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Professor Dr.

José Adriano Filho

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA
RELIGIÃO

GRADUAÇÃO
TEOLOGIA

MARINGÁ-PR
2011
Reitor: Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor: Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração: Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão: Flávio Bortolozzi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Diretoria do NEAD: Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Coordenação Pedagógica: Gislene Miotto Catolino Raymundo
Coordenação de Polos: Diego Figueiredo Dias
Coordenação Comercial: Helder Machado
Coordenação de Tecnologia: Fabrício Ricardo Lazilha
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Revisão Textual e Normas: Cristiane de Oliveira Alves, Janaína Bicudo Kikuchi e Jaquelina Kutsunugui

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - CESUMAR




CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação
a distância:
C397 Estudos em ciências da religião/ José Adriano Filho - Ma-
ringá - PR, 2011.
54 p.

“Curso de Graduação em Teologia - EaD”.



.

1. Teologia. 2.Ciência da religião. 3.EaD. I. Título.

CDD - 22 ed. 200.7


CIP - NBR 12899 - AACR/2
ESTUDOS EM CIÊNCIA DA
RELIGIÃO
Professor Dr. José Adriano Filho
APRESENTAÇÃO
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande desafio para
todos os cidadãos. A busca por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e solução de problemas com
eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência no mundo do trabalho.

Cada um de nós tem uma grande responsabilidade: as escolhas que


fizermos por nós e pelos nossos fará grande diferença no futuro.

Com essa visão, o Cesumar – Centro Universitário de Maringá – assume o compromisso


de democratizar o conhecimento por meio de alta tecnologia e contribuir para o futuro dos
brasileiros.

No cumprimento de sua missão – “promover a educação de qualidade nas diferentes áreas


do conhecimento, formando profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento
de uma sociedade justa e solidária” –, o Cesumar busca a integração do ensino-pesquisa-
extensão com as demandas institucionais e sociais; a realização de uma prática acadêmica que
contribua para o desenvolvimento da consciência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e a integração com a sociedade.

Diante disso, o Cesumar almeja ser reconhecido como uma instituição universitária de
referência regional e nacional pela qualidade e compromisso do corpo docente; aquisição
de competências institucionais para o desenvolvimento de linhas de pesquisa; consolidação
da extensão universitária; qualidade da oferta dos ensinos presencial e a distância; bem-
estar e satisfação da comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica e administrativa;
compromisso social de inclusão; processos de cooperação e parceria com o mundo do
trabalho, como também pelo compromisso e relacionamento permanente com os egressos,
incentivando a educação continuada.

Professor Wilson de Matos Silva


Reitor

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 5


Caro aluno, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua
produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 25). Tenho a certeza de que no Núcleo de
Educação a Distância do Cesumar, você terá à sua disposição todas as condições para se
fazer um competente profissional e, assim, colaborar efetivamente para o desenvolvimento da
realidade social em que está inserido.

Todas as atividades de estudo presentes neste material foram desenvolvidas para atender o
seu processo de formação e contemplam as diretrizes curriculares dos cursos de graduação,
determinadas pelo Ministério da Educação (MEC). Desta forma, buscando atender essas
necessidades, dispomos de uma equipe de profissionais multidisciplinares para que,
independente da distância geográfica que você esteja, possamos interagir e, assim, fazer-se
presentes no seu processo de ensino-aprendizagem-conhecimento.

Neste sentido, por meio de um modelo pedagógico interativo, possibilitamos que, efetivamente,
você construa e amplie a sua rede de conhecimentos. Essa interatividade será vivenciada
especialmente no ambiente virtual de aprendizagem – AVA – no qual disponibilizamos, além do
material produzido em linguagem dialógica, aulas sobre os conteúdos abordados, atividades de
estudo, enfim, um mundo de linguagens diferenciadas e ricas de possibilidades efetivas para
a sua aprendizagem. Assim sendo, todas as atividades de ensino, disponibilizadas para o seu
processo de formação, têm por intuito possibilitar o desenvolvimento de novas competências
necessárias para que você se aproprie do conhecimento de forma colaborativa.

Portanto, recomendo que durante a realização de seu curso, você procure interagir com os
textos, fazer anotações, responder às atividades de autoestudo, participar ativamente dos
fóruns, ver as indicações de leitura e realizar novas pesquisas sobre os assuntos tratados,
pois tais atividades lhe possibilitarão organizar o seu processo educativo e, assim, superar os
desafios na construção de conhecimentos. Para finalizar essa mensagem de boas-vindas, lhe
estendo o convite para que caminhe conosco na Comunidade do Conhecimento e vivencie
a oportunidade de constituir-se sujeito do seu processo de aprendizagem e membro de uma
comunidade mais universal e igualitária.

Um grande abraço e ótimos momentos de construção de aprendizagem!

Professora Gislene Miotto Catolino Raymundo

Coordenadora Pedagógica do NEAD- CESUMAR

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SUMÁRIO

UNIDADE I

MITO E ATITUDE MÍTICA

O MITO...................................................................................................................................................13

A ATITUDE MÍTICA.............................................................................................................................16

UNIDADE II

METÁFORA E ALEGORIA

METÁFORA..........................................................................................................................................25

ALEGORIA...........................................................................................................................................26

A ALEGORIA E O PENSAMENTO CRISTÃO................................................................................27

UNIDADE III

A RELIGIÃO E O SAGRADO

A RELIGIÃO ENTRE OS PRIMEIROS ROMANOS.......................................................................37

OS PRIMEIROS CRISTÃOS..............................................................................................................39

A VIVÊNCIA DO SAGRADO E A RELIGIÃO..................................................................................40

RITO.......................................................................................................................................................41

DOUTRINA...........................................................................................................................................41

MORAL..................................................................................................................................................42
RUDOLF OTTO....................................................................................................................................43

PUREZA E PERIGO...........................................................................................................................45

O SAGRADO E A DESSACRALIZAÇÃO........................................................................................46

DESAPARECIMENTO OU VITALIDADE DO SAGRADO.............................................................50

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UNIDADE I

MITO E ATITUDE MÍTICA


Professor Dr. José Adriano Filho

Objetivos de Aprendizagem
• Apresentar a concepção de mito e do seu lugar na cultura, especialmente na cultura
ocidental.
• Descrever as características principais do mito como fenômeno culturalmente vi-
venciado e forma de concepção e expressão da realidade.
• Mostrar a presença das categorias opostas, as polaridades do sagrado e o profano,
de que dependem os demais opostos, ordem e do caos, orientação e desvio, que
se impõem fundamentalmente ao mito.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

• O mito
• A atitude mítica
INTRODUÇÃO

A(s) “ciência(s) da religião”, especialmente a análise fenomenológica da religião, procuram


analisar os elementos comuns das diversas religiões, a fim de decifrar suas linhas de
desenvolvimento e, sobretudo, precisar a origem e a forma primeira da religião. Estuda o
fenômeno do sagrado em sua complexidade, não apenas no que ele comporta de irracional. O
que lhe interessa não é a relação entre os elementos não racionais e racionais da religião, mas
o sagrado na sua totalidade. A pessoa religiosa busca manter-se o máximo de tempo possível
em um universo sagrado, em contraste com a experiência do homem privado de sentimento
religioso de um mundo dessacralizado.

Nesse sentido, esse módulo tem por objetivo o estudo do fenômeno religioso, considerando
alguns de seus principais aspectos, como a linguagem religiosa, a dialética sagrado-profano,
bem como o processo de dessacralização que aconteceu nos últimos séculos no Ocidente.
As aulas apresentadas fundamentam-se totalmente nas referências indicadas na “Leitura
Complementar” e serão apresentadas na seguinte ordem:

a) Mito e atitude mítica: o mito como fenômeno cultural, como palavra reveladora, que comunica
uma mensagem ao relatar uma cadeia ou série de atos que tiveram lugar no marco de origem,
cujos protagonistas foram seres sobrenaturais, os autores diretos de ações extraordinárias que
deram nascimento ao cosmos ou algum aspecto novo dele.

b) Metáfora e alegoria: concepção da linguagem e de seus recursos, na qual a metáfora é


vista como “significado profundo, oculto ou sutil” que sugere, transportando o ouvinte ou leitor;
alegoria como um tropos retórico que possibilita dizer algo e, ao mesmo tempo, aludir a algo
diverso; o cerne da hermenêutica se radica na tensão existente entre o que se diz e se quer
dar a entender, entre o significado aparente e o sentido oculto.

c) A religião, que em sua essência própria é tanto uma experiência humana de respeito para
com a esfera do sobrenatural, divino e sagrado, como o conjunto de atos exteriores relacionados

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 11


que objetivam tal veneração como uma vivência compartilhada que trata de reatualizar a
ligação com essa esfera, mediante o cultivo de recursos que remontam a esses estados de
caráter primordial e permanente. Os componentes externos básicos da religião incluem ações,
objetos, palavra e normas prescritivas: rito, doutrina e moral. O sagrado e a religião: sagrado
e profano são duas modalidades do “existir” no mundo, duas situações existenciais assumidas
pelo ser humano ao longo de sua história, os quais dependem das diferentes posições que o
homem conquistou no cosmos. Compreensão da natureza do sagrado em sua manifestação
e como fonte e dispensadora de sentido religioso e cultural. Relação existente entre o tabu,
categoria sociocultural mais ampla, puro e impuro, ordem e a desordem, e o sentimento de
risco ante o caos e o sagrado.

