma ideia interessante quanto ao
quadro - disse Gerald, como que adoptando o ponto de vista da
utilidade geral de Penny. Livrou-se do Gauguin pondo-o em cima
do piano; o nariz de Liszt dava um suporte perfeito.
- Penny?! - exclamou Catherine. - Porquê? Quer dizer, ela não faz
a menor ideia...! - e desatou a rir-se, se bem que num tom
submisso, já que aquele não era, de todo, o seu dia.
407

- Bom - disse Gerald, radiante e inchado -, bom, o pai dela é


pintor. - E virou costas ao grupo para tratar do champanhe; tinha
já um copo na mão quando Penny entrou na sala.
- Olá, Penny - disse Rachel no seu tom friamente maternal.
- Os meus parabéns aos dois - ofereceu Penny, avançando pela
sala com a sua singular timidez autoritária, com aquele ar, que
era, em si mesmo, quase maternal, de quem punha os seus
deveres para com o negligente, mas perdoável, Gerald, à frente
de toda e qualquer concessão ao seu próprio prazer. - Na
verdade, eu só vim por causa do diário.
- O diário pode esperar - disse Gerald com uma nota de
impetuosa permissividade, e passou-lhe o copo. - Venha ver o
que Lord Kessler acaba de nos dar. - Pareceu a Nick que o
deputado, naqueles breves momentos, estivera a evitar toda e
qualquer possibilidade de um beijo. - É de Gauguin - disse Gerald.
- Le Rencontre aux Champs(1) - dando-lhe já o seu próprio título,
bastante mais anedótico. Polidamente, todos trataram de
examinar uma vez mais o quadro. - Faz-me lembrar os nossos
maravilhosos passeios em França - disse Gerald, procurando à
sua volta sinais de aquiescência.
- Oh... Estou a ver - disse Rachel.
- Não tem nada a ver - disse Catherine.
- Não sei... - disse Gerald. - A senhora podia ser a tua mãe a
caminho de Podier e... bom, a meio do caminho, quem é que ela
encontra...? Ooh... Nick, por exemplo...!
Nick, contente por ter sido incluído no quadro, comentou: - Mas
parece que pedi emprestado o chapéu de Sally Tipper.
Catherine sorria impaciente. - É, mas a questão é que a mulher e
o homem são camponeses, não é, tio Lionel. Não sei se sabem,
mas este quadro pertence àquela fase em que Gauguin foi para a
província, para a Bretanha, ou lá como é que se chamava, a fim
de se afastar o mais possível da cidade e da corrupção da vida
burguesa. Este quadro fala das privações e da miséria dos
camponeses.
*1. Em francês, no original. O título do quadro é A Manhã no
Campo. O deputado pretende dizer «O encontro no campo»: no
entanto, «rencontre» é um substantivo feminino: «La rencontre».
«Le rencontre» (no masculino) é, em heráldica, uma cabeça de
animal, em particular de veado, carneiro ou boi, vista de perfil.
(N. do T.)

408

- Tens toda a razão, minha querida - disse Lionel, que, em


questões de dinheiro, nunca adoptava uma atitude hipócrita. - Se
bem que, suponho, Gauguin o tenha mandado para a velha e
burguesa Paris, a fim de o vender.
- Exactamente.
- Engraçado, parece uma vaca Hereford - disse Toby. - Mas não
pode ser, pois não...
- É capaz de ser uma charolesa - disse Gerald.
- As charolesas têm uma cor completamente diferente - disse
Toby.
- Seja como for, é muito bonito - disse Penny, para quem o facto
de ser filha de Norman Kent funcionara como uma poderosa
vacina contra a arte.
- Estávamos a ver onde havíamos de pô-lo... - disse Rachel.
Passaram cinco minutos a ver como ficava o Gauguin em
diferentes locais; Toby segurava no quadro enquanto os outros
franziam os lábios e diziam: «Olha, eu acho que seria melhor pô-
lo ali...» Toby, de súbito, era novamente um rapaz, participando
num jogo de família, fazendo caretas e, logo a seguir, pensando,
de uma forma notória, noutra coisa qualquer. «'Tá bem mais
prá'qui, patrão?», perguntou Toby uma série de vezes, com um
inepto acento cockney que ele achava divertido. A certa altura,
tirou da parede uma ou duas coisas e substituiu-as pelo Gauguin.
O problema era que, no papel de parede, se viam as marcas dos
outros quadros. Rachel não parecia importar-se demasiado com
esse pormenor, mas Gerald disse: - Não, não podemos permitir
que a Dama veja uma coisa dessas.
- Oh... - disse Rachel, com uma nota muito ligeira de irritação.
- Não, estou a falar a sério - disse Gerald. - Ela acedeu finalmente
a honrar-nos com a sua companhia e, portanto, tudo tem de estar
perfeito.
- Ficaria extremamente surpreendido se a Dama reparasse -
disse Lionel, sem a menor malícia. Gerald, porém, logo disparou:
- Acredite no que lhe digo, Lionel, ela repara em tudo! - e soltou
um riso inquietante.

409

- Decidiremos mais tarde - disse Rachel. - Mas podemos sempre


adoptar uma atitude de puro egoísmo e pôr o quadro no nosso
quarto...
- Só que é muito natural que ele se meta com a Dama no quarto -
disse Catherine entre dentes.
Depois de almoço dois homens da polícia anti-terrorista vieram
tratar de todas as questões de segurança relacionadas com a
visita da primeira-ministra. Deram a volta à casa como um par de
inspectores das Finanças invulgarmente discretos, tudo
anotando e tudo avaliando. Nick ouviu-os subir o último lanço de
escadas e deixou-se ficar sentado e sorridente à sua secretária,
com o coração a martelar e dez gramas de coca na gaveta de
cima, enquanto eles, debruçados das janelas, examinavam as
folhas de chumbo que cobriam o beiral do telhado. A principal
preocupação dos agentes era o portão das traseiras; a certa
altura, disseram a Nick que, nos jardins comunais, ficaria um
polícia de plantão a noite inteira. A presença dos dois agentes
fez com que tudo parecesse um pouco mais perigoso e, mal
desceram, Nick snifou uma pequena linha só para acalmar os
nervos.
Mais tarde, desceu até à sala de estar e, quando espreitou pela
janela, viu Gerald e Geoffrey Titchfield conversando no passeio.
Ambos estavam com um ar de exaltação contida, como mestres-
de-cerimónias antes de uma importante solenidade, sem
confessarem o que sentiam, quase lânguidos devido a um
nervosismo nunca mencionado. Sempre que passava alguma
pessoa, Gerald saudava-a com um aceno e um sorriso, como se
os transeuntes soubessem quem ele era. O discurso que fizera
no congresso do partido, cerca de um mês antes, tivera imenso
êxito, e, desde então, o deputado adoptara um ar
simultaneamente majestático e acessível.
Geoffrey estava a apontar para a porta da frente, aquela porta
eternamente verde, que Gerald acabara de repintar de um feroz
azul Tory. Fora aliás por ocasião da nova pintura que Nick se
apercebera, pela primeira vez, da intensidade da obsessão do
deputado. Catherine, num desenfreado acesso de fantasia,
embora com um objectivo muito concreto, aventara que a
primeira-ministra ficaria chocada com uma porta verde; além
disso, lera num jornal que

410

todos os ministros tinham portas azuis; até Geoffrey Titchfield,


que era apenas o presidente da associação local, tinha uma
porta da frente azul. Gerald escarneceu da filha, mas, passado
um bocado, saiu para ir comprar bolachas de água e sal ao Mira
Foodhall e, quando voltou, vinha com um ar notoriamente
perturbado. «Qual é a sua opinião, Nick?» disse. «Os Titchfield
só têm o rés-do-chão, mas a porta deles é inquestionavelmente
azul.» Num tom tão brincalhão quanto possível e sentindo já um
nostálgico fervor pelo magnífico verde baço, Nick respondeu-lhe
que duvidava que a cor da porta pudesse ter alguma importância.
Porém, no dia seguinte, Gerald voltou à carga. «Sabe, tenho
andado a pensar se a Cat não terá razão quanto à porta», disse.
«A Dama é muito capaz de achar um bocado inadequado... Se
calhar julga que nós andamos a fazer campanha para salvar a
porra da floresta tropical ou qualquer coisa do género!» E riu-se
num jeito ansioso. «Ainda é capaz de pensar que a levaram a
Greenham Common(1) por engano», prosseguiu ele, num tom
algures entre a sátira e um genuíno destrambelhamento. Nesse
momento, e visto que a porta se transformara num símbolo do
êxito de Gerald, Nick soube que, muito em breve, o deputado
compraria uma lata de verniz azul-congresso e chamaria Mr.
Duke para erradicar o verde.
A certa altura, Penny saiu com a sua pasta e Nick, sentado no
banco da janela, observou-a a conversar com os dois homens. A
secretária estivera a dactilografar o diário que Gerald ditava
todos os dias para o gravador; desde que Penny, a meio das
férias em França, passara com eles uma assoberbada semana de
trabalho, a família dedicava ao diário uma animosidade ainda
maior, visto que Penny deixara muito claro que nenhum deles era
mencionado naquelas páginas: o diário era estritamente um
registo da vida política de Gerald, uma espécie de «arquivo»,
dissera ela, «uma importante fonte histórica». Penny cumpria os
seus deveres diarísticos com uma devoção pretensiosa que só
contribuía para a tornar ainda mais irritante.

*1. Região do sul de Inglaterra, perto da cidade de Newbury, que,


durante os anos 1980 (época em que se passa a cena em causa),
se tornou mundialmente famosa devido à instalação de mísseis
de cruzeiro e às subsequentes manifestações contra as armas
nucleares. (N. do T.)

411

Catherine, a meio de uma qualquer deambulação, apareceu na


sala de estar e foi sentar-se ao pé de Nick, por detrás dos
cortinados presos por atilhos. - Odeio quando temos uma
multidão a invadir-nos a casa - disse ela. Havia um certo
elemento de fraqueza, de semi-secretismo, nos bancos da janela,
as casas dos jogos infantis sítios de onde se podia espiar tanto a
sala como a rua.
- Pois é, é horrível - disse Nick distraidamente.
- Olha, lá está Gerald a dar o seu espectáculo de rua.
- Creio que ele está só a conversar com o velho Titch. Hoje é o
seu grande dia, não te esqueças disso.
- Ultimamente, todos os dias são grandes para ele. É muito raro
ter um dia pequeno. De qualquer modo, também é o grande dia
da mãe. E é obrigada a passá-lo com uma quantidade de
empees(1) - disse Catherine, para quem as duas sílabas eram
agora um mantra de tédio e absurdidade. - E, para cúmulo, tem
de receber a Outra na sua própria casa! Ah, ele adoraria pôr um
cartaz gigante a dizer: «Esta Noite! Atracção Especial!»
- «Uma Única Noite!»...
- Santo Deus, espero bem que sim... Aquele sujeito, o Titch,
idolatra Gerald. Não sei se já reparaste, mas, sempre que passa,
o homem põe-se a olhar para a nossa casa com um sorriso todo
derretido, só para o caso de estar alguém à janela.
- Ah sim...? - disse Nick, que ainda não se esquecera, bem pelo
contrário, de que, em tempos, tinha feito exactamente o mesmo.
Disse: - De início, pensei que a festa fosse em Hawkeswood.
- Oh, enfim, isso foi ideia de Gerald, só podia ser. Mas está claro
que o tio Lionel nunca receberia a Outra.
- Certo...
- É muito curioso - disse Catherine num tom frio. - Gerald tem
acalentado esse sonho de receber a Dama em Hawkeswood. É
quase o objectivo de uma vida... E, vai-se a ver, é a única coisa
que pura e simplesmente não pode acontecer.
- Francamente, não percebo por que razão Lionel...
- Oh, é por causa da atitude de puro vandalismo com que ela tem
atacado tudo. De qualquer modo, foi por isso

*1.MPs: «members of Parliament», ou seja, «deputados». (N. do


T.)

412

que ele mandou renovar o sistema de alarme: assim é que


ninguém consegue entrar lá em casa.
Nick riu-se num tom de protesto porque conhecia a leitura clara
e profunda que Catherine fazia da narrativa familiar, mas ela
apressou-se a dizer: - Santo Deus, mas claro que é essa a
questão, porque é que achas que o tio Lionel lhes deu aquele
quadro?
- Não sei. O que tu queres dizer é que ele lhes deu o quadro como
uma espécie de compensação... - disse Nick, analisando a ideia,
a qual, de facto, encaixava com a sua primeira e superficial
impressão de que Gerald não gostara que Lionel lhe tivesse dado
o Gauguin. Talvez visse na prenda a confirmação de uma
misteriosa afronta.
- Santo Deus, aquela Miss Moneypenny é uma chata que só visto -
disse Catherine, para quem a lente da janela da sala de estar
parecia atrair todo um mundo de agentes irritantes. Penny
estava agora a escrever um qualquer ditado improvisado, ao
mesmo tempo que prendia a pasta entre os joelhos. - Ela deve
estar loucamente apaixonada por ele, não achas?
- Oh, mas da maneira mais nobre e mais pura - disse Nick.
- Claro, querido, só podia ser dessa maneira... Só uma pessoa
apaixonada da maneira mais nobre e pura, como tu dizes, é que
teria paciência para dactilografar aquelas patetices todas.
- Há pessoas que só vivem para o trabalho. Norman é um
trabalhador obsessivo, como todos nós sabemos demasiado bem,
e acontece que Penny sai ao pai. Quanto mais duramente se
envolvem, mais felizes se sentem.
Catherine soprou. - Santo Deus, a ideia... -Mm...?
- Enfim... Gerald e Penny enrolados...
- Oh... - Nick afastou a sugestão com um «Tss...», mas
enrubesceu.
- Oh, está visto que te choquei... - disse Catherine.
- Nem por isso - disse Nick.
' - Não sei se sabes, mas ela por acaso até tem um namorado.
- A sério? - murmurou Nick, sentindo uma súbita e insidiosa
solidariedade para com Gerald, o homem mais velho e, como tal,
condenado. - Conhece-lo?
- Não, mas ela contou-me tudo acerca dele.

413

- Ah, estou a ver...


Geoffrey Titchfield deixou finalmente o deputado e, como Gerald
lhe tivesse dado uma qualquer instrução amigável, olhou para
trás e respondeu-lhe com uma saudação meio séria. Penny e
Gerald estavam agora sós. Era um momento, pensou Nick, em
que poderiam fazer algo de irreflectido - poderiam beijar-se ou
tocar-se de um modo ligeiro, mas revelador; a gélida realidade
arrefeceria num ápice os gracejos mais ou menos indecentes de
Catherine. Era mais um dos segredos da casa que ele guardava,
como uma espécie de consciência sonolenta. Gerald mirou a
casa enquanto falava - o seu olhar subia de piso em piso -, e Nick
acenou-lhe para que ele visse que estavam a ser observados.
Nas horas que antecederam a festa, a atmosfera tornou-se
desconfortavelmente pesada. Os empregados da empresa de
catering tomaram conta da cozinha e faziam caretas nas costas
de Elena enquanto ela, obstinadamente, se entregava às suas
tarefas habituais1 sonoros berros e guinchos vinham da tenda no
jardim, onde o sistema de som estava a ser ensaiado; na sala de
jantar, as cadeiras haviam sido agrupadas, joelho contra joelho,
à espera de ordens. Gerald mostrava um entusiasmo e um
empenho muito particulares e troçava do nervosismo dos outros.
Catherine disse que não conseguia suportar a visão de uma
caixa de cartão numa sala, de modo que saiu para «ir ver
andares» com Jasper. Mesmo Rachel, que distribuía tarefas com
uma segurança aristocrática, pôs-se a mascar nervosamente em
seco enquanto Gerald lhe descrevia onde é que a Dama iria
sentar-se, com quem é que a Dama falaria e que quantidade de
vinho a Dama iria beber. Quase deixava transparecer que o
clímax da noite seria o momento em que dançaria com a
primeira-ministra. Rachel disse: «Mas seremos nós a abrir o
baile, não é verdade, Gerald», de maneira que ele abeirou-se
rapidamente dela e disse-lhe: «Mas é claro, meu amor, claro que
seremos nós a abrir o baile!» e ofereceu-lhe um abraço modesto
e, com alguns tropeções, deu com ela meia dúzia de inesperados
passos de dança.
Por volta das seis, Nick escapuliu-se para um passeio. Era um fim
de tarde triste e molhado. Folhas húmidas juncavam o passeio.
Os nervos que a primeira-ministra suscitava na casa tinham-no
contagiado; dava por si a perguntar-se o que é que iria dizer-lhe e
imaginava já a manhã seguinte, a manhã depois da festa,

414

e aquela agradável fase em que começariam a lembrá-la e a


analisá-la. Dos jardins próximos, vinham os estrondos e assobios
do fogo de artifício. Por vezes, um foguete, tão rápido com um
raio, erguia-se para lá dos telhados e derramava as suas estrelas
na nuvem baixa. Crianças enfiadas em casacos grossos com
capuz recebiam ordens para se apressarem, numa espécie de
fuga à escuridão que se abatera sobre a cidade. O caminho de
Nick era um improvisado ziguezague, uma intenção vagamente
contemplada e logo rejeitada; quem, por um mero acaso,
estivesse a observá-lo, dificilmente poderia ter adivinhado o seu
rumo, e quando passou a esquina e desceu num jeito vivo os
degraus que conduziam à casa de banho da estação do metro,
Nick exibia uma carranca formidável, como se tudo aquilo fosse
uma surpresa e um incómodo até para ele mesmo.
Quando, num passo rápido, voltou a meter pela Kensington Park
Road, exibia a mesma carranca, mas pelo facto de ter feito algo
de tão ordinário e inseguro - de súbito, fizera-se tarde, a espera e
as interrogações e, depois, o acto, sôfrego e sem uma palavra,
tinham consumido imenso tempo; o seu atraso denunciava-o...
Nada de «inseguro» no novo sentido que era dado à palavra,
claro; mas imprudente e ilegal. Que mal começaria a noite se
tivesse sido apanhado... Simon, o empregado de Wani, dissera
que «Rudi» Nureyev costumava engatar naquela casa de banho,
sem dúvida há muito tempo, mas Nick, sempre que entrava lá
dentro, tinha a sensação de que a imagem de um qualquer pas de
deux executado por estrelas do ballet assombrava e redimia o
local. Agora, tudo o que restava nele era um azedume e um
sentido prático; o calor de uma secreta transgressão esbatia-se
já no ar de Novembro. Subiu rapidamente ao seu quarto, a pressa
era o seu pedido de desculpas; havia agora na casa uma
quietude cintilante, de uma cintilação genuína, planeada, paga e
executada.
Quando desceu, faltavam ainda alguns minutos para a chegada
dos convidados. Foi até à tenda onde decorreria o baile e deu
umas voltas pelo quadrado de parquet que rangia de uma forma
notória e onde braseiros suspensos abriam lagos de calor no
vazio da friagem. A tenda era uma extensão - como num sonho -
das fronteiras da casa. Voltou para dentro, transpondo a ponte
improvisada, passando pelo corredor das traseiras ornamentado
com grinaldas e lanternas, e deambulou de sala em sala, no meio
das luzes e das velas e do cheiro dos lírios,

415

quase com uma sensação de que estava na igreja, ou, pelo


menos, de algo que se confundia com a recordação de uma
solenidade. No espelho da sala de entrada, Nick era lustre e
sombra no seu novo fato de cerimónia e nos sapatos reluzentes.
Saudou Rachel e Catherine na sala de estar e desataram a
tagarelar como se fossem convidados, numa alegre inversão de
papéis, transformados pela seda e pelo veludo, pelas jóias e
maquilhagem, em criaturas de sala de estar. Os estrondos do
fogo de artifício provocavam neles um apetite pelo frívolo. Da
cozinha, vinham repetidas explosões abafadas das rolhas do
champanhe, sinal de que os criados estavam prontos para a
função. - Querem que vá buscar uma bebida? - disse Nick.
- Sim, sim, vá. E, já agora, veja se encontra o meu marido - disse
Rachel.
Espreitou para a sala de jantar, tão cheia de mesas separadas
como um restaurante; Toby, de pé, junto a uma mesa, parecia ler
um cartão. Estava a ensaiar o seu discurso, silenciosamente. -
Abrevia o mais possível, querido - disse Nick.
- Nick... Que porra...! - disse Toby, com um arreganho
preocupado. - Sabes que uma coisa é fazer um discurso para as
tias e para os tios e, estás a ver, camaradas da universidade,
mas outra coisa, completamente diferente, é fazer um discurso
para o raio da primeira-ministra.
- Não entres em pânico - disse Nick. - Nós vamos todos gritar:
«Muito bem! Muito bem!»
Toby ofereceu-lhe um sorriso triste. - Não achas que ela é capaz
de ter de ir a uma cimeira ou qualquer coisa do género à última
hora?
- Quer-me parecer que a cimeira vai ser aqui. Para o teu papá, de
certeza que é. - Nick contornou as mesas, cada lugar com o seu
guardanapo em forma de mitra e o seu cartão com o nome a
tinta preta. Nada de títulos, claro. Curvou-se sobre aquela que
iria ser a cadeira de Sharon Flintshire. - Adoro estas imagens do
feliz casal.
- Pois é - disse Toby. - A Cat fez mesmo arte, hã? Catherine
encostara ao aparador uma coisa que se assemelhava
a um trabalho escolar; fotografias ampliadas de Gerald e Rachel
antes de se casarem ladeavam uma foto formal de casamento,
com imagens, obviamente posteriores, da família, por baixo.
Fazia lembrar
um cartaz com as fotos do elenco de um qualquer teatro do West
End que exibia a mesma farsa há um ror de anos.
- A tua mãe era tão bela... - disse Nick.
- Pois era. E o pai também.
- Tão jovens...
- É... Para dizer a verdade, o pai não gosta muito dessas fotos.
Não queria que a Dama o visse na sua fase hippy. - A julgar pelas
fotografias, a fase hippy de Gerald atingira o seu clímax contra-
cultural quando ele usara suíças e uma gravata com motivos
florais.
- Não consigo fazer uma ideia da idade que eles teriam aqui...
- Bom, o pai vai fazer cinquenta anos no próximo ano, de maneira
que tinha... vinte e quatro; e a mãe tem mais alguns anos do que
ele, claro.
- Nestas fotos, têm a nossa idade - disse Nick.
- Não perderam tempo, foi sempre a andar... - disse Toby com um
pequeno sorriso triste.
- Contigo é que eles não perderam tempo nenhum, meu querido -
disse Nick, fazendo, divertido, as suas contas. - Deves ter sido
concebido durante a lua-de-mel.
- Creio que sim - disse Toby, simultaneamente orgulhoso e
embaraçado. - Algures na África do Sul. A mãe era virgem quando
se casou, eu sei que era, e, três semanas depois, estava grávida.
Foi sempre a andar, de facto.
- Realmente... - disse Nick, pensando nos anos que os seus pais
tinham demorado para o ter a ele, ao mesmo tempo que, com um
sorriso íntimo, contemplava as suas próprias liberdades.
Toby deu mais uma olhadela ao seu discurso. Não parava de
morder o lábio. Nick observava-o afectuosamente: o casaco
desabotoado sobre a faixa carmim do smoking, os pesados
sapatos pretos, o cabelo curto, que fazia com que o rosto
parecesse mais gordo, como uma constrangida réplica do pai,
mas do pai como ele era agora, não quando tinha vinte e quatro
anos. Num impulso lento, Nick arriscou: - Talvez eu tenha
precisamente aquilo de que precisas. Isto é, caso estejas
interessado numa pequena... hum... ajuda química.
- A sério...? - disse Toby num tom que misturava espanto e
interesse.
416 - 417

Nick segredou-lhe que tinha conseguido arranjar um pouco de


coca.
- Fogo, é incrível, obrigadíssimo! - disse Toby, e, com um sorriso
culpado, olhou à sua volta.
Mandaram um criado à sala de estar com o champanhe para
Rachel e Catherine e subiram ao último piso, criando um pequeno
alvoroço em torno do «ensaio». Para Nick, só havia um alvoroço:
o de partilhar o seu segredo. Entraram no antigo quarto de Toby
e fecharam a porta à chave. - A casa está cheia de chuis - disse
Toby.
- Então o que é que vais dizer no teu discurso? - perguntou Nick,
derramando algum pó na mesa-de-cabeceira. Havia no quarto
uma atmosfera de deserção muito particular, não a paciência
muda de um quarto de hóspedes, mas a quietude de um local
onde crescera um rapaz que depois o abandonara, um quarto
onde tudo, num silencioso reajustamento, permanecera tal e
qual como era. Havia uma cómoda de mogno e um espelho com
uma moldura dourada, duas peças muito bonitas, e as fotografias
da escola e da equipa de remo de Toby, em tudo um jovem com
um descuidado sentido de classe; e o guarda-fatos cujas roupas,
em tempos, Nick, não sem algum atrevimento, experimentara, e
que, entretanto, haviam perdido todo o significado, mesmo para
ele.
- Pensei que podia meter uma graça acerca do congresso - disse
Toby. - Estás a ver, o Próximo Passo em Frente(1), e a mãe e o pai
como um casal eterno, tão eterno como a Dama...
- Mm. - Nick seguia, de sobrolho franzido, a sua azáfama com o
cartão de crédito. - Meu querido, creio que a questão é esta: tu
deverias fazer o teu discurso como se a Dama não estivesse
presente. Deverias falar apenas... do teu pai e da tua mãe. Este é
o dia deles, não dela, e não apenas de Gerald.

*1. O congresso referido no texto é o difícil (para Thatcher)


congresso do Partido Conservador de 1986. Recorda-se que, por
essa altura, os Tories estavam atrás dos Trabalhistas nas
sondagens e que, pouco tempo antes, dois ministros de Thatcher
tinham resignado: Michael Heseltine e Leon Britton. A solução
que Thatcher encontrou para a crise está resumida no próprio
tema do Congresso: «O Próximo Passo em Frente» («The Next
Move Forward»). A proposta decorria do modelo thatcheriano de
«capitalismo popular»: a disseminação da propriedade para criar
uma democracia de «proprietários» e uma insistência a todo o
custo nas privatizações (designadamente de sectores industriais
com problemas)-Com isto e um ataque em toda a linha ao Partido
Trabalhista, o congresso foi um êxito para Thatcher e um
verdadeiro trampolim para a sua terceira vitória eleitoral em
1987. (N. do T.)

418

- Oh - disse Toby.
- Até podias fazer um discurso mais virado para a tua mãe.
- Certo... Oh pá, quem me dera que fosses tu a escrevê-lo. - Toby
errava ansioso pelo quarto, as costas curvadas, os ombros
caídos. Ouviram a campainha a tocar, sinal da chegada dos
primeiros convidados. - Quer dizer, o que é que eu posso dizer da
minha velha?
- Podes falar de tudo aquilo, e não é pouco, que ela teve de
suportar com Gerald - disse Nick, sombriamente consciente de
que Rachel não sabia da missa a metade. - Não, é melhor não
dizeres isso - acrescentou, com notória prudência -; não, o que
tens a fazer é muito simples: abrevia o discurso. - Imaginou Toby
de pé a falar para os convidados, a sua ansiedade
completamente exposta perante uma multidão que a bebida teria
já estimulado no sentido da brutalidade, mas também do
enternecimento. - Não te esqueças de uma coisa: toda a gente te
ama - disse, na esperança de que isso o ajudasse a não dar tanta
importância ao sortido de monstros que o esperava.
Toby baixou-se, snifou a sua linha e recuou; Nick aguardou e
observou-o, procurando os sinais da dissolução amorosa, sem
fazer ideia da cor que essa dissolução ganharia nele. - Há que
tempos que não experimentava... - disse Toby, meio a protestar,
meio a justificar-se. E, passado um instante: - Mm, isto é muito
bom... - E, um minuto depois, numa rendição radiante: - Isto é
mesmo material do bom, Nick, lá isso é. Onde raio é que foste
arranjá-lo?
Nick snifou vorazmente a sua linha e limpou a mesa com a ponta
do dedo. - Oh, para dizer a verdade, foi Ouradi quem mo arranjou.
- Certo - disse Toby. - É, Ouradi tem sempre material do bom.
- Tu costumavas snifar com ele, em tempos que já lá vão.
- Pois foi, isso aconteceu uma ou duas vezes. Mas pensava que tu
não consumias nada... - Toby avançou para ele num jeito
desenvolto e Nick teve de fazer um esforço sobre-humano para
não o beijar e não lhe apalpar a picha, como teria feito com Wani.
Em vez disso, disse:
- Olha, toma, leva o resto. - O resto era cerca de um terço de um
grama.

419

- Oh pá, não, não posso - disse Toby, ainda que, no seu rosto, se
notasse, nesse mesmo instante, a fulguração da posse.
- Não, toma lá - disse Nick. - Eu já tenho a minha dose, mas tu,
bom, é natural que precises de mais. - E estendeu-lhe a
minúscula embalagem, quase uma cartinha, de facto, um bilhete
amoroso, bilhete esse, como sempre acontecia com Ronnie, que
fora feito com uma página de uma revista de mulheres nuas: um
mamilo enorme cobria a embalagem como se fosse um selo.
Toby pegou nela e, após um momento de reflexão, enfiou-a no
bolso interior do casaco. - Eh pá, é mesmo fantástico! - disse. - É,
acho que as coisas vão correr bem esta noite, sabes, vou fazer o
que tu disseste, abreviar o discurso - e desatou a tagarelar,
movido pela mera animação de uma primeira linha de coca. No
caminho para baixo, disse a Nick: - Claro, querido, se quiseres
mais, diz-me; eu não vou usar isto tudo.
- Não, eu não vou precisar de mais.
Avançaram num jeito descontraído, quase deslizante, pela sala
de estar, onde Lady Partridge estava a falar de ladrões com um
homem do Ministério das Finanças e Badger Brogan flertava de
uma forma controlada com Greta Timms, grávida do sétimo filho.
Nick circulou pela sala, sorridente e quase imune à ansiedade
que encontrava nos outros, àquela jovialidade exagerada, à
desatenção feita de relances, à sensação de uma lacuna que só
poderia ser preenchida pela chegada da celebridade. Mirou à sua
volta em busca de uma bebida. Aquele pingo de coca na garganta
deixava-o duplamente sequioso. Dois criados entraram com
bandejas carregadas de bebidas, uma aparição que o fez rir: eles
eram a resposta exacta a uma sede dupla. Por razões de beleza,
escolheu o criado moreno, de lábios carnudos: - Obrigado. Oh, olá
- disse Nick, por sobre o seu corpo erguido, reconhecendo o
criado antes de saber ainda quem ele era; só por um segundo,
enquanto tudo permanecia cintilante e suspenso, ele e o criado
de olhos nos olhos, as bolhas fluindo para logo se dissolverem
numa dúzia de copos altos. - Eu lembro-me de si - disse ele
então, num tom bastante seco, como se aquele criado tivesse
deixado cair qualquer coisa em cima de alguém, uma cena sem
dúvida inesquecível.
- Oh... boa-noite - retorquiu o homem com um ar de manifesto
agrado, de tal forma que Nick sentiu-se perdoado; e, logo a eguir:

420

Onde eu vejo você antes? - e Nick percebeu que, na realidade,


fora esquecido.
Houve um alvoroço para os lados da janela e Geoffrey Titchfield
anunciou: «Ah, chegou o carro da primeira-ministra», como um
velho lacaio contagiado pela grandiosidade dos patrões. Avançou
na direcção da porta, demasiado exaltado pelas suas próprias
palavras para poder partilhar a agitação que elas haviam
inflamado. Convidados olhavam de soslaio para os rostos uns dos
outros como que em busca de um sinal tranquilizador, um ou dois
pareciam ter já desistido e escapavam-se para um canto da sala,
e, entre os homens, havia alguns encontrões só muito vagamente
amáveis. Nick seguiu com o grupo até ao patamar, com a
sensação de que a primeira-ministra estava muito para lá da
discrição, de que a primeira-ministra ficaria melindrada se não
deparasse com uma multidão, como uma manifestação popular.
Ficou todo comprimido contra o corrimão na primeira volta das
escadas, sorrindo para a sala de entrada como, algures numa
pintura histórica, um anónimo membro de um cortejo desejoso
de chamar as atenções. A porta estava escancarada e a friagem
húmida que vinha da rua dava um tom heróico à atmosfera
excitada. As mulheres arrepiavam-se de um feliz desconforto. A
noite era o elemento rebelde sobre o qual haviam triunfado. O
Analista Cáustico entrou numa pressa e quase tropeçava,
suscitando risos e sibilantes sons reprovadores. Gerald
encontrava-se já na rua, em humilde formatura com os rapazes
da polícia antiterrorista. Rachel mantinha-se mesmo à entrada,
aureolada pela luz percorrida de chuviscos e pelo diáfano véu
prateado do seu vestido. Ouviu-se a voz por demais conhecida,
houve um singular silêncio preocupado que durou uns quantos
segundos e, de súbito, lá estava ela.
Entrou no seu gracioso passinho rápido, aquele passo em que
havia uma sugestão de um constrangimento há muito suprimido,
de uma deselegância transmutada em poder. Olhou em frente,
para o interior daquela casa desconhecida, e tudo o que viu foi
uma confirmação. O espelho alto da sala de entrada deu-lhe as
boas-vindas e, nele, os rostos daqueles que a recebiam, alguns
dos quais, ainda que muito ilustres, exibiam uma expressão que
estava para lá do orgulho - uma espécie de arrebatamento - e que
era simultaneamente ousada e tímida. Ela parecia agradada com
as atenções

421

de que era alvo e dissuadia-as num tom jovial e prático, ao jeito


da realeza moderna. Não se vislumbrava nela o menor indício de
que tivesse reparado na cor da porta da frente.
No piso de cima, a calma fora reinstaurada, mas era uma
variedade muito particular de calma, aquela serenidade
empenhada que envolve uma representação operática mal
termina a abertura e o pano sobe. As pessoas refaziam-se da
comoção. Havia uma espécie de fila de recepção improvisada
quando a Dama entrou na sala (o marido, atrás dela, escapuliu-
se, despretensioso, rumo a uma bebida e a um velho amigo).
Barry Groom, como se, partindo de um ponto baixo, tivesse
acabado de descrever um salto com uma call girl no trampolim,
deixou pender a cabeça com aterradora humildade quando a
primeira-ministra o cumprimentou; posteriormente, houve quem
garantisse que Groom chegara mesmo a dizer «Olá». Quanto a
Wani, a Dama saudou-o num tom divertido, como alguém que vira
recentemente noutro sítio qualquer - Wani ganhou o resplendor
do reconhecimento, mas renunciou à pretensão de falar com ela,
já que a vira tão pouco tempo antes; ainda que tivesse
dificuldade em largar-lhe a mão e, por um momento, em toda a
sala, perpassasse a sensação de que talvez fosse beijá-la.
Gerald, ciumento, fê-la avançar ao longo da fila, murmurando
nomes. Nick observou a sua aproximação com um interesse
primitivo; uma vez mais, a Dama mostrava estar para lá das
meras boas maneiras, por muito corteses e carregadas de jóias
que estas fossem. A cabeleira era tão perfeita que Nick começou
a imaginá-la molhada, desmanchando-se gotejante sobre o seu
rosto. Envergava um vestido preto comprido e um casaco branco
e dourado de ombros largos, com bordados tão extraordinários
como os de um uniforme ruritânio(1) e aberto o bastante para
que um magnífico colar de pérolas pudesse sobressair. Nick
perscrutou o colar de pérolas, o amplo e sólido colo, a opulência
maternal do pescoço. «É mesmo linda, linda...», disse Trudi
Titchfield, num devaneio desinibido. Nick foi rapidamente
apresentado - quase elidido, de facto

*1. Ruritânia, o país imaginário, algures no sueste da Europa,


criado pelo romancista Anthony Hope em O Prisioneiro de Zenda
(1894) e Rupert ofHentzau (1898). O termo «Ruritanian» acabou
por designar qualquer coisa que só pode existir num verdadeiro
reino de opereta. (N. do T.)

422

- ao ritmo da longa fórmula social, mas com um surpreendente


detalhe, ou, por outras palavras, uma peta: «Nick Guest... um
grande amigo dos nossos filhos... um jovem professor
universitário», de forma que Nick se viu exalçado e também
comprometido, visto que os professores universitários não se
encontravam entre os favoritos da primeira-ministra. Acenou e
sorriu e sentiu os olhos azuis dela centrando-se nele brevemente,
mas com alguma insegurança, até que a Dama, tomando a
iniciativa, exclamou: «John, olá...!», dirigindo-se, claro, a John
Timms que, de súbito, estava mesmo ao lado de Nick. «Primeira-
ministra...», disse John Timms, sem lhe apertar a mão, mas, de
algum modo, prendendo todo o seu ser com o fervor e a
animação com que a saudava. No final da fila, encontravam-se os
filhos do casal, um inigualável par de olhos esbugalhados, Toby
ainda maravilhosamente alegre e Catherine, que poderia ter
amuado ou feito uma qualquer pergunta inoportuna, mas que
cumprimentou a primeira-ministra com um radiante «Olá!»,
fitando-a como uma criança diante de um mágico. «Oh, e este é o
meu namorado», disse ela, apresentando Jasper, mas
esquecendo-se de acrescentar o nome. «Olá», disse a primeira-
ministra, num tom cuja secura não podia deixar de sugerir que,
por essa altura, a sua pessoa merecia já uma bebida; e Tristão,
com os seus olhos de corça e o seu sorriso tranquilo, estava já a
postos para a satisfazer.
Nick vinha a descer num passo ligeiro, após uma breve pausa no
seu quarto para retemperar energias, quando deu com Wani a
sair do quarto de Gerald e Rachel. - Por amor de Deus, querido,
tem cuidado! - disse.
- Fui só à casa de banho - disse Wani.
- Mm - disse Nick. Estava demasiado bêbedo e pedrado para levar
minimamente a sério qualquer perigo. - Por favor, se precisares,
usa a minha casa de banho.
- As escadas - contrapôs Wani.
Nick adorava o modo como a coca apagava o enevoamento do
champanhe, Bordeaux, Sauternes, e mais champanhe. A droga ia
juntando os pontos e, depois, transportava-os como um crédito
para uma nova conta de prazer. Trazia lucidez, como uma cura

423

quase como a sobriedade. Pôs o braço em volta dos ombros de


Wani e perguntou-lhe se estava a divertir-se. - Vemo-nos tão
pouco - disse. Começaram a descer e, no terceiro ou quarto
degrau, houve qualquer coisa que chamou a atenção de Nick,
alguém que se movia no grande quarto branco de onde Wani
acabara de sair. O seu instinto de guardião da casa, essa
categoria que tem por função prevenir problemas, ganhou
subitamente vida. Jasper saiu do quarto com um ar prático e
eficiente, como se tivesse as chaves da casa e andasse a
mostrá-la a um comprador. Acenou para Nick, piscou-lhe o olho. -
Vou só lá acima ao quarto de Cat - disse.
- Pelos vistos - disse Nick, enquanto descia as escadas com
Wani, uma pensativa hesitação a cada degrau, ou, talvez, degrau
sim, degrau não, como se, sob o sortilégio de um pensamento
partilhado, pudessem parar por completo a meio -, tens andado a
exercitar a rameira da casa nas corridas de montanha...
- As montanhas têm de ser subidas, meu velho, têm de ser
subidas.
- Pois - disse Nick, com uma fungadela e uma amarga crispação
dos lábios. Procurou indícios de culpa no rosto estranhamente
rosado de Wani; vislumbrou, como cartas embaralhadas, Wani e
Jasper juntos na casa de banho, a avidez de corrupção de Wani,
toda a licença que vinha com a última linha. - Portanto, isto
deixou de ser o nosso segredo - disse. Wani lançou-lhe um olhar
que era desdenhoso sem ser agressivo. Nick podia estar na fase
límpida, inteligente, mas Wani estava muito para lá disso,
naquela fase em que a euforia vacilava e estacava e pestanejava
perante uma sala ou um amigo só muito vagamente
reconhecidos. Nick deixou-o seguir o seu caminho e a acelerada
pulsação da coca transformou-se numa curta disparada de
pânico. Sorriu defensivamente e o sorriso pareceu procurar e
encontrar um tema mais feliz na florescência inicial da droga.
Era difícil saber o que era ou não importante. Do que não havia
dúvida era que não valia a pena pensar nisso agora. Lá fora, na
tenda, a música começara, e em tudo havia um excitante ar de
aventura.
Encontrou Catherine num canto da sala de estar, assediada pelo
velho Jonty Stafford, o embaixador reformado famoso pela sua
dentadura cavalar, que se curvava sobre ela como um jovial
Jabberwock. - Não, eu acho que você gostaria de Dubrovnik -

424
estava ele a dizer, com um sugestivo semicerrar dos olhos. - Ah,
o Hotel Diocletian, um encanto, um imenso encanto!
- Ah - disse Catherine.
- Sabe, dão-nos sempre a suíte nupcial... que tem uma cama
verdadeiramente imensa... Tão imensa, de facto, que dava para
uma orgia.
- Mas não na sua noite de núpcias, imagino.
- Olá, Sir Jonty.
- Ah, aqui está o seu belo e jovem namorado, agora é que vão ser
elas, agora é que eu estou feito! - disse Sir Jonty e, num repente,
já ia atrás de um outro traseiro feminino que calhou a passar,
traseiro esse que, na circunstância, era precisamente o da
primeira-ministra. Sir Jonty olhou para trás por um instante,
abanando a cabeça de encantamento: - Maravilhosa, não é... a
primeira-ministra...
- Creio que acabas de ser alvo de propostas particularmente
indecorosas por parte de um velho muito bêbedo - disse Nick.
- Bom, é sempre agradável haver alguém que repara em nós -
disse Catherine, deixando-se cair num sofá. - Senta-te aqui.
Sabes por onde anda Jaz?
- Não o tenho visto - disse Nick.
O fotógrafo circulava livremente e o seu flash cintilava nos
espelhos. Deslizava e demorava-se no meio dos convidados,
abeirava-se com um sorriso, como uma maçada de que se tinha
uma vaga recordação, com o seu lacinho e o seu smoking, e,
então, quando menos se esperava, zás! - apanhava-os. Mais
tarde, voltou, retomou as suas deambulações, já que a maior
parte das fotos captam uma piscadela remelosa ou um ombro
que se vira no exacto momento do flash, e apanhou-os de novo.
Agora, os convidados agrupavam-se e enfrentavam-no, ou faziam
de conta que não o tinham visto e representavam-se a si mesmos
com descuidada magnificência. Nick deixou-se cair no sofá ao
lado de Catherine, recostou-se com uma perna enroscada
debaixo da outra e, no rosto, um sorriso enlevado perante a sua
própria elegância. Sentia-se capaz de se representar a si mesmo
a noite inteira. Sentia-se fabuloso, adorava aquelas noites, e,
embora tivesse sido agradável pôr a cereja do sexo em cima
daquele bolo, a verdade é que o facto de não ter sexo

425

parecia ser despiciendo. Tudo se proporcionava para que


pudesse tirar o melhor partido do facto de não ter sexo.
- Mm, que bem que cheiras - disse Catherine.
- Oh, é só o velho Je Promets - disse Nick, e agitou os botões de
punho na direcção dela. - Já tiveste os teus doze segundos com
a primeira-ministra?
- Estava quase, quase, mas Gerald acabou com as minhas
pretensões.
- Ouvi uma parte da conversa dela ao jantar. Ela faz aquele
número da Grande Personalidade que é muito simples e que não
se priva dos seus pequenos prazeres.
- Ou seja: uma glutona - disse Catherine.
- Todos eles adoram isso, soltam suspiros de alívio, seriam
capazes de passar toda a noite a falar de margarinas versus
manteiga, e, de repente, ela domina-os com os seus pontos de
vista sobre a Política Agrícola Comum.
- Não lhe disseste quais eram os teus pontos de vista sobre esse
assunto?
- Ainda não... - disse Nick. - Exercem sobre ela um controlo
bastante apertado, não é? Quer dizer, quem domina é ela, mas
vai para onde a mandam.
- Bom, aqui é que ela não domina - disse Catherine, acenando
ousadamente para Tristão. - O que é que queres beber?
- O que é que eu quero? - disse Nick, contrapondo um sorriso
malicioso ao sorriso formal de Tristão, ao mesmo tempo que o
comia com os olhos. - Do que é que eu gostaria mais?
- Champanhe, sir? Ou alguma coisa mais forte?
- Para já, champanhe... - disse Nick num tom arrastado. - A coisa
mais forte fica para depois. - A imagem do prazer ganhava
consistência diante dos seus olhos, o delicioso trabalho de
equipa das drogas e da bebida, a sensação de risco ampliando
absurdamente a sensação de segurança, a nova convicção de
que, tantos anos depois, poderia fazer o que muito bem
entendesse com Tristão. Quanto a este, limitava-se a acenar com
a cabeça, mas, a certa altura, quando teve de se baixar para
apanhar um copo vazio, apoiou-se por um breve instante, se bem
que pesadamente, no joelho de Nick. Nick observou-o afastando-
se ao longo da sala apinhada e, durante vários e demorados
segundos,

426

a perspectiva tornou-se uma só, aquela sala e Hawkeswood eram


uma e a mesma coisa, os dourados, os espelhos, a sucessão de
salas, as abas vislumbradas de uma fugidia ideia: a qual, depois,
pelos seus próprios pés, vinha ter com ele, e era precisamente
aquilo que ele queria. Todos devem receber um prémio: Gerald
tinha razão. Quando Tristão voltou e se curvou para lhes oferecer
as bebidas que trazia na bandeja, Nick ergueu o seu copo num
brinde que era, ao mesmo tempo, geral e secreto. - À nossa -
disse.
- À nossa - disse Catherine. - Acaba com isso, já chega de te
fazeres ao criado.
Um minuto depois, comentou: - Toby parece muitíssimo animado
esta noite. Sinceramente, não é nada típico dele. - Olharam para
Toby, esparramado no sofá da primeira-ministra, dizendo por
certo alguma inimaginável piada. O amplo assento mesmo ao
lado da primeira-ministra, já com uma pequena depressão a meio
devido ao uso, era uma zona de recepção em que sucessivos
suplicantes se empoleiravam para uma audiência de um ou dois
minutos, antes de serem amavelmente desalojados, ainda que
Toby, tirando talvez partido do triunfo do seu discurso depois do
jantar, tivesse lá estado bastante mais tempo.
- Não ficaria nada surpreendido - disse Nick -, se Wani lhe tivesse
dado um pouco de pó hilariante para o ajudar a aguentar isto.
- Oh, santo Deus - disse Catherine num tom crítico, antes de
sorrir da ideia. - Tu sabes como ele é, ainda é capaz de oferecer
uma passa, ou lá como é que lhe chamam, à primeira-ministra.
- Ela tem bebido muito, não tem... Mas parece que a bebida não a
afectou minimamente.
- É tão divertido observar os homens com ela... Vêm com as
mulheres, mas vê-se bem que as mulheres, para eles, são um
verdadeiro estorvo; olha-me só para aquele, sim, aquele que está
a cumprimentá-la, «Sim, primeira-ministra, sim, sim», o homem
não consegue, mas é que não consegue mesmo, convencer-se a
apresentar a mulher... claro que, neste momento, o que ele mais
desejaria era que ela desaparecesse, só para poder ter um
encontro picante com a Dama... ah, agora a mulher conseguiu
sentar-se no sofá, ele está furibundo... mas... já está! Ela tem-no
à sua mercê, ele está a agachar-se... a ajoelhar-se no tapete...