12 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


O MITO

Os mitos são relatos, narrativas, as formas mais antigas por meio das quais o ser humano
procura esclarecer o mistério de sua existência no mundo mediante o conteúdo de narrativas,
histórias, relatos e legendas transmitidas de geração em geração. O mito é a atitude humana
de reconhecimento da irrupção do sagrado na existência e a expressão do desejo de retorno
ou nostalgia do sagrado como princípio ou arché. O ser humano mítico vive plenamente
quando alcança viver no princípio.

O mito apresenta-se como fenômeno ou ato cultural, como uma palavra que é reveladora ou
epifânica, pois comunica uma mensagem ao relatar uma cadeia ou série de atos que tiveram
lugar no marco de origem. Os protagonistas desses atos foram seres sobrenaturais, os autores
diretos de ações extraordinárias que deram nascimento ao cosmos ou algum aspecto novo
dele. Segundo Francisco García Bazán, mito envolve:

a) Símbolo

A palavra símbolo deriva da língua grega e significa “lançar


conjuntamente ou ao mesmo tempo”. O que é considerado
simbólico tem a capacidade de reunir eficazmente. O
símbolo é atividade reveladora e, por esse motivo, une o
que está separado; aponta para um significado que é real e
diferente do que sua estrutura imediata comunica ao
conhecimento empírico ou habitual. Como linguagem,
encobre e revela sentidos que, à simples vista, estão
escondidos. Sugere a aproximação ao que não diz, estando próximo dos seguintes termos:
huponoia (o sentido subentendido), alegoria (dito que afirma uma coisa, mas que significa
outra) e metáfora (transposição de significado).
- o símbolo é imagem e, portanto, realidade auxiliar e reflexo do que está escondido e que
põe de manifesto;

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 13


- sendo imagem, o símbolo não só é a realidade mais fraca do que é revelação, mas figura-
tivamente inverso com respeito ao que expressa;

- imagem reflexa, mas inseparável e necessária em relação ao que se manifesta, logo sua
origem não é nem convencional, nem efeito da arbitrariedade, mas superior ao domínio
humano individual e coletivo;

- o caráter de imagem do símbolo descrito o apresenta como análogo, como diferente e


idêntico ao que revela, pois como imagem especular se torna visível, compartilha daquilo
que reflexamente manifesta. Quando a natureza analógica inerente ao símbolo se põe em
movimento, cumpre-se propriamente a função simbólica desveladora, pois o participado
como dom é outorgado gratuitamente como experiência participante.

b) Palavra

O mito é palavra, mas palavra que relata, reúne ou liga. Relaciona-se com logos (“palavra”)
não em seu sentido especial (“a palavra que reúne e enlaça mediante o exercício racional”),
mas com o sentido amplo de reunir progressivamente. O mito é palavra autorizada que se
impõe pelo prestígio da união com a origem e seu caráter legendário. O logos, em seu sentido
restrito, é a palavra do discurso em seu deslocamento racional, lógico e retórico ou persuasivo.
A passagem do mito ao logos ocorreu já na cultura grega na época dos filósofos pré-socráticos.
c) História

O mito é uma narrativa de acontecimentos, um relato dos atos que aconteceram em um tempo
primordial. Nesse sentido, é epifania ou revelação. O relato mítico é também palavra tradicional,
ou seja, símbolo-relato que se transmite, se recebe, conserva e interpreta ou reatualiza e de
novo se entrega. A origem do mito é não humana ou pessoal. O mito é a memória ancestral
da humanidade a partir de um momento pleno, no qual o desenvolvimento do tempo sucessivo
atual não existia.
d) Tempo atemporal

O tempo primordial ou original próprio dos atos a que o mito se refere é um tempo que
está fora do tempo; uma atemporalidade de natureza intensa, de expectativa global e que

14 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


não se desdobra sucessivamente. Por isso, o tempo do estado mítico que se expressa na
continuidade linear do relato não gera o desgaste nem se desgasta com seu transcorrer
os seres e acontecimentos que nele aparecem. O tempo primordial contém, em germe, o
conjunto uno e total das realidades mutáveis que se desdobrarão por meio do tempo natural
vivido biológica, social, psicológica e cronologicamente, em cuja dimensão está a origem, a
corrupção e o aniquilamento.
e) Seres sobrenaturais

Os mitos narram atos extraordinários nos quais intervêm personagens sobrenaturais que
não vivenciam as experiências humanas de fragilidade, falha, desilusão e destruição. Essas
personagens pertencem à esfera dos deuses, semideuses e são mais que humanos; possuem
poderes e atributos que, salvo exceções, não são vivenciados no cotidiano; participam das
potencialidades que se fizeram efetivas no momento do nascimento do cosmos e de seu
equilíbrio. Por conviverem no marco de um clima sagrado, realizaram atos prototípicos
individuais inesquecíveis como criadores ou fundadores.
f) Atos excepcionais

As proezas são apreendidas pela memória coletiva ou corporativa, como ações singulares,
devido sua força exemplar, paradigmática ou prototípica. Diante delas, a fuga do tempo, as
limitações locais, a diversidade e mutabilidade dos suportes físicos representam riscos de
desaparecimento. As características únicas e universais dos acontecimentos protofigurativos
transmitidos por meio da força ilustrativa das histórias míticas aconteceram no espaço e tempo
primordiais, dentro de uma cronologia e geografia figurada carregadas de sentido sagrado,
tornando-os orientadores da existência comum, razão porque se quer voltar a eles, pois
representam a origem. O homem arcaico não suporta estar desorientado, extraditado e alheio
à sua origem.
g) Ponto de partida do cosmos ou de parte dele

Os relatos míticos são primordialmente cosmogônicos. Eles ilustram como aconteceu o

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 15


nascimento do mundo e da ordem primitiva ou narram o modo como algum aspecto dele sofreu
alguma alteração substancial.

A ATITUDE MÍTICA

Há, no mito, um tipo de consciência de si mesmo no todo que vive na tensão entre a lembrança
do arquetípico e o temor de seu desgaste ou desaparecimento. As categorias opostas, as
polaridades do sagrado e o profano, de que dependem os demais opostos, ordem e do
caos, orientação e desvio, se impõem, fundamentalmente, ao mito. O temor da deterioração
do ancestral ocorre lado a lado com a erosão que o tempo produz nos seres e nas coisas
ao aliená-los do momento da criação ou primeira manifestação da ordem. A expansão de
uma ordem implícita, manifestada em episódios simultâneos e sucessivamente relatados, é
a expressão das proezas dos deuses, a intrusão irrefreável e manifesta do sagrado. O mito,
como memorial oral autorizado, como relação com o sucedido, revela os momentos, o poder
e a majestade da origem, a época primordial ou parêntesis paradigmático entre a ordem que
se inicia e o caos que afasta.

O mito é uma síntese poderosa, uma manifestação sacral intensa,


que abre seus braços ao homem como refúgio frente à ameaça do
profano, que o torna impuro e procura destruí-lo de diversas
formas. O mito é hierofânico (manifestação do sagrado por
excelência), ontofânico: revelador do que é realmente; trescofânico:
iluminador do comportamento ritual; cratofânico e axiofânico;
expressão de poder e gravidade/seriedade. O homem primitivo
não é o que se opõe ao civilizado, mas o de mentalidade arcaica
que anseia pela reatualização, repetição real da origem, para
Marduk
experimentar diretamente suas virtualidades regenerativas.

16 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


A celebração da festa de akitu, o ano novo babilônio, ilustra o que estamos falando. Nessa
festa, a figura central era o rei, representante divino na terra e responsável por sua regeneração
natural e social. A festa durava doze dias e em seu transcurso se recitava várias vezes o
poema tradicional da criação, o Enuma Elish, que narra as façanhas do deus Marduk contra
Tiamat. Marduk venceu Tiamat, do corpo desmembrado do Tiamat criou o mundo e, do sangue
de seu súdito Kingu, criou o homem. O mito era representado por dois grupos de atores no
templo da Marduk. Nessas cerimônias havia também a “festa das sortes”, com os presságios
que correspondiam a cada um dos meses do ano, uma temporada de tristeza pela descida
de Marduk ao mundo inferior, sua humilhação e, finalmente, uma hierogamia ou casamento
sagrado do rei com uma sacerdotisa, representando, respectivamente, o deus e a deusa
Sapanitum.

O significado dos comportamentos descritos dramatizados neste relato é o seguinte:


- o domínio de Tiamat representa a força do caos. Os episódios relacionados com a des-
ordem social, a abolição da hierarquia e a eclipse do poder de Marduk estão ligados com
a desordem final, que esgota a influência de Marduk, sendo, deste modo, precursora por
seus sinais apocalípticos das trevas pré-cósmicas e pré-formais;

- a criação do mundo é um ato que se realiza fora do tempo, razão porque, ao se cumprir o
ciclo anual, se reatualiza ou regenera;

- o ser humano, ao participar na ação dramática, participa também na cosmogonia. O mundo


invadido pela desordem projeta-se, agora, no tempo imortal dos começos, supera a des-
ordem, rompe as amarras do profano, torna-se contemporâneo ao tempo primordial que
temporaliza e habita no espaço que dá lugar e orientação a qualquer espaço local;

- há também um sentido do porvir, pois as sortes estão ligadas aos meses e os dias previstos
no tempo original, que seguem, sem começo e fim, ao caos cósmico anterior;

- a união sagrada do deus e da deusa é o símbolo que prenuncia o renascimento ou rege-


neração do novo mundo e humanidade, uma nova ordem que possui a força e sacralidade
renovada, intrínseca à origem. Mas lentamente, o cosmos afasta-se do domínio e da fami-
liaridade com os deuses, o caos avança com sua obra de deterioração, como uma ameaça
permanente sobre o mundo das formas manifestadas, e o ser humano ansiará por não

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 17


perder o ponto de apoio da origem, que tem suas raízes no princípio.

Nas Escrituras Cristãs, o Apocalipse de João também preservou uma narrativa mítica sobre o
dragão como o monstro do caos. Este relato, Apocalipse 12, apresenta grande afinidade com
o modelo do mito do combate, bastante difundido no Oriente Próximo e no mundo clássico: na
forma de um grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, Satanás aparece no
céu, pronto para reduzir o mundo ordenado ao caos.

O mito do combate descreve a batalha que se dá entre dois seres


divinos e seus aliados pelo domínio universal. Um dos combatentes,
usualmente um dragão, representa o caos e a esterilidade,
enquanto o seu oponente está associado com a ordem e a
prosperidade. O resultado da batalha constituirá ou abolirá a ordem
na sociedade e a fertilidade na natureza. A estrutura do mito do
combate é a seguinte:
Apocalipse de João

a) um casal de dragões - o oponente é frequentemente um par de dragões ou bestas: (1)


marido e esposa, e/ou (2a) irmão e irmã ou (2b) mãe e filho;

b) caos e desordem - forças que o oponente representa;

c) o ataque - o oponente quer (1a) impedir que o deus principal (ou os deuses mais jovens)
chegue ao poder, e/ou (1b) destituí-lo depois de alcançar o poder;

d) o herói;

e) a morte do herói;

f) o reino do dragão - enquanto o deus está morto e confinado ao mundo subterrâneo, o


dragão governa destrutivamente: (1) saqueia e satisfaz os seus vários desejos; em particu-
lar (2) ataca a esposa ou mãe do deus;

g) restabelecimento do herói: (1) a esposa, irmão e/ou mãe do deus empenha-se em


restabelecê-lo (a) pela mágica, ou (b) seduzindo o dragão, ou (c) lutando ela mesma

18 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


com o dragão; ou (2) seu filho o ajuda (a) restabelecendo a força perdida do deus, ou (b)
assumindo ele mesmo o papel de deus (ou rei);

h) batalha renovada e vitória;

i) restauração e confirmação da ordem.

O dragão está associado ao caos e a desordem, porque representa uma ameaça à ordem
cósmica. Ele quer devorar a criança, pois seu objetivo é impedir que a criança “governe
todas as nações”. A criança é resgatada do poder do dragão (v.5) pela ação de Miguel, um
aliado angélico (v.7). Os vv.7-9 descrevem uma batalha no céu, de onde o dragão é expulso.
A restauração e a confirmação da ordem são anunciadas e celebradas no hino, associadas
com o “reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo” (v.10). A ordem é restaurada no céu,
como indica o grito do v.12. Os vv.13-18 retratam o reino terrestre do dragão e o seu ataque à
mãe do menino recém-nascido.

A descrição da besta como drakon indica sua relação com a serpente-monstro marinho do
Antigo Testamento, livyathan (Isaías 27,1 - “drakon” LXX). Leviatã e as bestas relacionadas
(Rahab - Jó 9,13; 26,12; Isaías 51,9; Salmos 89,10; Tannin - Salmo 74,13) refletem claramente
o oponente de Baal, Yamm (mar), e o monstro do mar, Lotan, da mitologia cananeia. Em
Apocalipse 12 o dragão está associado com o fogo e a água (v.3.5). É a mesma combinação
de Jó 41 usada para descrever o Leviatã, cujos movimentos agitam as águas subterrâneas -
tehôm (vv.10-13; 23-24).

A derrota do dragão por Miguel (12,7-9) está associada com o motivo dos (1) exércitos celestiais:
Miguel e seus anjos; (2) e com a expulsão daquele que foi derrotado pelo vitorioso: satanás é
arremessado a terra. O combate entre dois deuses é descrito como o encontro central de uma
batalha entre dois grupos ou gerações de divindades. No Enuma Elish, Tiamat e sua consorte
realizam uma batalha contra os deuses do céu, mas Marduk, como o representante dos deuses
do céu, os derrota. A batalha de Zeus e seus aliados com os Titãs (Hesíodo, Teogonia 617-
735) e com os gigantes (Apolodoro 1.6.1-2) é análoga à batalha de Marduk com Tiamat, Kingu

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 19


e seus aliados. Quando Zeus derrotou os Titãs, ele os enviou ào Tártaro (Hesíodo, Teogonia
717-735).

Na forma arcaica dos mitos que envolviam lutas de deuses, o mito do combate indicava as
tensões entre a fertilidade e a esterilidade, a ordem e o caos, e a vitória de uma divindade era
entendida em sentido cosmogônico. No Enuma Elish, esse aspecto cosmogônico é visto na
descrição da criação do cosmos a partir do corpo de Tiamat que foi conquistado. A vitória da
ordem sobre o caos, da fertilidade sobre a esterilidade, deve ser entendida como um evento
que se repete ao longo das estações e dinastias, como o uso cúltico do Enuma Elish o indica.
O mito do combate tem um caráter cosmogônico quando ele aparece no Antigo Testamento (Jó
26,5-14) e foi a linguagem usada pelos profetas para descrever os eventos históricos (Isaías
51,9-11 - a batalha de Javé com Yamm); esta estrutura apresenta o tema da independência
política e estabilidade que são constituídas pelo ato criador, já que a interferência do poder
estrangeiro é expressada como ameaça e caos (Naum 1,4; Jeremias 51,34; Daniel 7-8).

O modelo do mito do combate de Apocalipse 12 é dominado pela figura do dragão e seus


atos de rebelião que provocam o caos: um mito do ressurgimento e da conquista do caos.
A situação de conflito no qual a comunidade apocalíptica se encontra é descrita como um
conflito cósmico, que é o contexto do modelo mítico que Apocalipse 12 deve ser lido. Este
aspecto é ilustrado pela indicação de como o papel de Satanás é determinado pelo mito do
combate. Seu papel como kategor (“acusador”) na corte celestial é subordinado ao seu papel
como guerreiro. Sua atividade na terra depois de ter sido atirado do céu é caracterizada como
“fazer guerra aos que mantém o testemunho de Jesus” (12,17). As atividades subsequentes de
satanás são todas dominadas pela linguagem da batalha. No capítulo 13, ele concede poder
e autoridade à besta que luta contra os santos (v.7; cf. 18,19). Em 16,13-14, Satanás, auxiliado
por duas bestas, reúne os reis do mundo para a batalha. No final do livro reúne Gog e Magogue
para a batalha contra aqueles que se alegram no reino messiânico (20,7-10). Especialmente
digno de nota é o fato de que o motivo de Satanás como sedutor é interpretado em termos
militares, já que seduzir as nações equivale a ajuntar as nações para a batalha (20,8).

20 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


BAZÁN, Francisco García. Aspectos inusuales de lo sagrado. Valladolid: Editorial Trotta, 2000,
pp.17-29.
CASIRRER, Ernst. Linguagem, mito e religião. Port: Rés, s/d.
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. Uma introdução à fenomeno-
logia da religião. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2004, pp.181-269.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.

ATIVIDADE DE AUTOESTUDO

1. Assista ao filme BARAKA.

Ano de Produção: 1992 -Tempo de Duração: 106 minutos.