427

- Se calhar ainda consegue pôr o homem a beijar-lhe o... hum...


- Oh, não diria tanto...
- O anel, querida!
- Oh, talvez. É enorme.
- Bom, ela fica com um ar de rainha, não fica, com aquele traje e
os adereços todos...
- De rainha?!... Querido, ela parece mas é uma cantora de música
country.
Catherine não resistiu a acompanhar o seu comentário de um
penetrante gritinho, de tal forma que diversos convidados se
viraram para eles com graus variáveis de humor e irritação.
Catherine estava com um ar de quem, interiormente, rodava a
grande velocidade. Ergueu o copo trémulo diante do rosto e
disse: - Estas fintes de champanhe são simplesmente enormes!
- É, são uma espécie de tubas de champanhe, não é - disse Nick.
Nesse momento, nos jardins comunais, começaram a rebentar
alguns foguetes - morteiros e trovões - especialmente ruidosos.
As janelas chocalhavam e os estrondos ecoavam pelas casas. As
pessoas gritavam alegremente e encolhiam-se amedrontadas,
mas a primeira-ministra não se encolheu, bem pelo contrário:
fortificou a sua voz segundo um firme diapasão, como que
decidida a enfrentar os desafios de um tumultuoso Parlamento. À
sua volta, os cortesãos espantaram-se como faisões.
- Aquilo que realmente me deixa pasmado - disse Nick -, é a
assombrosa bichice dos homens. A bichice heterossexual.
- Aí está uma coisa que não me surpreende - disse Catherine. -
Quer dizer, com o pai que tenho...
- Querida, o teu pai, comparado com alguns destes tipos, é um
operário de fato-macaco, é um mineiro num piquete de greve...
Olha-me só para aquele velho... hum... o ministro do... de que é
que ele é ministro?
- Não sei, só sei que ele é monstro de qualquer coisa. Aquele
com a cara bem vermelha. Já o vi na televisão.
Era um dos homens que estavam de pé, imediatamente atrás da
primeira-ministra, como um empresário, protegendo-a e, ao
mesmo tempo, exibindo-a. Exibia uma cabeleira grisalha
oleosamente domada para trás em fundas e encrespadas ondas,
por sobre as quais passava a mão, quase sem lhes tocar. Era um
dos poucos homens que envergavam um smoking branco, e a sua
pose constituía uma soberba denegação de uma possível gafe. O
casaco exibia umas amplíssimas lapelas com debruns de seda
creme; uma linha de fulgurantes botões azuis subia rumo a um
lacinho de veludo um tanto descaído e cuja cor, entre todas as
cores, só poderia ser o roxo. O colarinho de pontas viradas
mantinha a cabeça do homem encaixada num ângulo altivo; mais
abaixo, uma apertada faixa de seda mantinha-o erecto e
agravava de uma forma chocante o afogueamento dispéptico do
rosto.
Catherine disse: - Não consigo ver nenhum homossexual com um
mínimo de amor-próprio a vestir-se daquela maneira.
- Oh, eu não iria tão longe... - disse Nick, sem saber ao certo qual
dos dois estava a ser mais irónico. - É simplesmente um caso da
mais desbragada vaidade...
- Ah, já sei, querido: ele é o Monstro da Vaidade! - disse
Catherine, e deu mais um dos seus gritinhos.
Nick foi à casa de banho do primeiro piso para uma linha rápida.
Parecia um pouco desnecessário, subir ao primeiro piso de um
modo tão furtivo. Snifou com um polegar tapando uma narina de
cada vez, enquanto sorria para Gerald cumprimentando Ronald
Reagan. Por muito que se olhasse para a fotografia, ficava-se
sempre com a impressão de que o velho Reagan não sabia quem
era Gerald - o homem exibia aquela expressão que era um
sintoma de uma benevolência de nível médio. Da tenda, chegava-
lhe a batida da música; primeiro tinham posto Big Band jazz(1),
agora era rock and roll dos primeiros tempos, o rock que Rachel
e Gerald teriam muito provavelmente dançado vinte e cinco anos
antes. Foguetes assobiavam e estouravam. Para lá da porta
fechada, podia-se ouvir o estrondo colectivo da festa, com a sua
sugestão de secretas oportunidades: havia dois homens ali que
ele queria. O puxador da porta chocalhou e Nick limpou tudo
muito bem limpo, certificou-se de que deixava tudo em
condições, puxou o autoclismo,

*1. O jazz das grandes bandas dos anos 30 e 40; Glenn Miller é o
exemplo mais conhecido. (N. do T.)

428 - 429

deu um jeito ao lacinho no espelho e saiu calmamente, mal


reparando no polícia que estava à espera.
A Duquesa ocupara o seu lugar ao lado de Catherine, de modo
que Nick tratou de procurar outro poiso. A sala de estar apinhada
de gente era o seu recreio de escola. Deu por si avançando num
jeito descansado, mas também determinado, na direcção do sofá
da primeira-ministra. Toby vinha nesse preciso momento das
bandas do sofá, como um actor a caminho dos bastidores,
sorridente ainda; não fazia a menor ideia do que ela dissera. Lady
Partridge andara por ali a rondar e, à primeira oportunidade, não
se conteve: após a necessária vénia, apertou a mão da primeira-
ministra. De súbito, quase parecia que ficara sem fala - Nick viu
o estado em que ficaria se por acaso encontrasse um daqueles
escritores por quem sentia grande admiração. «Adoro o seu
trabalho» era de facto tudo o que uma pessoa poderia dizer. Mas,
neste caso, e dado que Lady Partridge era uma velha, também
era possível ver uma ruga de sabedoria e orgulho maternal para
além da reverência e submissão infantis. Nick não conseguia
ouvir bem o que ela estava a dizer... qualquer coisa sobre o
problema do lixo?... e tinha a certeza de que Lady Partridge não
conseguia ouvir a primeira-ministra - mas que importância é que
isso tinha, elas continuavam de mãos presas, num acto de
homenagem ou mesmo - vá-se lá saber - curativo, o que, para
Judy, era uma excitante novidade, e, para a primeira-ministra,
uma rotina profundamente familiar. Estavam ambas bastante
bêbedas e quase poderia parecer que se tinham envolvido numa
acesa discussão, já que as suas mãos andavam numa agitação
para cá e para lá, para lá e para cá, ao mesmo tempo que as
suas vozes se erguiam bem sonoras. Havia qualquer coisa na
primeira-ministra que parecia significar que ela teria preferido
uma discussão - era nisso que ela era melhor - e, mal Judy se
retirou, recuando às cegas, o corpo quase agachado numa vénia,
a primeira-ministra pegou no seu copo de whisky vazio e bateu
com ele na perna do Monstro da Vaidade.
De todas as coisas que poderia ter feito, aquela era, sem dúvida,
a mais simples - Nick avançou e sentou-se na beira do sofá,
quase ajoelhado, de facto, como um actor fazendo uma
declaração de amor numa peça de teatro. Fitou deleitado o rosto
da primeira-ministra, toda a sua cabeça, aquilina e coroada, que
via como uma bela,

430

ainda que improvável, fusão do Vorticismo com o Barroco. Ela


retribuiu o sorriso com uma certa rapidez animal, um desafio
azul muito vivo. Surgiu a branda ofuscação do flash - duas vezes -
três vezes - uma cintilante noção da magnitude do momento, a
cintilação flutuando nos olhos como um borrão de sombra, o seu
coração correndo rápido sem nenhuma necessidade especial de
coragem enquanto, com um sorriso arreganhado, a convidava: -
Primeira-ministra, quer dar-me a honra de uma dança?
- Sabe, aí está uma coisa de que eu gostaria muito - disse a
primeira-ministra, com os seus tons de peito, o contralto da
convicção. À volta dela, os homens trocavam risinhos
desdenhosos e horrorizavam-se perante uma audácia que os
ultrapassara. Nick ouvia todo o episódio acumulando já o seu
comentário, a sua história, enquanto saía da sala com ela no
meio de esgares de surpresa, da súbita mudança do centro de
gravidade, um efeito que nenhum deles poderia ter causado e a
que nenhum deles era capaz de resistir. Quanto à reacção dele,
traduzia-se por um sorriso, a cabeça um nada baixa, um nada de
lado; ignorava todos os presentes, intimamente preso ao que a
primeira-ministra lhe dizia e à brilhante ousadia das suas
réplicas. Outros seguiram-nos ao longo das escadas de pedra e
do corredor iluminado pelas lanternas; queriam observar todos
os passos e desempenhar os seus papéis secundários. - Não é
todos os dias que se é convidada para dançar por um professor
universitário - disse a primeira-ministra. E Nick deu-se conta de
que Gerald não tinha entendido nada de nada: ela movia-se no
seu próprio, e acelerado, elemento; na sua própria, e
engrinaldada, perspectiva, ela estava-se positivamente
borrifando para as marcas dos quadros no papel de parede ou
para as portas da frente azuis, ela não reparava em nada e, no
entanto, a sua memória registava tudo.
Quando entraram na tenda, havia na pista de dança uma
actividade escassa, se bem que febril, ao som de Get Off Of My
Cloud. Gerald saracoteava-se com uma Jenny Groom
determinada, enquanto Barry arrastava Penny pela pista num
cambaleante abraço. Rachel, dançando sedadamente com Jonty
Stafford, tinha um ar de uma polidez exaurida. E foi então que
Gerald viu a primeira-ministra, o seu ídolo, que dissera, uns
minutos antes, que não dançaria, mas que agora, depois de mais
alguns whiskies, se fazia à pista de dança, num jeito
particularmente sexy, com Nick a seu lado.

431

Todo o treino de Nick com Miss Avison reemergiu num instante,


tão acessível e fácil como a tabuada do doze, o ágil jogo de pés,
a mão, não mais que uma pena no braço da dama; se bem que,
com ele, tenha surgido também uma vivacidade mais intensa, a
sensação de que poderia desatar a pular ao longo de toda a pista
com a primeira-ministra, esbaforida, nos seus braços. De
qualquer modo, Gerald não tardou a pôr um ponto final em tudo
isso.
Estavam os três na casa de banho de Nick, algures nas águas-
furtadas, Wani mascando e fungando, quase tremendo como
alguém que está doente. Tinha um ar de desalento esgazeado; de
alguém que, vendo-se perdido, não pára de correr. Disse que
estava bem, que nunca se tinha sentido melhor. Concentrou-se
na tarefa de desdobrar o quadrado da revista Fórum e, depois,
tratou de raspar todo o pó do escuro monte-de-vénus da rapariga.
Nick sentou-se primeiro na beira da banheira, depois na
banheira, de través, com as pernas dependuradas, e observou
Tristão concentrando-se para uma mijadela que nunca mais
vinha.
- Não deites isso fora - disse Wani; era uma das suas pequenas
brincadeiras.
Tristão fez um ruído de rejeição com a língua e disse: - Ele gosta
disso.
- Eu sei - disse Nick.
- Eu sei onde eu vejo você agora - disse Tristão, deitando fora
apesar de tudo, e puxando o autoclismo. Enquanto lavava as
mãos, pôs-se a falar para o espelho. - É na festa dos anos de Mr.
Toby. Na casa grande, muito grande. Há muito tempo.
- Exacto - disse Nick, erguendo-se não sem algum esforço e
tirando o casaco. Tristão despiu também a sua casaca, como se
houvesse um acordo quanto ao que iam fazer. Nick não resistiu a
sorrir dessa certeza instintiva.
- Tu vens à procura de mim, na cozinha. Penso que estavas muito
bêbedo.
- A sério? - disse Nick, num tom distraído.
- Depois eu sinto-me muito mal porque digo que me encontro
contigo mais tarde, e eu nunca vou.
- Nós sabemos porquê - disse Wani.

432

- Não te preocupes - disse Nick. - Estou certo de que também me


esqueci.
Tristão pôs uma mão no ombro de Nick e Nick compreendeu e
tirou a carteira e deu-lhe vinte libras. Tristão inclinou o rosto e
enfiou a longa e grossa língua na boca de Nick. Beijou-o
metodicamente durante dez segundos, após o que recolheu a
língua e virou-lhe as costas. Wani não tinha reparado em nada,
ocupado como estava com o monte de coca. Tristão pôs-se a
espreitar por cima do seu ombro. - Eu meto-me em grande sarilho
por causa disto - disse.
- Não há sarilho nenhum - disse Wani. - Não poderia ser mais
seguro. A casa está cheia de polícias.
- É, quer dizer, com o meu patrão. É só uma pausa curta, certo?
- Tu é que sabes, vê lá o que é que queres - disse Wani,
procurando a braguilha do criado sem olhar para trás.
- Como é que é? É preciso mais dinheiro? - disse Nick.
- Foda-se, ainda agora lhe dei cinquenta libras - disse Wani, num
tom arrastado mas sonoro.
Tristão pôs-se a andar de um lado para o outro, até que parou de
novo em frente ao espelho. E perguntou: - Então não trazes tua
mulher contigo para a festa?
- Ela não é a porra da minha mulher, sua puta - retorquiu
jovialmente Wani.
Tristão sorriu para Nick. - Eu vi-te a dançar com a grande
senhora esta noite - disse. - Os dois todos mexidos. Acho que ela
gosta de ti.
A cabeça de Wani empinou-se numa única gargalhada. - Da
próxima vez que a vir, vou perguntar-lhe o que é que ela achou de
Nick.
- Então tu, um bom amigo dela, não és? - disse Tristão e, uma vez
mais, sorriu com todos os dentes para Nick.
- Um amigo fodido de bom - disse Wani, picando o pó bem
picadinho, seguindo com um olhar atento o seu trabalho. - Um
amigo do melhor... Já está... - Virou-se, os olhos esbugalhados. -
Mas diz-me lá, tu não gostas dela? Não é mesmo uma beleza,
aquela mulher?

433

Tristão pôs um ar de quem não estaria muito convencido. - É, ela


OK. ok para mim, de qualquer modo. Montes de festa, montes de
dinheiro. Montes de gorjeta. Cem libra. Duzentas libra...
- Deus meu, mas que puta - disse Wani.
Nick foi até ao lavatório e bebeu dois copos de água. - Preci-iiiso
de uma li-iiinha - cantarolou. Estavam todos frenéticos agora,
não conseguiam esperar nem mais um segundo, confortados pela
magnífica e quase entorpecente perspectiva de que ainda tinham
uma quantidade imensa de droga. Aquilo estava para lá do
prazer, aquilo era o seu próprio motor, pura compulsão, ainda que
lhes proporcionasse a ilusão da escolha, é uma ilusão de
inteligência, de agudeza de espírito, pelo facto de o fazerem.
Tristão baixou-se para snifar a sua linha e Wani apalpou-lhe a
picha e Nick o cu. - É bom material? Então onde vocês arranjam
este material? - disse recuando, escapulindo-se por um instante
às mãos dos outros, snifando vorazmente.
- Quem mo fornece é Ronnie - disse Wani. - É esse o seu nome.
Ah, já está melhor - apertando as narinas. - Adoro o Ronnie. É o
meu melhor amigo. Para dizer a verdade, é o meu único amigo.
- Tirando a primeira-ministra - disse Nick.
Tristão pôs pela primeira vez um enorme sorriso superior. Uma
dúzia de decisões estavam já a ser tomadas e o beneficiário era
ele. Disse: - Pensava que ele é teu melhor amigo. Ele, Nick. Não?
- Nick? Oh, não passa de uma puta - disse Wani. - Tira-me o meu
dinheiro.
Nick espreitou para eles a meio da sua linha. - O que ele quer
dizer é que é o meu patrão - disse com inevitável pedantismo.
- É, fazes cá um trabalho...! Um trabalho do caralho...! - disse
Wani.
- Por acaso esse é um dos trabalhos que eu faço - retorquiu Nick
num tom insolente.
- O quê, trabalho do caralho} - disse Tristão e desatou a rir-se que
nem um idiota.
- Seja como for... - disse Nick -...ele é milionário, portanto...

434

- Eu sou milionário - disse Wani, com uma espécie de carranca


afectada. - Vá, chegou a vez de fazeres o teu número - disse ele
para Tristão.
- Que número? - disse Nick.
- Já vais ver - disse Wani.
- Espero que as droga não põe minha picha mole - disse Tristão.
- Se a tua picha ficar mole, quero a porra do meu dinheiro de
volta - disse Wani.
Tristão deixou cair as calças e as cuecas e sentou-se na beira da
pequena cadeira de palhinha. A picha, pesada e escura, pendia
mole. Enfiou as mãos por dentro da camisa, fê-la subir acima das
costelas, prendeu os mamilos entre dois dedos e fê-los girar para
a direita e para a esquerda. - Queres ajudar? - disse.
Contrariado, Wani pôs-se atrás dele e curvou-se para observar a
evolução enquanto beliscava e incitava os mamilos do criado
entre o dedo do meio e o polegar. Tristão suspirou, sorriu,
mordeu o lábio ressequido. Olhou para baixo com um ar absorto,
como se, para ele, aquilo fosse sempre um prodígio, e a sua
picha despertou e engrossou e, numa sucessão de espasmos,
avançou langorosamente ao longo da sua coxa antes de flutuar
livre, também ela com um sorriso rosado mal a pele deslizou um
pouco para trás. - Tudo se resume a isto - disse Wani.
- O quê? É só isto? Já está? - disse Nick.
- Gostas? - disse Tristão, cujo rosto pareceu a Nick, de súbito,
sôfrego e estranho. Claro que o pénis dele era a ideia latente da
noite, daquela pequena e estranha cena, uma ideia perseguida e
depreciada, dissipando-se no fim como um amplo e estúpido
facto. Nick disse:
- Então quer dizer que já tinhas visto isto antes?
- Oh, ele quer sempre isto - disse Tristão.
Wani ajoelhou-se, tentando desajeitadamente fazer justiça à
coisa que queria sempre. Tinha as calças desabotoadas, mas o
seu pequeno pénis, deprimido pelo bombardeamento ou pela
tempestade de coca, estava todo engelhado, quase escondido.
Wani estava perdido, para lá da humilhação - era para isso que se
pagava. Snifava enquanto lambia e chupava, e um ranho
brilhante, manchado de sangue e pó não dissolvido, escorria do
seu célebre nariz para o baixo-ventre do criado.

435

Como era óbvio, o criado nunca se deixava chegar a tais


extremos; o exemplo de Wani servira-lhe para aprender o perigo.
Agora, mostrava-se muito conversador, como se estivesse entre
amigos. Apontou para Wani com a cabeça e disse: - É aí que eu
vejo ele a primeira vez. Festa de Mr. Toby. Ele dá-me a coca e eu
como-lhe o buda.
- O Buda...? Ah, estou a ver, a bunda. - Nick sorriu com
uma bizarra mistura de frieza e hilaridade, um certo respeito pela
perversão, por muito penosa que ela fosse. Observou as mãos de
Tristão deslizando por entre os caracóis negros do seu amante:
algo que ele fazia num jeito despreocupado, paciente, familiar,
quase como se Wani não estivesse a fazer-lhe um broche, como
se ele fosse uma qualquer criança bela e mimada que correra
para o meio dos adultos, desejosa de elogios e confiante em que
iria recebê-los.
Tristão afagava-lhe o cabelo e sorria um sorriso imenso e
elogiava-o. - Ele paga sempre o melhor.
- Ah, isso de certeza! - disse Nick e tirou um preservativo do
bolso.
- Cá vamos nós - disse Tristão.
Lá em baixo, a primeira-ministra estava de partida. Gerald
dançara com ela durante quase dez minutos. Havia nele o fulgor
da intimidade e a leveza do êxito enquanto, indiferente à chuva, a
acompanhava ao carro. Foguetes subiam ainda nos ares, como
bombas e tiros de espingarda, e, por um momento, ambos
olharam para cima. Rachel deixou-se ficar à porta, com Penny
atrás dela, enquanto Gerald, substituindo-se ao agente da polícia
secreta, se baixava e fechava a porta numa vénia involuntária,
mas feliz. Agulhas reluzentes de chuva caíam nos candeeiros da
rua quando o Daimler arrancou com um ruído que quase parecia
um brusco suspiro.

436

O FIM DA RUA
(1987)

13.

Nick foi votar cedo e deu boleia a Catherine. Ela estava a pé


desde as seis porque quisera ver o pai no programa Good
Morning Britain. Durante o longo mês da campanha eleitoral,
Catherine recusara-se a ver televisão mas, agora que Gerald e
Rachel tinham ido para Barwick, parecia incapaz de fazer outra
coisa.
- Que tal é que correu? - quis saber Nick.
- Foi só um minuto. Disse que os Tories tinham conseguido baixar
a taxa de desemprego.
- Essa é boa.
- É como Lady Tipper, quando diz que os anos 80 foram uma
década maravilhosa para a criadagem.
- Bom, já falta pouco para acabar.
- O quê? Ah, pois, as eleições. - Catherine pôs-se a fitar a chuva
miúda. - Os anos 80 vão continuar para sempre.
No longo túnel de árvores da Holland Park Avenue, era como se o
alvorecer houvesse sido adiado, apesar de estarem no pico do
Verão e de o sol ter nascido umas boas horas antes. Estava
precisamente aquele tipo de tempo que os políticos mais
temiam, visto que desencorajava a ida às urnas.
- A reeleição de Gerald é mais que certa, não é? - disse Nick. Em
Kensington Park Gardens, ninguém fora capaz de formular tão
simples pergunta.

439

Catherine pareceu erguer os olhos dos abismos da sua


depressão para contemplar um impossível consolo. - Seria
demasiado maravilhoso se ele não ganhasse...
Na secção de voto, entregaram os cartões à presidente da mesa,
que sorriu e corou quando viu o nome Fedden e a morada. Nick
achou que a mulher não tinha razões para se mostrar tão
confiante naqueles dois eleitores. Em 1983, o voto de Catherine
fora nulo e, desta vez, prometia votar no candidato do Movimento
Vegetariano e Visionário Anú-Yuppie. Nick demorou-se um
momento na cabina de contraplacado, o grosso lápis hexagonal
girando nos seus dedos. O acto de votar dava-lhe sempre um
acrescido sentimento de irresponsabilidade. Estavam na ampla
sala de aulas de uma escola primária, com desenhos de crianças
e um vasto e invulgar alfabeto (N era para Nanny, K para Kiwi)
espalhados pelas quatro paredes. Hoje, crianças e professores
tinham um feriado imerecido. Por um instante, Nick relanceou as
inúmeras pequenas regras e rotinas daquele local e sentiu-se
dominado por uma disposição negligente, por um irreprimível
desejo de cabulice. Além do mais, aquilo que acontecia na
cabina era um segredo eterno. O lápis saltou por cima dos
candidatos do Partido Trabalhista e da Alliance(1) e deteve-se no
homem dos Verdes. Foi nesse quadradinho que, com o sobrolho
muito franzido, desenhou a sua cruz. Sabia que o candidato do
Partido Conservador tinha a vitória assegurada.
Nalguns quadrantes, porém, havia dúvidas, e considerava-se que
os Trabalhistas tinham feito uma óptima campanha. O próprio
Nick achara os seus anúncios nos jornais muito mais
espirituosos do que os dos Tories. «Na Grã-Bretanha, os pobres
ficaram mais pobres e os ricos... bom, os ricos ficaram com os
Conservadores» - deste slogan até Gerald se rira. De um modo
geral, Gerald pensava que a campanha fora sobrestimada a nível
nacional, e que, nos círculos eleitorais, fora uma seca de todo o
tamanho, ou mesmo contraproducente. «Sabes, a melhor coisa
que eu podia ter feito a 11 de Maio, quando foram convocadas
eleições, era ter partido para um mês de férias

*1. SPD-Liberal Alliance, aliança eleitoral do Social Democratic


Party e do Liberal Party que se manteve no Reino Unido entre
1981 e 1988, altura em que os dois partidos se juntaram para
formar um novo movimento, os Social and Liberal Democrats
(posteriormente referidos apenas como Liberal Democrats). (N.
do T.)

440

não interessa onde», disse ele, certo dia, a Catherine. «A melhor


solução teria sido um safari.» Ficou farto - fartíssimo - dos
comentários da filha, que insistia que aquelas eleições eram
disputadas única e exclusivamente na televisão. «Não percebo
por que raio é que estás sempre a bater nessa tecla, Puss», disse
ele, sondando o espelho da sala de entrada, antes de uma
«oportunidade para uma foto» para o jornal local. «Todas as
eleições são disputadas na TV. E acho muito bem. Significa que
um tipo não tem de ir aos sítios para falar com os eleitores. Se
um tipo vai aos sítios e faz comícios e fala com os eleitores, o
que é acontece? Acontece que os eleitores se chateiam de
morte porque já ouviram tudo na TV.
- Humm, se calhar é precisamente por isso», retorquiu
Catherine).
Ficou surpreendido com a escassez dos convites para aparecer
na televisão; de facto, esperava mais convites dos principais
programas e uma presença mais assídua nas conferências de
imprensa televisionadas, onde a Dama em pessoa mantivera uma
incansável predominância. O seu ponto alto fora uma emissão do
programa Question Time, da BBC1, onde substituíra à última
hora o indisponível Ministro da Administração Interna; embora
em representação do ministro, Gerald assumira, sem sombra de
dúvida, o seu próprio e muito peculiar estilo. Com um charme que
roçava o untuoso, fartou-se de brincar com o moderador, o
jornalista Robin Day, que conhecia de ocasiões sociais, e isso
irritou o porta-voz para a Defesa dos Trabalhistas, envolvido
numa árdua batalha pelo desarmamento nuclear. Nick e Rachel
viram o programa em casa. Encaixado no ecrã do televisor da
sua própria sala de estar, Gerald parecia um absoluto
desconhecido, ora engordado, ora adelgaçado, pelas luzes do
estúdio. Incapaz de disfarçar o tédio, punha-se a brincar com a
sua caneta de tinta permanente enquanto os outros
participantes falavam. O lenço no bolso do casaco ondeava
nervoso como a chama de um archote. Pronunciou-se a favor da
Europa, tanto mais que, disse, tinha uma casa em França onde
costumava passar o Verão. Disse ainda acreditar que havia
dezenas de milhar de empregos disponíveis - o problema era que
as pessoas não se davam ao trabalho de os procurar (por entre
gritos de «Tenha vergonha!», que ele adorou). Uma rispidez
acerada e um antagonismo infantil eram os pontos fortes do
programa, e também a sua limitação. Por uma ou duas vezes,
Rachel desatou a rir-se num tom afectuosamente depreciativo.

441

Diante das câmaras, a mistura muito particular de indolência e


ambição que caracterizava Gerald parecia redundar numa
arrogância brutal. Um membro do público, que fazia lembrar
Cecil, o arremessador de galochas de Barwick, acusou-o de ser
demasiado rico para se preocupar com as pessoas normais; é
certo que Gerald contestou energicamente tais acusações; no
entanto, o seu rosto afogueado revelava que, no fundo, as sentia
como uma espécie de aclamação.
Quando chegou a hora de fazer campanha em Barwick, Gerald
considerou que aquelas eram as eleições em que menos tinha de
se esforçar. Troçava das sondagens. Todos os círculos eleitorais
do Northamptonshire eram baluartes conservadores - incluindo
Corby, com as suas siderurgias fechadas. «Até os
desempregados sabem que ficam muito melhor connosco», dizia
Gerald. «De qualquer modo, agora têm um computador lá na sede
em Barwick. Claro que primeiro têm de descobrir como é que
aquilo funciona, mas, logo que descubram, estarão em condições
de localizar todos os instáveis indecisos. Depois, é simples:
bombardeiam-nos com material.» «Que material?», quis saber
Catherine. «Ora, que material... Com fotografias minhas!»,
respondeu Gerald. Nick perguntava-se se este tom descuidado
não seria uma maneira de se preparar para uma eventual
derrota. Na última semana da campanha, surgiu uma coisa que
ficou conhecida como Wobbly Thursday(1). No Central Office,
toda a gente entrou em pânico. As sondagens mostravam que os
Trabalhistas continuavam a subir. Toby comentou que o pai
parecia muito despreocupado.
- Uma pessoa - replicou Gerald -tem apenas de cultivar a
qualidade que Monsieur Mitterrand atribuiu à primeira-ministra e
que, segundo ele, é a suprema virtude política.
- Ah sim, e que qualidade é essa? - disse Toby.
- A indiferença - disse Gerald num tom quase inaudível.

*1. «Quinta-feira tremida» pode ser uma das traduções. Uma


semana antes das eleições de 1987, uma sondagem do The Daily
Telegraph revelava que o avanço dos Conservadores em relação
aos Trabalhistas baixara para uns escassos 4%. Mrs. Thatcher,
manifestamente preocupada, entregou então a direcção da
campanha conservadora ao «guru» da publicidade Tim Bell. Este
lançou uma campanha publicitária nos jornais que, numa só
semana, custou dois milhões de libras. A mensagem da
campanha era simples: «A Grã-Bretanha voltou a ser grande. Não
deixe que os Trabalhistas dêem cabo dela.» (N. do T.)

442

- Certo... - disse Toby; e, logo a seguir, com uma certa


persistência manhosa: - Mas eu pensava que ela até já andava a
amarinhar pelas paredes!
- A amarinhar pelas paredes? Que disparate!
- É como o jogo dos advérbios - disse Catherine. - Tarefa:
amarinhar pelas paredes. Modo: Indiferentemente. - Perante o
que Gerald abandonou a sala com um sorriso compadecido, a fim
de ir ditar o seu diário.
No escritório, depois de ter dado uma vista de olhos ao correio,
Nick resolveu ditar umas quantas cartas a Melanie. Na ausência
de Wani, afeiçoara-se a essa prática; constatara, aliás, que era
capaz de improvisar longas e elásticas frases, férteis em
sugestões e choques sintácticos, a exemplo do que fizera o velho
Henry James, o qual, como era sabido, não escrevera pela sua
própria mão os seus mais difíceis romances, antes os ditara a
dactilógrafos enquanto deambulava pela sala. Melanie, que
estava habituada aos avaros memorandos de Wani, e mesmo a
adornar a substância de uma carta com as suas próprias
palavras, deitava a língua de fora num esforço de concentração
enquanto passava para o papel os antiquados períodos e os
desconcertantes pontos e vírgulas de Nick. Hoje, Nick estava a
responder a duas bichas americanas que, para além de serem
muito ricas, tinham uma companhia produtora de filmes talvez
tão fictícia, tão nominal, como a Ogee, e que mostravam algum
interesse pelo projecto de The Spoils of Poynton - se bem que
com fortes reservas no que tocava à intriga. As bichas
americanas achavam que o argumento precisava de uma
injecção de sexo - «montes de marmelada e montes de acção»,
para citar Lord Ouradi. Quanto às bichas propriamente ditas, os
seus nomes - Treat Rush e Brad Craft - faziam pensar mais em
actores pornográficos do que em produtores de cinema. - Caros
Treat e Brad - começou Nick: - Foi com não pouco interesse que
nos debruçámos sobre as vossas mais recentes propostas
vírgula com a sua vírgula para nós vírgula tão pronunciadamente
abrir parênteses de facto vírgula tão surpreendentemente fechar
parênteses novel visão da abrir aspas sexualidade fechar aspas
no argumento de itálico S maiúsculo Spoils ponto e vírgula...

443

Um pequeno alvoroço à porta, Simon ergueu os olhos dos seus


papéis, levantou-se para ver o que era, Melanie arrumou o bloco
de notas. Uma rapariga negra com o cabelo cortado rente, como
um rapazinho, embora bem fornecida de seios, e, ao lado dela,
uma mulher branca escanzelada... normalmente era engano; ou
então eram miúdos ou miúdas que andavam na sua lida diária, a
vender Walkmans ou CDs baratos. Triste, sem dúvida, mas era a
realidade; não havia muita gente a entrar por sua própria
iniciativa nos escritórios da Ogee. Melanie voltou entretanto. -
Oh, Nick, é uma tal... hum... Rosemary Charles, diz que quer falar
consigo. Que desagradável... - Melanie exibia os seus próprios
tiques pedantes, uma parte dos quais em jeito de pedido de
desculpa, os outros em tom de censura, ficou parada no meio do
caminho, os ombros do casaco espetados, os saltos de estilete,
de tal forma que Nick teve de se recostar na sua cadeira para
contornar o obstáculo, para dominar toda a extensão do
escritório, e com uma visão das duas palavras, Rosemary
Charles, saltitando no ar, imponderáveis signi-ficantes que foram
ganhando, ao longo de vários e estranhos segundos, uma
gravidade e uma soturnidade específicas. Levantou-se,
encaminhou-se na direcção dela, dela e da outra mulher, a qual
parecia estar ali como testemunha da confusão de Nick. Era uma
vertigem momentânea, como se, por um segundo, o corrimão
tivesse desaparecido do alto das escadas. Ofereceu-lhes um
sorriso de boas-vindas e mostrou um interesse adequado, isento
de frivolidade, pela ocasião, e... bom, julgava saber por que razão
tinham vindo, enfim, mais ou menos. Sentia que qualquer coisa
próxima da culpa se revelava no seu fingimento de que não se
sentia culpado. Apertou a mão de Rosemary e fitou-a com um
prazer e uma curiosidade toleráveis: a imagem dela permanecia
clara na sua memória, apesar dos quatro anos que entretanto
haviam passado, aquela imagem de uma rapariga bonita e fofa
com uns olhos matreiros: e, agora, ali estava ela, uma mulher
bela, revelada, a chuva miudinha prateando a penugem que lhe
cobria o crânio, os maxilares espetados num tenso meio sorriso
de surpresa, o mesmo meio sorriso que o seu irmão oferecera a
Nick quando, certa manhã, resolvera visitá-lo sem avisar.
- Sim, olá - disse ela, com uma sugestão de hostilidade, talvez
não mais do que a áspera nota que marcava a determinação que
a levara ali.

444

Claro que ela também andava à procura de Nick, ao longo


daquele túnel de quatro anos: como ele era e como ele mudara. -
Esta é Gemma.
- Olá - disse Nick num tom caloroso. - Nick.
- Espero que não se importe com a nossa visita - disse Rosemary.
- Fomos a sua casa. A mulher que nos atendeu disse-nos que
estava aqui.
- É maravilhoso vê-la de novo! - disse Nick, e apercebeu-se de que
a frase fora sentida pelas duas mulheres como uma
contrariedade inesperada. Havia nelas qualquer coisa de temível,
com aquele mutismo relativamente ao objectivo da visita, com
aquele ar de mútuo apoio face a um desafio que era muito mais
tremendo do que todos os desafios que Nick jamais poderia
colocar-lhes. - Entrem, entrem.
Gemma olhou atentamente à sua volta. - Há algum sítio mais
privado onde possamos falar? - disse. Era do Yorkshire, mais
velha que Rosemary, olhos azuis, cabelo pintado de preto, T-shirt
preta e jeans pretos e botas Doe Martens.
- Claro - disse Nick. - Talvez seja melhor subirmos... Fê-las sair do
escritório e entrar de novo no edifício e subir por
fim ao apartamento, com um sorriso responsável que ameaçava
deformar-se num sorriso falsamente satisfeito, como se se
sentisse muito orgulhoso do seu apartamento kitsch e do efeito
que eventualmente produziria nas duas mulheres. O próprio Nick
estava a ver todo o apartamento com um novo olhar. Sentaram-se
na biblioteca, que era uma experiência revivalista do revivalismo
georgiano.
- Olha-me só para isto... Tantos livros... - disse Gemma. Na
mesinha, como na sala de leitura de um clube, estavam
espalhados todos sos jornais do dia. ponham-na na rua, suplicava
o Mirror. TRÊS vezes uma dama, berrava o Sun(1).
- É por causa de Leo - disse Rosemary.
- Bom, foi o que eu pensei...
Rosemary baixou a cabeça, os olhos fixos no chão; não se sentia
à vontade na sala, na beira do sofá; depois, fitou-o durante
breves segundos. Disse: - Bom, sabe, o meu irmão morreu, foi há
três semanas.

*1. Three Times A Lady, de Lionel Richie, tinha sido, poucos anos
antes, número um no top de vendas britânico. (N. do T.)

445

- Nick escutou as palavras e deu-se conta de como a cor


antilhana e a exactidão do seu tom reivindicavam aquilo como
algo de privado. Aquele fora também um dos tons de Leo: o
cockney era para quando estava à defesa; o jamaicano,
crepitante, ardente, era para o prazer, mas só algumas vezes,
raro e belo como o seu enrubescimento negro.
- Quase quatro semanas, minha querida - disse Gemina, com uma
nota muito particular de desolada solidariedade. - Sim, 16 de
Maio. - Olhou para Nick como se a diferença de dias o tornasse
mais culpado, ou imprestável.
- Sinto muito - disse Nick.
- Estamos a tentar contactar todos os seus amigos.
- Bom, porque, você sabe... - disse Gemma.
- Todos os seus amantes - disse Rosemary num tom firme. Nick
lembrou-se de que ela era, ou fora, recepcionista num
consultório médico; estava habituada aos factos. Abriu o fecho
da mochila, procurou qualquer coisa. Nick achou que os protegia
a ambos, aquela atenção rígida às coisas práticas; Nick retraíra-
se perante a assustadora solenidade do que ela acabava de lhe
dizer, e Rosemary também se encolhera perante o poder das
suas palavras, ainda que elas (era o que parecia a Nick)
apresentassem agora, aos olhos da jovem, uma certa brandura
ou insipidez, por via do uso, pelo facto de afirmarem algo que,
todos os dias, deixava de ser uma novidade para se tornar uma
realidade conhecida. Com uma nota de boas maneiras que o fez
regressar àquele encontro em casa dela, quatro anos antes, Nick
perguntou:
- A sua mãe, como está?
- Bem - disse Rosemary. - Bem...
- Ela tem a sua fé - disse Gemma.
- Tem a igreja - disse Nick -, e também a tem a si.
- Bom... - disse Rosemary. -Sim, tem.
A primeira coisa que Rosemary lhe entregou foi um pequeno
sobrescrito creme endereçado a Leo, o nome e a morada em
maiúsculas verdes. Sentiu que o conhecia e que não o conhecia,
como uma carta encontrada num velho livro. O carimbo dos
correios dizia 2 de Agosto de 1983. Ela acenou com a cabeça e
Nick abriu-o, os olhos de Gemma e Rosemary presos aos seus
movimentos; era como aprender um jogo novo e ter de aceitar
desportivamente a derrota.