Direção: Ron Fricke / Roteiro: Ron Fricke, Mark Magidson, Bob Green.

Direção de Fotografia: Ron Fricke / Produção: Mark Magidson e Michael Stearns.

Edição: Ron Fricke, Mark Magidson, David E. Aubrey / Música: Michael Stearns.

- Escreva um texto sobre a forma como o filme transmite a relação do ser humano com a terra,
o sagrado e o profano.

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 21


UNIDADE II

METÁFORA E ALEGORIA
Professor Dr. José Adriano Filho

Objetivos de Aprendizagem
• Introduzir a discussão sobre as características básicas da linguagem mítica e reli-
giosa.
• Mostrar o uso da linguagem alegórica no cristianismo, especialmente no período da
patrística.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

• Metáfora
• Alegoria
METÁFORA

Nos seus Diálogos, Platão utiliza, amplamente, linguagem


figurada ou imagens. Ele lança mão de figuras relacionadas
com a esfera artesanal (demiurgo, modelo), com corpo
(ama de leite, pai, mãe, filho, amante, amado), com a arte,
as relações harmônico-musicais e alfabéticas, a luz, o sol, a
casa, o mar, o comércio dos metais. Ele utiliza figuras
ampliadas em alegorias, como a apresentação dos homens
como marionetes das Leis ou o relato da caverna; nos seus
desenvolvimentos doutrinários, ele interpõe mitos
tradicionais ou fórmulas dos mistérios órficos e eleusinos.
Platão e Aristóteles
Platão critica também o literalismo das narrações dos
poetas (Homero e Hesíodo) e o inconveniente de ensinar estas fábulas às crianças, visto que
elas não estão preparadas para distinguir onde se dá o “sentido oculto” ou alegoria. Existe a
necessidade do uso, mas também o risco verdadeiro do emprego da linguagem indireta. Uma
filosofia da linguagem de fundamento metafísico como a inaugurada pelo Crátilo, apoiada no
ensino sobre a retórica como a do Fedro, tornará possível uma concepção da língua e de seus
recursos na qual a concepção de metáfora como “significado profundo, oculto ou sutil” que
sugere, transportando o ouvinte ou leitor, é transmitida a partir dos vocábulos hyponoia,
alegoria e símbolo em seu correspondente contexto literário.

Aristóteles emprega o vocábulo metáfora com sentido retórico: transferência de sentido de


uma palavra à outra diferente com a eliminação da conjunção “como”, o que é próprio da
comparação. Cícero difundirá na língua latina este emprego peculiar da linguagem figurada
que se afasta da língua primitiva ou natural, referindo-se concretamente à metáfora, alegoria
(entendida como uma metáfora prolongada), enigma, metonímia, sinédoque e, como figuras
ornamentais, no marco restrito da decoração estilística. Essa tradição didática, prosseguida
por Quintiliano, não só deixou o interesse autorrealizativo inerente aos valores arcaicos das

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 25


imagens linguísticas em um segundo plano, mas também está na base da metamorfose da
retórica em tropologia.

ALEGORIA

No período helenístico, a linguagem mítica não podia mais ser concebida ao pé da letra ou
em seu sentido literário, exigindo uma interpretação “alegórica”. Nesse contexto, os estóicos
elaborarão uma interpretação sistemática, racionalizante e, portanto, alegórica dos mitos, a
qual estava a serviço da adaptação de um antigo patrimônio espiritual à mentalidade de épocas
posteriores. Os estóicos utilizavam a palavra hyponoia, forma de comunicação indireta, que diz
algo para dar a entender algo diverso. O verbo allegorein conduzirá ao conceito que significa
literalmente “afirmar algo diverso”, e isso publicamente. Surge, assim, o termo alegoria; por trás
do sentido da ágora há outro, mais profundo, que à primeira vista parece estranho à ágora, à
interpretação pública.

A interpretação alegórica dos mitos consistia em encontrar atrás do chocante sentido literal um
significado mais profundo. Mas, o que é esse significado de natureza diversa? Não se precipita
na arbitrariedade quando o sentido literal é abandonado? Ao responder a essa questão, os
intérpretes alegóricos acentuavam que sempre se devia partir do sentido literal, para ordená-
-lo corretamente, recorrendo, para tal, à etimologia. Os estóicos achavam que os humanos
mais antigos ainda carregavam em si o logos não falsificado, podendo, para isso, penetrar
na essência das coisas. A etimologia fornecia esclarecimentos sobre a direção do significado
oculto que ultrapassa o sentido literal.

A palavra allegoria foi cunhada pelo Pseudo-Heráclito (1º séc. a.C.), que definiu a alegoria
como um tropos retórico que possibilita dizer algo e, ao mesmo tempo, aludir a algo diverso; a
linguagem convida a reconhecer o logos literário em suas limitações e a ultrapassá-las. Esta
norma foi aplicada, especialmente, na interpretação dos mitos homéricos, visto que o cerne da

26 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


hermenêutica se radica na tensão latente, mas real, que existe entre o que se diz e o que se
quer dar a entender, entre o significado aparente e o sentido oculto, outra forma de expressão
do ensino da base ontológica sobre a aparência do que se mostra e a realidade do escondido.
Dessa forma, antes de se tornar uma técnica da interpretação, a alegoria era uma forma
de discurso, de natureza retórica, pois o fazer retórico está relacionado com a mediação de
sentido, razão porque se tomou usual estabelecer uma distinção entre a alegoria, como figura
discursiva originária, direcionada ao supraliterário, e a alegorese, que significa o processo
explícito de interpretação, a recondução da letra à vontade de sentido que nela se comunica.

A ALEGORIA E O PENSAMENTO CRISTÃO

As comunidades cristãs estiveram, desde seu


surgimento, expostas ao desafio particular inerente ao
anúncio de Jesus e à sua implícita relativização da lei
judaica. A partir de sua doutrina, a lei mosaica e,
sobretudo, sua esperança profética messiânica já não
podiam ser entendidas literalmente. Recomendava-se
interpretá-las alegoricamente e relacioná-las com a
pessoa de Jesus. Jesus era o espírito, a partir do qual a
letra do Antigo Testamento devia ser interpretada. Aqui
não era possível sofismar sobre o sentido literal das
Saída do Egito
Escrituras. Esta interpretação alegorizante do Antigo
Testamento, relacionada com Jesus, adquiriu, no século XIX, o nome de “tipologia”. Seu
objetivo visava descobrir no Antigo Testamento typoi, isto é, prefigurações da figura de Cristo,
as quais, antes do aparecimento de Cristo deviam permanecer desconhecidas. Esta leitura
tipológica da Bíblia era na sua época chamada de “alegórica”.

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 27


A tipologia busca encontrar, no Antigo Testamento, prenúncios
e analogias historicamente reais da pessoa de Jesus. Um fato
narrado no Antigo Testamento – por exemplo, a saída dos
israelitas do Egito – prefigura ainda imperfeitamente outro, o
advento, a vida e paixão de Cristo, e realiza-se nele em sua
perfeição. O Êxodo, assim, seria prefiguração da Redenção
da humanidade, obtida por meio da morte de Cristo na cruz.
Também o sacrifício de Isaac por Abraão devia prefigurar a
morte sacrifical de Cristo por seu Pai; os três dias passados
Apóstolo Paulo por Jonas no ventre do grande peixe deviam simbolizar o
período de tempo entre a morte e a ressurreição de Cristo etc. Fica, portando, estabelecida
uma relação entre duas pessoas ou acontecimentos, que são ambos reais no tempo e não se
preocupa com conceitos e abstrações, que são inteiramente secundários. A figura é
diferenciada da maior parte das formas alegóricas conhecidas em outros contextos pela
realidade histórica do que significa e é significado.

Quem primeiro falou expressis verbis de alegoria foi o apóstolo Paulo. Em Gálatas 4,21-31, ele
elabora uma interpretação “tipológica” da história dos dois filhos de Abraão, um da escrava
(Agar) e o outro da livre (Sara). Isto, explica Paulo, foi dito alegoricamente. Porque o filho
gerado pela escrava significa a Jerusalém atual, que se encontra na escravidão, isto é, sob a
lei. O que foi gerado pela mulher livre, no entanto, não é escravo da lei (ou da carne), porém
livre, por ser herdeiro do espírito.

O início de Gálatas 4:24: “O que se entende por alegoria”, indica que esta palavra teve uma
história de desenvolvimento. A palavra é de origem grega tardia e foi usada para substituir
a palavra hyponoia. Em Filón e outros alegoristas alexandrinos a palavra veio a descrever a
“interpretação figurativa de um texto autoritativo”. No exemplo de Paulo, fica claro pelo contexto
que ele não está falando somente de um processo alegórico, mas ele está interessado em
entidades alegóricas, ou seja, em seu pensamento, Sara e Agar representam realmente algo

28 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


que é vital para a expressão da fé cristã, já que a partir das figuras históricas de Agar e Sara
fala sobre a liberdade e a escravidão.