446

Desdobrou uma pequena carta escrita na sua melhor caligrafia e


a foto escapuliu-se e foi cair-lhe no colo. - Foi assim que
soubemos onde poderíamos encontrá-lo - disse Rosemary. Nick
enviara a foto no sobrescrito em branco para a revista Gay
Times, duvidando que ela pudesse sobreviver, duvidando que os
seus desejos pudessem ganhar forma e direcção, e, na revista,
alguém com uma esferográfica verde enviara-a ao interessado:
Nick estava a ver a história da sua acção, e a vê-la tal e qual
como o próprio Leo a vira, mas de uma forma distante e
completa. Pegou na foto com a cautelosa curiosidade que
dedicava à pessoa que ele fora. Era uma fotografia de Oxford, um
quadrado com o tamanho de uma foto de passaporte, recortado
de uma foto de grupo: o rosto de um rapaz numa festa, um rapaz
que, de algum modo, confia o seu segredo à câmara. Olhou só de
relance para aquilo que escrevera no papel timbrado dos Fedden
- o tamanho pequeno, claro, o tamanho usado para
agradecimentos sociais, visto que não tinha muito para dizer. A
letra parecia-lhe estranha, estudada, embora se lembrasse dos
elogios de Leo: «Olá!», era assim que começava a carta, visto
que, obviamente, nessa altura ainda não sabia que Leo se
chamava Leo. A travessa do H(1) enroscava-se sob as duas
hastes como a cauda de um cão. Reparou que mencionara
Bruckner, Henry James, todos os seus Interesses - com muita
ingenuidade, sem dúvida, mas isso não tivera a menor
importância; de facto, enquanto estiveram juntos, os seus
Interesses nunca mais voltaram a ser mencionados. Ao cimo da
página, as anotações de Leo, a lápis: Bonito. Rico? Demasiado
jovem? Mais tarde, por cima destas palavras, Leo riscara, a
vermelho, um firme V aprovador.
Nick dobrou a carta, espreitou as duas mulheres. Foi a presença
de Gemma, a estranha naquela sala, que o levou a ganhar
consciência do que se passava; por um minuto, sentiu-a como à
ocorrência da morte propriamente dita. Gemma não o conhecia,
mas sabia da carta, da sua ligação com Leo, do jovem e
inexperiente Nick de quatro anos antes, e a timidez e o
ressentimento dele não valiam rigorosamente nada na nova
atmosfera moral, como a atmosfera de um hospital, em que tudo
era descoberto e os medos

*1. No original, o «H» de Hello! (N. do T.)

447

eram justificados como diagnósticos. Disse: - Gostaria muito de o


ter voltado a ver.
- Ele não queria que as pessoas o vissem - disse Rosemary. - Nos
últimos tempos, não queria.
- Certo... - disse Nick.
- Você sabe como ele era vaidoso...! - era um pequeno teste à sua
própria dor, uma ironia indulgente com um nada de sincera
irritação perante a dificuldade que era conviver com Leo, vivo ou
morto.
- Sim - disse Nick, e estava a vê-lo com a blusa da irmã. E a
perguntar-se se a camisa de homem que ela trazia não seria por
acaso de Leo.
- Tinha de andar sempre todo aperaltado.
- Tinha sempre um porte tão belo... - disse Nick, e o exagero, de
súbito, libertou-lhe os sentimentos. Tentou sorrir, mas sentia os
cantos da boca arrepanhados para baixo. Dominou-se com um
turbulento suspiro e disse: - Claro que eu já não o via há uns
anos...
- Certo... - disse Rosemary com um ar pensativo. - Sabe, nós
nunca sabíamos com quem ele andava.
- Não - disse Gemma.
- Você e o velho Pete foram os únicos que ele convidou para ir lá
a casa. Quer dizer, antes de Bradley, claro.
- Bradley? Não tenho ideia nenhuma... - disse Nick.
- O meu irmão partilhava um apartamento com ele - disse
Rosemary. - Você sabia que ele tinha saído de casa...
- Bom, eu sabia que ele queria sair de casa... Isso foi mais ou
menos na altura em que ele... Não sei ao certo o que se passou.
Nós deixámos de ver-nos. - Claro que não podia usar uma
expressão tão vulgar e acusatória como ele deu-me com os pés;
seria mesquinho e quase sem sentido perante a morte de Leo. -
Penso que achei que ele andava com outra pessoa. - Embora isto,
por si só, não fosse toda a verdade: essa fora a dolorosa história
que Nick contara a si mesmo, para dissimular a vaga noção que
tivera de uma outra história, muito mais terrível: Leo estava
doente. Mas sim, era verdade, Bradley também estivera
presente. Parecia um homem prático, robusto, com ombros
largos, não um artolas como Nick. i
- Bradley não tem estado bem, pois não? - disse Gemma.

448

- Sabia que o velho Pete tinha morrido... - disse Rosemary.


- Sim, sabia - disse Nick, e pigarreou.
- De qualquer modo, você está perfeitamente bem, meu caro
- disse Gemma.
- Sim, estou perfeitamente bem - disse Nick. - Estou óptimo. -
Elas olharam para ele como inspectores da polícia à espera de
uma confissão ou de uma mudança de ideias. - Tive sorte. E,
depois, tive... cuidado. - Arrumou a carta na mesa, levantou-se.
- Bebem um café? Ou outra coisa qualquer? - Gemma e Rosemary
ponderaram a oferta e, por um momento, pareceram relutantes
em aceitar.
Na cozinha, pôs-se a olhar pela janela enquanto a água aquecia
na chaleira. A chuva caía fina e prateada contra os sombrios
arbustos do jardim e as traseiras de tijolo das casas da rua
vizinha. O seu olhar fixou-se nas janelas, familiares, mas
desconhecidas. Numa sala de estar cheia de luz, uma criada
aspirava. Ao longe, o grito muito sumido de uma ambulância. Até
que a chaleira desatou a latejar e a assobiar.
Levou o tabuleiro do café para a sala. - Tudo isto é tão triste
- disse. Sempre encarara a locução «tudo isto» como uma
expressão superficial, insignificante, mas, agora, o seu efeito
ultrapassava, de longe, o de um mero eufemismo polido. Parecia
rodear o horrendo facto com uma sombra de presciência, e,
portanto, de aceitação.
Rosemary ergueu as sobrancelhas, franziu os lábios. Havia nela
qualquer coisa de obstinado e Nick pensou que talvez fosse
apenas uma variedade coriácea e corajosa de timidez, ao
contrário da sua própria timidez, que se dissipava em lisonja e
evasão. - Então quer dizer que conheceu Leo através de um
anúncio no jornal? - disse ela.
- Sim, exacto - disse Nick, visto que, obviamente, ela sabia disso.
Nunca soubera ao certo o que pensava daquele tipo de
encontros; seria uma maneira lamentável, indigna, de conhecer
alguém? Ou, pelo contrário, uma maneira engenhosa,
interessante? Também não fazia ideia do que pensariam as duas
mulheres (Gemma ofereceu-lhe um sorriso suspiroso). - Foi uma
sorte, uma sorte maravilhosa, ele ter-me escolhido - disse Nick.

449

- Certo... - disse Rosemary com um sarcasmo de irmã, o qual,


provavelmente, não era sarcasmo nenhum, mas sim a sugestão
de que talvez fosse melhor ele deixar de se gabar da sua sorte.
- Quer dizer, ele teve centenas de respostas.
- Bom, teve muitas, de facto. - Pegou de novo na mochila e tirou
um maço de cartas, apertado com um elástico grosso.
- Oh - disse Nick.
Rosemary tirou o elástico e enrolou-o na mão. Por um momento,
Nick sentiu que estava no consultório médico, ou então tratava-
se de uma consulta ao domicílio e as cartas eram as fichas dos
doentes que haviam solicitado os serviços da médica. Rosemary
era tão metódica e discreta quanto Leo. - Pensei que talvez
conhecesse alguns dos correspondentes do meu irmão.
- Oh, não sei...
- Assim, poderíamos entrar em contacto com eles.
- O que é que ele fez? - perguntou Gemma. - Saiu com eles todos?
Rosemary dividiu as cartas em duas pilhas. - Não quero andar
atrás de pessoas que já morreram - disse.
- O problema é esse! - disse Gemma.
- Não conto encontrar ninguém conhecido - disse Nick. - É muito
improvável... - Para ele, que acabara de saber da terrível notícia,
tudo aquilo era tão aridamente prático e organizado...
O curioso era que os sobrescritos tinham sido todos endereçados
a Leo na mesma caligrafia, em maiúsculas, a verde na sua maior
parte, mas também a roxo. Era como se um admirador louco
tivesse resolvido montar um verdadeiro cerco a Leo. O nome
repetia-se implacavelmente diante dos seus olhos. - Deve ter sido
uma sensação estranha, ter estas cartas na caixa do correio
uma quantidade de dias - disse. Muitas delas tinham selos do
exército, uma edição especial desse Verão.
- Ele dizia-nos que as cartas tinham a ver com uma coisa
qualquer relacionada com ciclismo, um clube de ciclismo ou lá o
que era - disse Rosemary.
- A bicicleta era o seu primeiro amor - observou Nick sem saber
se dissera um mero gracejo ou a dolorosa verdade. - Uma atitude
inteligente da parte dele.
- Estas aqui, creio que não lhes respondeu. Têm uma cruz.
- Até houve uma mulher que lhe escreveu - disse Gemma.
De maneira que Nick começou a ver as cartas, sabendo que seria
inútil, mas coibido pela necessidade de honrar a dor de
Rosemary ou de lhe satisfazer um capricho. Via-a agora como
uma fanática da formalidade, por muito indesejada que esta
fosse. Não precisava de as ler detalhadamente, mas as primeiras
duas ou três cartas suscitaram nele um misterioso interesse,
afinal, elas representavam os esforços privados dos seus rivais
desconhecidos. Dissimulou o seu interesse pondo uma cinzenta
máscara de concentração e abanando lentamente a cabeça
sempre que terminava uma carta. Lembrava-se ainda muito bem
dos termos do anúncio, em particular do tolerante intervalo de
idades: «dos 18 aos 40». «Olá!», escrevia Sandy, de Enfield,
«tenho quarenta e alguns, mas vi o teu pequeno e simpático
anúncio e, apesar disso, achei que era boa ideia responder-te!
Profissionalmente, estou no louco mundo dos artigos de
papelaria!» Uma foto de um homem na casa dos cinquenta, com
uma sólida constituição física, estava presa à página com um
clipe cor-de-rosa. Leo escrevera: Casa/Carro.Idade? E, um pouco
mais abaixo, certamente depois de ter estado com o homem:
Demasiado inexperiente. Glenn, «vinte e tais, a caminho dos
trinta», de Barons Court, era agente de viagens e mandara uma
Polaroid; estava em calções de banho no seu apartamento. Dizia:
«Adoro festas! E especialmente na cama! (Ou no chão! Ou a meio
de uma escada...!! Eh pá, cuidado que vou cair...!)» Demasiado?,
perguntava-se Leo, antes de ter feito a descoberta: Picha
invisível. «Caro Amigo», escrevia Ambrose, um jovem negro com
um ar sério, de Forest Hill. «Soa-me bem, o teu anúncio. Creio
que temos algum amor para partilhar.» Ambrose resistia o mais
possível aos pontos de exclamação, que davam às outras cartas
um ar de inane constrangimento; de facto, só no final da carta
escrevera «Paz!» Nick gostava do ar de Ambrose, mas Leo
escrevera: Passivo. Chato. Nick fez um furtivo esforço para
decorar a morada.
Mal acabava de ler uma carta, passava-a a Rosemary, que a
punha na mesa, com a frente para baixo, junto à cafeteira. A
sensação de jogo dissipou-se muito rapidamente com o seu
insucesso. A verdade é que os autores daquelas cartas eram,
todos eles, homens que haviam desejado o seu amante, que se
tinham candidatado à posição que só ele acabara por ocupar.

450 - 451

Alguns deles eram ousados e explícitos, mas havia sempre a


nota vulnerável da corte: eles estavam a pedir a um
desconhecido que gostasse deles, ou que os desejasse, ou que
os achasse iguais às descrições que faziam de si mesmos. A
certa altura, Nick reconheceu um dos homens e murmurou
«Ah...!», mas passou logo adiante, disfarçando com um pigarreio
e um encolher de ombros. Era um tipo espanhol que costumava
aparecer em todos os sítios, que fora um elemento constante no
padrão dos primeiros tempos de Nick no ginásio e nos bares,
quase um emblema da cena gay para ele, da sua rotina e
compulsão, e Nick sabia que o homem devia estar morto, vira-o
um ano antes no lago, em Hampstead Heath, desafiando o seu
próprio medo e o medo que os outros tinham dele. Chamava-se
Javier. Tinha trinta e quatro anos. Trabalhava para uma empresa
de construção, vivia em West Hampstead. Os meros factos
enunciados na sua carta de sedução tinham o ar de um obituário.
Nick parou e bebeu um pouco de café. - Ele esteve doente muito
tempo? - perguntou.
- Teve uma pneumonia em Novembro do ano passado, quase
morria disso; mas lá acabou por recuperar. Depois, na Primavera,
as coisas ficaram... bom, ficaram muito piores. Esteve internado
cerca de dez dias antes de morrer.
- Ficou cego, não foi - disse Gemma, naquele jeito desastrado
com que as pessoas abordam e revelam os factos que não
conseguem aceitar nem esquecer.
- Pobre Leo - disse Nick. O alívio por não ter testemunhado a
doença de Leo misturava-se com o pesar por ninguém lhe ter
pedido que o fizesse.
- Trouxeste as fotos? - disse Gemma.
- Se quiser ver... - disse Rosemary após uma pausa.
- Não sei - disse Nick, embaraçado. Era um desafio, um repto; e,
um segundo depois, sentiu-se impotente, levado pela torrente do
momento, tal e qual como lhe acontecera no seu primeiro
encontro com Leo; encarou aquilo como algo que tinha
forçosamente de acontecer, pegou na carteira com as fotos,
olhou para duas ou três e logo as devolveu.
- Pode ficar com uma, se quiser - disse Rosemary.
- Não - disse Nick -, obrigado. Concentrou-se, o rosto tenso,
contraído, no seu café.
452

Passado um instante, Gemma disse: - Isto é que é mesmo café,


nãoé.
- Oh... - disse Nick - gosta do café...! É Kenyan Rich, tor-refacção
média... Costumo comprá-lo no Myers, na Kensington Church
Street. É a própria casa que importa os seus cafés. Sai mais
caro, mas acho que vale a pena.
- Mm, é uma delícia, tão saboroso... - disse Gemma.
- Preferia não ver as outras cartas agora - disse Nick. Rosemary
aquiesceu. - Está bem - disse ela, de novo como
uma médica, despachando-se para a próxima consulta, para a
próxima desistência. - Posso deixá-las consigo...?
- Não, por favor, não - disse Nick. Sentia que estava a ser
pressionado de uma forma muito violenta e muito rápida, era
como se um cientista estivesse a fazer uma experiência com as
suas emoções.
Gemma disse que precisava de ir à casa de banho e Nick indicou-
lhe o caminho; a mulher pôs-se a murmurar as instruções de Nick
enquanto dava a volta ao puxador da porta; depois, enfiou-se lá
dentro como se tivesse encontrado uma amiga. Por um bocado,
Nick e Rosemary renderam-se ao silêncio. Claro que o horror do
que acontecera não era desculpa para coisa nenhuma, mas a
dureza com que ela o tratava era um outro choque a que Nick
tinha de se ajustar: enegrecia ainda mais, de uma maneira
perturbante, a sombra angustiante do dia. Ela era a irmã do seu
amante e, naturalmente, Nick encarava-a como uma amiga - e
com uma afeição espontânea e uma compaixão sincera para
além da mera cortesia. Mas parecia que os seus sentimentos não
eram retribuídos. Pôs um sorriso hesitante. A semelhança física
era agora tão grande que quase se imaginava a pedir ao próprio
Leo, depois de uma discussão qualquer, que fosse um pouco
mais simpático com ele. Contudo, Rosemary armara-se contra
toda e qualquer nota de ternura - mesmo em relação a Leo.
- Então quer dizer que não o viu durante um ano ou dois? - disse
ela.
- Sim, exacto...
Ela ergueu os olhos para ele num jeito cauteloso, como que
começando a reconhecer que Nick tinha os seus próprios
direitos, direitos homossexuais, em relação ao irmão, e
perguntando-se

453

onde poderia conduzi-la uma tal mudança de opinião. - Sentiu a


falta dele? - disse.
- Sim... senti. Claro que senti.
- Lembra-se da última vez que o viu?
- Bom, sim - disse Nick, e pôs-se a fitar o chão. As perguntas
eram sentimentais, mas o tom era desprendido, quase entediado.
- Foi tudo muito difícil.
Rosemary disse: - Ele não fez testamento.
- Oh, enfim... ele era tão jovem! - disse Nick de sobrolho
carregado porque, uma vez mais, dava por si à beira das lágrimas
só de pensar que ela iria oferecer-lhe alguma coisa que
pertencera a Leo; se Rosemary se mostrava fria e dura, era
porque, afinal, também ela achava tudo aquilo tão difícil, tão
penoso...
- Mandámo-lo cremar - disse ela. - Creio que era isso que ele
queria, embora não lhe tivéssemos perguntado. Não gostávamos
de falar dessas coisas.
- Hum - disse Nick, dando-se conta de que, não obstante toda a
sua resistência, estava a chorar.
Mal voltou, Gemma disse para a amiga: - Tens de ir ver a casa de
banho. - Rosemary ofereceu-lhe um sorriso leal, se bem que
repressivo. - Ou será que é uma fotomontagem?
- Oh...! - disse Nick. - Não... não, a foto é verdadeira, por acaso
até é. - Estava contente com a absurda mudança de assunto.
- Há uma fotografia dele a dançar com a Maggie!
Era uma das fotos da festa das bodas de prata, Nick todo
vermelho, os olhos muito parados, a primeira-ministra com uma
expressão prudente, cautelosa, de que ele não se apercebera na
altura. Duvidava que Gemma fosse capaz de entender aquela
auto-iro-nia muito particular da galeria da casa de banho. Era
algo que ele aprendera com os seus amigos da universidade. -
Então quer dizer que a conhece? - perguntou ela.
- Não, não - disse Nick. - O que se passou foi que eu me
embebedei numa festa... - como que a dizer que um acidente
daqueles podia acontecer a qualquer um.
- Vá lá, aposto que votou nela, não votou? - queria saber Gemma.
- Não, não votei - ripostou Nick num tom muito sério. Rosemary
não mostrava o menor interesse pelo assunto. Nick virou-se
para ela e disse-lhe: - Lembro-me de que prometi contar à sua
mãe, se alguma vez me encontrasse com a primeira-ministra.
-Oh...?
Nick sorriu num jeito apreensivo. - Quer dizer, como é que ela
tem lidado com tudo isto?
- Sabe como ela é, lembra-se por certo... - disse Rosemary.
- Vou escrever-lhe - disse Nick. - Ou podia ir lá a casa fazer-lhe
uma visita. - Reviu-a em casa com os seus folhetos da igreja e o
chapéu numa cadeira. Tinha a sensação de que, naquele primeiro
e único encontro, os seus encantos não tinham convencido a
mãe de Leo; agora, estava pronto a fazer qualquer coisa para a
compensar. - Estou certo de que ela continua maravilhosa.
Rosemary fitou-o com um ar crítico e, enquanto se levantava e
juntava as suas coisas, pareceu tomar a decisão de lhe dizer: -
Foi isso que você disse de nós, não foi? Quando esteve lá em
casa?
- O quê...?
- Leo contou-nos, você disse que nós éramos maravilhosas.
- Disse? - retorquiu Nick, que se lembrava penosamente desse
momento. - Bom, não é assim tão mau, pois não, quer dizer, ser-
se uma pessoa maravilhosa. - Fez uma pausa, sem saber se
estaria a ser acusado de alguma coisa. Sentia que, do outro lado,
havia um tom de condenação iminente, por tudo o que tinha
acontecido: aquelas mulheres tinham acalentado a esperança de
lhe imputarem todas as culpas, e tinham falhado, e, por causa
disso, estavam de algum modo ainda mais furiosas com ele. -
Claro que a sua mãe não sabia que Leo era gay, pois não? Ela
chegou a dizer-me que gostaria muito de o ver no altar.
- Bom, agora já o viu no altar - disse Rosemary com um risinho
agreste, como se isso fosse culpa da mãe. - Ou quase, de
qualquer modo.
- É uma maneira terrível de descobrir - disse Nick.
- Ela não aceita a verdade.
- Não aceita a morte, é isso, não é...
- Não aceita o facto de que ele era gay. É um pecado mortal, está
a ver - disse Rosemary, e, agora, o acento jamaicano era satírico.
- E o filho dela não era um pecador.
- Sim, enfim, pecados. Aí está uma coisa que eu nunca
compreendi - disse Nick, num tom que elas não entenderam.

454 - 455

- Oh, os pecados mortais são os piores - disse Gemina.


- Então, pelo menos, ela não acha que a sida seja um castigo.
- Não, para ela a SIDA pode ser um castigo - disse Rosemary. -
Mas Leo apanhou a doença num assento de uma sanita, lá nas
casas de banho da Câmara, que, como é sabido, está cheia de
socialistas ateus.
- Ou numa sanduíche - apressou-se a dizer Gemma. Havia
qualquer coisa de extremamente impróprio no sarcasmo
delas. Nick tentou imaginar a casa surpreendida pela culpa e
pela recriminação, a desamparada ferocidade de quem perdera
um ente querido... mas não sabia...
Rosemary disse: - Ela agora tem-no de novo em casa.
- Como? Que quer dizer?
- Tem as cinzas dele numa pequena urna, no consolo da lareira.
- Oh! - Nick ficara tão perturbado que disse, num tom bastante
cómico: - Sim, eu lembro-me, há uma prateleira, não há, por cima
do aquecedor a gás, com as figuras de Jesus e Maria, etc, etc...
- Há Jesus, e a Virgem Maria, e Santo António de Pádua... e Leo.
- Bom, ele ficou em muito boa companhia! - disse Nick.
- Pois é - disse Gemma, abanando a cabeça e rindo-se num jeito
soturno. - Eu não aguento aquilo, não consigo entrar lá dentro.
- A minha mãe gosta de sentir que ele continua lá... É o que ela
diz...
Nick sentiu um arrepio a percorrer-lhe o corpo, mas, ainda assim,
disse: - Suponho que ninguém pode roubar-lhe as suas fantasias,
não é, ela perdeu um filho.
- Se bem que as fantasias, de facto, não ajudem nada - disse
Rosemary.
- Bom, a nós não nos ajudam, pois não, minha querida? - disse
Gemma, e afagou vigorosamente as costas de Rosemary.
Os olhos de Rosemary semicerraram-se por um momento, tal e
qual como os da mãe, com aquela obstinação que parecia típica
da família. Disse: - Ela não quer aceitar que o filho era gay, tal
como não quer aceitar a verdade acerca de nós. - E, depois,
quase ao mesmo tempo, pôs a mochila ao ombro para se ir
embora.

456

Nick corou da sua lentidão e, depois, ficou aflito, temendo que


pensassem que ele corara por elas serem lésbicas.
Logo que as duas mulheres saíram, subiu de novo ao
apartamento, mas ofuscado ainda pelo implacável clarão da
notícia, de tal forma que o apartamento lhe parecia ainda mais
pretensioso - de uma ostentação barata, grosseira. Sentia-se
perplexo só de pensar que passara tanto tempo - e com tanto
agrado, e com tanto pedantismo - naquele espaço. As sanefas e
os espelhos, os projectores e as venezianas, pareciam atrair
todas as críticas possíveis. Era o que uma pessoa fazia quando
tinha milhões e carecia de gosto: construía o seu espaço privado
à imagem e semelhança de um hotel acintosamente luxuoso; tal
como tais hotéis deleitavam os seus clientes por serem
grosseiros simulacros de abastadas residências privadas. Um
ano antes, aquilo tinha pelo menos o encanto da novidade?
Agora, carregava com os sinais da ocupação por um rapaz rico
que perdera todo o jeito para cuidar de si mesmo. Wani passara
tanto tempo esparramado a ver vídeos que algumas almofadas
do sofá tinham a beira coçada. O seu próprio esperma e o
esperma de outros rapazes tinham deixado manchas no damasco
carmim. Nick perguntou-se se Gemma, enquanto estivera
sentada naquele mesmo sofá, fazendo as suas observações
estupidamente deprimentes, reparara nalguma coisa. Nunca
mais a deixaria entrar ali, àquela mulher, com as suas botas
pretas. Sentia-se furioso com Wani por ter dado cabo das
almofadas do sofá. A secretária geor-giana estava cheia de
manchas de bebida e riscos de lâmina de barbear que mesmo
Don Guest, apesar de todo o seu optimismo, teria achado difícil
disfarçar. «Pois é, meu rapaz», teria dito Don, «isto já não vai lá
com operações de cosmética». Nick sentiu com o dedo aqueles
pequenos sulcos e, quando deu por isso, já a dor o deixara com
uma respiração opressa, ofegante, como se o ar lhe pudesse
faltar a qualquer momento.
Sentou-se no sofá e começou a ler o Telegraph, como se fosse
ponto assente que ler o Telegraph era uma medida adequada
naquelas circunstâncias, uma espécie de medida terapêutica.
Estava farto das eleições, mas excitava-o pensar que as eleições
estavam a decorrer precisamente àquela hora. Havia qualquer
coisa de primitivo

457

e festivo naquilo tudo. Ouvia Rosemary dizendo: «Bom, ele


morreu, não sei se sabe...» ou «Bom, sabe, ele morreu...», em
catadupa e com saltos recorrentes, quase sobrepostos; o seu
coração martelava violento perante a detonação surda da frase.
A ideia das cinzas de Leo em casa deixava-o horrorizado; ao
mesmo tempo, porém, não cessava de imaginá-las numa
improvável urna rococó. A última foto que ela lhe mostrara era
terrível: não havia em Leo nem sinal de vida. Nick lembrou-se das
suas brincadeiras, anos antes, nas primeiras e descuidadas
liberdades de uma primeira ligação, sobre a velhice que haviam
de partilhar, Leo com sessenta anos, ele com cinquenta. E Leo já
lá tinha chegado; ou tivera sessenta anos durante uma semana,
antes de morrer. Estava na cama, com uma daquelas batas de
hospital, azul celeste; era difícil ler aquele rosto, visto que a
SIDA se apossara dele e inscrevera nele a sua mensagem de
terror e exaustão; contra esse pano de fundo, Leo parecia
afirmar debil-mente o seu próprio carácter num duvidoso meio
sorriso. A sua vaidade transformara-se numa espécie de medo, o
medo de assustar as pessoas para quem sorria. Era a mais
solitária das coisas que Nick jamais vira.
Considerou que tinha obrigação de escrever uma carta e sentou-
se à secretária. Sentia uma necessidade de consolar a mãe de
Leo ou de se justificar perante ela. Uma qualquer profunda
circunvolução de sentimentos envolvendo a sua própria mãe - a
única pessoa que, de facto, sofria pelo facto de ele ser
homossexual - levava-o a ver Mrs. Charles como uma figura que
carecia não só de consolo, mas também de apaziguamento.
«Cara Mrs. Charles», escreveu, «foi com imensa tristeza que
soube da morte de Leo»: aí estava, aquilo existia realmente, ele
hesitara, mas escrevera a palavra, e, agora, a palavra não podia
ser desescrita. Sentia - como um ansioso refinamento do tacto -
que, de facto, não deveria mencionar a morte. «As suas tristes
notícias», «os recentes e tristes acontecimentos»...: «a morte de
Leo» era brutal. Depois, ficou com medo de que ela achasse a
expressão «foi com imensa tristeza» excessivamente
sentimental; era um pouco como chamar-lhe «maravilhosa», o
excesso era o mesmo. Sabia que as suas formas particulares de
verdade podiam parecer insinceras aos olhos dos outros. Tinha
medo dela, daquela mulher que sofria a morte de um filho, não
sabia que sentimentos lhe atribuir. Parecia que ela encarara tudo
aquilo

458

à sua maneira, talvez mesmo, quem sabe, com uma nota de


fervorosa jovialidade. Imaginava-a impressionada com a sua
instruída formalidade com as palavras, com a sua melhor
caligrafia. Depois, via-a olhando desconfiada para aquilo que ele
escrevera. Dava-se conta dos seus limites enquanto especialista
numa questão como o tom. Era nisso que ele continuava a
trabalhar e, no entanto... Pôs-se a olhar pela janela, os olhos
fixos, perdidos, e, ao fim de um minuto, deu com a frase de Henry
James a propósito da morte de Poe olhando ao longe para ele.
Como é que era...? A extremidade da ausência pessoal tinha
acabado de alcançá-lo. As palavras, que em tempos lhe haviam
soado maliciosas, ou mesmo jocosas, revelavam-se, de súbito,
terríveis - amplas, sábias, e duras. Compreendeu pela primeira
vez que tinham sido escritas por alguém cuja vida havia sido
percorrida, repetidas vezes, pela morte. E, depois, viu-se a si
mesmo, daí a seis meses talvez, sentado à secretária,
preparando-se para escrever uma carta idêntica aos habitantes
da mansão de Lowndes Square.

459

14.

Quando voltou para Kensington Park Gardens, decidiu não contar


imediatamente a Catherine. Tinha a sensação de ser uma
espécie de espelho da notícia, de ser simultaneamente o pálido
enlutado e o mensageiro do Além. Surpreendeu-se a prolongar os
seus normais suspiros e olhares fixos, na esperança de provocar
uma pergunta. Porém, ao fim de dez minutos, aceitou o facto de
que ela não tinha dado por nada. Catherine estava afundada
numa poltrona, cercada de um mar de jornais e copos de água e
de chá meio vazios na mesa junto dela. Espreitou-a por trás e ela
pareceu-lhe tão pequena e passiva como uma criança doente.
Ela olhou para cima e disse, num esforço para se mostrar
animada: - Oh, Nick, o Especial Eleições é logo a seguir às
notícias - como se descobrir isso tivesse exigido dela um grande
trabalho, como se isso fosse, por si só, uma boa notícia.
- Está bem, querida - disse Nick. - Óptimo, vamos ver o Especial
Eleições. - Deixou que os seus olhos percorressem lentos a sala,
sondando as prioridades, o protocolo das suas respectivas
desgraças. - Hum... sim... ok! - Não lhe parecia bem, atirar-lhe
com a notícia de uma morte. Sentia que, como todas as notícias,
também aquela tinha o seu próprio tempo, e que, de algum modo,
acabaria por estiolar, até se tornar incomunicável, se adiasse
excessivamente a sua revelação.
Subiu ao seu quarto; sentia-se como se tivesse as costas
ligeiramente curvadas sob o fardo da depressão de Catherine.

460

Era um trabalho difícil, viver com uma pessoa tão desamparada e


negativa, e muito pior quando se conhecera uma outra faceta -
crítica, divertida - dessa pessoa. Bom, por vezes, era possível
que, perante isso, os seus próprios problemas parecessem
menos graves; noutras alturas, porém, amplificava-os graças a
um perturbante e conta-giante desalento. Pedira emprestado a
Rachel um livro do Dr. Edelman, o médico que tratava de
Catherine: A Path Through the Mountains: Clinical Responses to
Manic Depression(1). Queixara-se sofridamente do estilo do Dr.
Edelman e corrigira a sua gramática para se proteger de um
medo supersticioso que o livro despertara nele: o medo de
encontrar os sintomas em si mesmo, agora que sabia quais
eram. Do que não havia dúvida era que todos esses sintomas
pareciam estar presentes em todas as pessoas mais voláteis,
mais irascíveis, ou estranhamente letárgicas, que conhecia.
O livro apresentava uma série de dados que podiam ser úteis,
mas deixava Nick a braços com uma imaginativa incerteza
quanto ao sítio onde Catherine estaria sempre que olhava para
ela e lhe falava: não, ela não estava naquele local - de um negro
reluzente - das suas velhas depressões, mas num qualquer outro
local sem traços definidos, policiado pela nova e pesada
dosagem de lítio do Dr. Edelman. Faltava-lhe a energia e a
motivação para descrever esse local com as suas próprias
palavras. Dizia que não tinha concentração que chegasse para
ler um artigo de jornal, quanto mais um livro. Por vezes,
comportava-se naquele seu jeito vivo, ágil, rápido, mas tratava-se
apenas de um reflexo: ela própria parava a observar essas
reacções com notória perplexidade e uma espécie de nostalgia.
A maior parte do tempo, passava-o sentada e quieta,
aguardando, embora sem o menor traço de expectativa. Nick
dava por si a falar-lhe com uma precisão e uma objectividade
aterradoras, como se estivesse a conversar com uma pessoa
velha e surda; e a coisa tornava-se ainda mais aterradora porque
ela não encontrava no tom dele o menor resquício de
paternalismo.
Houve vários telefonemas ao fim do dia. A mãe de Nick ligou e
rompeu a falar excitadamente das eleições; ela via o acto
eleitoral como uma oportunidade de partilhar a vida londrina do
filho.
1. «Um Caminho por entre as Montanhas: Respostas Clínicas à
Maníaco-depressão.» (N. do T.)

461

Nick adoptou um tom frio e monótono e deu por si - como tantas


vezes acontecia - quase censurando a mãe por não saber que, na
vida dele, havia nesse momento um dado importante, muito
importante, aquela notícia que ele era incapaz de lhe revelar. Dot
Guest nunca ouvira falar de Leo e Nick pensou que, se de facto
tentasse contar-lhe, diriam tais coisas um ao outro que
acabariam por cair num estado de mútuo ressentimento perante
o facto da morte de Leo. A mãe relatou a actuação de Gerald na
rádio local, como se Nick precisasse de ouvir elogios à pessoa
do deputado. «Ele disse que nós não queremos aqueles, tu
sabes, aqueles seminários lésbicos ou lá o que é» disse ela, não
propriamente inconsciente da coragem de que dera provas ao
usar a palavra. Um segundo depois, o próprio Gerald estava na
outra linha e Dot Guest desligou como se tivesse sido apanhada
a cometer alguma falta. «Está tudo bem?», perguntou Gerald
num tom ligeiro, descontraído; era óbvio que não queria outra
coisa senão falar de si mesmo. Aproximava-se a interminável
noite de espera, a noite em que a sua confiança mais era posta à
prova, e o deputado procurava uma palavra de solidariedade,
quase como se já tivesse sido derrotado. «Como é que correu o
discurso?», disse Nick. «Correu tão bem como o jantar rumo aos
estômagos dos convidados», disse Gerald. «O que é um elogio
francamente imerecido ao jantar propriamente dito... o quê?
Santo Deus, estes hotéis de província...!» Nick sentiu um punitivo
desejo de obrigar a Gerald a escutar o seu problema, visto que
Gerald conhecera Leo e adoptara até em relação a ele uma
atitude cautelosamente favorável; mas sabia que não conseguiria
atrair a sua atenção, aquele era o momento errado, aquela era a
semana errada, e, vendo bem as coisas, aquela era a morte
errada.
Elena preparara cannelloni, que Nick e Catherine comeram na
cozinha, rodeados pela galeria familiar de fotografias e cartoons;
a galena espalhara-se já pela porta da despensa e pelo outro
lado da cozinha, onde a caricatura que Marc(1) fizera de Gerald
tinha um lugar de destaque. O deputado não fora ainda elevado à
dignidade

*1. Pseudónimo de Mark Boxer (1931-1988), caricaturista e


jornalista. Os seus cartoons foram publicados nomeadamente no
The Times (1969-83) e no Guardian (1983-88). Foi editor do The
Sunday Times Magazine (anos 60) e da Tatler (a partir de 1983).
Ser caricaturado por Marc seria para Gerald uma honra extrema.
(N. do T.)

462

de ter um boneco no programa Spitting Image(1), mas essa era


uma das suas maiores esperanças agora que ia ser eleito um
novo Parlamento. Catherine não despegava os olhos dos
cannelloni enquanto manobrava com o garfo, como alguém
executando uma tarefa sem sentido como um castigo, e Nick deu
por si a compará-la com a ávida menina de seis anos que podia
ver numa fotografia, com apenas metade dos seus grandes
dentes e um arreganhado sorriso de excitação, de uma excitação
tão intensa que era quase dolorosa; e com uma reportagem da
Harper's dez anos mais tarde, onde filhos de gente rica
passavam modelos de alta-costura e luvas brancas cobriam as
primeiras cicatrizes nos seus braços. Na realidade, porém,
aquela era a parede de Gerald, a mulher e os filhos surgiam
apenas como decorativos coadjuvantes da vida do herói, a qual
se expandia numa sequência de cumprimentos aos famosos.
Gorbachev era o seu mais recente troféu, não um cumprimento,
mas um instante de conversa, no sorriso do líder soviético uma
leve sugestão do tédio que era ouvir trocadilhos ingleses
explicados por um intérprete. Nick disse: - Aquela foto tua, ali?
Lembras-te de quando foi tirada? - e Catherine respondeu: - Não,
não me lembro. Só consigo lembrar-me da foto. - Olhou muito de
relance por cima do ombro, num jeito encolhido, assustadiço,
como que a pedir desculpa. Era como se as fotografias pudessem
de repente cair e esmagar-se todas sobre ela, sobre as suas
orelhas que, com aquele trejeito, parecia proteger.
Nick disse: - Segundo a minha mãe, saiu um cartoon de Gerald no
Northants Standard; vai mandá-lo para uma eventual inclusão na
galeria.
- Oh... - disse Catherine. Olhou-o fixamente e acrescentou: -
Cartoons... Francamente, é uma coisa que não me diz muito...
- Mas tu adoras a sátira, querida, especialmente quando o
satirizado é Gerald.
- Pois. Mas imagina só se as pessoas fossem realmente assim...
Hidrocéfalas, é essa a palavra. Os monstruosos dentes de
Gerald... - e a sua mão tremeu. Parecia chocada por se ter
lembrado daquelas palavras.

*1. O equivalente (ou o «pai») do português «Contra-


Informação». O programa manteve-se na ITV de 1984 a 1996. (N.
do T.)