Paulo espera este momento preciso na carta para apresentar este argumento e a vantagem de
utilizar a alegoria inclui pelo menos o seguinte:
a) Permite a Paulo continuar usando a figura de Abraão.

b) Aparentemente, Paulo está utilizando um estilo de exegese que os judaizantes conheciam


ou para estabelecer suas próprias doutrinas.

c) Permite a Paulo sumarizar seus argumentos principais por meio de uma ilustração acei-
tável da história sagrada de Israel.

d) Permite a Paulo utilizar a tradição para fazer um apelo emotivo.

e) Dá a Paulo uma fundamentação para dizer algo que não poderia ser omitido, ou seja, que
os judaizantes deveriam ser repelidos.

A alegoria focaliza “duas alianças”. Agar e Ismael representam os que vivem sobre a escravidão
da Lei. Agar gerou a Ismael “segundo a carne”, representando as coisas que acontecem
fora das promessas de Deus. Assim, “Agar e Ismael simbolizam as pessoas que esperam
realizar a justiça com base em suas próprias obras”. Sara e Isaque representam a aliança da
liberdade. Este é a segunda das alianças representadas. É não só uma aliança histórica que
está representada, já que as duas alianças representam duas esferas diferentes da existência
humana. A condição de mãe é apresentada como algo que representa o destino do filho. O
propósito desta alegoria é, então, dar seguimento ao argumento básico de Paulo de que “a
vida vivida sob a lei é escravidão, a vida vivida em resposta à bênção prometida por Deus em
Cristo é liberdade”.

Há três aspectos que caracterizam o método alegórico paulino: sua epistemologia, perspectiva
histórica e sua escatologia.

Primeiro, sua epistemologia é “fé”, e não “conhecimento”. Galátas prioriza a palavra “fé”. Paulo

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 29


compartilha com seus destinatários aquilo que em um tempo anterior de sua vida tentou
destruir (1:23). Mais tarde, em seu confronto com Cefas, Paulo sustenta que a justificação não
ocorre mediante as obras da Lei (2:16). Referindo à sua própria experiência de conversão,
diz que ele estava crucificado com Cristo e a vida que ele agora vivia, vivia pela fé no Filho
de Deus, que o amou e se deu por ele (2:20). No contraste entre “fé” e a Lei, Paulo já havia
antecipado a alegoria Sara/Agar de 3:7, que afirma: “Sabemos que somente os que são da fé
são filhos de Abraão.”

Segundo, sua perspectiva da história da salvação é descrita como “liberdade”. O conceito de


“libertação” era parte da história de Israel. Cinco vezes, neste parágrafo, Paulo usa a palavra
“liberdade” para demonstrar a “realidade histórico-redentiva da fé”. A história da salvação
apresentada pode ser traçada desde Abraão, que tinha dois filhos, o segundo nascido de
uma mulher livre (4:22) por causa da promessa (4:23). Assim, a Jerusalém de cima é também
“liberdade” (4 :26) e está pronta para dar à luz a alguém que viria viver na promessa. Com um
apelo à Escritura, Paulo cita Gênesis 21:9 10, para fundamentar a afirmação de “somente os
filhos da mulher livre são realmente livres”.

Terceiro, sua escatologia, que é marcada pela esperança e culmina na pessoa de Cristo.
Este aspecto, além da ênfase na história da salvação, faz com que Paulo não se afaste do
contexto original da narrativa de Gênesis. Paulo identifica Jerusalém e Agar como o Monte
Sinai na Arábia e relembra aos destinatários de Gálatas que a promessa escatológica está na
Jerusalém celestial. Assim, entrelaça aspectos midráxicos e legais do Antigo Testamento, o
que resulta em uma hermenêutica homilética e pastoral relacionada com a missão aos gentios
no contexto da iminência da parousia.

Além de Paulo, Orígenes (185-254 e.C.), no seu livro De principiis, desenvolveu a doutrina
das três faixas de sentido da Sagrada Escritura. Ela deve indicar que também o intérprete deve
inscrever o sentido da Escritura em sua alma, primeiro o sentido corporal, depois o psíquico,
e por fim, o sentido espiritual. Esta tripartição corresponde à tripartição neotestamentária e
filônica do ser humano em corpo, alma e espírito. O sentido corporal, isto é, literal, destina-se

30 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


às pessoas simples ou ingênuas. Ele não pode ser rejeitado, porque a multidão daqueles que,
graças a ele, creem fielmente, dá testemunho de sua utilidade. O sentido anímico direciona-
-se para aqueles que já fizeram maior progresso na fé e cujo olhar, pela alma da Sagrada
Escritura, é capaz de ampliar seu horizonte. Somente aos “perfeitos” se desvela o sentido
espiritual, que deve revelar os mistérios supremos da sabedoria divina, ocultos na letra. Os
três níveis do sentido bíblico são, assim, desejados por Deus, para possibilitar aos cristãos um
progresso do visível ao invisível, do corporal ao intelectual. Por isso, o Espírito Santo ocultou
um sentido mais profundo sob o céu de uma narrativa comum (IV, 2, 7; IV, 2, 9).

Orígenes emprega a alegoria predominantemente de modo tipológico, a qual descobria em


todo o Antigo Testamento. Ele aplica também a interpretação alegórico-tipológica ao Novo
Testamento. O Novo Testamento também quer ser o prenúncio de algo misterioso, a saber,
da parusia divina, expressão da espera, para breve, de uma nova vinda do Senhor, que
caracterizava a primeira cristandade. Da mesma forma como o Antigo Testamento devia ser
uma tipologia do Novo Testamento, este aspecto deve também ser encarado como a tipologia
do “Evangelho eterno”, segundo a palavra da Revelação. Orígenes, assim, abria à cristandade
o caminho para a interpretação alegórico-simbólica do Novo Testamento, como penhor de
algo diverso e mais elevado. Segundo Orígenes, tudo o que é escriturístico compõe-se de
mistérios. Com isso, ele universalizava a dimensão do tipológico: direcionada por natureza
para a revelação do mistério, a Sagrada Escritura deveria ocultar um mistério em todas as
suas letras.

A alegoria era, pois, o nome que a antiga Igreja dava ao seu método tipológico de interpretação.
O Antigo Testamento se tornou uma alegoria do Novo Testamento, o qual revelava o espírito
a partir do qual deveria ser entendida a letra do Antigo. O ensino da tipologia histórica, uma
das correntes de interpretação religiosa da linguagem figurada dos inícios do cristianismo, está
aqui em síntese e, como isso, foi lançada a sentença condenatória da futura vigência religiosa
da mitologia grega que estava a serviço da mentalidade mítica e não da mentalidade histórica.
Os tipos ou figuras do Antigo Testamento adquirem seu pleno sentido nos antítipos do Novo

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 31


Testamento. A alegoria adota o caráter cristão como um estilo de expressão religiosa, histórica
e cristocêntrica.

A contribuição de Santo Agostinho é também importante no desenvolvimento da interpretação


alegórica das Escrituras. Para Agostinho, palavras escritas são sinais de palavras faladas, e
palavras faladas, por sua vez, são sinais de pensamentos falados. As palavras escritas da
Escritura são sinais que ajudam a dirigir os olhos da nossa mente para as realidades que eles
significam. A Escritura é como um indicador. Não aprendemos coisas inteligíveis de Moisés ou
Paulo ou dos evangelistas; nós aprendemos ao vê-las por nós mesmos na Verdade eterna. As
palavras da Escritura são sinais que dirigem nossa atenção para o que podemos ver, mas que
nunca veríamos sem elas.

Há também verdades que pertencem à esfera do tempo e mudança, e o acesso independente


que temos a estas verdades se mediante os de nossos sentidos. Eu não consulto a Cristo, a
fim de ver se a porta do meu escritório está aberta. Somente olho. Estes sentidos podem falar
a mim somente sobre o presente; a memória do sentido também me fala sobre o passado –
somente o meu próprio passado, e não todo o meu passado. Isto significa que a maior parte
do passado não é só desconhecida, mas que não se pode conhecê-lo. Naquele passado não
conhecível estão verdades que necessito desesperadamente estar consciente delas, sendo a
mais importante que “a Palavra tornou-se carne e habitou entre nós”. As palavras da Escritura
fazem-nos conscientes das verdades do passado não conhecível. A Escritura é indispensável
porque ela nos informa sobre coisas que nem a razão nem os sentidos podem agora nos
revelar.

A Escritura transmite a mensagem da verdadeira realidade, não de vãs imaginações humanas.