463

Passado um bocado, subiram à sala de estar, e Nick, de súbito


também ele trémulo, serviu-se generosamente do scotch.
Sentaram-se lado a lado no sofá, no silêncio pesado, mas
desinibido, que Catherine gerava. Nick lembrou-se da única vez
em que Leo entrara naquela sala e em que o surpreendera e
comovera e deixara ligeiramente aturdido ao interpretar uma
peça de Mozart ao piano, Ambos tinham bebido um copo de
whisky, fora a única vez em que o vira beber álcool. Vislumbrou
de novo toda a beleza da simplicidade, da inexperiência, desses
tempos, a vida de instinto que se abria diante dele, o prazer das
ruas e a própria Londres abrindo-se, revelando-se, no frio
outonal; todas as coisas uma euforia de novidade e risco, a
cintilação da geada e a incandescência do calor dos corpos, o
choque de ter encontrado e agarrado aquilo que queria no meio
de milhões de estranhos. Aquela sensação de que fazer amor
com um homem era uma escandalosa originalidade esbatera-se,
semana após semana, no banal triunfo de um caso amoroso. Via
Leo atravessar aquela sala, a cena reluzente e contraída, como
que observada num espelho convexo. Era a noite em que Leo,
com passos cautelosos e muita ironia, entrara numa profunda
fantasia de Nick, a sua fantasia de posse: o seu amante na sua
casa, Nick possuindo-os a ambos por direito de gosto e desejo.
Agora, a chuva tinha parado e o céu aclarava um pouco no
preciso momento em que o crepúsculo começava a desenhar-se.
A luz, pálida, neutral, estirava-se através das janelas da frente,
parecia querer atingir um alvo e falhar e fazer uma nova
tentativa. Nicl formulou a coisa: - Hoje tive uma notícia
terrivelmente triste, disseram-me que Leo tinha morrido,
lembras-te de... - mas manteve-a encerrada na sua cabeça, como
uma confissão difícil.
Escutou o canto dos pássaros nos jardins com um ouvido mais
analítico do que era costume para as notas de advertência e
protesto e irritada submissão. A longa e neutral luz tornava-se
mais branda e quente ao roçar os cabos dourados da pá e das
tenazes e as trepadeiras de mármore branco sob o consolo da
lareira. Depois, lambia as pernas torneadas de uma velha cadeira
de madeira, as quais, só por esse facto, irradiavam uma nova e
insuspeitada presença, como se fossem duendes, bonequinhos
com barrigas salientes e golas altas e chapéus de Polichinelo,
reluzindo impetuosa e estoicamente com a sua própria e única
verdade, a verdade segundo a qual eles durariam séculos,

464

uma infinidade de tempo mais do que aqueles jovens vivos que,


naquele exacto instante, estavam a olhar para eles.
Nas notícias das nove, falava-se já de uma vitória esmagadora
dos Tories. Nick bebeu outro whisky muitíssimo generoso e
sentiu um alívio que já conhecia bem e que começava a amaciar
as gélidas arestas do dia. Sentia a falta do respeito que era
devido a uma pessoa enlutada, a indulgência, como um prémio
triste especial, com que na escola tratavam os miúdos que
recebiam a notícia de uma morte. Por um bocado, chegou mesmo
a pensar numa linha, mas sabia que não queria a irrelevante
euforia da coca. O álcool revelava mais respeito pela noite, e
parecia apto a servir de mediador, durante três ou quatro horas,
entre as exigências da dor e os assuntos correntes.
As eleições desenrolavam-se ao sabor do seu ritmo muito
particular - e insatisfatório. Os analistas estavam há séculos no
estúdio, aguardando o processamento e a proclamação dos
resultados. O tédio das quatro longas semanas de eleições
atingia a sua mais pura forma nas tentativas de síntese e
prognóstico dos peritos. Uma série de velhas máximas e
tradições eram enumeradas, com um consolador efeito de
pantomima. Repórteres eram vistos, empoleirados nas alturas de
uma dúzia de Câmaras Municipais sem nada para reportarem.
Num plano inferior ao dos repórteres, desfocadas, as pessoas
encarregadas do apuramento dos votos, em volta das suas
longas mesas, aceleravam para chegarem à meta, de tal forma
que um outro certame parecia florescer nos bastidores da
competição principal. Um apresentador anunciou que passariam
mais tarde o anúncio oficial dos resultados de Barwick, de
maneira que, durante cinco segundos, Nick pôde ver a sala de
reuniões no edifício do mercado de Barwick e as figuras muito
pouco familiares que contavam os votos; depois, passaram um
breve filme mostrando os principais candidatos em campanha.
Gerald exibia um estilo firmemente confiante, avançando
decidido pela praça, com uns «Bons-dias» de raspão, como um
patrão irrompendo pelos escritórios da sua empresa, sem
escutar nada do que era dito. A inexperiente candidata da
Alliance, em contrapartida, deixava-se enredar num debate bem-
intencionado com Tracey Weeks, demorando a perceber (e,
perante as câmaras, mostrando-se relutante em reconhecer) que
a velha Tracey vivia num mundo manifestamente à parte. Era
triste que o eleitorado de Barwick fosse representado, perante a
nação,

465

pela velha Tracey Weeks; Nick distanciou-se da sua terra natal


com um riso cauteloso, embora sentisse grande curiosidade em
vê-la na TV. A vila tinha um ar arreigadamente provinciano;
mostrava-se surpreendida, mas não esmagada, pelo facto de o
mundo exterior ter reparado nela. Não, aquela não era
propriamente a Barwick que ele conhecia.
Mais tarde, Nick estava no piso de baixo quando Catherine
chamou: «Nick! Vem aí a Polly!», e ele subiu numa pressa e
apoiou-se nas costas do sofá - o porta-voz local da comissão de
eleições já estava a falar. Polly Tompkins disputava o lugar de
deputado por Pershore, tradicionalmente Tory, mas com uma
forte votação do SPD em 1983; não podia ter a certeza de que
seria eleito, e Gerald, que admirava Polly, advertiu-o de que a sua
idade podia virar-se contra ele. Nick lera um artigo sobre os
jovens candidatos - dos cento e cinquenta e tal com menos de
trinta anos, a amarga expectativa era que só meia dúzia seriam
eleitos. De pé no meio do palco, gordo e suado no seu casaco
assertoado, Polly poderia ter passado por um homem de
quarenta e cinco anos; parecia camuflado pelo seu próprio futuro
de eleito. Nick não conseguia decidir se queria ou não que ele
ganhasse. Aquilo era um espectáculo e ele seguia-o com uma
imperturbável crueldade, como se estivesse a assistir a um
combate de boxe. Sim, pensou, seria agradável vê-lo no tapete...
Nick supunha que os candidatos já deviam conhecer os
resultados, visto que tinham assistido, pelo menos parcialmente,
à contagem; mas talvez não, caso a disputa fosse muito renhida.
Agora, Polly enfrentava o desafio das luzes, os invisíveis milhões
que, de súbito, o fixavam. A minúscula votação dos Trabalhistas
foi anunciada e Polly reagiu com um impiedoso retraimento de
comiseração. Agora, anunciavam o seu próprio nome: «Tompkins,
Paul Frederick Gervase» - («Conservador» num parênteses
murmurado) - «dezassete mil, duzentos e trinta e oito votos»: a
palavra votos gritada sobre um estrondo de triunfo tão súbito que
o próprio Polly parecia não ter percebido que ganhara - houve um
momentâneo vazio no seu rosto e, logo a seguir, deixou-se levar
pelo rugido vitorioso, pôs um sorriso arreganhado de menino e
ergueu dois punhos - tinha um ar verdadeiramente monstruoso,
Catherine disse: «Meu Deus...» no tom mais insípido de que era
capaz, mas Nick sentiu que o sorriso de Polly, por obra de um
prazer inesperado,

466

ganhara uma nota melancólica, enquanto o tenaz porta-voz


continuava a lutar contra a algazarra: «Declaro portanto o
supracitado Paul Frederick Gervase Tompkins legitimamente
eleito...» «Paul Tompkins», disse o repórter com vivacidade,
mostrando, com o seu tom neutro, que não conhecia
minimamente Polly, a bicha de pesadelo do Worcester MCR, «que
tem apenas vinte e oito anos...», enquanto Polly esmigalhava as
mãos dos derrotados e, logo após, dava uns passos atrás,
espreitava à sua volta com uma espécie de confusão maliciosa,
aproveitando-se da indulgência da turba, gozando a sua primeira
vertigem de popularidade, e estendia um braço para chamar uma
mulher que se encontrava ao fundo do palco. Ela avançou
determinada, aninhou-se contra ele, os dedos emaranharam-se
numa atrapalhação nervosa, e, por fim, Polly, num repente,
ergueu as mãos de ambos. «Também uma grande noite para a
esposa de Paul Tompkins», disse o comentador: «Estão casados
há apenas um mês - Morgan Stevens, um das personalidades
mais eminentes do Central Office conservador - é sabido que
Morgan Stevens trabalhou incansavelmente nos bastidores desta
campanha...» Polly continuou a agitar os punhos
desajeitadamente unidos acima das suas cabeças, as lapelas
amarfanhadas contra a papada, e, no seu rosto, qualquer coisa
que ele não conseguia disfarçar, algo que era mais profundo do
que o desdém, a loucura da autoconfiança. Já era tempo de fazer
um discurso, mas Polly explorava grosseiramente os aplausos -
sim, havia nele um indesmentível ar de bufão. Avançou,
agarrando ainda, se bem que de um modo mais frouxo, na mão
de Morgan, e, um segundo depois, recuou de novo, num jeito
furtivo, e deu-lhe um beijo, não um beijo de noivos num
casamento, mas um beijo que se dá a uma tia. Teria dito não
mais que meia dúzia de palavras quando os telespectadores
foram abruptamente reconduzidos ao estúdio.
- Aquela Morgan... é mesmo uma mulher? - disse Catherine.
- Aí está uma questão que faz todo o sentido - disse Nick -; mas
sim, julgo que é.
- Tem um nome de homem.
- Bom, não te esqueças de que houve uma Morgan Le Fay(1), a
famosa feiticeira.

*1. A meia-irmã do Rei Artur, conhecida em português como


«Morgana». (N. do T.)

467

- Ai houve?
- De qualquer modo, Morgan casou-se com um homem chamado
Polly, de maneira que não há problema, parece-me.
Agora, os resultados estavam a chegar a uma tal velocidade que
o espectador teria a maior dificuldade em atentar num resultado
específico. A visão de uma vitória esmagadora ganhava forma
em vertiginosos diagramas. - Pensava que, da última vez, é que
tinha havido um deslizamento de terras - disse Catherine. - Nós
tínhamos aquele livro que falava disso.
- Sim, da última vez houve um deslizamento de terras, enfim, por
assim dizer - disse Nick.
Catherine não despegava os olhos do ecrã, onde o famoso
swingometer(1) estava virtualmente inactivo. - Mas não mudou
nada... - disse ela. - Quer dizer, há mais dois deputados
trabalhistas. Isto não é um deslizamento de terras.
- Oh, estou a ver - disse Nick.
- Quer dizer, um deslizamento de terras é um desastre, muda
tudo à sua volta.
- Então tu pensavas... - Parecia a Nick que Catherine, no seu jeito
desatento, mas literal, se convencera de que poderia vir aí uma
vitória esmagadora dos Trabalhistas. - É uma metáfora morta,
querida. Significa apenas uma vitória esmagadora.(1)
- Oh, Santo Deus - disse Catherine, quase chorosa.
- Quer dizer, de facto a terra desabou, e de que maneira, nas
primeiras eleições vencidas por Mrs. Thatcher, como todos nós
sabemos. E, pelos vistos, essas terras vão continuar com a
mesma configuração com que ficaram depois do desabamento.
Barwick apareceu meia hora depois. Havia um alvoroço no
estúdio, como se soubessem que qualquer coisa estava prestes a
acontecer. Nick e Catherine esticaram-se todos na direcção do
televisor. «Bem-vindos a Barwick», disse o jovem repórter
barbudo: «onde estamos no esplêndido edifício do mercado,

*1. O swingometer é um dispositivo gráfico usado para ilustrar as


transferências de votos de umas eleições para outras. (N. do T.)
2. Todo o diálogo se processa em torno do termo «landslide», já
referido em nota no capítulo 1. Catherine revela uma abordagem
furiosamente literal, ignorando, aparentemente, o facto, referido
por Nick, de que «landslide» é agora uma metáfora morta. (N. do
T.)

468

construído por Sir Christopher Wren - («Não, não, aí é que tu não


estás», disse Nick). «Aguardamos o anúncio oficial da votação a
todo o momento. O deputado por Barwick, como se sabe, é,
desde as últimas eleições, Gerald Fedden - actualmente membro
da equipa do Ministério da Administração Interna; um político
com alguns traços de independente, mas que poderá aspirar a
um lugar no próximo governo - teve uma maioria superior a oito
mil votos em 1983, mas tudo indica que haverá uma grande
subida na votação da Alliance - Muriel Day, uma figura local
muito popular...» A câmara encontrou os dois rivais, cada um em
amena discussão com as respectivas equipas, Gerald gracejando
como se não se passasse nada de especial, Muriel Day ensaiando
já o sorriso de uma derrota honrosa. O representante do Partido
Trabalhista, talvez vítima de uma arreigada ilusão quanto aos
resultados, dava uma vista de olhos a um discurso de três
páginas.
Nick refastelou-se no sofá com uma gargalhada, numa tentativa
para animar as coisas. De olhos fixos no ecrã, sentia-se descon-
fortavelmente responsável, como se a vila onde nascera, aquela
mesma sala que medira e desenhara quando andava na escola,
estivesse prestes a proferir o seu veredicto acerca da sala onde
agora estava sentado. Era embaraçoso, mas não podia fazer
nada. Seguiu atentamente a rápida clarificação do evento, toda
aquela diligente actividade chegava ao fim, as pessoas
redistribuíam-se, funcionários conferenciavam por um breve
momento, e, do penoso labor do dia, das urnas de metal e das
mesas alugadas, daquilo que era puro método sem poesia,
emergiu uma espécie de teatro, tão saturado de convenções
consolidadas pela tradição que chegava a parecer instintivo.
O velho Arthur State declarava agora, num jeito extremamente
lento: «Eu, Arthur Henry State, na minha qualidade de porta-voz
da Comissão Nacional de Eleições para o círculo eleitoral de
Barwick, no condado de Northamptonshire...», e por certo
expandia o seu texto com uma série de singulares e pomposas
cláusulas, enquanto Catherine fitava o pai no pódio atrás de
State. Nick atentou rapidamente no seu perfil. Havia nela um ar
de exaustão, como se contemplasse um objecto que, de um
modo constante, mas inexplicável, se erguia no seu caminho;
mas também um esgar de excitação: ela era uma criatura
absolutamente destituída de poder, mas,

469

naquela noite, havia outros poderes que se avivavam, que se


encarniçavam. Podia ser que acontecesse alguma coisa. O
homem do Partido Trabalhista chamava-se Brown, razão pela
qual foi o primeiro a ser referido por State - obtivera oito mil,
trezentos e vinte e um votos («em relação às ultimas eleições,
uma subida superior a três mil votos»), e foi aclamado num tom
manifestamente provocatório. De seguida, veio Muriel Day, e a
sua votação era também muito superior à do seu antecessor
(«uma subida de dois mil e quinhentos votos»), cifrando-se em
onze mil, quinhentos e sete votos. Muriel acolheu os aplausos
com um sorriso grato, se bem que toldado por alguma nuvem,
quase pedindo silêncio aos seus apoiantes para que deixassem a
sala ouvir o resto - já que Arthur aguardava sempre que se
fizesse silêncio absoluto e voltava atrás quando os presentes
interrompiam alguma das suas frases. A candidata da Alliance
tivera uma importante votação e Gerald estava com um ar que
Nick conhecia bem, aquele sorriso afectadamente superior que
encobria um processo de aritmética mental. O suspense era
muito e adensou-se ainda mais por obra e graça da figura - de
algum modo esquecida, mas impossível de ignorar - de Ethelred
Egg («do Partido Monstro Tarado Furioso», assinalou o repórter),
que atraíra somente trinta e um votos, mas que parecia ter a sala
cheia de adeptos. O candidato tirou o seu chapéu alto verde e
acenou com ele para a multidão e rompeu a cabriolar pela
tribuna no seu fato de palhaço. Era impossível não encontrar
alguma semelhança - muito ligeira, é certo - entre Egg e Gerald;
o colarinho branco e a gravata cor-de-rosa do deputado
encontravam-se parcialmente ocultos, em baixo, por uma
generosa roseta azul com longas pontas ou serpentinas e, em
cima, pelo lenço que, no bolso do casaco, travava um duro
combate para sobressair. «Oh, perde, perde...», murmurou
Catherine. «Fedden», disse Arthur State, «Gerald John»
(«Conservador...»), e, visto que alguém deu uma valente
buzinadela, State repetiu «Fedden, Gerald John», a estranha e
momentânea exposição e banalização do citado segundo nome,
«onze mil, oitocentos e noventa e três» - e Gerald sorriu com
todos os seus dentes e enrubesceu por um segundo e talvez
tivesse pensado que, afinal, havia perdido as eleições. As
aclamações que se seguiram redundaram num estranho som,
porque havia no meio delas um sonoro «Uuu-uu»,

470

com o qual uma parte da sala contemplava a sorte de um homem


que, por um triz, conseguira levar a sua avante.
Nick reabasteceu-se de whisky e encaminhou-se para a varanda.
Armou-se para enfrentar o surpreendente gelo que fazia lá fora. A
vitória tangencial de Gerald era um drama e um embaraço, e ia
ser difícil escolher as palavras certas quando ele voltasse de
Barwick. Os parabéns podiam soar sarcásticos ou
inadequadamente jubilosos, mesmo aos ouvidos de Gerald. Fosse
como fosse, o deputado continuava a sê-lo e tudo poderia
prosseguir como planeado. Por um momento, o radioso e
arreganhado sorriso de Fedden flutuou contra a escuridão das
árvores e logo se esbateu, tão perecível como todas as notícias.
Lentamente, as árvores, por si sós, ganharam forma e detalhe à
luz que vinha das casas e dos brandos reflexos das nuvens
nocturnas. Nick adorava os jardins; quando dava os seus
passeios entre a casa e os jardins através do portão privado,
tinha a sensação, ao olhar de relance para cima, que estava a
ver a sua própria sorte, nos majestosos plátanos, de um lado, e
na parede de estuque branco, do outro. Seria tão agradável, sair
naquele momento e dar um passeio pelos jardins; mas o tempo
estava demasiado frio e húmido. Nada de pânico: tinha à sua
frente maravilhosas vastidões de Verão.
Lembrou-se de quando levara Leo aos jardins, num frenesi de
nervos e de sombras, naquela noite em que, finalmente, se
tinham conhecido; e alguns outros homens, um número razoável,
sem dúvida, no penúltimo Verão, no caminho de areia por detrás
da cabana dos trabalhadores - fora a sua proeza, confiantemente
realizada, que entretanto murchara um pouco em encanto e
perigo. Havia nessa prática algo de básico e associal, não lhes
oferecera sequer uma bebida ou um duche: era bom. E talvez
tivesse sido um secreto tributo a Leo, uma memória honrada e
esmiuçada em cada descuidado encontro. Leo nunca soubera até
que ponto Nick o imaginara antes de o conhecer; nem até que
ponto o primeiro beijo, o primeiro contacto com o seu corpo,
aturdira um rapaz que, até então, vivera unicamente da sua
imaginação. Leo não era uma pessoa imaginativa: essa era uma
das suas singularidades e também um dos traços da sua beleza.
Mas Leo, no que a Nick dizia respeito, possuía sem dúvida uma
espécie de génio. Aquele enorme V vermelho na sua carta
lançara-o - arremessara-o - para a vida.

471

Fez girar o whisky no copo e um arrepio percorreu-lhe o corpo.


Havia um sentimento de homenagem e perdão: aos mortos nada
se negava, não era? E havia mais qualquer coisa, uma
necessidade de perdão para si mesmo, ainda que rapidamente
repelisse tal ideia. Quando Rosemary lhe perguntara sobre a
última vez em que vira o irmão, Nick pestanejara surpreendido
enquanto via a desolada e breve imagem de uma separação na
Oxford Street. A densa e cega multidão, capaz de esconder na
sua enxurrada todos os tipos de intimidade, funcionara ao
contrário daquela vez, tornando impossível qualquer movimento
mais privado. Leo afastara-se na sua bicicleta, conseguira passar
já com o sinal vermelho e nem se virara para trás. De facto, a
multidão quase escondia a coisa que Nick recordava - a última
de uma série de infelizes despedidas, nunca definidas, fosse de
que maneira fosse, como o derradeiro e inapelável adeus. Nas
semanas seguintes, tivera de recuperar essa rotineira sequência
de acções e de clarificá-la à luz daquilo que ela revelara ser. Na
altura, no instante da despedida, fora apenas uma impaciente
fuga rumo ao fluxo do trânsito.
Mas depois, numa ocasião muito mais recente (teriam passado
três, quatro meses), numa húmida noite de fins de Fevereiro,
acontecera uma outra coisa que, naquela manhã, nem sequer lhe
ocorrera. Wani já devia estar em Paris e Nick fora ao
Shaftesbury, movido por uma súbita febre de engate, com aquele
calor no peito e aquela tortura entre pernas. Entrou pelo
pequeno bar das traseiras, com o seu aquecedor a gás e a sua
atmosfera por assim dizer não-combatente, ou neutral em tempo
de guerra, onde um cliente era sempre servido mais
rapidamente. Reparou num casal de amigos fazendo a sua
primeira investida só em parte sociável por entre a multidão e
atentou, enquanto esperava que o servissem, no tipo negro,
franzino, com um gorro de lã, de costas para ele, conversando
com um homem branco de meia-idade. Viu como os seus jeans
sem cinto lhe desciam da cintura para revelarem um nada das
cuecas azuis, e, por um instante, cedeu a uma inesperada e
pungente recordação de Leo, da dupla curva ao fundo das suas
costas, das suas nádegas rijas, musculadas. Havia tristeza
naquela semelhança, mas a imagem permanecia imperturbável;
tinha mais o calor de uma bênçã do que o gelo de uma perda.
Nick ficou satisfeito com isso. O pub • era, todo ele, uma
promessa - o seu olhar esqueceu o balcão

472

e fixou-se, diligente, no bar principal, que fervilhava de um


sensual egotismo. Aquele tipo franzino, para dizer a verdade, era
demasiado escanzelado para o excitar; e demasiado estranho:
tinha uma barba tão farta que era possível vê-la por detrás, o
negro semeado de grisalho junto às orelhas. Ainda assim, Nick
olhou para o sujeito com quem ele estava a falar e, por um
momento, atraiu a sua atenção e ofereceu-lhe um nada de
sorriso cúmplice. Depois, em vez de pedir a habitual e prática
cerveja, disse ao empregado que queria um rum com Coca-Cola.
Foi andando de copo na mão, disse qualquer coisa a alguém seu
conhecido, olhando de relance para os muitos espelhos do pub
para ver que tal é que estava, e, a certa altura, viu o homem
negro de perfil, virando-se por um breve instante,
involuntariamente, ficando de frente para ele, e virando-se de
novo para responder ao amigo. Mesmo então, a nostálgica ideia
de que aquele homem era parecido com Leo refreou por um
segundo ou dois o reconhecimento de que ele era Leo. A barba,
percorrida por veios grisalhos, ocultava o emaciamento dos seus
traços, e o gorro de lã estava enfiado até às sobrancelhas.
Mesmo depois disso, Nick arredou tal possibilidade, desviou o
olhar, não fosse o homem virar-se de novo e encontrar no espelho
os seus olhos respondendo-lhe com uma súbita rendição ao
choque, e, depois, voltou a olhar de relance, já tenazmente
agarrado à ficção de que não o tinha reconhecido. Com algum
esforço, foi desbravando caminho até à outra sala. Havia uma
festa de rapazes franceses, havia um homem que costumava
encontrar no sauna Y e que lhe agradava, o bar inteiro era um
furioso rugido colectivo, e Nick foi avançando a pouco e pouco
por entre a multidão, com sorrisos polidos para grupos e
indivíduos, como alguém que chegara tarde e sóbrio a uma festa
completamente frenética. Tinha o coração a martelar e o
expectante calor no seu peito transformara-se numa sensação
vizinha, um aperto de culpa e de mágoa. Fora simplesmente um
instinto, um reflexo, que o levara a virar costas àquele homem.
Um minuto depois, apercebia-se de que esse instinto, esse
reflexo, poderia tê-lo lançado nos braços de Leo, com a mesma
facilidade com que o afastara dele; mas Nick era um cobarde.
Estava com medo dele - com medo de ser rejeitado, e cheio de
sinistras dúvidas quanto ao que poderia estar a acontecer-lhe.
Com mais algum esforço de ombros, voltou para trás

473

por entre a multidão, apercebendo-se da vaga irritação daquela


gente por ter de se mover para lhe dar passagem; no entanto,
parou e meteu conversa com o homem do Y, de uma forma
ousada, mas desatenta. Sabia que ele tinha um pássaro - um
azulão, mais exactamente - tatuado na nádega esquerda, e vira-o
com uma apreciável erecção nos duches, mas essas agradáveis
memórias pareciam estar a perder, de uma forma constante,
inflexível, todo o sentido. Emborcou a sua bebida em goles
nervosos. Depois, desceu à casa de banho e, quando espreitou
para o lado, ao longo da fétida calha metálica do urinol, verificou
que o homem fora atrás dele; e assim ficaram por um momento,
numa tensa demora, enquanto outras pessoas entravam e saíam,
até que o homem apontou com a cabeça na direcção do cubículo
vazio. Nick disse que era demasiado arriscado, quase se sentia
ofendido pelo facto de aquilo estar a acontecer e, no entanto,
estranhamente, também se sentia tímido e grato. O homem disse
que vivia no Soho, que podiam ir para casa dele, eram cinco
minutos a pé, e Nick disse OK. Era uma espécie de abrigo, de
refúgio. Vendo bem as coisas, era um êxito rápido, notável,
brilhante, uma fantasia que se tornava realidade, mas Nick não
conseguia sentir nada disso. «Saímos pelas traseiras», disse o
homem, que não perdeu tempo a revelar-lhe o seu nome: Joe.
«Oh, Ok», disse Nick. Meteram pelo bar das traseiras, Nick com
a mão pousada no ombro largo de Joe, colando-se jovialmente a
ele e passeando um olhar aturdido pela sala para encontrar
aquele sujeito franzino com um gorro de lã, completamente
desconhecido de Joe, que, em tempos, fora seu amante.

474

15.

Ai, não posso crer! - exclamou Treat. - Salada de amores-


perfeitos!(1)
- É mesmo muito boa, essa salada - disse Nick.
Treat fitou-o por cima do seu copo de cocktail, para se certificar
de que Nick não estava a brincar. - E é tudo amores-perfeitos?
- O que é isso? - perguntou Brad.
- Não, basicamente é alface, daquela bem rija. Uma espécie de
toque másculo(2) - disse Nick. - Só põem um ou dois amores-
perfeitos por cima.
- Ah, alface machona...! - disse Treat, cheio de uma censura
coquete.
- Claro que os amores-perfeitos são simbólicos - disse Nick.
- Vou ter de provar essa salada - disse Treat.
- Devia experimentar ao menos uma vez - disse Nick..; - Do que é
que estão a falar? - disse Brad.
- Treat quer provar a salada de amores-perfeitos - disse Nick.

*1. No original, pansy salad. A admiração algo teatral do produtor


americano vem do facto de pansy significar também um
«homossexual efeminado», «maricas», ou, abrasileirando,
«bicha». Daí que possa ler «pansy salad» como «salada bicha»
ou «salada de bichas». Na tradução, sempre que surgir «amores-
perfeitos», teremos de ter em atenção esse duplo significado. (N.
do T.)
2. No original, butch lettuce. Claro que, ao usar esta expressão,
Nick está a fazer alguma ironia, por contraponto à pergunta «Ê é
tudo amores-perfeitos?» («E é tudo bichas?»). É que butch
qualifica normalmente um homem hetero ou gay «muito macho»
e também uma mulher lésbica de aspecto muito masculino (tais
usos da palavra derivam de «Butch Cassidy, a lendária
personagem do Oeste americano). (N. do T.)

475

- Oh... oh, estou a ver... «Salada de amores-perfeitos»: ai, não


posso crer!
- Estás a repetir o que eu disse - disse Treat.
Nick espreitou o restaurante com um ar sorridente, aliviado por
ver dois escritores famosos numa mesa e uma actriz conhecida
noutra. Brad Craft e Treat Rush, até então não mais do que
musculados espondeus com uma clara coloração americana,
tinham-se revelado um par socialmente esfaimado. Brad era de
facto enorme e musculado, atraente e agradável, ainda que de
compreensão lenta - muito lenta, de facto. Treat era o
conversador, tinha mais ou menos a altura de Nick e uma
reluzente franja loura que ele dominava com o polegar apontado.
Tinham vindo para o casamento de Nat Hanmer e iam passar
todo o mês de Outubro em Inglaterra («Ah, tudo menos o Outono
em New England!», dizia Treat). Hoje iriam falar do filme, mas era
muito claro que eles estavam já a trabalhar, sempre de olho na
praça que se via do restaurante, lançados numa total penetração
de Londres, já para não falar das muitas e atabalhoadas
perguntas que faziam sobre pessoas e títulos. Aparentemente,
aquilo que os electrizava era fazer perguntas; quanto às
respostas, estavam-se mais ou menos marimbando para elas.
Brandiam a ameaça de um enfadamento fácil. Nick fazia votos
para que o restaurante Gusto lhes agradasse. Viu Treat
observando a cozinha através da parede de vidro azul, que
transformava o chefe e os seus suados subalternos num cabaret
de trabalho duro que roçava o erótico.
- Conhece um tipo chamado Julius Money? - disse Brad.
- Bom, sim, já fui apresentado - disse Nick.
- Não é um nome bestial? E a modos que apropriado, imagino eu,
não é?
- Ah sim - disse Nick. - Eles têm uma enorme mansão jacobiana
em Norfolk, com uma colecção de pintura fabulosa. Para dizer a
verdade, sempre considerei...
- Oh, e que me diz de Pomona Brinkley?! - disse Treat. -
Conhecemo-la um dia destes. Mas, diga-me, a que é que ela se
dedica realmente?
- Não conheço a pessoa em questão - disse Nick.
- É uma mulher bestial - disse Treat.

476

- Ah, é verdade, conhecemos também um tipo, Lord John...


Fanshaw} - disse Brad. - Sabe tudo de si! Disse que você era o
homem mais encantador de Londres.
- Pois - disse Treat, e voltou a olhar demoradamente para Nick.
- Creio que devia estar a pensar noutra pessoa - retorquiu Nick,
com uma timidez afectada, e não confessou que nunca ouvira
falar de Sua Senhoria.
- Você conhece mesmo bem Nat, certo? - disse Treat.
- Ah sim - disse Nick, com uma segurança mais doce, mais
insinuante. - Estivemos juntos em Oxford. Ainda que,
actualmente, creio, esteja mais com a mãe do que com ele. Ela é
uma grande amiga da minha amiga Rachel Fedden. - Nick disse
«Rachel Fedden» e ficou a observar o nome desenhando um
frágil apelo no sentido do reconhecimento.
- Ele é tão querido...
- Não, é de facto uma pessoa adorável. Tem tido, não sei se
sabem, tem tido imensos problemas.
- Ah sim...? - disse Treat. - Que pena tão grande, ele não ser da
família.
- Bom... - disse Nick. - Onde é que o conheceram?
- Oh, conhecemo-lo em casa dos Rosenheim, no Outono passado,
em East Hampton, não é? Claro, foi também nessa altura que
conhecemos... Antoine.
- E Martina - disse Brad.
- Sim, Martine - disse Nick.
i - Sim, Brad adorou Antoine - disse Treat. Levou a palhinha aos
lábios e chupou incisivamente o líquido castanho avermelhado.
Brad disse: - É mesmo, que tipo adorável!
- Então quer dizer que não o vêem desde essa altura? - Nick sabia
que tinha de avisá-los, mas não sabia como começar.
- Quer dizer que Nat é assim uma espécie de lorde, certo? - disse
Brad.
- Sim - disse Nick. - É marquês.
- Oh meu Deus...! - conseguiu dizer Treat, quase sem fala.
- O quê... portanto ele é Marquês de... será Chirk?
- Chirk é o nome de família. O título é Marquês de Hanmer.
- Brad...? Já viste quem está ali?

477

- Então como é que uma pessoa chama ao velho dele? - disse


Brad, abanando a cabeça enquanto se virava na cadeira.
- O pai dele é o Duque de Flintshire. Eu chamar-lhe-ia
simplesmente sir.
- Treat, santo Deus, tens razão... é Betsy!
- Eu quero que ela entre no meu filme - disse Treat. - É uma actriz
britânica fora de série!
- Não sei se terão oportunidade de conhecer o duque -
prosseguiu Nick, incerto quanto à pompa que estaria a retirar do
mero uso da palavra. Esforçava-se por falar da aristocracia num
tom factual, por causa da vergonha que aquela mania do pai, a
lista de condes e outros nobres para quem trabalhava, provocava
nele. - Só estive com ele uma vez. Nunca deixa o Castelo. Sabem,
é que o duque é aleijado.
- Ai, vocês, britânicos... - disse Treat, renunciando apenas em
parte ao seu olhar infantil apontado a Betsy Tilden. Para Treat,
Betsy possuía a grandeza de um prodígio e de um desafio, e Nick
já estava a imaginá-lo a levantar-se da mesa para ir meter
conversa com ela. Era demasiado jovem para interpretar Mrs.
Gereth; e seria uma escolha completamente errada para Fleda
Vetch. - Vocês são tão brutais!
- Mm...? - disse Nick.
- Não reparou no que disse? «O Duque é aleijado»,
sinceramente...
- Oh... - disse Nick, e corou como se o americano tivesse
criticado o seu dissimulado snobismo e não aquilo que realmente
criticara, fosse lá o que fosse. - Lamento imenso, mas, na
realidade, o próprio duque refere-se a si mesmo nesses termos...
Ele deixou de andar era ainda um rapaz. - Estava demasiado
ansioso, ligeiramente ofegante, até, para ser chamado à pedra
numa questão de delicadeza; e uma questão que impregnava, de
uma forma oblíqua, se bem que perceptível, aquele almoço.
Pigarreou e disse:
- Sabem, há uma coisa que tenho de lhes dizer... Ah, aí vem ele.
- Ergueu uma mão mal viu Wani aparecer na recepção junto à
porta e, quando se levantou, ouviu os dois americanos
murmurando: - Oh, meu Deus...
Avançou na direcção de Wani, sorridente e capaz, mas numa
agitação de emoções - compaixão, rebeldia, um desejo de o
apoiar,

478

e um medo de que as pessoas o vissem. A rapariga pegou-lhe na


bengala enquanto o ajudava a despir o casaco. «Olá», disse
Wani; não parecia querer que Nick o beijasse. Pegou de novo na
bengala, uma elegante bengala preta com cabo de prata, e
avançou pelo chão de mármore batendo ao de leve com ela. Não
se mostrava ainda completamente convincente com a bengala;
dir-se-ia um aluno de teatro desempenhando o papel de um velho.
A bengala propriamente dita parecia atrair e, ao mesmo tempo,
repelir as atenções. As pessoas olhavam e desviavam os olhos.
Os americanos levantaram-se, Treat segurando o guardanapo
contra o peito. - Eh, Antoine, é bestial voltar a vê-lo!
- Então, como é que está? - disse Brad com uma chiadeira; claro
que estava a brincar. Por um momento, pôs a sua mão nas costas
de Wani, e Nick, do outro lado, fez o mesmo, de maneira que
pareciam estar a felicitá-lo; no entanto, aquilo que sentiam eram
as saliências da sua espinha através da lã do casaco. Wani
sentou-se, sorrindo com uma cortesia distante, como se aquela
fosse uma reunião semanal, com um formato e resultados
conhecidos. Houve uma breve pausa de silencioso ajustamento.
Nick sorriu para Wani, mas o choque logo foi renovado pela
presença dos convidados e uma bolha começou a formar-se na
sua garganta.
- Então de que é que estavam a falar? - disse Wani. A sua voz, se
tal era possível, revelava uma maior exaustão do que antes,
sugerindo, ao mesmo tempo, que não podia ser forçada.
- Estava a explicar a Brad e a Treat a história da família Chirk -
disse Nick.
- Ah sim - disse Wani, como se aquela fosse uma história muito
velha e tonta. - É um título que remonta apenas ao século XIX,
claro.
- Certo... - disse Brad, dando uma espreitadela para Wani e
parecendo partilhar, simplesmente por causa dos nervos e da
desatenção, o ponto de vista segundo o qual um título do século
XIX seria uma coisa absurdamente recente.
Treat riu-se num jeito animado e disse: - Século XIX? Oh, para
mim, já é muito antigo... Serve perfeitamente.
Nick disse: - Para dizer a verdade, quem salvou o dia foi Sharon, a
duquesa... - e ofereceu a história a Wani.
479

- Sim, uma transfusão de vinagre capaz de salvar uma vida -


comentou Wani; romperam todos em sonoras gargalhadas, como
que perante uma piada de um tirano; e, de facto, parecia haver
naquele comentário um traço de crueldade contra si mesmo e,
portanto, de um modo obscuro, contra eles. - E se pedíssemos
já.- Wani virou-se e ergueu uma mão para Fábio e, enquanto fazia
isso, Brad e Treat, durante três ou quatro segundos, olharam um
para o outro com uma inexpressiva clareza. Fábio foi ter com
eles num ápice; como sempre, parecia adivinhar e aplaudir as
suas decisões, ecoar e memorizar cada prato ou bebida por eles
mencionado; e, provavelmente, só Nick sentiu a vivacidade nova
que havia no seu tom e aquele riso que, num instante, definhava.
Brad pediu informações acerca da salada de amores-perfeitos e
Fábio, para ser agradável, respondeu-lhe com uma brincadeira
neutra, e logo deu a volta à mesa para recolher as ementas,
segurando-as contra o peito. Nick comentou que o restaurante
estava a ter imenso êxito e, com um sorriso, insistiu no
contributo dele e de Wani para esse êxito, visto que haviam sido
convidados para a abertura, no ano anterior, e, desde então,
tinham-no adoptado como o seu restaurante preferido; e Fábio
disse: - Não podemos queixar-nos... hmm, Nick, não podemos
queixar-nos - olhando apenas de relance para Wani ao segundo
queixar-nos, com qualquer coisa de gelado nos olhos, e, depois,
para as pessoas que acabavam de entrar e que, sem nada de
inesperado, eram o casal Sophie e Jamie Stallard. Nick observou
Fábio avançando para os saudar e verificou que o gelo
desaparecera por completo, ouviu as banalidades cerimoniosas
que maitre e clientes costumavam trocar. Bom, era natural que
Fábio tivesse ficado abalado ao dar-se conta da transformação
por que Wani passara; porém, na sua reacção, havia mais
qualquer coisa, havia medo e desagrado, como se a presença de
Wani já não fosse boa para o negócio.
Sophie e Jamie encaminharam-se na direcção da mesa deles,
Jamie saudou Wani com umas palmadinhas no ombro e Sophie,
do outro lado da mesa, saudou-o franzindo o nariz todo, como se
isso substituísse o beijo que não ia dar-lhe. Jamie acabara de
fazer o protagonista de uma comédia romântica de baixo
orçamento, se bem que com o selo de Hollywood, e fora muito
elogiado pela sua excepcional recriação de um antigo aluno de
Eton, atraente, é certo,
mas um tanto obtuso, e com um cabelo muito dócil e maleável.
Sophie estava grávida e, portanto, desempregada, embora
grossos volumes que poderia muito bem ser argumentos de
filmes repousassem no cesto - com qualquer coisa de berço - que
ela trazia. Treat e Brad ficaram todos excitados com aquela
oportunidade de os conhecerem, visto que Jamie continuava a
ser um nome possível para Owen Gereth, em Spoils; cartões
foram trocados e visitas sociais que nunca viriam a acontecer
foram combinadas com óbvio deleite. Nada foi dito sobre a saúde
de Wani, embora Sophie, enquanto se afastavam na direcção da
sua mesa, olhasse para trás com um aceno só com os dedos e
um arrepiado sorriso de condolências.
- Uau, que amoroso que ele é! - disse Brad.
Nick, colhendo os louros das apresentações, disse: - O velho
Jamie...? É...
- Vocês conhecem-se há muito tempo?
- Sim, bom, uma vez mais, conhecemo-nos desde os tempos de
Oxford, estivemos lá todos. Para dizer a verdade, Jamie é muito
mais amigo de Wani do que meu.
Mas Wani parecia impenetrável a qualquer desenvolvimento mais
íntimo. Ficou muito quieto e calado, as mãos magras pousadas
sobre a toalha. O casaco de ombros largos estava abotoado, mas
espetava-se para a frente como um sobretudo folgado. Agora,
atraía a atenção dos outros pela compaixão e pelo respeito, tal
como, noutros tempos, o fizera pela beleza e pelo charme. A
exigência de atenção era uma constante, mas tornara-se mais
feroz e silenciosa. Nick pensou que, de certo modo, ele ainda
tinha um aspecto maravilhoso, ainda que admitir isso
equivalesse a fazer uma comparação insuportável. Tinha vinte e
cinco anos. Disse: - Stallard sempre foi uma figura absurda e
encontrou o parceiro perfeito na adorável Miss Tipper.
- Oh... - disse Brad. - Ela é... hmm...
- Foi um bom partido para ele. Ela é filha do nono homem mais
rico da Grã-Bretanha, e ele é filho de um bispo.
- Os bispos não devem ganhar muito, imagino eu - disse Treat e
deu mais uma chupadela na sua palhinha de cocktail.
- Os bispos não ganham absolutamente nada - disse Wani; e, um
segundo depois, ofereceu à mesa um sorriso radioso,

480 - 481

em honra da imbecilidade dos bispos. Os outros sorriram


também, numa cumplicidade nervosa. O rosto de Wani, emaciado
e manchado, ganhara novas possibilidades de expressão;
inesperadamente, ficara com o repertório de alguém que era não
só mais velho, mas também completamente diferente, alguém
que passava ignorado na rua. Devia ter-se examinado ao espelho
e ter-se retraído perante aquela imagem e erguido as
sobrancelhas e visto aquele intolerável desconhecido retribuindo
as suas caretas. Era indubitável que não podia ser considerado
responsável pelos mais recentes sobressaltos e ironias do seu
rosto, ainda que, em certos momentos, parecesse explorá-los. Os
ossos malares eram delicados, o osso frontal pesado, ou mesmo
brutal; era o rosto do pai, revelado, por vezes, no passado, pela
luz das velas, e, agora, exposto à luz do dia.
Nick disse: - Não sei se sabem: o pai de Wani recebeu o título de
lorde - sem saber ao certo a quem estava a tentar agradar.
- Oh! Uau! - disse Brad. - Isso quer dizer que você também será
lorde um dia?
Houve vários segundos de silêncio até que Wani disse: - Não é
hereditário. Já agora, Treat, que raio é que você está a beber?
- Nem pergunte...! - disse Brad, impaciente de tão embaraçado.
- É... como é mesmo o nome dele? Humphrey? A última criação
de Humphrey. É um Black Monday(1).
Wani pôs de novo o seu sorriso arreganhado, com um efeito
muito vivo e sarcástico. - Essa segunda-feira não demorou muito
- disse. Humphrey era o venerável barman do Gusto, guardador
(até certo ponto) de demoradas confissões e de segredos de
starlets.
- Toda a prática de Humphrey vem do Queen Mary. No que toca a
cocktails, não há nada que ele não saiba.
- Bom, isto tem; o que é que tem? Dark rum... cherry bran-dy...
sambuca. E montes de sumo de limão. Sabe a laxativo, a um
laxativo verdadeiramente de outros tempos - disse Treat.
- Eu já não posso beber - disse Wani -, mas, quando ouço uma
dessas, não me custa nada...

*1. Black Monday (Segunda-feira negra) foi como ficou conhecido


o dia 19 de Outubro de 1987. Nessa segunda-feira, o Dow Jones
Industrial Average caiu 22,6 %, ou seja, o maior declínio num só
dia nos registos bolsistas. Essa queda espalhou-se por todo o
mundo. (N. do T.)

482

Houve uma breve pausa. Treat passou com o dedo pela franja,
Brad suspirou e disse: - É... Eu queria perguntar... - Os dois
americanos, no seu jeito assaz simpático, pareciam aliviados
pelo facto de o assunto ter sido aflorado.
Wani baixou a cabeça, o queixo quase roçando o peito. - Oh, um
desastre - disse, franzindo o sobrolho, primeiro para um, depois
para outro. - Absolutamente inacreditável. Uma das minhas
malditas companhias perdeu dois terços do seu valor entre o
almoço e o chá.
- Oh... oh, certo - disse Brad, e soltou um riso constrangido. - É, a
nós também nos correu mesmo mal.
- Cinquenta biliões voaram da Bolsa de Londres num único dia.
Treat fitou-o sem contemplações, para lhe mostrar que
percebera, mas que admitia perfeitamente a fuga ao problema. E
até ofereceu: - É verdade, o Dow desceu quinhentos pontos.
- Santo Deus, se desceu - disse Wani. - Bom, a culpa foi toda
vossa.
Brad não contestou, mas disse que as perdas de empregos na
Wall Street tinham sido terríveis.
- Oh, que se lixe - disse Wani. - De qualquer modo, a Bolsa dá
sempre a volta por cima. Já começou a dar sinais disso.
Recupera sempre. Recupera sempre.
- É uma época preocupante para todos nós - disse Nick num tom
responsável.
Wani olhou-o com óbvia ironia e disse: - Estamos todos
perfeitamente bem. - Depois disso, tornou-se impossível abordá-
lo a propósito da sua doença fatal. Nick apercebeu-se de que
isso era desconcertante para os americanos, que o haviam
conhecido como um homem a um passo do matrimónio. Agora,
uma preocupação que era natural misturava-se com furtivos
apelos à memória.
Durante o almoço, Brad, tal como Wani, bebeu apenas água, e
Nick e Treat partilharam uma garrafa de Chablis. Treat mexia
imenso no braço de Nick e envolvia-o em conversas meio
bichanadas em torno de um eventual programa para mais tarde.
Nick esforçou-se por dar alguma vivacidade à conversação geral.
A frieza de Wani - o traço predominante da reunião - fazia com
que todos hesitassem. Wani parecia brincar com a ansiedade que
provocava neles.