Ela contém a Sabedoria de Deus revelada temporalmente em Jesus Cristo como manifestação
voluntária dos mistérios de Deus. Desse modo, a mensagem polissêmica da linguagem
religiosa não só tem por correlato os atos históricos em sua dimensão profana, mas também
requer uma interpretação alegórica e espiritual, mas também a interpretação anafórica,
própria das realidades escatológicas do tempo final. A língua se torna teofânica, a palavra é

32 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


recriadora e é necessário ter “ouvidos para ouvir”. A palavra é, então, palavra operante como
palavra de Deus, o germe indubitável do “creio para poder entender”, de Santo Agostinho, e
da tradição cristã da filosofia medieval que substitui definitivamente a palavra mítica sem fugir
da transcendência.

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997.


BAZÁN, Francisco García. Aspectos inusuales de lo sagrado. Valladolid: Editorial Trotta, 2000,
pp.35-42.
CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. Uma introdução à fenomenolo-
gia da religião. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 2004, pp.81-175; 271-323.
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999.
HANSEN, João Adolfo. Alegoria. Construção e Interpretação da Metáfora. Campinas: Ed. UNI-
CAMP, 2006.

ATIVIDADE DE AUTOESTUDO

Um dos livros mais conhecidos que utiliza a técnica alegórica é O Peregrino, de John Bunyan
(São Paulo: Mundo Cristão, 2006). Leia o livro e descreva as suas principais partes, como
ocorre o desenvolvimento da alegoria (suas imagens alegóricas principais).

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 33


UNIDADE III

A RELIGIÃO E O SAGRADO
Professor Dr. José Adriano Filho

Objetivos de Aprendizagem
• Apresentar o desenvolvimento histórico do conceito de religião.
• Demonstrar como se dá a vivência do sagrado e da religião: rito, doutrina e moral.
• Apresentar o conceito de sagrado dos seus principais estudiosos, especialmente
Rudolf Otto e Mircea Eliade.
• Demonstrar os conceitos de puro e impuro e sua relação com a estabilização ou
desestabilização social.
• Introduzir a discussão sobre o fenômeno da secularização na cultura ocidental.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:

• A religião entre os primeiros romanos


• Os primeiros cristãos
• A vivência do sagrado e da religião
• Rudolf Otto e Mircea Eliade
• Pureza e perigo
• O sagrado e a dessacralização
• Desaparecimento ou vitalidade do sagrado
INTRODUÇÃO

A menção das palavras “religião” e “sagrado” lembra, de imediato, a presença de outros


termos que lhe estão associados e lhe opõem: “profano” e “dessacralização”. O primeiro, com
sentido de contraposição, e o segundo, com o significado transitivo que guarda um paulatino
obscurecimento ou eclipse do sagrado. Estes dois polos estão unidos e inseparavelmente
ligados na história da humanidade, constituindo suas aspirações e condicionamentos do
que é lícito chamar “dialética do sagrado”, quer dizer, a maneira própria como o que se
considera sagrado se revela, se desloca e se oculta no tempo. Dessa forma, começamos
com a caracterização do que é religião, visto que há um conceito de religião muito difundido
culturalmente, que se impõe quase involuntariamente ao pensamento comum ocidental há
quase dois milênios.

A RELIGIÃO ENTRE OS PRIMEIROS ROMANOS

A palavra religião deriva do substantivo latino religio. Cícero e


Aulio Gelio nos dizem que o nome igual ao particípio religens
provêm do verbo relego (ere), que significa “reunir de novo”,
“reler” ou “tornar a passar sobre algo” com o pensamento, a
leitura ou a palavra. Assim, o essencial da religião está na
repetição de uma ordem original. A disposição de veneração
para com uma ordem sobrenatural e, consequentemente, ao
mesmo tempo aos seres que dela participam, e que, assim se
experimenta, é indissociável da atitude exterior presente na
preocupação para com esse âmbito de excepcional qualidade,
Marcel Mauss
a esfera do divino, seja conservado mediante a execução de
gestos exemplares e a necessária participação neles. Esta disposição de repetição respeitosa
e submissa assegura que com a imitação reverente do prototípico o homem possa descubrir a

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 37


manutenção do que verdadeiramente existe, é forte e valioso em si mesmo e tem a capacidade
de outorgar a salvação ou autoconservação em si mesma.

A definição arcaizante de religião apresentada, que se baseia na etimologia latina e cujas


raízes estão no ambiente cultural greco-latino permite compreender outra definição, a qual,
a partir do horizonte mítico romano nos dá acesso às instituições indo-europeias. Marcel
Mauss afirma que o termo “religiões” que dizer “nós de palha”, usados pelo sacerdote de
hierarquia superior da comunidade para atar as vigas das pontes para firmá-las entre si. É
esse o motivo pelo qual o sacerdote máximo entre os romanos pós-arcaicos era denominado
pontifex, pontífice, ou seja, construtor de pontes. A designação cristã para o bispo de Roma
deriva dessa tradição local antiga.

O vocábulo “religião”, relacionado “nós de palha”, uma atividade específica realizada pelo
sacerdote de hierarquia superior, assinala que a palavra adquire significado na relação com
os especialistas do sagrado, os quais, dentro da comunidade, estão preparados para executar
as cerimônias de proteção dos poderes divinos ou demoníacos, mais que naturais aos demais
membros da comunidade.

A religião, na sua forma espontânea, arcaica e universal, não aparece como uma instituição
separada do homem, da sociedade e do seu meio ambiente natural entre os povos que viviam
imersos na experiência cósmica do sagrado, mas abarca todos os domínios e impregna toda
a realidade dos acontecimentos e funções que se fazem, sejam momentos da vida cósmica,
coletiva ou individual. Dessa maneira, ao investir o mundo circundante do sentido determinante
do sagrado, os que conheciam e possuíam as técnicas de aproximação e de conservação
estavam presentes em todas as atividades essenciais da existência, para que a eficácia que
emerge da palavra autorizada (“mito”) e o poder dos seus gestos (“rito”) preservasse o valioso
do cosmos e fosse impedida a obra erosiva do caos. A convicção no retorno ou atualização
do princípio que expulsa a desordem é o fundamento sobre o qual repousa a fé do homem
religioso arcaico.

38 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


OS PRIMEIROS CRISTÃOS

O cristianismo é filho da cultura judaica em sua relação primeira com o sagrado, mas também
dono de uma interpretação própria dessa experiência. Ele trouxe uma nova concepção de
religião e, junto com ela, uma tentativa de justificação etimológica diferente. Tertuliano
menciona a religião dos romanos, dos judeus e dos cristãos. As cartas do Bispo Inácio, de
Antioquia, registram, junto com essas distinções, os contrastes e as oposições: “judaísmo” e
“cristianismo”, “vossa religião” e “nossa religião”. Subjaz a estas formulações, sem dúvida, a
polêmica do livro da Sabedoria e de Filón de Alexandria, lição que foi aprendida pela Epístola
a Diogneto.

A tendência da exclusividade religiosa se encontra pouco depois cristalizada em Arnobio


de Sicca, cujo discípulo Lactâncio (século III d.C.) não só contrapõe a “religião de Deus” a
“religião dos deuses”, mas também introduz a inovação mais importante: o antagonismo entre
vera (“verdadeira”) e falsa religio (“falsa religião”). A partir do monopólio da religião cristã,
Lactâncio introduz uma drástica restrição no pensamento sobre o sagrado no Ocidente. Ele
admite primeiro, com Cícero, que a religião como piedade ou sentimento pelo qual os homens
reconhecem que Deus é Pai, diferencia o gênero humano das espécies animais, mas ao
mesmo tempo propõe uma etimologia inédita do vocábulo religião, centrada na experiência
sagrada cristã que estabelece uma relação pessoal entre Deus e o homem. Para ele, o termo
religião deriva de religare, porque Deus se liga ao homem e o ata pela piedade. Pode-se dizer
que só a religião verdadeira religa e não a falsa; e o que importa é o que se venera e não a
forma de adorar. Com essa proposta nova e clara da experiência do homem com o sagrado,
que se afirma sobre a base de uma relação exclusiva entre Deus e o homem, desaparece um
conceito de religião, que é substituído por outro de origem judaica e de impulso cristão (“as
duas alianças”), o qual dominará total e irrestritamente o pensamento ocidental.

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 39


A VIVÊNCIA DO SAGRADO E A RELIGIÃO

A construção etimológica do temo religião


derivado de religare, apesar de indicar
características de validade arcaizante, ao
subordinar o sagrado a uma de suas possíveis
expressões, a religião baseada na consciência
pessoal contribuiu, sem dúvida, para limitar a revelação espontânea.

A nota dominante da noção cristã de religião baseia-se no fato de que a instância básica
da repetição rítmica do “começo” que permite sua reatualização e que segundo a vivência
arcaica do religioso constituiu o núcleo da atitude de reverência, esvazia-se de sentido e se
subordina à fé na existência e vontade de um Deus único e criador que vem ao homem.
Desse modo, se “no princípio era o Verbo”, “o Verbo se fez carne” e “ressuscitou dos mortos”,
esta realidade reatualiza periodicamente no rito sacramental da eucharistia (“ação de graças”),
mas como etapas intermediárias de uma etapa final, meta e plenitude que o Verbo inaugurou
historicamente ao realizar a vontade do Pai, a qual permite a entrada das criaturas na ordem
definitiva e eterna de Deus.

A adoção de uma postura imparcial diante da religião e dos fenômenos nela envolvidos com
respeito ao sagrado exige, portanto, que se ultrapassemos a perspectiva cristã ou de qualquer
outra religião particular para poder abarcar o ato religioso em sua essência e extensão que
lhes são próprias, segundo o experimentam os diferentes povos. A religião, em sua essência
própria, é tanto uma experiência humana de respeito para com a esfera do sobrenatural, divino
e sagrado, como o conjunto de atos exteriores relacionados que objetivam tal veneração como
vivência compartilhada que trata de reatualizar a ligação com essa esfera, mediante o cultivo de
recursos que remontam a esses estados de caráter primordial e permanente. Os componentes
externos básicos da religião que fundamentam a atitude subjetiva de adesão ao divino incluem
ações, objetos, palavra e normas prescritivas: constituem o rito, a doutrina e a moral.

40 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


RITO

Etimologicamente, a palavra rito vem do latim ritus que significa “ordem prescrita” ou “ordem
estabelecida”. No grego, esse termo está ligado a artýs ou artus, que também significa
“prescrição”. A raiz ar, mais antiga e original, “modo de ser, disposição organizada e harmônica
das partes no todo”, encontra-se na palavra rta, do sânscrito védico, cujo significado remete
a uma força de ordem cósmica, mental e de relação das pessoas entre si, e em arta (arte),
do iraniano, que dá ideia de “harmonia restauradora”. A etimologia do termo rito indica que
há uma ideia de ordem, organização, estabilidade e restauração, presente no significado da
palavra rito. O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá sentido do que
é importante e do que é secundário; permite viver num mundo organizado e não caótico,
sentir em casa, num mundo que, do contrário, apresentar-se-ia a nós como hostil, violento,
impossível. Se for verdade que o cosmo tem a força de opor-se ao caos, isso se deve ao rito
e à sua força organizadora. O rito é, portanto, “uma ação que pode ser individual ou coletiva,
mas que sempre permanece fiel a certas regras. Mas isso não significa que o rito seja inflexível
e não comporte uma margem de improvisação”. Certamente, os ritos evoluem, modificam, “em
geral é de forma lenta e imperceptível”. As mudanças que ocorrem no rito são introduzidas com
extrema prudência; “a repetição é dada na própria essência do rito”.

DOUTRINA

Os ritos não incluem somente ações, mas também palavras. O silêncio e a palavra compõem a
trama do rito. O mito é o fundamento da palavra religiosa, relato epifânico e tradicional. Como
narração que se apoia não no discurso racional, mas no relato que conta uma experiência
primordial, carregada do prestígio que conserva a sucessão dos relatos qualificados, ilustra
a origem, o sentido último e a realidade dos atos do mundo e a existência. O mito vivência
do primordial que se desdobra por meio de um relato e, desse modo, é indissociável do rito
e convive em seu seio. As escrituras sagradas das grandes religiões têm suas raízes na

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 41


experiência do mito. Nesse sentido, procuram mesmo substituí-lo, mas não anular o essencial
de sua natureza, o valor do segredo divino que transportam. Os dogmas, as confissões de
fé e a teologia emergem da inspiração dos dados revelados por Deus, por isso as Escrituras
têm autoridade da crença, de serem testemunhas fidedignas da vontade e saber divinos.
O que o símbolo implica o mito desdobra por meio de um relato e a doutrina o desenvolve
intelectualmente. O crede ut intelligas (“creia para poder entender”), de Santo Agostinho, é
uma forma madura que esclarece a decisão de substituição do mito, do qual se desenvolve
a filosofia grega pela Escritura Cristã, e de compreensão de que esta Sabedoria convoca a
razão para explicar a realidade teológica e filosoficamente.

MORAL

O sentido de comunidade, de grupo social coletiva e cosmicamente integrados está, desde


o início, ligado à veneração ao que é primordialmente poderoso e a necessidade de sua
manutenção mediante a repetição arquetípica ou
providencial da ação ritual e a palavra mítica ou ritual.
Não é o indivíduo particular, mas os membros do grupo
em convivência que são levados a respeitar o que
determinam os de ritos e as celebrações, aceitando seu
cumprimento e conservando-os. O mesmo acontece na
relação cósmica e social. A continuidade interativa tem
precedência para a conduta, razão porque é necessário
ater-se às normas individuais e coletivas que permitem a
manutenção do grupo na ordem mundana e a serviço da
ordem. A comunicação do respeito espontâneo com o sobrenatural inspira, portanto, formas
de comportamento que obrigam os homens à ação ou omissão, mediante regulamentações
que protegem o grupo e seus membros da desorientação e, igualmente, dos condicionamentos
negativos da ordem.

42 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


O âmbito ambivalente dos tabus, e a partir dele das prescrições e vetos, fica claro a partir
da observação da ética religiosa e sua projeção nas primeiras manifestações do direito,
mediante as de regulamentações sobre puro e impuro, a relação entre a justiça e a punição, os
sistemas de castas, os estados da vida etc. A ele também pertencem as grandes modificações
operadas pelas religiões denominadas proféticas, nas quais a sanção de mandamentos e de
normas legais de origem divina e normativas para a conduta, constituem uma característica
proeminente da transformação do conceito de religião transferido do reino do arcaico para
o encontro entre a vontade de um Deus único e onipotente e a vontade do homem. O tema
da ética religiosa e a duplicidade de valores oferecidos em seu domínio, frente ao que a
mentalidade religiosa admite como interdito ou proibido e permitido, conduz-nos para o centro
determinante do universo das ideias religiosas, ou seja, a relação existente entre a religião e
o sagrado.

RUDOLF OTTO

Rudolf Otto (1869-1937) aprofundou o conceito de sagrado,


especialmente a partir do método fenomenológico proposto por
Edmund Husserl. Em vez de estudar as ideias sobre Deus e religião,
dedicou-se à análise das modalidades da experiência religiosa. Ele
procurou esclarecer o conteúdo e o caráter específico dessa
experiência. Negligenciando o lado racional e especulativo da religião,
Otto voltou-se para o lado irracional, pois havia lido Lutero e
compreendera o que “Deus vivo” significa para o crente. O “Deus vivo”
RUDOLF OTTO não é o Deus dos filósofos, uma ideia ou uma noção abstrata, uma
simples alegoria moral, mas um poder terrível, manifestado na “ira” divina.

Na sua obra O Sagrado, Otto esforça-se por clarificar o caráter específico dessa experiência
terrífica e irracional. Descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 43


tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder; encontra o
temor religioso diante do mysterium fascinans, no qual se expande à perfeita plenitude do ser.
Ele designa todas essas experiências como numinosas (do latim numen, “deus”), porque elas
são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino. O numinoso singulariza-se
como ganz andere (“totalmente outro”): não se assemelha a nada de humano ou cósmico; em
relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento
de “não ser mais do que uma criatura”, segundo os termos com que Abraão se dirigiu ao
Senhor, de ser “cinza e pó” (Gênesis, 18: 27). A linguagem exprime o tremendum mediante
termos tomados de empréstimo ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. A
terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere:
a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem
mediante termos tirados dessa mesma experiência.

Mircea Eliade, por sua vez, afirma que homem toma


conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como algo absolutamente diferente do profano.
Ele chama ao ato da manifestação do sagrado de
hierofania, o qual exprime o que está implicado no seu
conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado nos
revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões é
constituída por um número considerável de hierofanias,
Mircea Eliade
pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da
mais elementar hierofania, até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de
Deus em Jesus Cristo, não há solução de continuidade. Estamos diante de um ato misterioso:
a manifestação de algo de ordem diferente em objetos que integram nosso mundo “natural”,
“profano”.

O paradoxo de toda hierofania está em que, quando o sagrado se manifesta, um objeto qualquer
se torna outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do

44 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


meio cósmico envolvente. O homem das sociedades arcaicas tem a tendência de viver o
sagrado ao máximo ou perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois
para os “primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado
equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado
de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A
oposição sagrado/profano traduz-se, muitas vezes, como uma oposição entre real e irreal ou
pseudoreal. O homem religioso deseja profundamente ser, participar da realidade e saturar-se
de poder.