483

Brad e Treat faziam perguntas e maravilham-se com a sua sorte,


já que tinham Wani para lhes responder. Se Nick respondia a uma
pergunta, Wani escutava-o e, depois, formulava um breve e
categórico aditamento ou correcção. A sua técnica consistia em
suscitar um assunto e mostrar que o dominava, descartando-o
depois com um sorridente desdém pelo interesse que os outros
manifestavam. Comia muito pouco e a repugnância que sentia
por aquela comida tão cara, e também por si mesmo, pelo facto
de não conseguir comê-la, entranhava-se na conversa. Olhava
para as lascas de galinha e para as translúcidas courgettes
como deploráveis símbolos do mundo do prazer, e agarrava-se à
mesa como que para resistir à ânsia de puxar lentamente - mas
irreversivelmente - a toalha; seria a única maneira de varrer dos
seus olhos toda aquela imagem.
A questão do filme emergiu de uma forma lenta; Nick, apenas
porque se tratava do seu próprio projecto, sentia algum
acanhamento em mencioná-lo. Passara meses a escrever o
argumento e era quase como se tivesse escrito o livro em que o
argumento se baseava: tudo o que queria era ouvir elogios.
Imaginava-se amiúde a ver o filme, no íngreme círculo do cinema
Curzon(1) - absorvendo o grato e unânime suspiro do público
perante a exacta transposição daquilo que escrevera; para dizer
a verdade, tinha a sensação de que também realizara o filme. À
noite, na cama, passava que tempos acordado, rendido à
felicidade que sentiria quando lesse a crítica de Philip French(2).
Fosse como fosse, tinha aparecido entretanto um outro filme
baseado em James, The Bostonians(3), e, imagine-se só, o
protagonista era o actor celebrizado pelo papel de Super-Homem.
- Seria até muito fácil imaginar a ironia do Mestre, já para não
falar da sua dissimulada excitação, perante uma tal ideia... -
disse Nick a propósito do Super-Homem, embora os outros, muito
provavelmente, imaginassem tanto a ironia como a excitação de
uma maneira bem menos expressiva do que ele.

*1. Cadeia de salas de cinema cuja programação foge ao domínio


do cinema americano para digestão rápida. (N. do T.)
2. Prestigiado e veterano crítico de cinema britânico, desde 1978
no Observer. (N. do T.)
3. Filme de James Ivory, de 1984, argumento de Ruth Prawer
Jhabvala, com Christo-pher Reeve, Vanessa Redgrave e Jessica
Tandy. (N. do T.)

484

- Oh, a propósito, nós adorámos as vossas cartas! - disse Treat,


apertando uma vez mais o braço de Nick: - Tão british!
- Bom, acho que devíamos falar sobre o... nosso filme - disse
Brad. Nesse preciso momento, o criado servia as sobremesas,
irresistíveis primores rodeados por amplas poças de um coulis
cor-de-rosa. Wani olhava para o seu prato como se a sobremesa
e o filme fossem confecções igualmente improváveis. - Ou
podemos falar na próxima semana...
- Eu não me importo de falar já - disse Nick, o coração num
desassossego. De súbito, parecia-lhe inacreditável que o seu
belo projecto, o melhor fruto da sua paixão por Henry James,
dependesse da cooperação daquelas duas estúpidas criaturas.
Apercebera-se já de que não se tratava de apenas de mudanças;
não, o que eles tinham em mente era uma traição muito mais
profunda ao seu projecto.
- Sinceramente, Nick, nós adorámos o que você fez.
- É, foi um trabalho bestial - disse Treat.
Brad hesitou, perscrutando a rede de algodão de açúcar que se
alçava do seu parfait de amoras-framboesas. - Sabem, nós já
falámos disto nas cartas, enfim, até um certo ponto. É só o
problema da história em que o rapaz não fica com a rapariga e,
depois, as coisas que provocam o conflito entre eles: os
Despojos(1), certo?, acabam todas a arder. Quer dizer, uma
história assim a modos que não presta mesmo.
- Deveras...? - disse Nick; e, tentando uma nota de charme: - Mas
é tal e qual como a vida, não é... talvez demasiado semelhante à
vida para uma... uma fita convencional. É sobre alguém que ama
as coisas mais do que as pessoas. E que, obviamente, acaba sem
nada. Eu sei que é triste, mas a verdade é que... creio... estamos
perante um livro provavelmente muito triste, ainda que,
essencialmente, seja uma comédia.
- É, eu não li o livro - disse Treat.
- Oh... - disse Nick, e ruborizou de um embaraço por procuração,
com a vergonha que Treat tinha a obrigação de sentir. A sua vaga
ideia de passar algum tempo com ele, sem mais ninguém por
perto, esfumou-se num suspiro e num encolher de ombros.

*1. Spoils, do título do romance de Henry James, The Spoils of


Poynton. (N. do T.)

485

- Leu o livro, Antoine? - disse Treat.


Wani estava com os lábios cor-de-rosa, colhendo, num jeito
rápido, quase mecânico, minúsculas porções de gelado,
chupando-as da colher e deixando-as deslizar em voluptuosos
espasmos, como uma criança com amigdalite; disse: - Não, não
li. Eu pago a Nick para fazer isso por mim.
- Não sei o que vocês pensam - disse Brad - da ideia de incluir
uma cena de amor muito breve entre Owen e... desculpem...
- Fleda - disse Nick. - Fleda Vetch.
- Fleda Vetch! - exclamou Treat, com um breve, mas sonoro, riso.
- Mas que raio de nome é esse? Quem ouve um nome desses,
pensa logo que é a rapariga mais feia de toda a escola!
- Pelo contrário, creio que é um nome tocante - disse Nick; e
Brad, do outro lado da mesa, fitou-o com um ar reprovador.
- Parece o nome de uma bruxa - murmurou Treat, como que
assentindo em calar-se; mas logo prosseguiu: - Quer dizer,
imaginem-me só a pedir a Meryl Streep para fazer o papel: «Oh,
Miss Streep, temos um papel que é óptimo para si, por favor, Miss
Streep, por favor faça o papel da adorável Fleda Vetch}» Quer
dizer, ela é muito capaz de pensar que eu acabei de vomitar para
cima do telefone!
Todos se riram, excepto Wani, que disse, muito calmo e superior,
como se Fleda Vetch fosse mais um dos convidados que
poderiam ver no casamento de Nat Hanmer: - O nome dela é esse
mesmo: Fleda Vetch.
- É, eu estou-me um bocado nas tintas para o nome dela - disse
Brad. - Mas... Owen e Fleda, nós precisamos de ver os dois juntos
mais vezes. Precisamos de alguma... paixão!
- Precisamos de vê-lo todo excitado, em brasa... - disse Treat,
dando uma olhadela para a mesa de Jamie. Depois, piscou o olho
a Nick. - Ele alguma vez... está a ver... - baixando a voz e
desviando os olhos num acesso de pudor - em Oxford... género,
com outros tipos, tenho a certeza de que ouvi alguém dizer...
- Ele é heterossexual - disse Wani.
- Oh, OK - disse Treat, com uma sacudidela da cabeça, como que
a dizer: Mas alguém falou de ele ser ou não ser hetero? No
entanto, havia no tom de Wani uma desolação que ultrapassava a
mera impaciência.

486

Estava pálido e imóvel, os olhos fixos na borda mais distante do


seu prato, mas sem dúvida dominado por alguma consideração
íntima absolutamente inadiável. Num gesto brusco, afastou um
pouco a cadeira para trás, e a bengala, que balouçava
precariamente nas costas, caiu no chão de mármore com um
tilintar estrondoso: girou na cadeira e baixou-se para a apanhar e
Brad levantou-se de um salto para lhe dar uma ajuda e pegou na
bengala e conseguiu absorver a censura que havia no ar e
tranquilizar o restaurante com o seu jovial aspecto de matulão. A
boca de Wani estava cerrada e, no seu rosto, cravara-se uma
expressão de iminente rendição que era intensamente privada, o
que fez com que Nick, por um segundo, evocasse o seu quarto.
Wani levantou-se e afastou-se num trôpego ziguezague por entre
as mesas.
Passados breves segundos, Nick seguiu-o, mirando o chão com o
sobrolho franzido, respondendo com um animado aceno ao
descontraído «Signore}» de Fábio. Na casa de banho de mármore
preto, havia dois cubículos e, num deles, com a porta ainda
entreaberta, Wani, todo curvado, vomitava. Nick entrou e, por um
momento, deixou-se ficar quieto atrás dele, antes de lhe pousar
uma mão no flanco; Wani logo se esquivou e sussurrou «Oh, foda-
se...» e se agachou, todo a tremer, enquanto vomitava de novo.
Parecia que o seu corpo estava a expelir muito mais do que a
miserável refeição que consumira. Nick afagava-o brandamente;
queria ajudá-lo e, ao mesmo tempo, desencorajá-lo. Com alguma
determinação, espreitou por cima do ombro dele e viu na sanita
os bocados de galinha e legumes boiando no charco de gelado
que ele vomitara mal entrara no cubículo. Arrancou uma série de
folhas de papel da máquina e perguntou-se se deveria limpar o
rosto a Wani; depois, decidiu ficar quieto e aguardar e Wani não
contestou a sua decisão. Pensou, com desolada hilaridade, que
aquele era o seu mais íntimo momento em muitos meses. Olhou
para as paredes negras raiadas de veios e deu por si a pensar
nas noites em que ali tinham estado, no ano anterior; por vezes,
ambos os cubículos ficavam ocupados e quem lá estava lançava-
se numa azáfama descuidada, o barulho do papel do embrulho e
da nota, parecia que o papel crepitava naquele silêncio, e o
ruidoso toque-toque do cartão de crédito. Havia uma prateleira
muito útil, sempre reluzente de limpa, por cima do autoclismo, e
eles entravam à vez. As noites passavam vertiginosas, num
fulgor inacessível à memória.

487

- Bom - disse Wani, agarrando-se à bengala e oferecendo a Nick


um sorriso receoso -, para Antoine, acabou-se oparfait.
Wani fora no seu carro para o Gusto e Nick levou-o de volta a
Lowndes Square. - Muitíssimo obrigado - disse Wani num
murmúrio arrastado.
- Não tens de quê, meu velho - disse Nick. Encostou defronte da
casa, do outro lado da rua, e, por um minuto, deixaram-se ficar
no carro. Wani respirava fundo, como que a preparar-se para uma
corrida ou um mergulho. Não tentava ajudar Nick explicando-lhe
o que sentia ou deixava de sentir, bom, na verdade Wani nunca o
fizera, ele tinha a sua própria lei e a sua própria licença. Se Nick
lhe perguntava como é que se sentia, reagia com desabrida
impaciência, tanto por Nick não saber como por Nick querer
saber. Era a injusta prerrogativa da doença. Nick estendeu uma
mão por cima do volante e limpou a fina poeira que cobria o
cabedal preto do tablier. Ah, como mudavam os carros com a
idade!; de início, eram todo um potencial de solidez e velocidade,
agentes de sonhos que guardavam em si uma cintilação de
sonho, um penetrante odor narcótico; depois, a pouco e pouco,
iam revelando todas as suas singularidades, todo o seu lado
tosco e deselegante, pormenores nunca antes sequer
pressentidos; entre uma moda e outra, pareciam esvaecer-se nas
trevas da degradação.
- Tenho mesmo de comprar um carro novo - disse Wani.
- Pois tens. Este está um horror, cheio de pó.
- Isto é uma porra de uma antiguidade.
Nick espreitou por cima do ombro para o exíguo banco de trás e
lembrou-se de Ricky, o estúpido génio dos velhos tempos (o que
era o mesmo que dizer: o Verão anterior), ali sentado, com as
pernas bem abertas. - Imagino que fiques com a matrícula.
- Mas é claro. Vale um milhar de libras.
- A velha e querida TOO(1)...
- Está bem... - disse Wani, esfriando perante qualquer nota
sentimental.
Nick olhou para cima de relance e viu Lady Ouradi espreitando
de uma das janelas da sala de estar. Afastou os cortinados

488

e os seus olhos fixaram-se nas folhas acastanhadas dos


plátanos, no longo e monótono abismo da praça. Nick acenou-
lhe, mas ela parecia não ter dado ainda por eles; ou talvez já os
tivesse visto, mas permitisse que o seu olhar errasse - e aquele
era um olhar com uma clara propensão deambulatória - pela
imaginada vista do passado ou do futuro. Reparou no seu austero
vestido de lã, na fiada única de pérolas. Para Nick, ela era uma
criatura da casa, de inimagináveis manhãs de exílio e de tardes
em que o tempo era medido, controlado; o seu gesto, ao afastar
os cortinados brancos, era como a eliminação de um meio
através do qual seria impensável que ela visse ou que fosse
vista.
- Estás bem de dinheiro? - perguntou Wani.
- Querido, eu estou óptimo. - Nick virou-se e sorriu para ele com a
maliciosa ternura de um ano antes. - Sabes, é que a tua pequena
prenda, o meu ponto de partida, não tem feito outra coisa senão
crescer. - Discretamente, agarrou na mão de Wani, pousada na
sua coxa. Breves segundos depois, Wani retirou a sua mão, à
procura do lenço. Desde que ele voltara de Paris, uma semana
antes, havia uma questão no ar; e só o orgulho de Wani obstara a
que a enunciasse: e não o faria por palavras, mas sim através de
um qualquer gesto corajoso e comovente. Em vez disso, disse:
- A sério, devias deixar a casa dos Fedden. Arranjar um sítio que
fosse só teu.
- Eu sei - disse Nick -, é uma idiotice da minha parte. A nossa
vida é um ramerrão a que, de algum modo, nos fomos
habituando... Duvido que eles consigam desenvencilhar-se sem
mim.
- Nunca se sabe... - disse Wani. Virou a cabeça e pôs-se a olhar
para o passeio, para as feias jardineiras de cimento dos jardins
da praça, para uma bicicleta presa às grades. - Estava a pensar
que poderia deixar-te o edifício de Clerkenwell.
- Oh... - Nick olhou de relance para ele e logo desviou o olhar, o
sobrolho quase carregado de choque e reprovação.
- Claro que, com isto, não estou a dizer que devas ir viver para lá.
- Bom, não, a questão não é essa...
- Suponho que é um bocado estranho, deixar-te uma coisa
inacabada.
489

Depois de respirar fundo duas ou três vezes, Nick disse: - Não


falemos dessa história de tu deixares coisas. - E prosseguiu, com
medonha delicadeza: - De qualquer modo, a obra já estará
acabada por essa altura. - Era impossível dizer a coisa certa. Por
um segundo, Wani sorriu-lhe friamente. Até agora, tivera apenas
a história da doença de Wani; contara a notícia e, por uma ou
duas vezes, conseguira dizer, com um efeito sinistro (embora
comovente), «Receio que esteja a morrer» ou «Por pouco não
morreu». Fora o seu drama particular, um drama em que sentira,
para além do horror e da compaixão perante o que se passava, a
palpitação de uma espécie de vaidade. Agora, sentado ao lado de
Wani, que lhe oferecia edifícios, sentia-se humilhado e
surpreendentemente raivoso.
- Bom, veremos - disse Wani. - Quer dizer, estou a partir do
princípio de que tu gostarias da prenda.
- Não me parece fácil pensar nisso - disse Nick.
- Nick, eu preciso de resolver estas coisas. Na sexta-feira, tenho
uma reunião com os advogados.
- O que é que eu faria com o edifício de Clerkenwell? - disse Nick,
num jeito arisco.
- Serias o seu proprietário - disse Wani. - Aquilo vai ter quase três
mil metros quadrados de espaço para escritórios. Podes arranjar
alguém que trate da gestão e podes viver das rendas o resto da
tua vida.
Nick não perguntou como é que uma pessoa como ele,
inexperiente em tais assuntos, ia agora encontrar um gestor.
Talvez Sam Zeman pudesse ajudá-lo nisso. A expressão «o resto
da tua vida» saíra-lhe sem pensar, quase como uma coisa sem
importância, um futuro que Wani não ia dar-se ao trabalho de
imaginar. Para Nick, era muito estranho encontrar essa
expressão ligada a um bloco de escritórios perto do Smithfield
Market. Wani sabia que ele odiava a arquitectura do edifício;
havia naquela prenda uma aguda ironia, ou mesmo uma espécie
de lição. - O que é que vais fazer em relação a Martine? -
perguntou Nick.
- Oh, exactamente o mesmo que tenho feito até aqui. Martine
continuará a receber a sua pensão, pelo menos até se casar.
Quando se casar, receberá, de uma só vez, uma determinada
quantia. E depois não recebe mais nada.
I
- Oh... - Nick saudou com um vago aceno de aquiescência a
sensatez de tais medidas, mas, depois, não conseguiu conter-se.
- Não sabia que lhe davas uma pensão - disse.
Wani ofereceu-lhe um sorriso furtivo; aquele mesmo sorriso que,
em tempos, fora ironicamente grandioso, mas que, agora,
possuía qualquer coisa de maligno. - Bom, eu não - disse. -
Pensava que tinhas percebido o esquema. A mamã sempre lhe
pagou. O termo mais adequado será «manter». A mamã sempre a
manteve.
- Estou a ver... - disse Nick, passado um momento, enquanto
pensava que, afinal, Wani lhe ensinara muito pouco acerca dos
costumes libaneses. Parecia procurar a discreta transacção no
espelho inclinado por sobre o consolo da lareira. Espreitou de
novo a casa, mas a mãe de Wani deixara cair os cortinados e
reinava a mais total discrição: a porta da frente escura, as
janelas veladas, o brilho discreto, baço, da posse. - Um arranjo
sem dúvida encantador, manter a namorada de um filho.
- Por amor de Deus - murmurou Wani, desviando o olhar.
- Ela nunca foi minha namorada.
- Não, claro que não, já percebi... - disse Nick, corando e
apressando-se a disfarçar a sua estupidez, ao mesmo tempo que
se sentia absurdamente aliviado.
- Claro que não deves falar disto ao papá. Nunca. É a sua última
ilusão.
Nick não se imaginava a ter grandes contactos com Bertrand
durante «o resto da sua vida». O inofensivo esteta conhecia já a
proibição daquela porta escura fechada: a qual se abriu enquanto
olhava para ela, revelando Monique e a velha criada, também de
preto vestida, prontas, é certo, mas sem darem um passo. - Estão
à tua espera - disse Nick com uma voz sumida.
Wani olhou para o outro lado da rua e, depois, quase fechava os
olhos com um desdém cómico. Todos os seus velhos hábitos
estavam ali; o tremor das suas pestanas trazia de volta todos
aqueles momentos em que Nick fruíra do egoísmo do amante.
Wani pegou na bengala, que estava ao lado do seu banco. - Como
é que vais para casa?
- Acho que vou a pé - disse Nick, precipitadamente apto.
- Fazia-me bem um pouco de exercício.

490 - 491

Wani puxou o manípulo e a porta escancarou-se para a fria tarde


azul.
- Sabes que te amo muito, não sabes - disse Nick; um segundo
antes de a dizer, a frase vogara insincera na sua mente; porém, o
facto de a dizer levou-o a sentir que talvez ainda fosse verdade.
Parecia uma maneira de disfarçar a deselegância com que
reagira ao testamento de Wani, de mostrar que procurava, um
tanto às cegas, é certo, um sentido das proporções. Wani fungou,
olhou para a mãe no outro lado da rua, mas não ecoou as
palavras de Nick. Nunca lhe dissera que o amava. Mas parecia
possível a Nick que pudesse senti-lo sem o dizer. Disse:
- A propósito, tenho de te avisar duma coisa: parece que Gerald
está metido em sarilhos.
- Oh, a sério? - disse Nick.
- Não sei exactamente o que é que aconteceu, mas tem a ver
com aquela operação de controlo da Fedray, o ano passado. Um
pequeno caso de contabilidade criativa.
- A sério? O quê? Estás a referir-te àquela história com Maurice
Tipper?
- É praticamente certo, creio, que Maurice fez tudo para proteger
a sua retaguarda. E é provável que Gerald também não venha a
ter problemas. Mas é muito natural que haja algum rebuliço.
- Santo Deus... - Nick pensou antes de mais em Rachel, e depois
em Catherine, a qual, nas últimas semanas, andava numa
excitação desenfreada. - Como é que sabes disso?
- Sam Zeman ligou-me antes do almoço.
- Certo - disse Nick, um tanto ciumento. - Tenho de lhe dar uma
telefonadela.
Saíram do carro e Nick avançou pela rua num passo lento,
arrastado; verificou que não era nada fácil acompanhar o passo
de Wani. Deu um beijo a Monique e explicou-lhe que Wani tinha
vomitado o almoço; ela acenou que sim com a cabeça, franziu os
lábios e engoliu em seco, num estranho reflexo mimético.
Mostrava-se digna e reservada, mas, quando tocou no braço de
Wani, o fulgor de um poder - há muito derrotado - sobre o filho
aflorou no seu rosto, o consolo animal de uma mãe a quem era
permitido amar e proteger o filho, mesmo contra tão
desesperadas expectativas. Quanto a Wani, de braço dado às
duas mulheres, parecia

492

encolher sob a sua protecção; a malícia social das últimas duas


horas, uma espécie de amparo, de alimento, abandonou-o na
soleira da porta. Esqueceram-se das suas boas maneiras e a
porta fechou-se de novo sem que ninguém dissesse adeus.

493

16.

Nick atravessou Knightsbridge e entrou no Hyde Park através do


Albert Gate. Balouçava os braços, e as coxas e as barrigas das
pernas doíam-lhe de um vigor culpado. Havia tanta coisa em que
pensar e o próprio parque parecia pensativo, os castanheiros no
meio dos charcos das folhas que haviam derramado, os grandes
plátanos, mais lentos a mudar, erguendo-se ainda em tons de
bronze e ouro; mas tudo o que ele queria fazer era continuar a
andar. Jovens mulheres montadas em cavalos desciam num trote
animado a Rotten Row e ele deixou-as passar antes de
atravessar a areia húmida, semeada de crostas. A brisa de
nordeste não lhe fazia diferença nenhuma. Aquela era a época do
ano em que a atmosfera transbordava de inesperadas sugestões
e memórias e de uma paradoxal sensação de renovação. Pensou
nos encontros que tinha com Leo, depois do trabalho, sempre
cedo, uma friagem de promessas no ar. Por uma ou duas vezes,
tinham-se encontrado no coreto, mais ou menos para aquelas
bandas, o coreto com o seu telhado de cobre em S: estranho que
essa forma específica tivesse flutuado sobre os seus esguios
pilares, por sobre o rápido beijo, o rápido afago, a estranha e
nervosa abstinência dos seus encontros. Meteu pela longa
diagonal que passava pelo monumento de Watts(1) à - ou da -
Energia Física: o cavaleiro, com as suas coxas imensas, brutais,
refreando o cavalo e mirando, num tumulto de descoberta,

*1. O texto refere uma estátua do Hyde Park, intitulada Physical


Energy, da autoria de George Frederic Watts (1817-1904), pintor e
escultor britânico. (N. do T.)

494

na direcção do Kensington Palace. Nick relanceou a estátua


naquele jeito presunçoso que mostrava que, na sua qualidade de
crítico, não podia deixar de reparar na mesma, e que, na sua
qualidade de londrino, quase não dava por ela.
Pensou no edifício de Clerkenwell. Aquilo que Wani comprara
eram três estreitos imóveis vitorianos que formavam um bloco de
esquina; um deles prolongava-se atrás dos outros numa oficina
alta, com telhado de ferro e vidro. Eram construções sólidas, de
um tijolo enegrecido que, com a demolição, revelara o seu tom
inicial, um vermelho arroxeado. Havia campainhas de negócios
moribundos, um biselador de vidro, um impressor de
«documentos legais e eclesiásticos». Havia janelas entaipadas,
instalações eléctricas industriais, o brando vandalismo do uso.
Wani levara-o a ver os três imóveis; a vontade de Nick era só uma
- restaurá-los e habitá-los. Desceu às caves, subiu aos sótãos,
abriu alçapões, subiu aos beirais do telhado cobertos com folha
de chumbo, espreitou, através do íngreme telhado de vidro, a
oficina por onde Wani deambulava no seu belo fato, as chaves do
carro girando na mão. Nick via já os amigos deles chegando para
as festas, dançando naquela sala. Mas havia qualquer coisa no
comportamento impaciente, desatento, de Wani, que lhe dizia
que isso nunca iria acontecer. Sentia-se como uma criança cujas
quiméricas e desesperadas súplicas nunca persuadirão um pai.
E, como seria de esperar, os prédios foram demolidos - por um
mês ou dois, as traseiras de outros prédios, nunca vistas durante
um século, sentiram a banal luz do sol, e, depois, a Baalbek
House, assim baptizada por Wani como se o edifício fosse um
poema escrito por ele, começou a crescer. Por mais
comparações que fizesse, Nick não conseguia - de facto -
encontrar nada que, do ponto de vista arquitectónico, fosse tão
falho de gosto, tão grosseiramente espaventoso como a Baalbek
House. As suas ideias foram apoucadas com os risinhos irritados
de alguém que desposara uma outra visão do sucesso e que, num
jeito provocatório, resolvera seguir o rumo do mau gosto - da
mais franca piroseira. E, agora, aquele monstro de peças de
Lego, com as suas janelas espelhadas e os seus revestimentos
de mármore castanho-avermelhado, ia pertencer a Nick por toda
a sua vida.
Quando meteu por Kensington Park Gardens, lembrou-se do que
Wani lhe dissera acerca de Gerald e começou a andar mais
lentamente,

495

como se isso lhe permitisse resistir a uma estranha aceleração


dos problemas. Sentia-se relutante em falar com Gerald; o
deputado, quando não tinha razão, podia ser de uma
agressividade temível; e, quando precisava de apoio, era capaz
de um sarcasmo inesperado. O Range Rover estava estacionado
na rua; logo, era muito possível que ele tivesse voltado cedo do
Parlamento. Parecia ser um dado significativo. Como tantas
vezes acontecia, Nick não sabia o que os outros presumiam que
ele soubesse - tal como, de facto, não tinha noção daquilo que
realmente sabia, visto que, para ele, contabilidade criativa mais
não era do que uma expressão jocosa. Atrás do Range Rover, um
homem com um blusão de cabedal avermelhado, encostado ao
tejadilho de um carro, conversava com um outro homem sentado
ao volante. Levantou a cabeça quando deu por Nick e continuou
a conversar enquanto os seus olhos, numa sequência fluente,
pareciam persegui-lo, agarrá-lo, examiná-lo e largá-lo. Nick virou
no número 48 e olhou de relance para trás enquanto procurava
as chaves: o homem não despegava os olhos dele e ergueu o
queixo como se estivesse prestes a chamá-lo, mas depois não
disse nada. Sorria nervosamente. O amigo que estava ao volante
passou-lhe uma máquina fotográfica através da janela e o homem
encostou-a ao olho e tirou três fotos em dois segundos - Nick
ficou hipnotizado com a indolente precisão dos diques; e
demasiado surpreendido para saber o que sentia. Sentia-se
vitimi-zado e lisonjeado, extremamente importante e
completamente insignificante, visto que os repórteres - isso era
óbvio - não faziam a menor ideia de quem ele pudesse ser.
Pensou que, se queria manter uma atitude digna, não deveria
responder a nada, mas sentiu-se confuso pelo facto de eles não
lhe fazerem nenhuma pergunta. Demorou uma eternidade a abrir
a porta azul.
Na sala de entrada, tudo parecia calmo. Elena estava na cozinha
e Nick saudou-a e aguardou por algum sinal da parte dela. Estava
a preparar a «refeição e meia», a porção à parte, como a de uma
criança ou de um inválido, que era cozinhada para Gerald quando
se previa que ficasse até altas horas no Parlamento. - Já viu o
que se passa lá fora? - disse Nick. Elena mexeu expressivamente
na sua massa, mas disse apenas:
- Não sei.
- Gerald está em casa?

496

- Foi para trabalho.


- Oh, ainda bem...
- Miz Fed lá em cima com seu lorde. - Elena irradiava
ressentimento e Nick não se aventurou a explorar a causa desse
ressentimento, fosse ela Gerald ou aquilo que lhe estavam a
fazer: parecia ser tão imenso que, por certo, incluiria toda a
gente. - Leva tabuleiro? - disse ela.
A água na chaleira estava prestes a ferver e o tabuleiro estava
pronto - duas chávenas e os pequenos e doces lebkuchen de que
Rachel tanto gostava. Nick aqueceu o bule, deitou a água fora e
pôs duas colheres de lapsang. Era o conjunto em que as
chávenas e os pires tinham uma grinalda envolvendo um Petit
Trianon cor-de-rosa, agora baço e pálido devido à fúria da
máquina de lavar louça. Deitou a água da chaleira, agitou bem,
tapou o bule, pegou no tabuleiro. Elena olhou para ele com um ar
mais afável, mas abanou a cabeça. - É Rua da Vergonha - disse. -
É Rua da Vergonha, Nick. - «Rua da Vergonha» era o nome que a
revista Private Eye dava à Fleet Street(1), e que Gerald usara em
tempos para provocar Toby, mas Nick não estava certo se ela
queria dizer isso ou se queria dizer que Kensington Park Gardens
andava pelas ruas da amargura.
A porta da sala de estar estava aberta e Nick abrandou de novo o
passo antes de entrar. Lionel estava a dizer: - Se ele foi pateta a
esse ponto, então terá de enfrentar as consequências. Se não foi,
então teremos todos os recursos para demonstrar o facto. - O
seu estilo revelava a mesma placidez de sempre, embora sem a
habitual cordialidade: quem o ouvisse, pensaria por certo que
Lord Kessler acreditava que a primeira opção era a verdadeira e
estava já preocupado com a mancha que isso significaria para a
família. Nick chocalhou um pouco o tabuleiro e entrou. Rachel
estava de pé, junto ao consolo da lareira, e Lionel sentado numa
poltrona, e, por um segundo, Nick pensou na cena de Retrato de
uma Senhora(2) em que Isabel encontra o marido sentado e Mme
Merle de pé e se apercebe de imediato que eles são mais íntimos
do que havia pensado. - Ah,

*1. A Fleet Street é uma famosa rua de Londres que, durante


muito tempo, foi o centro da imprensa britânica. Apesar de os
principais jornais já não terem a sua sede nessa rua, Fleet Street
continua a ser sinónimo da imprensa britânica. Private Eye é uma
conhecida revista satírica britânica lançada nos anos 60. (N. do
T.)
2. Romance de Henry James, de 1881. (N. do T.)

497

meu caro... - disse Rachel, enquanto Nick avançava pela sala


com uma vaga mímica servil, que não foi reconhecida como uma
brincadeira. Lionel saudou-o com o olhar e prosseguiu:
- A que horas é que ele volta?
- Há uma votação a horas tardias... - murmurou Rachel.
E Nick, enquanto arrumava o tabuleiro, deu-se conta de que,
embora não tivesse apanhado nenhum segredo, havia detectado
a nota de uma amizade mais antiga, menos reservada, que nunca
encontrara antes, aquela inteligência partilhada entre irmão e
irmã.
- Muito obrigada - disse Rachel.
- Já lhe tiraram a fotografia? - disse Lionel.
- Já - disse Nick; e, por alguma razão, acrescentou: - Quer-me
parecer que não apanharam o meu melhor lado.
- Não, eles são um horror no que toca a esses pormenores - disse
Lionel, claramente decidido a mostrar, com o seu humor e com o
facto de se ter abandonado confortavelmente ao abraço da
poltrona, que não havia razão nenhuma para preocupações. - Eu
fui avisado, de maneira que entrei pelos jardins.
- Graças a Deus que existem os jardins - disse Rachel. - Com
quatro saídas, não conseguem fazer uma cobertura total da
casa.
Nick sorriu e hesitou. Faltava uma chávena para ele, mas, se
havia coisa que desejava naquele momento, era que Rachel e
Lionel o integrassem na conversa. Disse, não sem algum tacto: -
Há alguma coisa que eu possa fazer?
- Oh... - Lionel e Rachel olharam um para o outro, procurando uma
resposta no meio das suas próprias conveniências e incertezas.
Para Rachel, mesmo com a imprensa lá fora, talvez fosse
demasiado humilhante falar do caso. - Andam a dizer umas
coisas francamente odiosas acerca de Gerald - disse ela, no seu
jeito reveladoramente passivo.
Nick mascava em seco, mas lá acabou por dizer: - Wani... Ouradi
disse-me qualquer coisa acerca disso.
- Ah, bom... então quer dizer que as notícias já se espalharam -
disse Rachel.
- Minha querida - disse Lionel -, as notícias acabarão sempre por
se espalhar.
Rachel serviu o chá; parecia perdida naquela sinistra ideia

498

enquanto passava ao irmão uma chávena e o prato de lebkuchen.


- E quanto a Maurice Tipper? - disse ela.
Lionel triturou o seu biscoito num jeito vigilante que fazia
lembrar um esquilo e lambeu o açúcar dos lábios, antes de dizer:
- Maurice Tipper não passa de um canalha, um bandido feroz e
sem princípios.
- Quanto a isso não tenho a menor dúvida - disse Rachel.
- O que eu prevejo é que ele só ajudará Gerald se isso for bom
para ele.
- Mm... Eu vi Sophie ao almoço - ofereceu Nick. - Pareceu-me
extremamente evasiva.
- Graças a Deus que Tobias não se casou com essa criaturinha
falsa! - disse Rachel, agarrando-se a esse consolo antiquado e
rindo-se com um novo azedume e alívio.
- Tem toda a razão! - disse Nick.
- Há duas coisas que pode fazer - disse Lionel. - Obviamente, não
fale com ninguém. E seria muita maçada se desse um salto ao
quiosque mais próximo e me comprasse o Standard}
- Claro - disse Nick, de súbito mais nervoso por causa dos
fotógrafos.
- E uma terceira coisa - disse Rachel. - Não seria de mais se lhe
pedisse que tentasse encontrar a minha filha?
- Ah, sim... - disse Lionel.
- Ela anda num frenesim imparável - disse Rachel. - É impossível
ter uma ideia do que poderá andar a fazer.
- Bom, vou tentar - disse Nick.
- Ela não tem tomado a medicação? - disse Lionel,
simultaneamente firme e vago.
- Eles não conseguem acertar no tratamento - disse Rachel.
- Há dois meses, quase não falava; agora quase não consegue
parar de falar. É um horror.
Ambos olharam para Nick, que disse: - Vou ver o que posso fazer.
- Sentia que estavam a tratá-lo com uma certa dureza; era como
se lhe solicitassem que provasse a sua utilidade relativamente à
família. Depois, disse para si mesmo que aquele tom enérgico
podia ser uma marca de confiança. Uma estrutura de comando,
sempre presente, embora oculta sob a mais branda das
aparências, fora rapidamente reinstaurada.
499

Catherine chegou a casa por volta das seis. Estava a pensar


comprar uma casa em Barbados e tivera uma longa conversa a
esse respeito com Brentford. Quando a beijou, Nick percebeu,
pelo cheiro do cabelo, que ela estivera a fumar haxixe; parecia
combinar a euforia e o torpor. Os flashes disparavam enquanto
abria a porta, mas ela tratava-os quase como se fossem
fenómenos naturais, os meteoros da sua própria atmosfera. - Que
história é esta dos fotógrafos? - perguntou ela, mal esperando
por uma resposta. - Outra visita da primeira-ministra?
- Não exactamente - disse Nick, subindo as escadas atrás dela e
dizendo para si mesmo que a situação actual, quaisquer que
fossem os seus contornos, tornava uma visita da primeira-
ministra extremamente improvável. - Por onde é que andaste?
Estávamos a ficar preocupados - disse ele. Rachel estava ao
telefone, na sala de estar, conversando com Gerald, que se
encontrava ainda em West-minster; aparentemente, estava a
ouvir as palavras tranquilizadoras de que precisava; havia nela
qualquer coisa de estranhamente brando. Sorriu com um ar
indulgente para o retrato de Toby e disse: «Claro, querido, o que
há a fazer é seguir em frente com a maior normalidade... Vamos
tentar...! Ver-te-emos... Está bem, está bem.» Nick dirigiu-se para
as janelas da frente, que pareciam muito largas e luminosas
naqueles primeiros instantes do crepúsculo. Era perturbador
saber que havia repórteres à espera lá fora e, para mais,
repórteres cuja paciência mal fora posta à prova. A família nunca
fechava os cortinados; se alguém os libertava dos atilhos de
brocado, continuavam rigidamente encurvados e separados. Nick
abeirou-se um pouco mais para fechar as persianas, as quais,
devido ao escasso uso, desceram com alarmantes estalidos.
Quando Rachel lhe explicou o que se passava, Catherine pareceu
reagir com um vago entusiasmo. - Extraordinário... - disse.
- Para dizer a verdade, poderá ser bastante sério - disse Nick.
- Não estás a pensar em prisão, ou estás? - Talvez fosse o haxixe
que lhe dava aquele sorriso de uma especulação benevolente.
- Não - retorquiu Rachel num tom irritado. - Aliás, o teu pai não
fez nada, rigorosamente nada, de errado. É evidente que tudo
isto tem a ver com aquele homem odioso, aquele Tipper.

500

- Nesse caso, pode ser que Tipper vá para a prisão - disse


Catherine. - Ou o casal Tipper, seria ainda melhor.
Rachel pôs um sorriso que era quase um esgar; seria uma
maneira de dizer que o assunto com que a filha estava a brincar
a afectava de um modo demasiado íntimo. - Estão apenas a
investigar. Ninguém foi detido e muito menos acusado.
- Certo.
- O tio Lionel esteve cá e a visão que ele tem do caso é
extremamente tranquilizadora.
Nick murmurou em jeito de confirmação e disse: - Querem que
lhes sirva uma bebida?
- Seja como for, querida, tu sabes que o teu pai nunca faria uma
coisa dessas. Ele é demasiado experiente. Já não para falar da
sua honestidade, que é a toda a prova! - Rachel ruborizou um
nada com tal afirmação.
- Então quer dizer que já veio nos jornais?
- No Standard de hoje, não veio nada. E Toby diz que, no
Telegraph, não vão tocar no caso; ele falou com Gordon. O teu
pai diz que é mesmo o tipo de história que o Guardian adoraria
explorar e empolar.
- Eu vou beber... hum... - disse Catherine, avançando para a mesa
das bebidas com um sorriso fascinado, embora, no fim, se tenha
ficado por um gin tónico. Nick fez-lhe um gin, o zimbro perdido no
meio do quinino: quando ela estava na fase maníaca, era preciso
ter muito cuidado com álcool, contrariedades e divertimentos,
enfim, com todo e qualquer factor de excitação. Ergueram os
copos à altura do queixo e acenaram em jeito de brinde; o modo
como o fizeram não deixava de ser significativo.
- A questão, minha querida - disse Rachel -, é muito simples: por
ora, não devemos falar com ninguém. Voto de silêncio, como diz
o teu pai.
- Eu não sei nada sobre acções e obrigações, portanto não
precisam de se preocupar.
- Mas o problema é aquilo que nos fazem dizer... Querida... Ou
então desvirtuam o sentido das nossas palavras... Eles não têm
princípios.
- Eles não são teus amigos - disse Nick; esse fora o modo seco e
incisivo como Lionel pusera a questão.

501

- A moral deles é a moral das cascavéis - disse Rachel.


Catherine sentou-se num sofá, a cabeça pendente sobre o copo,
os olhos num vaivém entre Nick e Rachel. Começou a sorrir e a
mãe e Nick retraíram-se visivelmente, com a sensação de que
Catherine estava a troçar deles; porém, o sorriso alargou-se e
eles perceberam que tinha a ver com uma outra coisa, o
florescimento de uma firme crença, apenas aflorada com
divertido calculismo, de que eles partilhariam a sua felicidade. -
Tive um dia tão excitante - disse ela.
Jantaram na cozinha. Normalmente, Nick deliciava-se com as
noites em que Gerald ficava até tarde em Westminster - o
ambiente de aconchegante redução, de crise jocosamente
tolerada; se tinham convidados, ou se Gerald e Rachel saíam à
noite, a ausência de Gerald chegava mesmo a ser um factor
excitante: era como se sentisse um roçar de asas do poder; uma
tal ausência significava exigências e decisões mais importantes
do que o próprio jantar. Naquela noite, a sua ausência era mais
crítica. Estranho que ainda não tivesse voltado para casa. Estava
visto que atribuía uma grande importância ao facto de
continuarem a fazer a sua vida com a maior normalidade.
Catherine disse: - O que é que Gerald vai votar?
- Oh, querida, não sei... é óbvio que se trata de qualquer coisa
muito importante.
- Não podemos telefonar-lhe?
- Bom, ele não atende chamadas no seu gabinete. E, se estiver no
Parlamento, ou em qualquer outro local do Palácio - disse Rachel,
num tom impressivo -, é claro que é impossível apanhá-lo.
- Voltará logo após a votação - disse Nick. Sabia que Gerald tinha
o novo telemóvel de Penny; Rachel, pelos vistos, queria poupá-lo
à conversa da filha, uma das suas conversas destrambelhadas e
irrelevantes, ainda que a intenção dela fosse, por certo, levantar-
lhe o moral.
- O que é um takeover? - disse Catherine.
- Bom, é quando uma companhia compra outra.
- Uma companhia adquire a maioria das acções de outra - disse
Nick. - Desse modo, passa a controlá-la.
- Então e andam a dizer que Gerald não tinha essas acções?

502

Rachel retorquiu, como que filtrando judiciosamente os factos


para a filha: - Creio que, por vezes, as pessoas manipulam o
preço das acções.
- Tornam-nas mais valiosas?
- Precisamente.
- Ou menos, claro - disse Nick.
- Mm... - disse Rachel.
- E como é que fazem uma coisa dessas?
- Bom, suponho que as pessoas, enfim, de certo modo... hum...
- Mm... - disse Nick passado um instante, e tanto ele como
Rachel sublinharam com um sorriso indeciso a sua inexperiência
nas coisas do mundo.
- De qualquer modo, takeover não é o mesmo que asset-strip-ping
- disse Catherine.
- Não... - disse Rachel com uma firmeza hesitante.
- Porque é isso que Sir Maurice Tipper faz. Foi Toby que me
explicou. Maurice Tipper: Asset Stripper(1). É quando eles se
apropriam de determinada coisa, é como uma casa velha, por
exemplo, retiram todas as lareiras de mármore antes de
demolirem a casa.
- E põem toda a gente na rua - disse Nick.
- Exactamente!
- Claro que isso foi o que Badger fez, é o que dizem, por toda a
África - disse Rachel, com um esgar de culpa. - Não sei se é
verdade.
- Oh, Badger... - disse Catherine num tom que conseguia associar
a indulgência ao menosprezo. - O que será feito do pobre Badger?
Quer dizer, ultimamente não temos tido notícias dele.
- Viaja para o estrangeiro com muita frequência - disse Rachel,
como que para compensar a sua incerteza em relação a Badger.
- Vou entrar em contacto com ele.
- Bom, podias fazer isso, de facto.
- Vou pôr em dia as minhas relações com uma quantidade de
pessoas que desapareceram da minha vida. É tão patético,

*1. A expressão tem uma conotação pejorativa: «aquele que


despoja (determinada companhia) dos seus activos»; em termos
mais neutrais, poder-se-á falar de «fraccionamento dos activos».
(N. do T.)

503

perder-se o contacto com as pessoas - disse Catherine,


espreitando de um modo muito vivo, se bem que desconsolado, o
seu último Verão, quando tudo nela fora, de facto, patético.
- Estou certa de que ele não está à espera de uma chamada tua...
- disse Rachel.
- Por exemplo, hoje vi Russell.
- Ah sim? - disse Rachel com uma voz sumida.
- A mãe lembra-se de Russell?
- Oh, se me lembro.
- Eu também - disse Nick.
- Ele perguntou por toda a gente.
- Se fosse a ti, teria ainda algum cuidado com Russell - disse
Nick, oferecendo a Rachel um breve olhar de apoio.
- Oh, mas tudo isso já é passado...! - disse Catherine numa feliz
exasperação.
Mais tarde, voltou a lembrar-se de Barbados. - Se Gerald se
demitir - disse -, vocês já podem ir comigo para Barbados, era
perfeito, não era, quer dizer, até as coisas acalmarem.
- É muito amável da tua parte - disse Rachel. - Embora não possa
deixar de sentir que, nessa frase, há mais do que um «se».
- Oh, mãe, a casa em Barbados tem uma piscina enorme, para
além de ficar mesmo ao pé da praia. É só escolher!
- Não, claro, estou certa de que é maravilhoso.
- E é muito capaz de ser exactamente aquilo de que ele precisa.
Uma mudança completa de direcção.
- Tu tens as ideias mais estranhas quanto àquilo de que as
pessoas precisam - disse Rachel. - Já tinha reparado nisso.
- Bom, vejamos as coisas como elas são: com certeza que ele
não precisa daquele patético salariozinho de empee.
- Há uma coisa de que talvez estejas a esquecer-te: é que o teu
pai... o teu pai quer servir o seu país.
- Está bem, é muito simples. Quando voltarem, mergulham nas
obras de caridade! Provavelmente, é muito mais útil do que ser
Monstro da Segurança Social e cortar nos subsídios de toda a
gente. Gerald podia fundar qualquer coisa. A Fundação Gerald
Fedden. Quando acontecem coisas destas, é muito frequente as
pessoas passarem por uma mudança completa... de ideias, de
sentimentos, de visão do mundo. Algumas até começam a dar-se
com o povo.

504

- Bom, creio que o melhor será esperar para ver, não achas -
disse Rachel, dobrando o guardanapo e afastando a cadeira para
se levantar.
Nick e Catherine subiram à sala de estar. - Querido, não te
importas de pôr um disco - disse Catherine.
- Francamente, duvido que a tua mãe...
- Oh, só uma coisa assim agradável, estás a ver. Claro que não
estou a pensar em coisas género God-dammery. Pronto, está
bem, eu escolho. - Foi até ao armário dos discos, ajoelhou-se
com a cabeça espetada de lado, cantarolando num jeito
provocador enquanto escolhia um lp e se preparava para o pôr no
gira-discos. Nick ouviu a agulha a roçar o disco, os estalidos,
aquela espécie de crepitação.
- Baixa um pouco, está bem, querida...?
Ela baixou o som e exclamou, num jeito reprovador: - Tio Nick! -
As colunas debitavam já os pequenos e sinistros saltos com que
começam as Danças Sinfónicas, de Rachmaninov. - Aí tens. Tu
gostas disto - disse ela.
- Até certo ponto - disse Nick, apesar de saber até que ponto não
queria ouvir aquilo.
- Oh, é uma música maravilhosa - disse ela, olhando do palco
para um invisível balcão nobre enquanto erguia os braços. Nick
adorara aquela peça na sua adolescência; no seu primeiro ano
em Oxford, pusera o disco vezes sem conta, já que as Danças
Sinfónicas confirmavam e intensificavam o desejo nostálgico
que, agora, lhe parecia ter sido o meio em que vivera, um meio
que passava diante dos seus olhos como aquela infindável
melodia do saxofone alto. Agora, a melancolia da peça parecia-
lhe penosa, senão mesmo mórbida. Seguia com uma atenção
moderada os movimentos rápidos de Catherine, que revelava
uma desinibição assustadora. Também ele dançara ao som
daquela música, mas sozinho, no seu quarto, bêbedo, no final de
dias iluminados ou não pelo contacto com Toby.
- É um bocadinho God-dammery - disse ele, enquanto um cântico
ortodoxo russo se fazia ouvir. Catherine agitava febrilmente os
braços. - É um bocado como ter uma discoteca na Catedral de
São Basílio em Moscovo. - Usava estes gracejos óbvios para
tentar desembaraçar-se do seu constrangimento. Catherine
sorriu,

505

estendeu-lhe uma mão e amuou por um segundo porque ele não


queria dançar. Nick pensou em como ela estava quatro meses
antes, arrastando o seu desespero de sala em sala, como uma
criança triste com um trapo de que não consegue separar-se; e
agora... pura química, ela era Makarova. Catherine não dava pela
melancolia, pelas insidiosas e evasivas harmonias; a música era
movimento e, portanto, vida. Disse: - Querida, o problema é que
estamos perante uma crise bastante razoável. Não sei se te dás
conta, mas a verdade é que tudo isto resulta muito estranho,
quer dizer, andares para aí aos saltos enquanto a tua mãe está
tão ansiosa, bom, todos nós estamos. - Falou conscientemente
como um membro da família, para disfarçar o desconforto que
sentia pelo facto de os termos da crise tornarem a sua presença
necessária e, ao mesmo tempo, dispensável. Catherine não lhe
prestou a menor atenção; pôs-se a cantarolar, serena, obstinada,
e, passado um bocado, parou de dançar como se por vontade
própria. Deambulou até à grande janela de sacada que dava para
as traseiras e pôs-se a fitar, através do seu reflexo, as luzes para
lá das árvores. As luzes parecer-lhe-iam talvez elementos de um
padrão, o qual, lido com a intuição certa para a forma e o
significado, poderia revelar uma qualquer instrução. Quando se
virou, ofereceu a Nick um sorriso que hesitou perante vários
registos possíveis de adulação. Sentou-se no amplo braço da
poltrona dele e deixou-se deslizar de lado até ficar sentada na
poltrona, comprimida contra ele.
- Já sei - disse ela -, vamos dar uma volta. Tens aí o teu carro?
- Hum... sim - disse Nick. - Está já ali, na esquina. Mas... bom,
Gerald já não deve tardar.
- Gerald pode demorar uma eternidade. Sabes muito bem que,
por vezes, eles não votam antes da meia-noite, sobretudo se
houver dilações manobrísticas.
- Ou manobrações dilatórias.
- Exactamente! Não vamos demorar muito. É só uma ideia que eu
tive.
Claro que a ideia de não estar presente quando Gerald voltasse
era particularmente atractiva. Rachel surgiu nesse momento e
Nick sentiu-se como uma criança apanhada a fazer qualquer
coisa que não devia, tanto mais que Catherine o esmagava
literalmente na poltrona,

506

como que envolvida numa tentativa de sedução adolescente, tão


provocante quanto agressiva. - Gerald acabou de ligar - disse
Rachel. - Parece que os trabalhos do Parlamento se vão
prolongar até muito, muito tarde. É uma lei a que ele tem de...
mm... sabem como é, a que ele tem de estar muito atento.
- Como é que ele está? - disse Catherine num tom afectuoso.
- Pareceu-me bem. Diz que, de facto, não vale a pena preocu-
parmo-nos. - Havia nela uma confiança nova, um fulgor quase
prazenteiro, e Nick não duvidava que Gerald acabara de dizer a
Rachel que a amava muito. Foi andando pela sala à procura de
uma qualquer pequena tarefa; encontrou pétalas de crisântemo
caídas no tampo de uma mesa, varreu-as para a palma da mão e
deitou-as no cesto dos papéis. - Oh, gosto disto - disse. - Não é
Rach-maninov? - Nesse preciso instante, a valsa triste do
segundo movimento como que explodia num incêndio tremendo.
Rachel deteve-se e, por um momento, contemplou o capricho de
Guardi, e, quem sabe, alguma memória íntima. Nick deu por si a
pensar que talvez ela pudesse também começar a dançar; de
súbito, parecia tal e qual a filha. Na realidade, porém, só nos
jogos dos advérbios ou das palavras é que Rachel se permitia um
pouco de tontice.
Catherine disse: - Mãe, Nick e eu vamos dar uma volta, é só meia
hora.
- Oh, querida... francamente!
- É que há uma coisa que temos mesmo de fazer. Não vou dizer-te
o que é, mas... Nós voltamos!
- Crês que será o melhor momento...?
- Aí está uma pergunta que eu também me faço - disse Nick.
- Eu não vou falar com ninguém, não te preocupes!
Rachel pensou um pouco e disse: - Bom, se queres sair, então é
óbvio que Nick deverá ir contigo.
- Vamos no carro dele, precisamente - disse Catherine. - Nick vai
estar comigo o tempo todo. - E puxou-o para ela e abraçou-o com
um riso deliciado.
Rachel olhou para Nick com um ar particularmente atento:
naquela pequena excursão, o elemento responsável seria ele.
Nick pensou que poderia oferecer mais resistência do que aquela
que realmente ofereceu. Pôs um meio sorriso, acenou num jeito
lento e semi-cerrou os olhos com um ar cansadamente tolerante.
- Por favor,

507

não demorem muito - disse Rachel. - E vão pelas traseiras. Levem


uma lanterna.
Saíram da sala e, quando começaram a descer as escadas, Nick
ouviu as fanfarras que interrompiam a valsa, não muito ruidosas,
mas ameaçadoras, e perguntou-se se Rachel continuaria a ouvir
as Danças Sinfónicas depois de eles terem partido. Toda a casa
parecia ter mergulhado numa deliberada atmosfera de romance.
Catherine recusava-se a dizer-lhe para onde iam. Limitava-se a
indicar onde e em que sentido devia virar. Nick reagia com
suspiros bem-humorados e sentia-se meio contente pelo facto de
ela não reparar na sua tensão enquanto a casa ficava cada vez
mais para trás, e Rachel, nela, sozinha. Quando contornaram
Marble Arch e meteram pela Park Lane, disse: - Até parece que
vamos para Westminster.
- Num certo sentido - disse Catherine. - Vais ver. - O seu
comportamento sedutor consolidara-se numa espécie de
vivacidade.
- Não faz o menor sentido irmos ao Parlamento.
- Não, não - disse ela.
Meteram por Grosvenor Place, serpearam ao longo da Victoria
Street, e, depois, seguiram a direito para Westminster. Surgiu a
fachada profusamente iluminada da Abadia e, um instante
depois, entravam disparados em Parliament Square; a fachada
cintilante do Big Ben, que produzia sempre em Nick um efeito
comovente, como a gravura preferida de um livro infantil, dizia
que eram nove e meia: estavam a soar as nove e meia, rotações
de ferro esbatidas pelo rumor dos autocarros. Disse, bastante
aliviado: - Não te esqueças de que eu não posso entrar lá dentro.
- Mas ela fê-lo virar à esquerda, na direcção de Whitehall; passou
pela Downing Street e pela Banqueting House, e, depois,
subitamente, seguiu na direcção do rio; por fim, Catherine disse-
lhe para meter por uma rua secundária, amuralhada por um
amplo edifício vitoriano que mal deixava ver o céu. Era um
elemento da paisagem ribeirinha londrina que Nick absorvera de
um modo quase inconsciente, sem nunca ter pensado (aliás,
também nunca ninguém o informara) no que aquele edifício
poderia ser: tinha uma imagem do seu telhado, reminiscente de
um château do Loire. Encostou do outro lado da
rua, ao pé de um obscuro departamento governamental. Toda a
rua se encontrava estranhamente mergulhada na escuridão,
excepção feita aos reluzentes abrigos de vidro das portas do
château, de algum modo rescendendo a candeeiros públicos a
gás e a carruagens puxadas por cavalos; num deles, recortava-
se a silhueta de um porteiro com um chapéu de pala. Por um
momento, uma sensação londrina, despercebida e perpétua
como a pulsação do trânsito, impôs-se de uma forma clara: uma
sensação de ordem e poder, rítmica e intrincada, infindavelmente
segura no que tocava à obediência. Foi então que se lembrou: - É
aqui que Badger vive, não é?
- Foi como uma mola, o facto de a mãe ter falado dele - disse
Catherine, como se estivesse a falar de uma importante
reviravolta.
Nick dava-se conta de que ela estava louca, de que a viagem era,
não uma inspiração, mas uma irrelevância. Afundou-se no seu
banco e franziu os lábios de mansa irritação. Procurava, não sem
alguma amabilidade, encontrar uma razão qualquer naquela
loucura. - Achas que Badger pode lançar alguma luz sobre este
caso? O mais provável é ele não estar cá, pois não, querida; ele
não foi para a África do Sul? - Mas ela já tinha aberto a porta do
carro e, no seu rosto e na sua voz, não havia o menor sinal de
que estivesse sequer consciente da preocupação de Nick ou de
qualquer eventual objecção. Catherine tinha a sua certeza, uma
fonte de alegria e tensão, como uma religião que, de súbito, lhe
fora revelada. A grande objecção de Nick era o facto de ele não
gostar de Badger e vice-versa; e também a certeza de que
Badger ainda o detestaria mais depois de ele lhe ter aparecido
em casa com aquela afilhada maluca. Na implacável
terminologia de Barry Groom, aquele era um apartamento para
foder e não aquilo a que se costuma chamar uma casa. Nick
tinha uma imagem de pequenos quartos, semelhantes a quartos
de hotel, onde Badger mantinha complicadas ligações com
mulheres muito mais jovens; de Badger declamando uma fala tão
falsa como as gravuras nas paredes e o armário Chippendale das
bebidas.
Avançaram sob um dos abrigos de vidro e através de um hall de
mármore castanho; um porteiro num cubículo estava a ouvir
rádio e retribuiu o aceno como se eles estivessem sempre a
entrar e a sair. Catherine, enfiada no seu casaco comprido
escuro, maqui-lhada, evangélica, tinha confiança de sobra para
entrar em qualquer sítio; a sensação de que estariam a tramar
alguma era toda de Nick.

508 - 509
Esperaram pelo elevador um tempo razoável, embora finito, um
tempo que não chegaria para voltarem para trás: Catherine
sorria, vibrante, as mãos enfiadas nos bolsos como pesos que lhe
escancaravam o casaco. - Tens a certeza de que queres fazer
isto? - disse Nick. Sabia que tinha a obrigação de cerceá-la, e, ao
mesmo tempo, estava a tentar acompanhá-la, a tentar
corresponder às suas expectativas. A convicção dela era um
desafio para uma pessoa razoavelmente cobarde. Sentia um vago
respeito intelectual pelas intuições dela, por muito loucas que
pudessem ser. Parecia-lhe que o estado em que ela se
encontrava poderia assemelhar-se à eficiente euforia da coca, se
bem que a um nível mais psíquico. Houve um tilintar de aviso, as
portas do elevador abriram-se e, de lá de dentro, num passo
rápido, saiu Penny.
- Penny! - disse Nick. Demorou-se um instante, dando aos
ombros, oferecendo-lhe um prestimoso meio sorriso. Catherine já
estava no elevador, os olhos semicerrados de concentração, a
respiração bem audível. Nick, sentindo-se um pateta completo e,
depois, sentindo também a vaga presunção de ter descoberto
qualquer coisa sem saber o que era, alargou o sorriso tanto
quanto pôde, e disse, num jeito atencioso: - Como está?
Penny parara e virara-se com um ar simultaneamente furioso e
assustado. Ficou muito branca; e, um momento depois, um
intenso e quente rosa surgiu nas suas faces redondas e logo se
espalhou (tudo isto em três ou quatro segundos, enquanto
Catherine batia com o pé e dizia: «Nick, vamos embora!») pelo
seu colo e pescoço e orelhas. - Hum, Nick - disse ela, num altivo
confronto com o seu enrubescimento -, para dizer a verdade, eu
não deveria... hum...
Nick, confuso, relutante em mostrar-se descortês, mas
desfrutando do enrubescimento de Penny enquanto tal e também
pelo facto de, desta feita, não ser ele a corar, tinha um pé no
elevador e bloqueava com o braço o avanço da porta, a qual,
obstinada, não desistia de reivindicar os seus direitos. - Como
está Gerald? - disse ele.
- Nick, vamos embora! - repetiu Catherine.
Nick recuou e Penny, abanando a cabeça e dando um passo em
frente, disse: - Ele não está aqui, Nick, ele não está aqui -
enquanto as portas se fechavam.
- E esta...?! - disse Nick. Olhou de relance para Catherine

510

e depois para o espelho da parede; no espelho, encontrou dois


estranhos constrangidos. Mesmo numa velha e abafadiça
mansão como aquela a palavra FODA-SE fora arranhada, por
certo com alguma coisa metálica, na porta de aço polido. Pensou
em Badger, fazendo-se incansavelmente a Penny, tantos anos
antes, quando ela começara a trabalhar para Gerald. Mas era
verdadeiramente horrível, uma daquelas histórias de rivalidade
hetero, porque, na verdade, Badger tratara de roubar a rapariga
não só a Nick, que se estava nas tintas, mas também ao seu
melhor amigo, o qual, pelo contrário, se importava e muito. Deu
por si com um sorriso patetamente satisfeito, olhou para o
espelho e disse: - Santo Deus, querida, Badger vai ficar furioso! É
óbvio que isto não era para nós sabermos. - Mas o elevador parou
e Catherine, num ápice, passou por ele com uma carranca
trocista, como que a dizer que era muito azar, ter-lhe calhado um
amigo tão tapado ou tão medroso.
Seguiu-a ao longo de um corredor com uma alcatifa vermelha;
passaram por várias portas envernizadas a castanho, com
campainhas e placas com nomes; de um lado, janelas
encaixilhadas, com vidros castanhos e amarelos, davam para
pátios interiores, iluminados agora apenas pelas pálidas janelas
das traseiras de outros apartamentos. De um dos apartamentos,
chegava o barulho de uma televisão, mas, tirando isso, o som era
amortecido como que pela mais circunspecta discrição. A
subliminar sensação da luz do gás, de um recuo no tempo à
medida que mergulhavam nas profundezas daquele monstruoso
edifício, era sem dúvida opressiva, mas também tinha, pelo
menos para Nick, algo de distractivo: por um momento, a sua
mente passeou pelo dado apainelado, pelas curvas, em forma de
pescoço de ganso, dos apliques de iluminação. A última porta à
esquerda estava um nada entreaberta, aguardando talvez que
Penny voltasse. Catherine carregou na campainha e, por um
momento, ficaram a olhar para o cartão na moldura metálica: «D.
S. Brogan Esq.»(1), rezava o cartão. Uma voz profundamente
familiar gritou: «Está aberta!», e Catherine fitou o rosto de Nick
com um fulgor vindicativo antes de lhe dar o braço. Era muito
pior do que Nick pensara.

*1. Esq., abreviatura de «Esquire», originalmente um título para


filhos de nobres. Hoje, o termo é frequentemente usado em vez
de Mr. em documentos oficiais e correspondência formal. (N. do
T.)

511

Não queria entrar e teria fugido a toda a pressa se ela não o


tivesse agarrado com toda a sua força. Ouviu-se um sonoro
suspiro, um brando ruído de passos e Gerald abriu por completo
a porta. Não tinha sapatos, nem casaco, nem gravata, e o botão
de cima da camisa estava desapertado, de tal forma que o
colarinho se erguia enviesado. Na mão esquerda, segurava um
cigarro. Nick disse: - Oh, olá, Gerald! - e Catherine, chispando de
indignação, atirou-lhe: - Pai! Não disse que tinha deixado de
fumar?!

512

17.

(I)

Os fotógrafos não tardaram a descobrir a importância dos jardins


comunais, embora se tivessem espalhado para cobrir os quatro
portões que rodeavam a casa. Montaram os seus escadotes e
espreitavam por cima do gradeamento e dos arbustos periféricos
através de binóculos e teleobjectivas, sonhando com
instantâneos. As folhas caídas estavam do seu lado. A busca da
notícia associava-se a um exercício de paciência. Falavam num
jeito confiante para os seus telemóveis. Eram rivais que, de tanto
se encontrarem, acabavam também por ser amigos, camaradas
que partilhavam a sua indiferença em relação às vítimas
bebendo tampas de garrafas-ter-mos cheias de chá. Trocavam
sardónicos brindes açucarados e clareados com um pingo de
leite. Até que o portão da casa se abria, revelando por exemplo
Toby, que trabalhara durante algum tempo com aqueles tipos e
que, agora, lhes fugia, avançando, por exemplo, na direcção de
uma das saídas e, depois, mudando de rumo e correndo para
outra - e os fotógrafos lá iam num vaivém, praguejando, com os
equipamentos a chocalharem; um ou dois saltavam para dentro
de carros. Geoffrey Titchfield também não tardou a fazer
patrulhas de hora a hora nos jardins, depois de vários daqueles
abutres, como ele lhes chamava, terem pura e simplesmente
usado os seus escadotes para escalarem o gradeamento e
entrarem nos jardins. «Os senhores não têm chave», dizia ele.
«Tenho de lhes solicitar que abandonem imediatamente o local.»
Sir Geoffrey sentia-se profundamente vexado com todo aquele
episódio. A exposição do seu ídolo

513

- um choque devastador para ele - era clarificada e ampliada,


como a ameaça de um tumulto mais amplo, por aquelas
incursões nos jardins.
Na fachada da casa, os cortinados ou as persianas mantinham-se
fechados, de forma que, lá dentro, o dia tinha a cor de uma
aterradora ressaca ou de qualquer outro fiasco matinal. A luz
eléctrica combinava-se com a difusa luz do sol para produzir uma
claridade nauseante. Todos os jornais iam chegando como de
costume, no seu longo e arrítmico colapso no tapete da entrada,
onde jaziam como uma ameaça e eram finalmente enfrentados
com a relutância com que se encara uma coisa nojenta. E lá
estavam eles, o mp Milionário, a sua Elegante Esposa, a sua
Loura, ou a sua Secretária Loura Muito Corada. «Filha perturbada
fala de ligação extra-con-jugal de ministro.» Pelos vistos,
Catherine falara com Russell e Russell falara com um velho
amigo do Mirror; depois disso, impossível deter a avalanche. Por
muito estranho que pudesse parecer, em todas as fotografias,
«Cathy, uma jovem com o coração destroçado», sorria com
sublime convicção. Assim correu o primeiro dia.
Ao segundo dia, Gerald, indignado com a degradante correria
pelos jardins - pensando, por certo, na tremenda figura de parvo
que fizera perante os outros frequentadores dos jardins, alguns
passeando os cães, outros queimando energias nos courts de
ténis - pôs o seu chapéu de feltro de aba mais larga e um
sobretudo escuro assertoado e saiu pela porta da frente rumo ao
estúdio de cinema montado na rua. Carrinhas estacionadas,
holofotes, câmaras de TV de trazer ao ombro, longas perches
com felpudos microfones na ponta, a turba de repórteres - tudo
ganhava vida e sentido com o seu aparecimento. A fachada da
casa, recentemente pintada de branco, reflectia os clarões dos
flashes. Gerald, como de costume, parecia ir buscar energias à
atenção dos repórteres. Fizesse o que fizesse, ele era a estrela
daquela fita. Nick, espreitou por detrás de um cortinado, viu-o
avançar para o passeio e ouviu-o dizer bem alto, num tom cordial
e tão suave que roçava a afectação: «Muito obrigado, meus
senhores, não tenho nada a dizer.» A imprensa estava em frente
dele numa meia elipse cujo centro era o chapéu de feltro de aba
larga. Chamavam-lhe Sir e Gerald e Mr. Fedden e Senhor Ministro.
«Vai deixar a sua mulher?», «Por aqui, Gerald!», «Mr. Fedden, é
culpado de utilização de informações privilegiadas?»,

514

«Onde está a sua filha?», «Vai demitir-se, senhor ministro?».


Nick apercebia-se do extremo prazer que lhes dava toda aquela
chacota envolta num disfarce grave, aquele breve mas decisivo
sentimento de que o poder estava nas suas mãos. Parecia-lhe
verdadeiramente assustador. Perguntou-se aonde é que iria
buscar a determinação necessária se um dia tivesse de enfrentar
uma situação semelhante. Gerald avançava lentamente, nos
limites da paciência, firme na defesa do seu caso e confiante no
facto de que conhecia a forma exacta (por muito humilhante que
fosse o conteúdo) de chegar ao Range Rover; no qual finalmente
entrou e logo partiu, quase atropelando alguns fotógrafos, rumo
ao Parlamento, a fim de apresentar a sua demissão.
Nick deixou cair o cortinado, contornou cuidadosamente as duas
camas de hóspedes e encaminhou-se para a luz que vinha do
patamar. Nesse preciso instante, Rachel saía do seu quarto. -
Lamento imenso esta absurda obscuridade! - disse ela. - Dei-me
conta de que sinto a maior relutância em ser fotografada. - Havia
no seu tom uma desenvoltura que dissuadia todo e qualquer nota
de solidariedade.
- Eu compreendo.
Trazia um tailleur de lã vermelho e preto, um colar, quatro ou
cinco anéis; ficaria bem numa fotografia - quanto a isso não
havia dúvida. Nick olhou de relance para lá dela, para o quarto
branco envolto em sombras. Havia a primeira porta, que dava
para uma pequena antecâmara por onde se tinha acesso à casa
de banho, e, depois, a segunda porta, uma espécie de barreira
que sempre encerrara o casal numa privacidade grandiosa. Nick
viu os pés da cama, uma mesa redonda com fotografias dos
filhos em molduras de prata. Mal entrara naquele quarto desde o
seu primeiro Verão, desde esse Verão em que deambulara por ali,
tão silenciosamente quanto seria possível, as mãos atrás das
costas, um intruso no templo do amor conjugal; na ausência do
casal, as suas fantasias amorosas haviam-se apossado
invejosamente daquele espaço, como ocupantes de casas
assenhoreando-se de uma velha mansão.
- Mm, estranhos tempos estes - disse Rachel, de novo como se
estivesse a falar com alguém que mal conhecia e que,
instintivamente, repudiava, alguém com quem tinha de estar
porque havia uma crise que a obrigava a isso: Nick procurava a
ironia terna que

515

costumava acompanhar os seus breves diálogos, mas parecia-lhe


que, até esse momento, não a tinha encontrado. Rachel talvez
soubesse que ele sempre soubera da ligação entre Gerald e
Penny; talvez a sua secura fosse uma forma de amargo
constrangimento.
Disse: - Pois é... - Sentia uma tristeza imensa por ela, mas não via
como exprimir esse sentimento; era uma estranha inibição. De
algum modo, aquele era o momento certo para uma nova
intimidade, e Nick nutria a esperança de que conseguiria atraí-la
a esse patamar mais elevado no seu relacionamento.
Vislumbrava algo de belo para ambos, emergindo dos destroços
do casamento: a velha aliança que os unia, aquela superioridade
cúmplice que alimentava neles uma secreta irrisão face à
pomposidade de Gerald, floresceria e seria, para ela, uma fonte
de força. Nick sentia-se hesitante, mas estava sem dúvida pronto
para isso.
Rachel olhou para ele, os lábios numa crispação que logo
amansava; depois, afastou-se. Passou pelo retrato de Catherine
pintado por Norman Kent e nem reparou nele, ainda que, para
Nick, aquele quadro não deixasse de desempenhar um papel
óbvio no momento que estavam a viver. - Gostaria muito que você
fosse buscar Catherine - disse ela, já a descer as escadas.
- Oh... - disse Nick, seguindo-a, com um riso nervoso de que logo
se arrependeu.
- Catherine devia estar aqui com a família - disse Rachel sem se
virar. - Ela precisa de assistência. Não imagina a preocupação
que sinto por saber que está com aquele homem.
- Claro, a sua preocupação faz todo o sentido - disse prontamente
Nick, «todo o sentido», apercebendo-se de que precisava de um
tom novo para consolar uma mulher que tinha o dobro da sua
idade. Sentia que estava a aprender enquanto falava e deu-se
conta de que todas as preocupações de Rachel encontravam um
escape naquela preocupação específica com a filha. Disse: -
Estou certo de que ela está em segurança com ele, mas, se quer
que eu vá, eu vou; irei de bom grado - avançando e logo recuando
num ansioso acesso de apoio e respeito. A verdade é que tinha
pavor aos repórteres e fotógrafos: não sabia como lidar com
eles, não sabia lidar com ninguém que não desse provas de apoio
e respeito. E sentia uma desconfiança tremenda em relação a
Russell, que parecia ter desencadeado, quase por acidente,
aquela exposição de Gerald

516

(apesar de a desejar há muito, muito tempo), e que, agora,


estava «a cuidar de Cath» no seu apartamento em Brixton e
impedia toda a família de a ver.
Rachel chegou ao patamar do primeiro piso. - Quer dizer, eu não
posso ir lá; teria a imprensa toda atrás de mim. - Era como se ela
corresse perigo só por ter descido ao primeiro piso. O mundo
para lá da sua porta revelara-se um lugar não só insólito como
também hostil. E o seu mundo doméstico fora abruptamente
espoliado de todo o conforto. Virou-se e o seu rosto era uma
máscara rígida; só os lábios se moviam. Nick pensou que ela ia
começar a chorar, e, de certo modo, era isso que ele desejava
que acontecesse, já que seria uma reacção perfeitamente
natural, para além de um sinal de confiança; poderia abraçá-la,
coisa que nunca tinha feito. Via já o seu queixo aninhando-se,
num movimento rápido e sensual, no ombro do casaco de lã, o
cabelo raiado de grisalho de Rachel roçando a boca dele; ela
estreitá-lo-ia com um arrepio de aceitação e libertação, e,
passado um instante, Nick conduzi-la-ia à sala de estar, onde se
sentariam e decidiriam o que fazer com Gerald.
- Não, claro, não deve fazer isso... - disse ele. - Obviamente.
Observou-a; Rachel pestanejou rapidamente e escolheu um
tipo diferente de libertação: - Quer dizer, já que você é tão bom a
arrancar as pessoas às suas tocas!
Nick não rebateu esta farpa, a primeira que, em tantos anos de
convívio, Rachel lhe espetava. Limitou-se a dizer «Oh...», de um
modo quase decoroso, desviando o olhar para a carpete, para as
pernas da mesa Sheraton, para a entrada da sala de estar,
brilhante de encerada. Sentia-se de rastos; Rachel prosseguiu:
- Sabe, é que, de facto, nós contamos muito consigo no que se
refere à vigilância de que Catherine necessita.
Nick sabia que já ouvira aquele tom. Perguntou-se em que
circunstâncias e depressa se lembrou. Fora num dos seus
repentes de exasperada franqueza, a propósito de um qualquer
funcionário do Partido, um simplório qualquer presente no
Congresso, um dos seus comentários breves, adoráveis e
inesperadamente divertidos. - Bom - disse ele -, eu tenho
tentado... como presumo que saiba. - Não encontrou em Rachel
nenhum sinal que corroborasse o que acabava de ouvir. - Mas,
sabe, Catherine é uma pessoa adulta, é ela quem comanda a sua
própria vida...! - E juntou-lhe o riso rando
517

qe era a expressão de uma convicção sensata; até então, nunca


precisara de mais do que esse riso brando para conquistar a
aquiescência de Rachel.
- Bom, isso é o que você acha! - retorquiu ela, com uma variedade
de riso completamente diferente, um único e agreste riso
gutural.
Nick encostou-se ao corrimão de mogno e procurou adaptar-se
às novas circunstâncias. Disse, num tom muito ponderado: -
Creio que sempre fui um bom amigo de Catherine, tão bom
quanto ela mo permitiu ser. Como sabe, com ela, os amigos vão e
vêm, e não há nenhum que não a decepcione. Permito-me supor
que tenho procedido bem com ela, visto que Catherine continua a
confiar em mim.
- Não, estou certa de que ela lhe tem afeição - disse Rachel -,
todos nós temos - num tom intenso mas condicional, como se a
questão não tivesse grande importância. - O grande problema
está em saber se você tem feito aquilo que é melhor para ela e
não simplesmente... conspirar com ela naquilo, seja lá o que for,
que ela quer que você faça. Catherine tem uma doença muito
grave.
- Sim, claro - murmurou Nick, e a rigidez do seu rosto era a
resposta à ferroada de que acabava de ser vítima. Rachel
aguardava, como que tomando o pulso aos seus próprios
sentimentos; Nick mirou-a num relance, viu-a pestanejar de novo
e respirar fundo para soltar apenas um penetrante suspiro de
ressentimento. Nick disse: - Eu deixei-a com Gerald... na outra
noite. Tudo indicava que fosse uma situação perfeitamente
segura.
- Ah, sim, segura - disse ela. - Para começar, ela nunca deveria
ter estado naquele sítio.
- Garanto-lhe, eu não sabia para onde é que ela me levava...
- Ela não o levou para sítio nenhum. Você é que a levou, não sei
se está lembrado, naquele seu carrinho horrível.
-Oh...!
- Desculpe - disse ela, e Nick ficou sem saber se o «Desculpe»
seria uma retractação instantânea ou uma confirmação feroz do
comentário que acabara de ouvir. O seu impulso era perdoar-lhe,
franziu ternamente o sobrolho, o reflexo de um miúdo que não
suportava ter feito algo de errado. - Você sabe como ela estava.

518

Quem sabe o que estará a passar-se com ela agora, sem tomar o
Librium nem nada.
- Mm... olítio...
- Sabe, trata-se apenas de uma questão de responsabilidade.
Quer dizer, nós sempre partimos do princípio de que você tinha
noção das suas responsabilidades para com ela, e para
connosco,
claro.
- Oh, bom, sim...! - Nick disparou um sorriso em jeito de
comentário à ferroada.
- Tínhamos imaginado que nos contaria se, por exemplo, se
passasse algo de verdadeiramente grave. - O tom firme de
Rachel e os trejeitos com que enfatizava as suas afirmações
eram uma novidade para Nick; pareciam marcar uma mudança
no seu relacionamento, uma mudança que não seria fácil
reverter. Nick estava habituado aos seus afáveis assentimentos,
às suas objecções singularmente joviais... - Por exemplo, só
ontem à noite é que nós soubemos daquele episódio tão grave
que se passou há quatro anos.
- De que está a falar? - disse Nick abanando a cabeça. O «nós»
era perfeitamente irritante, a manifesta solidariedade com
Gerald.
- Creio que sabe muito bem do que estou a falar. - O olhar de
Rachel fixou-se nele; havia nesse olhar uma repugnância
complexa; que ela prolongava numa resistência a exprimi-la por
palavras. - Nós não fazíamos ideia de que ela tinha tentado...
fazer mal a si mesma... Estávamos nós de férias em França.
- Não sei o que lhe disseram. De qualquer modo, ela não fez mal
nenhum a si mesma. Pediu-me que não a deixasse só, e eu não a
deixei só, e depois ficou bem, está a ver, o que ela teve foi
apenas uma das suas crises.
- E você nem uma palavra nos disse - disse Rachel, pálida de
raiva.
- Por favor, Rachel! Ela não queria que vocês ficassem
preocupados, ela não queria estragar as vossas férias. - Nick
reencontrava os álibis que, entretanto, quase esquecera, bem
como a aflitiva sensação de que perdera o pé e não sabia nadar. -
Eu estive sempre com ela, conversei com ela enquanto a crise
durou. - Não faltava jactância à tirada, dita num tom trémulo,
embargado.
- Sim, Catherine disse que você se comportou com ela de uma
forma maravilhosa

519

- disse Rachel. - Pelos vistos, desmanchou-se em elogios a seu


respeito, na conversa que teve com Gerald na outra noite. - Nick
não tirava os olhos do chão, e o seu olhar dançava ao ritmo dos
corrimãos pretos e dourados, da sua forma em S. Depois, para lá
dos corrimãos, e por baixo, ouviu o som arranhado da chave na
fechadura da porta da rua, uma voz vinda da rua dizendo «Anda
cá, amor!», e a aldrava a saltar e a bater quando a porta se
fechou com estrondo.
Rachel ficou onde estava, na sua própria casa e na sua
indignação, e Nick afastou-se dela num jeito vagaroso, agarrado
ainda, se bem que de uma forma relutante, à trama das suas
acusações, e desceu uns quantos degraus para espreitar por
cima do corrimão. Mas não era Catherine. Era Eileen, a «velha»
secretária de Gerald. Eileen espreitava fixamente pela caixa das
escadas.Vestia um casaco comprido escuro e, na mão, tinha uma
malinha preta. Dir-se-ia alguém que viera para uma festa
elegante na noite errada. Nick pensou que ela devia ter querido
pôr-se bonita para a imprensa. - Olá, Eileen - disse.
- Achei que era melhor vir para tratar das coisas.
- Boa ideia - disse Nick.
- Eu disse que vou dar um jeito às coisas!
- Uma ideia maravilhosa. - Nick sorriu com a polidez efectiva,
mas finita, de alguém que acaba de ser interrompido; juntou
mesmo ao sorriso uma cordialidade veemente. No seio da
família, sempre correra, como uma divertida anedota, que Eileen
nutria uma paixão assolapada por Gerald, o qual mantinha uma
indecorosa troça em relação à sua eficiência e capacidade de
planeamento. Eileen fazia parte da imagem inicial que Nick tinha
da casa, naquele primeiro e mágico Verão de posse que Rachel
estava agora a virar do avesso como uma pedra. Por essa altura,
era ela quem dava um jeito às coisas. Elileen avançou e pôs a
mão na apertada espiral que rematava em baixo o corrimão.
- Trouxe o Standard - disse ela. Tivera-o bem preso na outra mão,
quase escondido atrás dela, como se o seu corpo fosse um
escudo capaz de proteger os visados. - Não me parece que vá
gostar muito do que aqui vem. - Subiu alguns degraus e Nick
desceu, com a vaga sensação de estar a receber um mandado
judicial,

520

e pegou no Standard. Considerou que devia mostrar-se


especialmente zeloso e poupar Rachel à violência da página
impressa. Assumiu um ar eficiente, um pé no degrau acima, e
revolveu o jornal até o pôr direito.Viu a sua própria fotografia e
pensou «Já volto a isso num segundo», e olhou para o título, o
qual não fazia sentido, e olhou de novo para a foto e para a outra
foto ao lado, que era de Wani. Quase não havia espaço para o
artigo propriamente dito. As palavras e as fotos, pela violência
da sua presença, excluíam toda e qualquer noção daquilo que
poderiam significar. Sentiu uma estranha pena de Bertrand:
«Filho playboy de lorde tem sida.» Esse era o subtítulo. «Casa de
ministro e sexo gay: um novo elo.» Difícil digerir tudo aquilo. Não,
de facto não descia lá muito bem. Nick teve uma estranha
sensação subliminar de que o corrimão não estava ali e de que o
soalho da sala de entrada se arremessara ao seu encontro; era
como se estivesse a desmaiar, embora permanecesse totalmente
consciente. Uma coisa sabia: eram muito más notícias. Depois,
percebeu de onde é que tudo aquilo viera, e começou a ler o
artigo; sentia como que um martelo batendo constante no
esterno.
(II)

- Raios me partam, Nick...! - disse Toby na manhã seguinte. Nick


mascava em seco. - Eu sei...
- Não fazia a menor ideia. Nenhum de nós fazia. - Afastou o seu
exemplar do jornal Today, fazendo-o deslizar ao longo da mesa da
sala de jantar, e afundou-se de novo na sua cadeira.
- Bom, Cat sabia, obviamente. Descobriu tudo quando estivemos
em França, o ano passado. - Usou o diminutivo empregue pela
família com a sensação de que, muito provavelmente, já não
tinha permissão para o fazer.
Toby lançou-lhe um olhar magoado que parecia procurá-lo e
encontrá-lo no manoir, sob o toldo, ou junto à piscina, onde se
tinham embebedado os dois sozinhos, naquela longa e quente
tarde. - Podias ter-me dito, podias ter confiado em mim. - Nesse
dia, Toby contara-lhe os seus segredos, os seus problemas mais
íntimos, penetrara num domínio que sempre pertencera a Nick, o
reino dos sentimentos analisados, aquilo fora, em si mesmo, um
triunfo da intimidade para ele.

521

- Quer dizer, repara bem: dois dos meus melhores amigos?! Sinto-
me um idiota completo, um idiota chapado.
- Meu querido, eu sempre quis contar-te. Muito. - Uma vez mais, o
rosto de Toby pareceu ganhar a consistência de uma pedra face
ao uso da terna expressão. - Mas Wani nem queria ouvir falar de
uma tal hipótese. - Olhou num jeito tímido para o seu velho
amigo. - Eu sei que as pessoas levam muito a peito estas coisas,
quer dizer, quando descobrem que houve um segredo que lhes foi
ocultado. Mas, para dizer a verdade, os segredos são qualquer
coisa de impessoal. São simplesmente coisas que não podem ser
contadas, independentemente das pessoas a quem não podem
ser contadas.
- Hm. E agora isto. - Toby arrancou o Sun da pilha de jornais em
cima da mesa. - «Forrobodó gay: sexo a rodos em casa de férias
de ministro». - E atirou-o para longe com um ar de desprezo e
uma sugestão de desafio.
- É realmente muito suave, a ideia que eles têm do que possa ser
um forrobodó - disse Nick, procurando dar a devida proporção às
coisas.
- Suave...} - disse Toby, incrédulo, mas também com um
sobressalto de mágoa, pelo facto de estar a falar assim com
alguém em quem sempre confiara a cem por cento. Levantou-se
e avançou num jeito constrangido até ao extremo da mesa.
Reinava ainda na sala aquela atmosfera de uma ressaca
prolongada, com o brilho do sol penetrando através das fasquias
mais altas das persianas e os candeeiros de parede dourados
derramando uma luz carmesim. Toby parou, de costas viradas
para o retrato que Lenbach pintara de - quem era aquele? - ah,
sim, o seu bisavô: uma robusta figura burguesa com uma jaqueta
preta firmemente abotoada. Nick, com o olho que tinha para
questões de linhagem, via já Toby convertendo-se num segundo
bisavô. Quanto à indumentária, Toby ficava-se pelo fato escuro,
camisa azul, gravata vermelha. Ia a uma reunião e aquela breve
conversa também era um pouco como uma reunião. Toby parecia
partilhar com o seu antepassado um respeito pela indiscutível
importância dos negócios, bem como uma total inépcia, não
isenta de dignidade, para prever os escândalos daquela
semana.

522

- Santo Deus, Toby, lamento muito - disse Nick.


- É, pois - disse Toby com um desmesurado suspiro que parecia
avaliar o peso de um fardo e sugerir uma ameaça. Intimi-dades
inesperadas rebentavam por todo o lado à sua volta. Apoiou-se
na mesa e mirou um jornal para esconder o seu desconforto. -
Primeiro, é o pai e Penny, com aquela história da fraude ao
mesmo tempo, depois és tu e Ouradi, mais a história da peste...
- Bom, tu sabias que Wani tinha SIDA.
- Mm, sim... - disse Toby num jeito incerto. Juntou os jornais
numa pilha, com uma firmeza ansiosa. Eles eram a assombrosa
prova da sua situação. - E o raio da minha irmã completamente
destrambelhada.
- Foi ela quem nos meteu nestes sarilhos.
- É como se odiasse o pai. -É difícil...
- E também te odeia a ti. Quer dizer, como é possível que ela
tenha chegado a isto?
Era de novo, tanto tempo depois, aquela conversa junto ao lago,
a explicação solene... - Não creio que ela nos odeie - disse Nick. -
A questão é muito mais simples: a partir do momento em que se
escapuliu ao lítio, a tua irmã deixou-se levar por uma onda de
dizer a verdade. Aliás, pensando bem, creio que ela sempre
esteve nessa onda. Tenho a certeza de que, lá no fundo, ela
nunca nos quis magoar. Terá sido levada a isso por pessoas que,
essas, sim, odeiam Gerald; o problema é esse.
- Seja como for, está tudo lixado - disse Toby, resistindo
rapidamente à inversão de papéis. E Nick detectou aquela coisa
espantosa, a ameaça de lágrimas dominada pela fixidez do olhar,
a desconsolada tremideira da boca.
- Está tudo lixado - concordou Nick. Retraiu-se perante a sua
presteza em explicar a história de Toby ao próprio Toby. Ah, o
pobre Toby fora enganado, ou não tinham confiado nele, ninguém
à sua volta confiara nele, o que parecia ser uma forma de
traição: era horrível, e Nick deu-se conta de que, nos cantos da
sua boca, formigava um sorriso de bizarro divertimento.
- Devo dizer que o Independent tem, de longe, as fotos de melhor
qualidade - disse Toby. - O jornal atingiu padrões
consistentemente elevados.

523

- Sim, as fotos do Telegraph, em comparação, são muito escuras.


- Mas as do Mail são um pouco melhores. - Toby ia passando as
páginas num jeito rápido, agreste. O Analista Cáustico tivera
direito às centrais para explorar toda a situação; não era caso
para admirar, visto que ele conhecia por dentro o «círculo dos
Fedden». A foto de Toby abraçando Sophie na pista de dança em
Hawkes-wood era de Russell. Toby desviou os olhos, fitou o chão,
e não os ergueu para Nick quando disse: - Francamente, não sei
em que posição é que isto nos deixa.
- Tens razão - disse Nick. - Tudo é muito vago ainda, não é.
- Não, o que eu quero dizer é que não vejo que possas continuar
aqui. - Depois, olhou mesmo para Nick durante vários segundos,
e o seu belo olhar castanho, que ganhava sempre uma nota doce
ou vacilante, desta vez ficou como estava.
- Não, não, claro - disse Nick com um semblante severo, como se
Toby estivesse a insultá-lo ao sugerir que ele pensava que
poderia ficar lá em casa.
Toby franziu muito os lábios, endireitou-se e abotoou o casaco.
Dava a ideia de que a reunião, embora pudesse ter corrido
melhor, fora para ele muito frutífera; a sua desconfortável
satisfação levou-o rapidamente até à porta. - Vou só dar uma
palavra à mãe - disse. - Lamento.
Nick deixou-se ficar onde estava, sentindo que a raiva de Toby
era o pior de tudo, a única coisa totalmente nova, sem
precedentes; e passeando os olhos pelos jornais onde aparecia a
sua própria imagem. Estava a abrir a porta da frente daquela
casa, e também, quatro anos mais novo, de smoking (o smoking
do tio Archie) e lacinho, com um ar francamente bêbedo.
Pensando bem, era fascinante - sim, fascinante era o termo
exacto para o facto de não terem conseguido deitar a mão à
fotografia em que ele aparecia com a primeira-ministra. Ainda
assim, tinham tudo o mais, sexo, dinheiro, poder: era tudo o que
eles queriam. E também era tudo o que Gerald queria. Havia aí
uma estranha confluência. Nick sentia a sua vida horrivelmente e
desnecessariamente exposta - escancarada -, mas havia uma
minúscula e coriácea parte de si mesmo que observava o que se
estava a passar não só com frieza, mas também com desprezo.
Crispava-se de desalento perante o vexame que os seus pais, por
sua causa, estavam a viver, mas sentia que,

524

de um ponto de vista estritamente pessoal, não aprendera nada


de novo. A longa conversa ao telefone com o pai, e depois com a
mãe, tornara-se ainda mais penosa pelo facto de ele não
manifestar - e não sentir - a menor surpresa; para os pais, aquilo
era «um bocado como uma bomba» e, portanto, era preciso que
tudo fosse muito bem explicado; quase apontavam para uma
ofensiva de sinal contrário. Nick dera por si a responder-lhes num
jeito petulante, com o que acabara por magoá-los ainda mais,
visto que, obviamente, quando a situação o exigia, todos os
instintos mais profundos dos pais privilegiavam o filho, a sua
segurança, a sua protecção. Levavam o caso muitíssimo a sério,
mas acabaram por irritá-lo ao admitirem, de uma forma clara,
que já estavam à espera de problemas; sim, eles tinham-se
apercebido de que havia qualquer coisa que não estava bem.
Nick resistia a isso, não se sentia chocado, o choque que, para a
imprensa, funcionava como uma espécie de combustível,
escapava-lhe por completo. Sempre soubera de Penny, sempre
soubera de si mesmo e de Wani. O verdadeiro horror era a
imprensa ela mesma. «Ganância escorraça Prudência», escrevia
Peter Crowther, como se, antes dele, nunca ninguém tivesse
pensado nisso. Via o romance dos seus anos com os Fedden,
esse romance intenso, com uma evolução específica e
profundamente íntimo, enquadrado e explicado ao mundo por
aquele escriba, por aquele aleivoso escriba.
A campainha tocou e, como ninguém respondesse, Nick foi até à
porta e espreitou pelo novo óculo: no qual surgiram as feições
arrogantes e furibundas de Barry Groom para logo
desaparecerem já que o deputado resolveu tocar de novo à
campainha. Nick abriu a porta e deu uma espreitadela para lá de
Groom, a rua, agora, estava quase deserta. - Olá, Barry, entre...
Sim, já se foram todos embora, praticamente...
- Não graças a si - disse Barry, passando por ele e crispando
sobrancelhas e boca em duas finas linhas paralelas. - Vim falar
com Gerald.
- Sim, claro. - Nick não sabia ao certo se Barry estava a tratá-lo
como um criado ou como um obstáculo. - Venha por aqui - disse,
e acrescentou polidamente, enquanto avançava pela sala de
entrada: - Lamento imenso tudo isto, é verdadeiramente horrível.
- Havia uma satisfação tão serena quanto estranha no facto de
dizer isso. Por um segundo, Barry pareceu encarar a frase como
a coisa mais normal

525
que lhe poderia ser dita, mas, um segundo depois, o seu rosto
assanhou-se de novo. E disse:
- Cale já essa boca, seu panascazeco estúpido! - Era uma frase
singular e, de algum modo, ainda mais expressiva por causa
disso.
- Oh...! - Nick disparou um olhar para o grande espelho da sala de
entrada, como que à procura de testemunhas. - Francamente,
isso não são...
- Cale já essa boca, seu filho da puta de merda! - disse Barry com
um cortante cerrar de dentes, após o que zarpou num ápice,
deixando Nick para trás, rumo ao gabinete de Gerald.
- Oh, vai-te foder - disse Nick; ou melhor, murmurou, visto que
pensava que Barry era muito capaz de voltar para trás e de lhe
espetar um murro na cara; Gerald abriu a porta e espreitou para
o corredor como um mestre-escola.
- Ah, Barry, ainda bem que vieste - disse, e, por um instante, fitou
Nick com uma expressão acusatória.
- Seu filho da puta ignorante, chato, ganancioso efeio... -
prosseguiu Nick para si mesmo, na chocada hilaridade de quem
fora insultado. Errou pela sala de entrada, pestanejando de
espanto para os quadrados de mármore brancos e pretos do
chão. Quando entrou na cozinha, não fazia ideia se Elena teria
dado por aquele alvoroço. Ela protestava sempre, de um modo
muito discreto, mas sentido, contra os descuidados foda-se de
Gerald, e não era por falso pudor, a sua aversão à linguagem
obscena era sincera.
- Olá, Elena! - disse Nick.
- Então, Mr. Barry Groom vem - disse Elena. Era uma mulher
pequena mas ocupava a cozinha de parede a parede. Patrulhava-
a. - Ele quer café?
- Vendo bem, ele não disse nada. Mas quer-me parecer que não.
- Ele não quer?
- Não... - Olhou para Elena com uma ternura cautelosa, incerto
quanto ao crédito que lhe restaria dos seus anos de diligente
simpatia para com ela. - A propósito, eu não janto cá esta noite. -
Elena ergueu as sobrancelhas e franziu muito os lábios. Aos seus
olhos, as novas revelações sobre Nick e Wani deviam ser
verdadeiramente assombrosas. Não era claro se ela teria sequer
percebido

526

que Nick era gay. Nick disse: - É tudo uma grande confusão, não
é? Unpasticcio... un imbróglio.
- Pasticcio, si - disse ela, com um riso áspero. Ao longo dos anos,
tinham passado alguns momentos bem divertidos com o italiano
um do outro. Elena meteu-se na despensa e continuou a falar
com ele sem se virar, de modo que Nick teve de segui-la.
- Como disse?
- Quanto tempo está aqui agora? - Erguia os olhos para a
prateleira dos enlatados.
- Em Kensington Park Gardens? Oh, fez quatro anos no Verão
passado, quatro anos e... um quarto.
- Quatro anos. Um bom tempo.
- Sim, tem sido um bom tempo - intimamente, resmungou contra
aquela pequena confusão de sentidos. Elena estava a esticar-se
para chegar às latas, mas Nick, que nem sequer era muito mais
alto que ela, antecipou-se-lhe. - Quer os borlotti} - Pôs a lata nas
mãos de Elena, de modo que ela teve pelo menos de lhe acenar
em jeito de agradecimento; depois, seguiu-a de novo até à
cozinha, como que à espera de outra tarefa. Elena apertou a lata
sob o abre-latas e fez girar o manípulo; Nick vira-a fazer isso,
parecia-lhe, dezenas, centenas de vezes, com a sua polpa de
tomate e os seus fagioli e todas as coisas enlatadas que ela
preferia às frescas. E, de súbito, tudo se tornou óbvio para ele.
Disse: - Elena, decidi que chegou a hora de apresentar a minha
demissão.
Ela lançou-lhe um olhar penetrante, para se certificar de que
compreendera o que ouvira; depois, acenou de novo para lhe
dizer que tinha entendido. Quase poderia ter sorrido da hábil
embalagem da frase. Voltou para a mesa; a sua azáfama
exprimia sem dúvida uma determinação prática, mas talvez
escondesse também algum tipo de pesar perante a novidade.
Quanto a Nick, sentia-se muito abalado com a decisão que
acabava de tomar. Olhou de relance para ela com um ar
confiante. Atrás dela, na parede, estavam todas as fotos da
família, e Elena parecia situar-se, curvada e eficiente, numa
relação enviesada, mas íntima, com elas - de facto, até aparecia
numa das fotos, mostrando um soberbo Toby no seu carrinho de
bebé: ela estava lá desde o princípio, desde os lendários tempos
de Highgate... Começou a cortar algumas cebolas, mas ergueu
de novo os olhos e disse: - Lembra quando primeiro veio aqui?

527

- Sim, claro - disse Nick.


- A primeira vez que nós encontramos...
- Sim, lembro-me - e soltou um risinho afectuoso e ficou um
pouco corado, porque, obviamente, nunca tinham debatido
aquele minuto de confusão na sala de entrada. Reparou que
ficara satisfeito com o facto de ela ter mencionado esse primeiro
encontro. Nem sequer era embaraçoso, visto que se limitara a
tratá-la com todo o seu charme; aliás, tratara-a não como um
igual, mas como um superior.
- Você pensa que eu era Miz Fed.
- Sim, eu sei... Bom, eu não conhecia Miss Fedden nem a
conhecia a si. Pensei... bom, uma mulher com tão bom aspecto...
Elena cerrou os olhos por causa das cebolas - por um momento,
dir-se-ia que cedera a uma outra emoção. Depois, disse: - Eu
penso para mim mesma naquele dia, este aqui é... sciocco(1),
sabe, ele não sabe nada de nada, oh, ele é todo simpatias, até
me trata por senhora, mas ele é, sabe... - e pôs-se a bater com
um dedo na testa.
- Pazzo...? - disse Nick, numa última e aflita tentativa.
- Ele não vale nada - disse Elena.
Nick subiu ao seu quarto e ficou parado a olhar para o parapeito
da janela. Fim da manhã, fins de Outubro, no parapeito o sol
desenhava indiferentemente um tom ora mais pálido, ora mais
vivo. Mergulhara nos seus pensamentos, mas eram pensamentos
sem palavras, pura abstracção, luminosa e triste. Até que as
palavras surgiram, sob uma forma simples, quase como se
tivessem sido escritas. Teria sido melhor numa carta, numa
carta as coisas teriam saído com uma outra harmonia -
belamente, sem dúvida -, numa carta o controlo teria sido total.
As palavras ditas comportavam riscos - os tremores, os desvios.
Desceu para falar com Gerald.
A porta do gabinete estava entreaberta e Nick podia ouvi-lo a
falar com Barry Groom. Deixou-se ficar no corredor, como tantas
vezes fizera naquela casa, como uma espécie de bisbilhoteiro
acidental. A toda a hora se tomavam decisões naquela casa -

*1. Em italiano, no original. (N. do T.)

528

num quarto contíguo, numa chamada escutada por acaso (e


também com uma parte de curiosidade). Gostava do fundo
sonoro dos negócios e da política, tinha qualquer coisa de adulto
e tranquilizante, como a conversa dos pais numa viagem
nocturna, coisas sem importância, fragmentárias, mas um
consolo para a criança ensonada no banco de trás. Por vezes,
claro, aconteceu-lhe mesmo apanhar um segredo, uma surpresa
que ainda estava a ser planeada, e o prazer que sentia era algo
de muito privado, a confirmação de que ele era digno de
confiança, o brilho realçado da sua lealdade. Barry estava a
dizer: «Não consigo entender como é que deixaste que uma
coisa destas pudesse acontecer.» Gerald emitiu um ruído de
desânimo e tossiu asperamente uma única vez, mas não disse
nada. «Quer dizer, que raio é que este panascazeco está a fazer
aqui? Por que raio é que tu tens um paneleiro de merda plantado
na tua casa a porra do tempo todo?»
As últimas palavras saíram-lhe num crescendo e o pulso de Nick
bateu violento enquanto aguardou - não mais que quatro ou cinco
segundos - que Gerald pussesse o deputado na ordem. Fervia de
indignação e de uma nova excitação combativa. Barry Groom
não fazia a menor ideia da vida que eles levavam naquela casa.
«Julgo que terei de admitir», disse Gerald, «que foi um erro de
avaliação. Muitíssimo raro em mim; por norma, sou muito
perspicaz no que toca a avaliar o carácter dos outros... Mas
sim... foi sem dúvida um erro.»
«Um erro pelo qual tens pago um preço muito alto», retorquiu
Barry Groom, implacável.
«Sabes, ele era amigo dos meus filhos... Nós sempre seguimos
uma política de porta aberta relativamente aos amigos dos
nossos filhos».
«Hmm», disse Barry, que deserdara publicamente o filho, Quentin
Groom, «por uma questão de princípio», ou seja, para que ele
começasse do nada e aprendesse até que ponto era duro ganhar
dinheiro. «Bom, eu nunca confiei nele. Aí está uma coisa que te
posso garantir... inequivocamente. Eu conheço o género. Sempre
muito caladinhos, sempre a remoerem as suas criticazinhas.
Lembro-me de uma noite aqui em casa em que fiquei sentado ao
lado dele, já lá vão uns anos, lembro-me de ter pensado: Ouve lá,
tu aqui estás mesmo a mais, não estás, meu brochista de merda,
este não é o teu meio,

529

pois não, estás mesmo desorientado aqui no meio dos homens. E


vou dizer-te outra coisa: ele sabia disso. Entrava pelos olhos
dentro, o que ele queria era ir para cima com as mulheres.»
«Oh...», disse Gerald, num débil protesto. «Nós sempre nos
demos bem...»
«Sempre tão fodidamente superior, sempre com aquela mania
fodida da superioridade.» Barry Groom recorria às obscenidades
de uma forma rude e sem ponta de humor, como se dizê-las
constituísse a garantia de uma verdade detestável. O que estava
em causa era o que ele, Barry Groom, fizera naquela noite,
depois do jantar, com um efeito de que Nick ainda se lembrava
bem, o efeito de mostrar que não tinha classe absolutamente
nenhuma. «Ouve, eles odeiam-nos porque não podem procriar,
não passam de uns parasitas que se penduram em patetas
generosos capazes de procriarem. E depois infiltram-se na tua
casa, infiltram-se na porra da casa dos Ouradi. Não me
surpreende nem um bocadinho que ele tenha desencaminhado a
tua pobre filha, um encanto de rapariga, como desencaminhou,
que ele se tenha aproveitado dela, sim, aproveitado, não há outra
palavra para o que ele fez. Uma artimanha típica desse tipo de
gente, desses invertidos, desses pandeiros.»
Gerald murmurou qualquer coisa, com um efeito de irritada
submissão. Nick manteve-se todo encolhido junto à porta,
ligeiramente curvado, como se estivesse prestes a bater, numa
confusão nova de sentimentos, raiva perante o facto de Gerald
não ser capaz de apoiá-lo, e o ódio que dedicava a Barry Groom,
um ódio estranhamente delicioso. Barry era um adúltero múltiplo
e um falido recente - ser odiado por ele era seguramente uma
marca de probidade. Mas Gerald... bom, Gerald, apesar de todos
os seus defeitos, era um amigo.
«Nem precisava de dizer, mas é claro que Dolly Kimbolton está
completamente furiosa com esta história toda», disse Barry.
«Ainda há dias Ouradi deu mais meio milhão de libras ao
Partido.»
Nick afastou-se silenciosamente e foi sentar-se na sua já
conhecida cadeira da sala de jantar. Olhou uma vez mais para a
foto de «Banger» Fedden e Penny Kent, os dois muito abraçados,
tirada a uma distância de dezenas de metros e tão ampliada que
os amantes se dissolviam num padrão de pontinhos sem sentido.

530

Gerald acompanhou Barry à porta e, um minuto depois, Nick


voltou ao gabinete. Bateu à porta entreaberta, meteu a cabeça.
Olhou rapidamente à sua volta, como que certificando-se de que
Gerald estava sozinho e explorando algum tipo de alívio, sem
dúvida jocoso e partilhado por ambos, pelo facto de Barry ter
partido. Gerald estava de pé junto à secretária, examinando
vários documentos, e ergueu num relance os olhos por cima dos
óculos de leitura. - É um bom momento? - disse Nick. Gerald
resmungou qualquer coisa, um som denso e um tanto alto,
constituído por «o quê?», «não», «sim», e um suspiro furioso.
Nick entrou e fechou a porta, pois não queria que ninguém o
ouvisse, nem mesmo por acaso. O gabinete parecia ainda ecoar
aquilo que, momentos antes, nele fora dito. A poltrona baixa de
cabedal revelava ainda que fora ali que a visita estivera sentada.
Decorria ali um processo, havia reuniões e decisões, uma
sensação de importância tão vincada e sufocante como a
mistura dos odores do cabedal, do fumo de muitos charutos e da
cera do soalho.
- Um bom momento - disse Gerald, arrancando os óculos e
oferecendo a Nick um sorriso tão rápido quanto frio.
- Sim, bom... - disse Nick, ouvindo as palavras dilatando-se
gelidamente. - Quer dizer, eu não vou estar aqui mais do que um
momento.
- Oh... - disse Gerald num tom sobranceiro, como que
acentuando que um momento não chegaria para abordar tudo o
que tinha em mente. Atirou com os óculos para cima da
secretária e encaminhou-se para a janela. Vestia umas calças de
sarja dupla e uma camisola cor de camurça. O efeito era uma
mistura de depreciação simbólica e determinação militar - a
estratégia para um regresso devia estar já em marcha. Nick teve
uma sensação pateta de privilégio ao vê-lo assim, em privado e
em sarilhos; ao mesmo tempo - no que era mais do que um
simples choque - sentiu-se quase opressivamente entediado com
aquele indivíduo que tinha à sua frente. Gerald fitava o jardim,
mas, de facto, aquilo que via era o seu próprio ressentimento.
Nick não sabia se havia de falar, a coisa estava a ser tão difícil
quanto esperara, e ficou plantado no meio do gabinete, agarrado
às costas de uma cadeira, armando-se já contra aquilo que
achava que Gerald ia dizer-lhe. - Como está Wani? - foi o que
Gerald disse.

531

- Oh... - A pergunta revelava uma espécie de gélida generosidade.


- Muitíssimo doente, como sabe. Parece não haver razão para
grandes esperanças...
Gerald acenou ligeiramente, para mostrar que o caso em apreço
era, portanto, um símbolo de uma quantidade de coisas. - Um
golpe tremendo para os pais. - Virou-se e fitou Nick, como que
desafiando-o a mostrar-se solidário. - Coitados dos velhos, pobre
Bertrand, pobre Monique!
- Pois é...
- Perder um filho... - Ambos ouviram nisto um toque de Lady
Bracknell(1) e Gerald esquivou-se rapidamente ao perigo de um
gracejo. - Bom, uma pessoa não pode fazer ideia do que eles
estão a passar. - Abanou lentamente a cabeça e voltou para a
secretária. Pusera aquela expressão grave, de facto semelhante
à expressão de alguém que resiste tenazmente a uma
gargalhada, que, nele, significava um esforço para ostentar uma
compaixão solene. Se bem que houvesse ainda a sugestão
melodramática de que também ele, de algum modo, «perdera»
um filho: Gerald incorporava a crise dos Ouradi na sua própria
crise. - E é terrível também para a rapariga.
Por um momento, Nick não conseguiu perceber o que é que ele
quereria dizer. - Oh, Martine, está a falar de Martine?
- A noiva.
- Oh... sim, mas, na realidade, ela não era namorada de Wani.
- Não, não, eles iam casar-se.
- Podiam ter-se casado, mas era apenas uma fachada, Gerald.
Martine não passava de uma companhia paga.
Gerald reflectiu no que acabava de ouvir e, depois, ergueu
bruscamente as sobrancelhas, num jeito de amarga resignação.
Os factos da vida gay sempre tinham sido um tabu para o ex-
deputado: ele e Nick nunca haviam partilhado uma palavra
franca

*1. Personagem particularmente cómica da célebre peça de


Oscar Wilde A Importância de ser Earnest. Resumindo, Lady
Bracknell é a mãe de Gwendolyn, com quem Jack (ou Ernest)
Worthing pretende casar-se. Quando Jack comunica as suas
intenções a Lady Bracknell, esta, armada de um bloco de notas,
submete-o a um interrogatório tão cerrado quanto hilariante.
Fica a saber, em particular, que Jack fora abandonado ainda
bebé numa estação de comboios. «Perdi ambos os pais», diz
Jack. Lady Bracknell responde-lhe: «Perder um pai, Mr. Worthing,
pode ser considerado um infortúnio; perder ambos os pais parece
pura incúria». (N. do T.)

532

ou uma piada corrente acerca de tais factos e aquele era um


momento no mínimo estranho para começarem. Com um riso
nervoso, Nick prosseguiu: - Claro que eu vou sentir muito a falta
dele.
Gerald ocupou-se por um momento de alguns papéis; juntou-os
como se estivesse a baralhar cartas e meteu-os numa pasta, que
fechou com um sonoro estalido do elástico. Olhou de relance,
como que em busca de aprovação, para as duas fotos
emolduradas, de Rachel e da primeira-ministra, e disse: - Lembre-
me as circunstâncias em que veio para esta casa.
Nick duvidava que, por uma questão de cortesia, fosse obrigado
a aceder ao pedido de Gerald. Encolheu os ombros e respondeu: -
Bom, como você sabe, eu vim para esta casa na qualidade de
amigo de Toby.
- Hum... - disse Gerald, acenando com a cabeça, mas evitando
ainda olhar para Nick. Sentou-se à secretária, na cadeira preta
que parecia ter vindo de uma nave espacial. Fez um esgar de
peplexidade manifestamente exagerado. - Mas você era amigo de
Toby?
- Claro que era - disse Nick.
- Uma estranha forma de amizade, não era...? - Ergueu os olhos
num relance descontraído.
- Não é o que eu penso.
- Não creio que ele soubesse alguma coisa acerca de si.
- Bom, eu sou só eu, Gerald! Não sou nenhum invasor
extraterrestre. Nós estivemos na mesma universidade durante
três anos.
Gerald não se deu por vencido neste ponto, mas fez girar a
cadeira e, uma vez mais, pôs-se a olhar fixamente pela janela. -
Você sempre se sentiu confortável aqui, não é verdade?
A pergunta deixou Nick embasbacado de decepção. - Claro...
- Quer dizer, na realidade, creio que nós sempre o tratámos de
uma forma extremamente amável, não lhe parece? Tornámo-lo
uma parte da nossa vida... no sentido mais lato. Graças ao facto
de ser nosso amigo, você pôde conhecer uma série de pessoas
notáveis. Aliás, chegou mesmo aos mais altos níveis.
- Sim, sem dúvida. - Nick respirou fundo. - E essa é uma das
razões pelas quais lamento tão profundamente tudo o que está a
acontecer - e avançou, num jeito grave, mas também com
alguma astúcia -, enfim, você sabe, com este último episódio de
Catherine.
533

Gerald pareceu ficar muito vexado com isto, ele não queria de
Nick um pedido de desculpas capaz de amortecer o impacto da
confrontação, e, em particular, um pedido de desculpas que não
o era; que, no fundo, não passava de um gesto de comiseração
em relação à sua filha. Disse, como que num parênteses: - Quer-
me parecer que você nunca compreendeu a minha filha.
Nick tratou de agradar a Gerald, encarando esta questão como
algo eminentemente intrincado. - Suponho que uma pessoa que
nunca passou por aquilo que ela tem passado terá muita
dificuldade em entender o tipo de doença que a afecta, não só
momento a momento, mas também no que respeita aos seus
padrões a longo prazo... Eu sei que o facto de ela ter provocado
todos estes... enfim, todos estes sobressaltos... sei que isso não
significa que ela o ame menos a si ou à mãe. Quando está na
fase maníaca, Catherine vive num mundo em que tudo,
rigorosamente tudo, é possível. Embora, de facto, se possa
conceder que tudo o que ela tem feito é dizer a verdade. - Pensou
que talvez tivesse conseguido chegar ao coração de Gerald, que
continuava de sobrolho franzido e nada dizia; mas que, um
instante depois, tal como fazia nas entrevistas da TV, prosseguiu
com a sua própria fala, como se, entretanto, não tivesse havido
nenhuma resposta ou objecção.
- Quer dizer, não lhe pareceu que era bastante estranho, que era
um tanto ou quanto bizarro, você ligar-se a uma família como a
nossa?
Nick achava que era invulgar, mas era isso, esse lado invulgar,
que tornava, ou tornara, a sua ligação tão bela, tão maravilhosa;
no entanto, disse: - Eu sou apenas um inquilino. Foi Toby quem
sugeriu que viesse viver convosco. - E arriscou: - Se é certo que
eu me liguei à família, também se poderia dizer que a família se
ligou a mim.
Gerald disse: - Tenho reflectido sobre tudo isto. É aquele tipo de
coisas que lemos aqui e acolá, que encontramos em artigos, em
estudos, é uma velha artimanha, típica dos invertidos. Vocês não
podem ter uma verdadeira família, de modo que acabam por se
ligar à família de outra pessoa. E suponho que, ao fim de algum
tempo, a coisa se torna insuportável para vocês, você deve ter
sentido uma inveja tremenda, creio, de tudo aquilo que nós
temos, e vindo você de onde vem, é natural que isso também
conte,

534

o meio onde uma pessoa cresce... e, em consequência disso,


surge a vingança, uma vingança francamente terrível... E, sabe,
na verdade... - e, aqui, ergueu as mãos -, tudo o que nós
pedíamos era lealdade.
O que havia de estranho, e maravilhoso, naquela tirada era que
Gerald não dissera, em momento algum, aquilo que, em sua
opinião, Nick realmente tinha feito. Aos seus olhos, mascarar o
inocente cordeiro de bode expiatório seria por certo tão natural
como a luz do dia. Não valia a pena lutar, mas Nick disse, como
que misteriosamente desligado daquele homem muito jovem que
se agarrava às costas da cadeira, prestes a chorar de espanto: -
Não faço a mais pequena ideia do que está a falar, Gerald. Mas
devo dizer que acho um bocado exorbitante você vir-me falar de
lealdade... de lealdade, imagine-se. - O facto de, pela primeira vez
em tantos anos, estar a criticar Gerald, não deixou de o
impressionar; e também impressionou Gerald de uma forma
muito clara; bastaria reparar na sua atitude de incrédulo recuo e
no modo como pegou nas palavras de Nick e as virou contra ele.
- Não, de facto você não faz nem a porra da mais pequena ideia
do que está a falar! - Levantou-se convulsivamente e, logo de
seguida, voltou a sentar-se com uma espécie de sorriso
zombeteiro. - Será que você imagina mesmo que os seus
assuntos podem ser discutidos nos mesmos termos que os
meus? Quer dizer, pergunto-lhe uma vez mais: quem é você? Que
porra é que você está a fazer aqui? - A ligeira alteração do seu
fraseado, o endurecimento da sua posição, libertavam uma
torrente de raiva, a qual, movendo-se visivelmente ao longo do
seu rosto, quase parecia deixá-lo desconcertado, como se se
tratasse de um puro acesso físico.
Tremendo com o contágio da loucura, Nick disse aquilo que tinha
preparado para dizer, embora num tom de sarcasmo ordinário
que nunca tencionara usar: - Pois bem, Gerald, você vai ficar sem
dúvida destroçado ao saber que vou deixar hoje esta casa. Só
passei por aqui para lhe dizer isto.
E Gerald, fingindo furiosamente que não ouvira, disse: - Quero-o
hoje mesmo fora desta casa!

535

18.

A Duquesa insistiu para que Gerald e Rachel fossem ao


casamento. Gerald ligara para a Duquesa e rompera num abjecto
espalhafato: «Acredite no que lhe digo, Sharon, eu nunca me
perdoaria se lhe causasse um momento que fosse de embaraço
num dia tão feliz» e, antes que Sharon, no seu jeito enérgico,
tivesse acabado de dizer-lhe que se deixasse de disparates, já
Gerald intrometera um «Com certeza, muito bem», num tom que
sugeria que nunca tivera a intenção de lhe fazer a desfeita de
faltar ao casamento. Era um pequeno protocolo de auto-
achincalhamento que Gerald se sentia obrigado - não sem
relutância - a seguir. «Só achei que deveria pedir-lhe uma
opinião», disse ele, como se a falsa nota social pudesse ser a
sua iniciativa e não a razão dessa iniciativa. Na realidade, Gerald
não acreditava que pudesse ser um embaraço fosse para quem
fosse. Na manhã de sexta-feira, meteram-se no carro e lá foram
eles a caminho do Yorkshire.
Wani mandara fazer dois requintados fatos, um fraque com
calças listradas e um smoking com calças estreitas e um peito
mais pequeno, disfarçado com amplas lapelas. Faziam lembrar a
indumentária formal de um pequeno príncipe, uma indumentária
que talvez fosse usada apenas uma vez antes de deixar de lhe
servir. Nick viu os dois fatos estendidos na cama com a curva em
S; no chão, estavam alinhados dois novos pares de sapatos, uns
sapatos Oxford, e um daqueles exemplares mais leves, embora
formais, que Wani costumava usar. Era como se duas pessoas
ainda mais insubstanciais do que Wani

536

estivessem deitadas lado a lado na cama. Ajudou Wani a fazer as


malas e, por uma questão de hábito, deu uma espreitadela à
caixinha dos botões de punho, onde encontrou um pacotinho de
papel de um tom rosa carne com uns dois centímetros de
comprido. Tirou-o e escondeu-o com a sensação de que um novo
código de honra suplantara aquele que durante tanto tempo
havia prevalecido.
Encontrou Wani deitado no sofá, diante de uma qualquer cassete
de vídeo, por certo muito resistente: tinha os olhos fechados e a
boca aberta e entortada. Nick precisou de um ou dois segundos
para reduzir o fogo do horror à chama mais lenta da compaixão.
Por duas vezes, dera com Wani a dormitar e curvara-se sobre ele,
não - como noutros tempos - para se maravilhar em segredo com
o que via, mas para se certificar de que ele estava vivo. Sentou-
se ao lado de Wani com um suspiro e sentiu aquela estranha
ternura em relação a si mesmo que advinha do facto de estar a
cuidar de outra pessoa, a noção da sua própria prudência e
mortalidade. Pensou que ser pai talvez fosse assim, ser capaz de
ocultar de um modo efectivo as preocupações que sentia. Não
dissera nada a Wani, mas, nessa mesma tarde, iria fazer um novo
teste ao HIV: mais uma coisa solene, e ainda mais assustadora
do que já era pelo facto de não ser abordada. Visto pelo canto do
olho, o vídeo parecia propagar-se como uma forma de vida
primitiva, com uma espécie de determinação abstracta. Era uma
orgia, órgãos e orifícios inatribuíveis em plena actividade, num
espectro de laranja, rosa e púrpura. Por um momento, olhou mais
atentamente para aquilo, com uma mistura de escárnio e pesar.
Tratava-se de um daqueles filmes a que chamavam já um
«clássico», dos tempos em que o brilho antisséptico dos
preservativos não fora ainda acrescentado à paleta porno - Wani
odiara essa evolução, pelo menos nisso era um esteta. Com o
som no mínimo, os actores grunhiam o seu código binário - sim...
oh sim, oh sim... sim... oh... sim, sim... oh sim...
- O carro já chegou? - disse Wani, ainda meio a dormir, com uma
expressão de pavor, como se ansiasse que os seus
compromissos fossem postos em causa e a viagem cancelada. O
motorista do pai levá-lo-ia a Harrogate no Silver Shadow
castanho-avermelhado. Um enfermeiro viajava com eles, um
escocês de olhos azuis e cabelo preto chamado Roy,

537

de quem Nick sentia uns agradáveis ciúmes.


- Roy está a chegar não tarda - disse, ignorando a ténue
expressão de enfado com que Wani manifestava o seu
ressentimento; e depois, para o encorajar: - É uma graça, o teu
enfermeiro.
Lentamente, Wani endireitou-se e fez girar as pernas até ao chão.
- Ah, o jovem Roy, aí está alguém sem papas na língua.
- E o que é que ele diz?
- É um bocadinho bruto.
- É enfermeiro - disse Nick. - Os enfermeiros têm de ser bastante
firmes, não é.
Wani pôs um ar amuado. - Não é, não. Quando eu lhes pago mil
libras por minuto, não têm nada de ser firmes.
- Pensava que gostavas de um pouco de brutalidade - disse Nick,
e deu-se conta do paternalismo cediço do seu tom. Ajudou Wani
a levantar-se. - De qualquer modo, é natural que quatro horas
num Rolls-Royce o deixem um pouco mais civilizado.
- Esse é que é o problema - disse Wani. - Ele é um esquerdista
fanático. - E o sorriso espectral de uma antiga preversidade
brilhou por um instante no seu rosto.
Quando a campainha tocou, Nick desceu e encontrou Roy
conversando com o motorista. Roy tinha mais ou menos a sua
idade, vestia umas calças folgadas azuis-escuras e uma camisa
desapertada no colarinho; Mr. Damas envergava um fato
cinzento-escuro, uma gravata fúnebre e um chapéu cinzento de
pala. Eram como duas linhas formando um ângulo inalterável -
Roy franco e prático, espicaçado pela crise da SIDA, exibindo o
seu empenhamento e coragem como uma provocação a Mr.
Damas, que conduzia os Ouradi desde que Wani era pequeno e
que encarava a sua doença com respeito, mas também - Mr.
Damas era fundamentalmente alguém que servia Bertrand - com
um toque de censura. As últimas histórias dos jornais tinham
provocado nele uma profunda vergonha e, no seu rosto quadrado
e nas suas mãos enluvadas, era visível a luta que esse
sentimento travava com as supremas exigências da lealdade.
Ajeitou o chapéu antes de pegar nas duas malas que Nick levara
para baixo.
- Então quer dizer que não vai, Nick - disse Roy, num jeito de
sensual repreensão.

538

- Não, tenho algumas coisas para tratar aqui.


- Não vai estar comigo para me proteger de todos aqueles
duques e damas e mais não sei o quê.
A súbita consolação de um flert - nas barbas de Wani, ou melhor,
por sobre a sua cabeça curvada - logo foi ensombrada por uma
ferroada de cautela. Nick ainda estava a acostumar-se ao
interesse que o seu caso suscitava, algo que era extrínseco à
sua pessoa e que ele detectava essencialmente no modo como
as outras pessoas presumiam que o conheciam. - Creio que eu
próprio precisaria de ser protegido daquela gente.
Roy ofereceu-lhe um sorriso divertido. - Sabe quem é que lá vai
estar?
- Toda a gente - respondeu uma voz ofegante.
Roy espreitou para o banco de trás do Rolls, onde Wani,
despeitado, se debatia com uma manta de viagem e um sem-
número de almofadas. - Veja lá se sossega aí dentro - disse Roy,
como se Wani fosse um aluno habitualmente mal-comportado da
sua turma. Havia qualquer coisa de útil no seu jeito enérgico;
Roy parecia adoptar um ponto de vista simultaneamente árido e
cheio de esperança.
Mr. Damas deu a volta ao carro e fechou a porta de trás com
aquele inefável ruído, uma espécie de tchank - era o som do
mundo em que ele se movia, um mistério que estava a seu cargo
embora não na sua posse, a afinada precisão de uma porta que
se fechava. Wani instalou-se no banco, olhando em frente,
perdido na cintilante sombra do vidro esfumado. Nick teve o
sentimento de que nunca mais voltaria a vê-lo; a imagem de Wani
esbater-se-ia diante dos seus olhos em plena luz do dia. Agora,
era muitas vezes assaltado por tais premonições. Fez um gesto
para que Wani abrisse a janela e Wani baixou o vidro não mais
que cinco centímetros. - Dá um grande abraço a Nat - disse Nick.
Wani ficou de olhos fixos, não nele, mas para lá dele, na meia
distância de uma conjectura irónica, e, segundos depois, fechou
a janela.
Nick entrou nos escritórios desertos do rés-do-chão e tratou
imediatamente de dar uma arrumação à sua secretária. Não
precisava de abandonar Abingdon Road; podia ficar no piso de
cima enquanto não encontrasse um apartamento, mas sentia
uma necessidade urgente de organizar, de separar, de excluir.
Parecia claro,

539

embora Wani não o quisesse admitir, que a operação Ogee


chegara ao fim. Nick estava contente por não ir ao casamento de
Nat, e, no entanto, a sua ausência, para quem desse por ela,
poderia parecer uma confissão de culpa ou de indignidade.Via
uma sequência muito clara - como um extracto de um filme - em
que os seus amigos, que não davam pela sua ausência, se
levantavam pressurosos de cadeiras douradas, para se juntarem
ao remoinho de um baile. Vendo bem, pensou, era muito capaz de
ser uma cena de um filme da dupla Merchant/Ivory.
Ouviu o trilo da campainha e viu uma carrinha na rua, no sítio
onde estivera o Rolls Royce. Saiu e deu com um rapaz magrizela,
na cabeça um boné de baseball, andando de um lado para o
outro, enquanto, na carrinha, o rádio debitava uma música em
altos berros. - Ogee? - disse o rapaz. - Entregas. - Deixara a porta
do lado do motorista aberta e o rádio ligado; o tema / Wanna Be
Your Drill Instructor, da banda sonora de Nascido para Matar,
ressoava pelas casas próximas, enquanto ele empilhava os
enormes embrulhos quadrados no seu carrinho e os levava para
dentro do edifício. Assenhoreara-se daquele segmento da rua por
cinco minutos - o que, sem dúvida, equivalia a um
acontecimento. Era a revista. «Muito obrigado», disse Nick.
Afastou-se para lhe dar passagem com o meio sorriso inoperante
do não-trabalhador, desejoso de ficar a sós com a mercadoria. O
rapaz empurrava esforçadamente o carrinho, ora para dentro, ora
para fora, com uma respiração vigorosa: era como se aquela
entrega o impedisse - de um modo intolerável - de fazer outra
entrega, como se tivesse desejado fazer todas as suas entregas
de uma só vez. Empilhou os embrulhos - uma dúzia - em quatro
colunas baixas e grossas. Cada embrulho vinha cingido dos dois
lados por uma fita adesiva azul bem esticada; Nick tentou
arrancá-la à mão e partiu uma unha. «Assine, se faz favor», disse
o rapaz, sacando de uma esferográfica e de um aviso de
recepção que trazia num bolso dos jeans. Nick rabiscou numa
pressa algo que só muito vagamente se assemelhava à sua
assinatura e, quando devolveu o papel, deu com o rapaz a olhar
para ele com a cabeça inclinada de lado e os olhos franzidos.
Nick enrubesceu, mas, ao mesmo tempo, pôs uma expressão
dura. Se o rapaz fosse um leitor do Mirror, seria muito natural
que o reconhecesse - sentia uma agressão latente procurando
um foco, primeiro de uma forma lenta,

540

depois, de um modo mais fluente. - Quer ver? - disse o rapaz e,


antes que Nick compreendesse, já ele tinha tirado um X-acto do
outro bolso, libertado a lâmina e rebentado com a fita adesiva do
embrulho mais próximo. Fez um rasgão na folgada embalagem de
papel, retirou um lustroso exemplar, o primeiro que viu lá dentro,
fê-lo girar nas suas mãos e apresentou-o a Nick: - Voilá! - disse.
Nick pegou no exemplar como se fosse o vencedor de um prémio,
feliz e incapaz de ocultar a sua felicidade, partilhando-o
cortesmente com o rapaz, que se mantinha a seu lado,
espreitando, tentando perceber o que era aquilo. Nick sentia-se
muito exposto e fazia sinceros votos para que não houvesse
perguntas. - Eh pá, é mesmo bonito... Que beleza, hã? - disse o
rapaz. - É um anjo, não é?
- Exactamente - disse Nick. Simon fizera um belíssimo trabalho:
um preto lustroso particularmente bem definido, com o querubim
branco de Borromini no lado direito; a longa asa do querubim
estirava-se numa dupla curva até à lombada, onde a sua ponta
tocava a ponta da asa de um outro querubim na mesma posição,
na contracapa; as duas asas juntas formavam uma curva dupla
de uma graciosidade requintada. Nenhum título, excepto ao
fundo da lombada: OGEE, número 1, em simples maiúsculas
romanas.
Nick pensou que seria melhor não abrir a revista; fervilhava de
curiosidade e de uma relutância prenhe de vergonha; precisava
de estar sozinho. O rapaz abanava a cabeça cheio de admiração.
- É bonito como o caraças! - disse. - Desculpe a linguagem. -
Espetou a mão e Nick apertou-a. - Até mais ver, amigo.
- Sim... ah... muito obrigado!
- Tudo bem.
Nick sorriu e viu o seu primeiro crítico desandando determinado
do escritório.
- Muito bem... - disse, já sozinho, e, mesmo então, com um sorriso
inibido. Sentou-se à secretária vazia de Melanie, a revista bem no
centro, e virou a capa com uma expressão absorta. E, claro,
aquilo que viu foi o país das maravilhas do luxo, pois as primeiras
três lustrosas páginas de anúncios eram ocupadas por Bulgari,
Dior e BMW, inacreditáveis padrinhos do caprichoso filho da coca
de Nick e Wani. Procurou rapidamente o seu nome sob o
cabeçalho na página 8 - «Editor Executivo: Antoine Ouradi.

541

Editor Consultivo: Nicholas Guest» - e enrubesceu, tanto de


orgulho como de uma vaga sensação de impostura. Pensou nos
pais, no alívio que eles sentiriam quando vissem aquilo, o seu
nome impresso como uma distinção e não como uma
preocupação vergonhosa. Aquilo fortalecia-o. Prosseguiu,
parando por um momento em cada página - já tinha lido todas as
palavras dez vezes nas provas e fizera ainda uma última revisão
na tipografia, mas sentia que aquelas páginas tinham passado
por uma nova e indescritível mutação ao transformarem-se numa
revista... Toldava os olhos contra a gralha impossível, o lapso
pelo qual ninguém dera...
O seu artigo, incluído, por deferência, na parte final da revista,
depois dos textos de Anthony Burgess(1) sobre bordéis e de
Marco Cassani sobre o revivalismo gótico em Itália, girava em
torno da Linha da Beleza e era ilustrado com sumptuosas
fotografias de broches, espelhos, lagos, as pernas de santos e
sofás rococós. Enquanto o lia, o seu coração batia forte; uma ou
duas vezes, voltou atrás para deslizar no delicioso escorrega de
uma elegante frase. Ao lado dele, enquanto lia, estavam outros
admiradores... O Professor Ettrick, cuja confiança num estudante
que raramente via fora de súbito restaurada... Anthony Burgess,
no Mónaco, detendo-se, maravilhado, enquanto folheava o
exemplar a que, como autor de um dos artigos, tinha direito...
Lionel Kessler, descansando talvez num lit de jour Luís XV, por
todo o lado coroado de linhas da beleza, recebendo de braços
abertos a prova concreta de que o seu inteligente - e tão
caluniado - jovem amigo era afinal uma pessoa honrada e
decente. Nick prosseguiu, com um sorriso confiante,
percorrendo as últimas páginas, as breves e fulgurantes páginas
sobre conjuntos de mahjong e soldadinhos de brinquedo do
Raj(2). A contracapa interior era, para sua grande satisfação,
ocupada por um anúncio do Je Promets. E, depois disso, o anjo
que respondia ao outro anjo com a sua asa erguida. Nick ficara
com uma opinião muitíssimo boa de toda a revista,

*1. Anthony Burgess: escritor britânico (1917-1993) cuja obra


mais famosa é, sem dúvida, A Laranja Mecânica (1962), que
Stanley Kubrick adaptou para o cinema. (O outro colaborador da
revista Ogee citado logo a seguir, Marco Cassani, é, tanto quanto
sabemos, ficcional.) (N. do T.)
2. Termo com que informalmente se designa o período colonial
britânico no subcontinente indiano (1858/1947). (N. do T.)

542

a timidez inicial fora varrida pelo seu oposto, a convicção de que


tinham produzido uma obra-prima.
Uma estranha sensação de clímax, como se balouçasse, como se
oscilasse. Cinco minutos depois, queria voltar a ler a revista
como se fosse a primeira vez; mas não, isso nunca poderia
acontecer. Levou um exemplar para o apartamento e abriu-o ao
acaso várias vezes - e apercebeu-se de que o seu esplendor tinha
qualquer coisa de luminoso, uma malignidade cristalina. Não, era
de facto muito bom. Era lustroso. O lustro era intenso,
consumado - era o brilho do mármore e do verniz. Era a
cintilação de qualquer coisa que tinha acabado.
Teria dado tudo para que Wani pudesse estar ali, a ver a revista
com ele - perdera-a por cinco minutos! Poderia tê-la levado
consigo para o Yorkshire, poderia ter dado exemplares aos
convidados, a Toby, a Sophie, à Duquesa, a Brad e a Treat. Nick
imaginou Roddy Shepton, aterradoramente imenso no seu fraque
e chapéu alto, mirando a revista com um ar desconfiado
enquanto aguardava que lhe servissem uma bebida. Imaginou o
próprio Wani arrastando-se pelas salas, com um ar impassível e
provocador, para lhes mostrar a única coisa bela que conseguira
construir com os seus milhões - a revista confirmaria ou
confundiria as frágeis expectativas de que ele seria ou não capaz
de fazer qualquer coisa digna de registo. O aplauso - não mais
que um reflexo - que reservavam a tudo o que fosse publicado
por um filho dos seus semelhantes na riqueza e na ostentação
seria, sem dúvida, sonoro, embora temperado pela repulsa que a
doença de Wani provocava e pelo constrangimento - sempre
susceptível de reactivação - em torno das suas origens.
Exemplares ficariam esquecidos em quartos e casas de banho.
Nick lamentou o destino da revista e, um instante depois, deu-se
conta de que estava a ser completamente pateta, visto que Wani
não levara a revista; e, francamente, havia coisas piores para
imaginar. Receava, por exemplo, que não tivesse feito uma
revista suficientemente cuidadosa às malas de Wani - era tão
fácil meter outros pacotinhos de coca nos bolsos ou nas meias
enroladas... A crise de Maio obrigara-o a largar o vício, mas,
depois, Wani recuperara um pouco - uma espécie de adiamento
da pena - e o regresso a Londres e aos seus prazeres de súbito
finitos devia ter significado para ele um fervilhar de tentações.
Nat já estava limpo,

543
mas, entre os seus amigos, havia uma meia dúzia de
consumidores regulares, tipos que, com a maior facilidade e
notória negligência, poderiam oferecer uma linha a Wani. E o seu
coração estava muito fraco. Seria uma espécie de suicídio. Nick
parou por um bocado junto à janela da cozinha, mal vendo as
traseiras dos outros prédios enquanto imaginava o telefonema,
talvez de Sharon, ou do próprio Gerald, um tom conciso, formal,
respeitoso: uma crise cardíaca fulminante. Não tinham podido
fazer nada.
Quando foi para a sala de estar, lá estava a revista na mesa. Era
um bizarro lançamento - nunca haveria um segundo número.
Seria bom que as pessoas soubessem disso e valorizassem a
revista enquanto tal, não como um número zero, piloto,
experimental, não como uma promessa de qualquer coisa que
havia de vir. Aquela era a única Ogee. Ali exposta, numa sala da
sua casa, ao meio-dia de um ameno dia de Outubro, a revista
quase fazia lembrar uma placa em memória de Wani, com a asa
do anjo protegendo o espaço em braço onde seriam inscritos o
seu nome e obras.
Na manhã seguinte, Nick meteu-se no carro e foi buscar as suas
coisas a Kensington Park Gardens. Caía um chuvisco
intermitente e deu-lhe para pensar no estado em que ficariam os
chapéus das senhoras se, no Yorkshire, também estivesse a
chover. A ampla rua estava vazia, com aquela acidental ausência
de movimento de uma rua londrina, uma calmaria momentânea
em que os passeios, as fachadas das casas, as janelas listradas
de chuva têm a aura do déjà vu. Abriu a porta do número 48 com
a destreza que era fruto de uma arte recentemente aprendida, a
arte de passar despercebido; se bem que, logo a seguir, num
lapso desnecessário, tenha batido com a porta.
Lá dentro, na sala de entrada: o som... o impassível rumor de
Londres reduzia-se a um vago zumbido que mal se notava, como
se a própria luz cinzenta fosse subtilmente acústica. Sentia que
o acaso o levara a reencontrar a atmosfera imperturbada da
casa, mais vasta que os problemas daquele ano, a atmosfera que
existira sem ele e que continuaria a existir após a sua partida. A
lanterna dourada brilhava pálida no caixa das escadas, mas, na
sala de jantar, as sombras usuais adensavam-se nos cantos e
pairavam como fumo no tecto volteado.

544

O relógio ao estilo de Boulle tiquetaqueava com negligente


vigilância. Subiu os degraus de pedra e entrou na sala de estar.
Tratava-se apenas de encontrar as suas coisas, os seus
compactos misturados - como faria qualquer família - com os
discos dos outros habitantes da casa, um livro que lhes
emprestara e que vira descer lentamente - sem ser lido - até ao
fundo da pilha. Parou junto ao piano e pensou numa derradeira
tentativa de execução do Andante, de Mozart; mas o efeito teria
sido melodramático, para além de risivelmente inepto. O retrato
de Toby olhava para ele das alturas da parede, uma ilustração da
adolescência no seu fulgor hormonal, na sua expressão séria e
expectante. O quadro acrescentava uma urgência à necessidade
de seguir em frente. Nick parou diante da lareira, segurando os
discos e os livros contra o peito. Um camião passou na rua e os
vidros das janelas vibraram por um instante nos caixilhos, em
consonância com o rugido do camião e o chocalhar do atrelado,
e, depois, aquele amplo silêncio, aquele silêncio quase absoluto,
voltou a impor-se. E algo mais, o que era?, o cheiro do lugar, o
cheiro dos tapetes, da madeira polida, dos lírios, um cheiro
quase de igreja - sentiu os seus sentidos captando e renunciando
às inúmeras impressões a que, ao longo dos anos, se fora
habituando.
E tudo aquilo chegava longe no passado. Falava de Gerald e
Rachel sem qualquer interrupção visível. Desceu à cozinha, onde
a limpeza, a arrumação e a abundância, os frascos, o placará dos
recados, as pregas do pano da louça pendurado, eram sinais de
um vasto e profundo sistema. Ele era já um intruso, enquanto
erguia os olhos de relance para as fotos daquelas celebridades
ausentes.
Desceu de novo, desta feita à cave, a fim de ir buscar algumas
caixas de cartão que havia no trou de gloire. Era naquela
arrecadação de coisas velhas sob a cozinha que se encontravam
as cadeiras de baile douradas, todas em pilhas, enfiadas umas
nas outras; era ali que os Fedden abandonavam interessantes
mesas antigas e espelhos que o tempo enevoara; era também ali
que Mr. Duke guardava as suas tintas, escadotes e caixas de
ferramentas, juntamente com uma chaleira e um calendário -
aquele era o seu retiro, a sua toca, e Nick quase esperava
encontrá-lo ali, no subconsciente da casa. Premiu o interruptor e
apanhou o choque do papel de parede, que era púrpura, com um
padrão semelhante a ferro forjado preto,

545

apenas em parte oculto por todo aquele lixo. Ficava sempre


espantado com tudo aquilo. Falava de um tempo antes de Gerald
e Rachel, de uma ideia diferente da deles sobre o que era
divertir-se, de facto, à grande, sobre o que era gozar a vida. Tal
como os seus pais, Gerald e Rachel pareciam ter evitado os anos
60, com as suas novas possibilidades e os seus erros que valiam
a pena. Era possível que, nos tempos de Highgate, costumassem
pôr uns pauzinhos de incenso a arder e umas almofadas no chão,
mas, ali, em Kensington Park Gardens, o quarto púrpura(1) era o
quarto do lixo. Nick encontrou algumas velhas caixas de vinho e
levou-as, não sem alguma dificuldade, para cima. Perguntava-se
quem é que teria vivido ali antes dos Fedden. Era muito possível
que aquela casa tivesse tido apenas três ou quatro proprietários
desde que a especulação imobiliária subira em flecha nos
antigos bairros pobres e pastagens de Notting Hill. Era uma casa
que encorajava a visão que os seus habitantes tinham de si
mesmos. Nick pensou nas capacidades teatrais de Gerald, nas
festas, no patético clímax da visita da primeira-ministra. Apenas
um ano tinha passado, um outro casamento sob o chuvisco
outonal...
Parou no patamar do segundo piso, pôs as caixas no chão e
entrou no quarto de Gerald e Rachel. Da janela, viam-se os
jardins sob a chuva oblíqua, as largas folhas castanhas dos
plátanos que o vento agitava e levava. Era uma vista mais
grandiosa, mas também mais próxima, do que aquela a que ele
se acostumara no seu quarto, a vista das copas das árvores, com
outros telhados e, para lá deles, a agulha de uma torre. Os
jardins pareciam ficar mais pequenos naquela época do ano: via-
se o gradeamento mais distante e a rua para lá dele. Virou-se e,
com passos suaves, silenciosos, avançou pela pálida carpete na
direcção da cama. De que lado dormia Rachel? E Gerald? -
Rachel dormia sem dúvida ali, na mesa-de-cabeceira havia livros
- romances - e tampões para os ouvidos. A pequena paisagem de
Gauguin que Lionel lhes dera estava pendurada na parede em
frente. A mesa redonda de nogueira, com uma taça cheia de
alfazema e caixinhas de porcelana, fora o palco escolhido para
as fotografias; as molduras eram de prata, marfim e veludo
vermelho.

*1. A cor púrpura associada ao consumo de drogas,


designadamente de LSD. (N. do T.)

546

Pegou na foto que recordava a participação de Toby no Péricles,


de Shakespeare; Toby fazia um nobre de Tiro - Nick não
conseguia lembrar-se do nome da personagem. Era o ministro -
digno de toda a confiança - que tratava dos assuntos de Estado
enquanto Péricles ia de viagem; Toby só aparecia no princípio e
no final da peça, de modo que passava o segundo, o terceiro e o
quarto actos vagueando impaciente pelo pavilhão do cricket,
usado como bastidores naquelas representações ao ar livre. Era
o mês de Junho, o cheiro do lago e da erva cortada lá fora, do
creosote e da linhaça no ambiente abafado do pavilhão. Toby
despia a pesada túnica e, com um bastão de cricket, travava
lançamentos imaginários, enquanto aguardava que Sophie, que
fazia o papel de Marina, saísse de cena. Alguém o fotografara
num desses momentos. Tinha uns collants escuros e os seus
próprios sapatos de camurça. O torso nu parecia muito branco
contra a linha à volta do pescoço, onde terminava a
maquilhagem. O rosto era feminino, superlativamente belo, o
rosto de um bailarino, o seu corpo musculado e com
proeminências que, de tão visíveis, não poderiam deixar de
divertir os outros. Nick tinha o breve, mas memorável, papel de
Cerimon, o rei de Efeso, que devolve à vida a rainha Thaissa
quando esta, fechada num caixão, é levada pelas águas do mar
até uma praia de Éfeso: fora uma das mais intensas experiências
da sua vida: «Sempre foi meu parecer / Que a virtude e o
conhecimento são dons mais grandiosos / Que a nobreza e a
opulência...», o coração batendo impetuoso, lágrimas nos olhos;
e, pouco depois, acabava essa passagem com Thaissa, e ele saía
de cena com um ar muito digno - uma sensação como se
flutuasse, muito leve e frágil, uma adaptação forçada à cena fora
do círculo do palco iluminado e da massa escura do público, o
qual assistia já à cena seguinte. Tirava a barba grisalha,
libertava-se do manto, e bebia uma ciumenta garrafa de
Guinness enquanto Toby, «inconscientemente», exibia os seus
bíceps para Sophie - eles só pensavam um no outro e no facto de
terem de voltar ao palco. Toby não era grande actor, mas o seu
papel resumia-se a uma quantas tiradas retóricas, não tinha nada
de psicológico, e o público aplaudia-o calorosamente - havia uma
justeza qualquer no seu tom, na sua atitude. Ele fazia aquilo
como se representar fosse uma coisa tão simples, tão sem
mistérios, como remar ou passar uma bola de rugby. Toby não
era modesto, mas também não era vaidoso.

547

Nick sabia que nunca mais voltaria a ver aquela foto; custar-lhe-
ia muito pô-la outra vez na mesa. A fotografia brilhava àquela luz
chuvosa como um símbolo das razões que o tinham levado a
viver naquela casa. Não era claro com Toby - tal como não o era
com Leo nem com Wani - se a fantasia seria capaz de deter a
usura do tempo, se aquele alto e elegante aluno do segundo ano
com as suas pernas de desportista e o seu maravilhoso rabo
continuaria a excitá-lo, agora que conhecia a criatura gorda em
que Toby, cinco anos depois, se transformara. Bom, não na
mente, talvez, mas numa imagem, numa foto: era preciso ter uma
certa coragem estética para - perante a crueza dos factos - se
deixar levar pelas asas da fantasia. Então, fez algo que era ao
mesmo tempo pateta e solene; no vidro, ficou a leve e enevoada
marca dos seus lábios e da ponta do nariz.
No seu quarto, tirou mancheias de livros das prateleiras e atirou-
os como tijolos para dentro das caixas. Armou-se contra o seu
gosto pela nostalgia - a longa e fluida despreocupação dos
velhos tempos tinha acabado, as questões, agora, eram mais
urgentes e incertas. A semana que aí vinha estava já
ensombrada pela espera dos resultados do teste. O passo em
frente, o prematuro alívio que sentira por estar a enfrentar o
caso, por ter aceitado saber a verdade, ainda que fosse a pior
das verdades, esfumara-se por completo nos dias seguintes;
agora, quando pensava nisso, sentia-se já inacessivelmente só.
Era o terceiro teste que fazia, e esse facto - e o misterioso
número três - parecia, conforme os momentos, reduzir e
aumentar as hipóteses de um resultado positivo.
As caixas ficaram cheias imediatamente, provando, uma vez
mais, a insondável fórmula que equipara a extensão das
prateleiras à capacidade das caixas. Levou uma delas para baixo
e, no preciso momento em que a punha no chão da sala de
entrada, ouviu o som da chave na fechadura da porta das
traseiras, de sapatos que alguém limpava no tapete, de um
guarda-chuva que alguém abanava. Elena? Ou Eillen, outra vez?
Fosse quem fosse, seria uma presença francamente indesejável.
Era uma coisa que o irritava, a furtividade daquelas mulheres,
bem como a confiança. Entrou na cozinha com um ar enfastiado.
- Oh meu Deus! - disse Penny, disparando as palavras num tom
sumido, ofegante. Brandia a sombrinha cor-de-rosa, ainda por
fechar,

548

diante do peito. Depois, furiosa por se ter assustado, disse: - Mm,


olá, Nick - e abeirou-se do lava-louça com o ar enfastiado a que
tinha direito. - Pensava que já se tinha ido embora - disse.
- E eu creio que pensava que você já se tinha ido embora - disse
Nick num tom bastante afável. Ambos haviam estado na guerra e
Nick sentia que poderiam finalmente ter encontrado algum
espaço partilhável. Havia uma remota hipótese de Penny se
mostrar vagamente solidária; até então, Nick não chegara sequer
a sentir o sabor do que isso poderia ser; e, para ele, a
comiseração era sempre um processo fácil.
Penny arrumou a sombrinha molhada no lava-louça, como uma
flor desabrochada, e voltou para trás. - Dentro de cinco minutos,
já terei partido. Vim só buscar as minhas coisas. - Nick quase
parecia estar a bloquear o caminho dela. - Não foi ao casamento -
disse ela.
- Achei que era melhor evitar.
- Sim. Bom, eu não os conheço, claro.
- Oh, Nat é tremendamente simpático.
- Hm-hm.
- Mas parece-me que ainda ninguém conhece de facto Beatriz.
Para dizer a verdade, nem mesmo Nat a conhece muito bem!
- É argentina, não é?
- Sim, viúva e muito rica. O primeiro marido partiu o pescoço a
jogar pólo. - Hesitou por um instante, acrescentou: - Ao que
parece, está grávida de quatro meses.
Penny deu uma fungadela sombria. - Pelo menos eu evitei isso -
disse, e, com esta pequena e sarcástica confissão, contornou
Nick e saiu da cozinha.
Nick não a via desde aquela noite no apartamento de Badger e
tinha de admitir que havia algo de interessante naquela mulher,
um sombrio e nunca pressentido glamour. Uma semana antes, o
seu nome era conhecido apenas pela família, pelos amigos da
escola e da universidade, pelos seus contactos a nível
profissional; agora, milhões em todo o mundo sabiam da sua vida
sexual. Observou-a avançando ao longo do corredor; a ideia
trocista que até então fizera dela - uma pessoa insignificante e
diligentemente ambiciosa, sem o menor sentido de humor -
vacilava por completo. Ficou onde estava, um débil sorriso de
remorso nos lábios, e,

549

um minuto depois, foi ter com ela ao gabinete de Gerald. Penny


estava de pé, a ler um fax com quase um metro de comprido; mal
deu por Nick, enrolou-o e arrumou-o desajeitadamente. - Então e
agora para onde é que vai? - perguntou Penny num tom incisivo,
quase como se estivesse, também ela, a despachá-lo.
- Oh, para já estou em casa de Wani. É... - Nick mandou-lhe um
sorriso triste da fortaleza do seu próprio escândalo, mas, do
interior da fortaleza dela não veio nenhum aceno de resposta.
- Depois, começarei a procurar um sítio só para mim.
- Não está com problemas de dinheiro.
Nick encolheu os ombros. - Para dizer a verdade, neste último
ano, as coisas têm corrido bastante bem a esse nível. Com uma
pequena ajuda dos meus amigos... E você?
- Em termos de dinheiro, não posso dizer que tenha grande coisa.
- Não, não era disso que eu estava a falar, onde é que está a viver
agora?
- Oh, voltei para casa dos meus pais... por uns tempos.
- Certo... Como é que Norman tem reagido a tudo isto?
- Bom, como é que imagina que tem reagido? Muito mal,
obviamente. - Pegou nalguns papéis que estavam na secretária e
colocou-os, como que inadvertidamente, em cima do rolo do fax.
- Claro que o meu pai detesta Gerald, sempre detestou.
Nick abanou lentamente a cabeça, como se uma tal aversão
escapasse por completo ao seu entendimento. - Na verdade, eu
nunca acreditei nisso... Só por Gerald serumTory...
- Oh, esse é um elemento insignificante... O problema é outro:
Gerald roubou-lhe Rachel, e o meu pai nunca lhe perdoou isso.
- Mas essa história já foi há tanto, tanto tempo... - disse Nick,
virando-se na direcção da janela para esconder a sua surpresa.
- Bom, o meu pai é assim, que se há-de fazer... Quando era jovem,
pensava que ia ser muito feliz e muito rico. Até que um dia
apareceu Gerald.
E era, com toda a certeza, uma aparição muito forte, quanto a
isso, a própria Penny seria por certo uma testemunha
privilegiada. Nick riu-se por um segundo e sentiu-se vagamente
tocado. Disse: - Todos sabemos até que ponto Gerald é uma
pessoa competitiva.

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Penny procurou qualquer coisa numa gaveta antes de responder


com um simples - Mmm... - Era mais do que competitivo, era
patológico: roubar a namorada e, anos depois, foder a filha. Não
havia dúvida: por alguma razão lhe chamavam Banger. Disse,
com um leve suspiro de incredulidade:
- Ouviu falar do cargo de administrador que lhe ofereceram.
- Sim... sim, ouvi.
- É espantoso, não é? Com a história das acções pairando ainda
sobre a sua cabeça...
- Oh, eles não vão prescindir dele - disse Penny.
- Sim - disse Nick. Lembrou-se dela quando entrara pela primeira
vez naquela casa, sem outra recomendação que não fosse uma
boa licenciatura, inocente, dócil, um pouco complacente na
mesa iluminada pelas velas; agora, os seus olhos pareciam
cansados e cautelosos de tantas luzes apontadas. - É sem dúvida
espantoso: demitir-se e cair em desgraça num dia e, no dia
seguinte, oferecerem-lhe oitenta mil libras anuais como
administrador de uma empresa.
Receava que ela tivesse ficado melindrada com a expressão
«cair em desgraça». - É assim que este mundo funciona, Nick.
Gerald não pode perder. Aí está uma coisa que você tem de
compreender. - Sentou-se à secretária e deu uma espreitadela
aos papéis que lá estavam. Nick tinha a sensação de que ela
estava a limpar aquela secretária de todo e qualquer resquício
de sentimento, numa espécie de ataque secreto.
- Imagino que queira ficar sozinha... - disse ele. Deu uns passos e
parou diante dela com a intenção de dar uma espreitadela ao
fax; como pôde ver, a letra - impossível, indecifrável - era de
Gerald: o texto terminava com aquele inefável ideograma que
tanto poderia ser «Amo-te» como «Teu» ou «Olá», seguido de um
«G» enorme e de uma linha de cruzinhas. Depois, reparou que
Penny o fitava com um ar tenso, com uma expressão que
confirmava a letra e os beijos; ao mesmo tempo, enquanto
decidia o que responder a Nick, não parava de pestanejar.
- Eu não vou desistir dele, Nick.
- Oh... - disse Nick.
- Não vou.

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- Compreendo.
- Estou-me nas tintas para o que diz o meu pai, ou Madam, ou o
chefe de redacção do Sun.
Nick fitou-a respeitosamente, mas disse: - Pensava que ele era
para si um caso praticamente perdido.
- O quê...? Oh, estou a ver... bom, publicamente, sim. É isso que
nós queremos que as pessoas pensem.
- Disse «nós».
- Nós estamos muito apaixonados.
Nick pôs-se a olhar para o chão, talvez impaciente. Parecia que o
enredo ia continuar obstinadamente na mesma: primeiro, era
Rachel que se recusava a deixar Gerald, e, agora, era Penny que
tomava idêntica atitude. Gerald tinha de ter qualquer coisa de
extraordinário, qualquer coisa que Nick fora incapaz de
compreender. Via a história projectando-se ao longo de um
obscuro futuro; um sem-número de artigos escritos pelo Analista
Cáustico. Disse: - Mas como é que você consegue suportar o
segredo, essa espécie de clandestinidade? - com uma
curiosidade genuína quanto à resposta que uma outra pessoa
poderia dar a uma tal pergunta.
- Talvez deixe de ser um segredo.
- Hmm... - A sobrancelha erguida e o risinho irónico de Nick
fizeram-na enrubescer, mas, pelos vistos, não a levaram a alterar
minimamente a sua posição.
- De qualquer modo, estou-me nas tintas - disse ela.
- Bom...
- Catherine sempre troçou e zombou de Gerald - disse Penny,
como que incapaz de suportar o rumo que dera à conversa.
Nick disse, num jeito hesitante: - Creio que Gerald faz
praticamente o mesmo com ela. - Parecia que o mundo de Penny
só fazia sentido para ela como um campo de força de ódios.
- Eu sei que Catherine sempre me odiou - disse ela com um riso
soturno que, na prática, também não poupava Nick; Penny não o
disse, mas parecia saber aquilo que ele pensara e dissera dela
ao longo dos anos.
- Sabe que isso não é verdade - disse Nick num murmúrio apenas,
já que era inútil estar a dizer-lhe aquilo. - Creio que, neste
momento, é a si mesma que Catherine mais odeia.

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Penny baixou a cabeça e ofereceu-lhe uma expressão
particularmente antiquada. - Pois a mim parece-me que toda esta
história lhe deu um gozo tremendo.
- Não é gozo nenhum, Penny. De início, tudo o que ela faz na fase
maníaca parece até excitante, mas, depois, acaba por ser uma
espécie de tormento para ela. - Deu-se conta de que, para chegar
a uma tal visão de Catherine, a principal fonte de Penny teria
forçosamente de ser Gerald; tal como a sua própria fonte, para
além da intuição natural num amigo, era a extenuante prosa do
Dr. E. J. Edelman.
- Bom, o tormento dela não é nada, quando comparado com os
tormentos que causou - disse Penny, impenitente.
Nick abanou a cabeça de espanto e pensou que o melhor era não
insistir mais. Ela que pensasse o que quisesse. Estava tão
excitada que nem olhou para ele enquanto lhe dizia: - Presumo
que foi você que lhe contou tudo, não foi?
- De maneira nenhuma! - disse Nick.
- Bom, mas é isso que Gerald pensa, sem sombra de dúvida. Nick
disse: - Sabe, é mesmo típico de Gerald, pensar que a
filha não conseguiria descobrir as coisas sozinha. Na realidade,
Catherine é mais esperta que todos nós.
- Quando você esteve connosco em França, tive a clara sensação
de que suspeitava de qualquer coisa - disse Penny.
- Estava muito preocupado com Rachel - disse Nick. - É uma
velha amiga.
- Bom, resta saber se ela sentirá o mesmo em relação a si. -
Penny ofereceu-lhe um sorriso breve, mas penetrante, e depois
curvou-se um pouco para a frente, com os cotovelos em cima da
secretária. - E agora, se me dá licença - disse -, tenho algumas
coisas para fazer. - Ao fim e ao cabo, lá acabara por encontrar
uma aberta para, com a mais estúpida das fórmulas, se ver livre,
também ela, de Nick.
Nick fechou a porta azul da frente, deu as duas voltas nas
fechaduras Yale e na fechadura Chubb e, num jeito lento,
distraído, tirou as chaves do seu porta-chaves. Abriu a caixa do
correio, atirou as chaves e ouviu-as tilintando no chão de
mármore. Depois,
553

baixou-se, espreitou pela fresta da caixa do correio e viu-as no


chão, inacessíveis. Havia também a chave das traseiras, pelo
que, de facto, Nick continuava a poder entrar na casa dos
Fedden; porém, passado um instante, atirou-a também para o
chão da entrada. A reluzente Yale de bronze dos jardins
comunais era a que mais lhe custava devolver; sentia-se um
rumor de segredos naquele pedaço de metal. Poderia sem dúvida
ficar com ela, ninguém se lembraria disso; seria agradável,
continuar a ser um daqueles privilegiados que tinham a chave
dos jardins - de facto, embora não de direito. Os seus olhos
moviam-se em indolentes trejeitos de indecisão. Dificilmente se
via a si mesmo regressando, rondando a casa, mirando as
janelas dos Fedden à procura de sinais da vida que levavam sem
ele. Ergueu a tampa da caixa do correio, enfiou a mão com a
chave nela e assim esteve por um segundo, antes de a deixar
cair no tapete.
O pequeno carro ficou atravancado de caixas e de roupas em
cabides, enroscadas quase numa bola. Sob tantos pertences, tão
pesados como passageiros, a suspensão ressentia-se de uma
forma muito clara. Nick deixou-se ficar por um momento ao pé do
carro, mergulhado ainda nos seus pensamentos, e, depois,
inesperadamente, começou a descer a rua como que levado
pelas pernas. Havia partes do passeio que já estavam secas,
mas o céu mostrava-se ameaçador e as nuvens corriam céleres.
As altas fachadas brancas das casas exibiam um brilho velado.
De súbito, a ideia de que o resultado do teste seria positivo
tomou conta dele. As palavras que, todos os dias, eram ditas a
outros, ser-lhe-iam ditas naquele silencioso gabinete do médico,
e a secretária e a carpete e a cadeira quadrada, de um design
moderno, participariam indissoluvelmente daquele momento.
Havia uma grande e tranquila fotografia emoldurada e, da janela,
via-se a chaminé do hospital. Ele era jovem, sem grande prática
em termos de estoicismo. Que iria fazer quando saísse do
gabinete? Continuou a andar num jeito lento, a respiração
ofegante, visões desfilando diante dos seus olhos em pleno dia.
Tentou racionalizar o medo, mas a força do medo era demasiado
intensa e singular. Tudo estava dentro dele, mas o mundo à sua
volta, os carros estacionados, o táxi que passava, a flecha da
torre da igreja no meio das árvores, também tinham mudado.
Tinham sido revelados. Era como uma sensação induzida por
drogas,

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mas sem a consciência do jogo. O motociclista que vivia um


pouco mais abaixo saiu de casa no seu jeito pesado, todo vestido
de cabedal, e foi logo direito à mota. Nick ficou parado a olhar
para ele e, depois, desviou os olhos numa mágoa que o dominava
e lhe embaciava a alma e o mantinha apartado do mundo. Não
havia nada que aquele homem pudesse fazer para o ajudar.
Nenhum dos seus amigos podia salvá-lo. Chegava a hora e eles
ficavam a saber do sucedido na sala onde estavam, num
determinado momento do dia que tinham planeado e que
continuaria como previsto. Acordavam na manhã seguinte e,
passado um bocado, recordavam-se da notícia do dia anterior.
Nick sondava os rostos deles enquanto exploravam os seus
sentimentos; Nick parecia esbater-se muito rapidamente. Deu
por si com uma fome de saber das suas ocupações, dos seus
êxitos, dos romances, das novas ideias; os poucos que se
lembravam dele diriam talvez que Nick nunca chegara a
conhecer esses romances e ideias e êxitos, que ele não vivera o
tempo suficiente para os conhecer. Era a visão matinal da rua
vazia, mas projectada num futuro distante, em tardes como
aquela daí a décadas, na azáfama alheada das actividades
desses amigos. A emoção era chocante, assustadora. Era uma
espécie de terror, feito de emoções de todas as fases da sua
breve vida, o quebrar de elos, saudades de casa, inveja,
autocomiseração; mas sentia que a autocomiseração pertencia a
uma comiseração mais vasta. Era um amor pelo mundo
chocantemente incondicional. Parou de novo a olhar para a casa
e, depois, deu meia-volta e prosseguiu a sua lenta deambulação.
Contemplou perplexo o número 24, a última casa, com as suas
insígnias de festões e arcos de estuque. Não era apenas aquela
esquina da rua, mas o facto - por si só - de se tratar de uma
esquina de rua, que parecia, à luz do momento, tão belo.

Outros Prémios de Língua Inglesa

A Guardiã dos Sonhos, Rani Manicka

Os sons, os cheiros e os sabores da Malásia. A vida atribulada de


quatro gerações de mulheres.
Os sons, os cheiros e os sabores da Malásia do século XX - um
mundo sensual e exótico, povoado de mitos e magia, de deuses e
fantasmas - unem-se numa sábia combinação de tradição e
realismo mágico para contar uma história de riso, perda, amor e
traição, que é, no fundo, o relato da vida atribulada de quatro
gerações de mulheres.
Lakshmi é uma jovem de apenas catorze anos quando é obrigada
a deixar o Ceilão, onde nasceu e viveu até então, para se casar
com um homem bastante mais velho. Cinco anos depois, Lakshmi
tem já cinco filhos e, não obstante a sua idade, apercebe-se de
que terá de ser ela própria a construir o seu futuro. Implacável na
sua determinação, tornar-se-á na admirável matriarca da família.
Os seus filhos e filhas, com as suas distintas personalidades e
percepções da história, vão configurando a saga familiar, que
alterna momentos de alegria e dor, como os vividos aquando da
cruel invasão japonesa, que deixará indeléveis cicatrizes em
todos eles. Nisha, a neta, será quem finalmente irá reconstruir o
mosaico da história familiar e o legado de Lakshmi, a Guardiã
dos Sonhos, para nos oferecer uma complexa e sensual trama de
sentimentos e vivências que atravessa a vida de quatro
gerações.

« Um livro poderoso!»

Sunday Mirror
«Rani Manicka é uma genuína contadora de histórias...» In Style
«Conseguem vislumbrar-se nesta exótica saga familiar
os ecos de Memórias de Uma Gueixa.

Mirror

Rani Manicka nasceu na Malásia. Formada em Economia, vive


actualmente na Grã-Bretanha. A Guardiã dos Sonhos é o seu
primeiro romance.

Música e Silêncio, Rose Tremain

«Rose Tremain é a melhor romancista histórica da sua geração.»

Evening Standard

No limiar do século XVII, um jovem tocador de alaúde chamado


Peter Claire chega à corte dinamarquesa para se juntar à
orquestra do rei Cristiano IV. Após a humilhante derrota frente à
liga católica, a Dinamarca é um reino à deriva, cujo megalómano
rei vive tomado pela raiva e pelo terror, apenas encontrando
algum consolo na música. Sua mulher, Kirsten, tem um
temperamento instável e é adúltera, facto que se tornou do
conhecimento público.
Ao aperceber-se de que a orquestra real toca nas profundezas de
uma sombria e gélida adega, Peter - que vai ter um caso amoroso
com Emília, dama de companhia da rainha - questiona as suas
próprias motivações e depressa se apercebe que chegou a um
sítio onde os estados antagónicos de luz e escuridão, paixão e
ódio, bem e mal, travam uma batalha mortal.
Tendo como cenário a Dinamarca do século XVII, este é um
romance intenso e provocador, uma magistral orquestração de
ponto e contraponto: lealdade e impostura, ternura e violência,
comunhão e alienação, paz e conflito... música e silêncio.
«Lírico, voluptuoso... esplêndido. Um drama sumptuoso iluminado
pela
sedutora luz dos archotes palacianos.»

Sunday Times

«Música e Silêncio é um romance magnífico... um livro que vale a


pena ler!»

The Times

Rose Tremain nasceu em 1943, foi escolhida em 1983 como uma


das melhores jovens romancistas inglesas e é hoje uma das
figuras de proa da literatura britânica. Música e Silêncio venceu
o Whitbread Prize. A ASA publicou já os seus romances
Restauração (adaptado ao cinema, seleccionado para o Boo-ker
Prize e galardoado com o prémio anual do Sunday Express) e O
Reino Interdito (que recebeu em França, em 1994, o Prémio
Fémina para o melhor romance estrangeiro).

BookerPrize, 1997

O Deus das Pequenas Coisas, Arundhati Roy

«O fenómeno literário do ano.»

Lire

O Deus das Pequenas Coisas é a história de três gerações de


uma família da região de Kerala, no sul da índia, que se dispersa
por todo o mundo e se reencontra na sua terra natal. Uma
história feita de muitas histórias. A histórias dos gémeos Estha e
Rahel, nascidos em 1962, por entre notícias de uma guerra
perdida. A de sua mãe Ammu, que ama de noite o homem que os
filhos amam de dia, e de Velutha, o intocável deus das pequenas
coisas. A da avó Mammachi, a matriarca cujo corpo guarda
cicatrizes da violência de Pappachi. A do tio Chacko, que anseia
pela visita da ex-mulher inglesa, Margaret, e da filha de ambos,
Sophie Mol. A da sua tia-avó mais nova, Baby Kochamma,
resignada a adiar para a eternidade o seu amor terreno pelo
Padre Mulligan.
Estas são as pequenas histórias de uma família que vive numa
época conturbada e de um país cuja essência parece eterna.
Onde só as pequenas coisas são ditas e as grandes coisas
permanecem por dizer.
O Deus das Pequenas Coisas é uma apaixonante saga familiar
que, pelos seus rasgos de realismo mágico, levou a crítica a
comparar Arundhati Roy com Salmon Rushdie e Garcia Márquez.

«A qualidade do livro de Arundhati Roy é tão extraordinária - é


uma obra ao mesmo tempo tão moralmente tão intensa e de uma
tal riqueza
imaginativa - que o leitor permanece completamente agarrado
até ao final.»

The New York Times Book Review

Arundhati Roy cursou Arquitectura na Universidade de Deli e foi


autora de guiões para séries televisivas e filmes. Este seu
primeiro romance foi traduzido em dezassete línguas e constituiu
um acontecimento em todos os países onde foi publicado. Vive
actualmente em Nova Deli.

Alain Hollinghurst já galardoado com o "Somerset Maugham


Award" e o "James Tait Black Memorial Prize for Fiction" ganhou
com este seu quarto romance A Linha da Beleza o Man Booker
Prize de 2004

Data da Digitalização
Amadora, Maio de 2006

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