O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações


existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Os modos de ser sagrado
e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no cosmos. A
compreensão da natureza do sagrado em sua manifestação espontânea indica também a
relação estreita que existe entre o tabu, categoria sociocultural mais ampla, puro e impuro,
ordem e a desordem, e o sentimento de risco ante o caos e o sagrado.

PUREZA E PERIGO

No seu livro Pureza e Perigo, Mary Douglas faz uma reflexão sobre os sentidos e conexões
entre pureza, poluição e perigo em “sociedades primitivas”. Para ela, pensar sobre pureza
implica assimilar a poluição como experiência correlata e em seguida observar nessa
correlação, entre pureza e poluição, o perigo à continuidade das estruturas de um sistema
social, ou seja, defende que quando em uma sociedade comportamentos, ações, ideias,
categorias sociais e instituições são ordenados, são classificados como puros ou impuros, de
modo a evitar o perigo da desestabilização social. O grau de organização e de estabilidade
de uma sociedade reflete o nível de consenso e legitimidade alcançado pela ordenação e
hierarquização de experiências, puras ou impuras, em si mesmas não unitárias, inerentemente
desordenadas. Nesse sentido, o puro, o poluído e o perigoso são classificações simbólicas

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 45


atribuídas às práticas sociais e situações que fazem sentido para o sistema social estabelecido
e que legitimam a ordem hierárquica, o poder de arbítrio de instituições e dos sujeitos que as
representam de fato e de direito, e que por isso são hegemônicos.

Não há pureza ou impureza absoluta, as quais existem aos olhos de quem as vê, pode arbitrar
e constituir verdade. A sujeira ofende a ordem de quem vê, arbitra e persegue a sujeira quando
tinge um ambiente; persegue a doença, criando normas para se escapar do contato com a
mesma; persegue os grupos marginais, excluindo-os, reprimindo-os ou mesmo exterminando-
-os. Não há nada de amedrontador ou irracional no evitar a sujeira: é um movimento criativo, um
esforço para relacionar forma e função das coisas, ideias e sentimentos, fazer da experiência
uma unidade, uma vez que sexo, necessidades fisiológicas, impressões de objetos, sensações
ou emoções, diferenciações entre sagrado ou profano, são realidades movediças que precisam
ser orientadas coletivamente. É um perigo para o sistema social repartir o poder de simbolizar a
vida com aqueles cujos caracteres e ideias projetadas são ambíguos e anômalos, ou seja, não
se enquadram na ordem social vigente. O corpo humano possui formas variadas, assimétricas,
interior e exterior, orifícios de entrada e saída de fluidos, excrementos e objetos; as margens
físicas são margens de ideias, de experiências físicas e emocionais, sociais e culturais.

O SAGRADO E A DESSACRALIZAÇÃO

A história das crenças religiosas no Ocidente tem experimentado um eclipse gradual da


experiência com o sagrado. Assistimos, no Ocidente, o avanço do profano materializado na
institucionalização massiva das religiões e no progresso autônomo da racionalidade e da
utilidade científico tecnológica. A mentalidade desacralizadora iluminista abriu o caminho
para uma época pós-religiosa, uma etapa que não só a religião tornou-se desnecessária,
mas também considerada hostil ao desenvolvimento e a justiça. O programa ideológico da
Revolução Francesa, por exemplo, deixará a religião de lado, mas a substituirá por outras
crenças totalizadoras: o culto do prazer, encarnado no bem estar trazido pela ciência e o

46 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


comércio, o credo racionalista e a confiança cega no progresso indefinido. O indivíduo livre
foi, assim, comprometido nas transformações políticas e sociais. A religião foi afastada e vista
como incapaz de dar respostas às perguntas pragmáticas, resultando num mundo que foi
rapidamente secularizado.

No interior da filosofia alemã, a religião, vista como mistério da interioridade, será objeto
especial de reflexões de alguns pensadores. Para Manuel Kant, ultrapassada a esfera do
conhecimento fenomênico, se a existência moral responde à pergunta: “Que devemos fazer?”,
a vida religiosa, por sua vez, responde a uma inquietude diferente: “Que podemos esperar?” O
conteúdo fundado nessa pergunta é facilitado por uma “religião pura”. Este é o correlato da fé
racional filosófica a que se chega reflexivamente pelo exame do uso da razão em sua função
prática, já que a vida moral exige uma fé inteiramente racional. Se o sujeito moral, ao obedecer
aos imperativos práticos da razão, negar a existência de Deus, cairá em contradição consigo
mesmo, pois somente Deus pode garantir que a ação moral nesse mundo não esteja destinada
ao fracasso. Trata-se, pois, de uma fé dinâmica que coincide com a ação racional do homem
moral. Deus é, assim, mais que uma visão do homem, sua aspiração, um incondicionado
possível que não pode ser considerado objeto e que abona o caráter de universalidade que lhe
confere o caráter de a priori da fé racional, sua condição de possibilidade dentro dos limites
razão pura, experimentado humanamente como satisfação incompleta. Nesse sentido, a vida
religiosa é um aspecto essencial da existência humana, e as condições de sua possibilidade
surgem da análise mesma da razão segundo funciona praticamente a fé do homem livre
em Deus. A religião está ligada à conduta ética. É uma disposição de perfeição confiada
da pessoa que admite que a lei moral regulada pelo imperativo categórico é expressão da
vontade de Deus.

Friedrich D. Schleiermacher, em seus Discursos sobre a Religião, aprofunda o conceito de


religião como “sentimento de dependência absoluta”. Entre os sentimentos humanos, há um
sentimento que é cósmico, que indica a situação do homem no mundo. É um sentimento de
relação com o universo e o ilimitado, pelo qual o homem tem consciência de sua dependência

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 47


incondicionada ante o infinito. Mas, este sentimento cósmico é religioso e, além disso, revela o
absoluto no fundamento da subjetividade humana e aproxima os homens ente si, constituindo-
-os em pessoas e em comunidades religiosas.

Hegel enfoca o fenômeno religioso do ponto de vista da crise, da instituição e do sentimento.


A existência religiosa particular é alienante quando torna o indivíduo estranho a si mesmo; ao
contrário, se o integra, torna a pessoa a si e une a totalidade de sua vitalidade subjetiva ao
devir da sociedade e cultura do tempo, ou seja, a religião reconcilia o homem com o Espírito
Absoluto autoelevando a vida finita a vida infinita pelo esvaziamento divino e revelação interior
de Deus. A religião conserva uma afinidade profunda com a filosofia, privilégio que compartilha
com a arte. Ela conduz à verdade, mas se mantêm em uma etapa inferior da consciência,
sob a forma de representações, e precisará superar esse estado tomando consciência de si
mesma, objetivo que só alcançado pela filosofia da religião, para que na identidade absoluta
de sujeito e objeto, a filosofia possa abolir o que pesa à religião como união incompleta.

Para Karl Marx, a religião não é a expressão da essência humana, pois nela o ser humano
não se conhece, já que ela se transforma num véu místico que a separa da realidade. Marx
identifica o ser humano com o mundo do ser humano, com o estado e a sociedade. Não se
fala sobre o ser humano e sim sobre o mundo do ser humano. Com isso, se altera de forma
radical o quadro epistemológico dentro do qual o fenômeno religioso deve ser compreendido.
A religião, sendo uma consciência invertida do mundo, é falsa, pois nela só há ilusão. Ela não
merece ser submetida a nenhum processo de interpretação, pois tem uma função teórica,
legitimatória e uma função emocional e, portanto, é produzida por uma realidade repressora.
A religião ou a alienação ideológica (religiosa) é um sintoma da enfermidade social, porque
não se pode penetrar no mundo das relações sociais por meio da religião; é destituída de uma
possível importância política. A alienação religiosa é de segunda ordem, uma atividade crítica
que se entende como um fim em si mesmo, que pressupõe que, uma vez abolida a ilusão, o
mundo se transformará. Mas, ilusões só existem em situações que exigem ilusões. A alienação
religiosa é a expressão ideal de uma alienação material. Marx percebeu e entendeu que uma

48 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


religião que não abarca a transcendência deveria ser chamada de política.

Sigmund Freud também se preocupou com o fenômeno religioso.


Em 1894, apresentou uma nova ideia à teoria das enfermidades
nervosas, a concepção de neurose obsessiva, que se caracteriza
por episódios compulsivos que envolvem o paciente tanto
mentalmente quanto sua conduta. O sujeito, por seus complexos,
causados pela repressão, fica paralisado diante dos desejos
internos e os que, de fora, o incitam. Assim, de forma inconsciente
e coercitiva, reitera as mesmas condutas. Freud estabelece um
Sigmund Freud paralelo entre comportamento religioso e neurose obsessiva.
Examinando a estrutura externa dos atos e esvaziando-os de sua significação, chega a afirmar
que a neurose é uma religião pessoal e a religião uma neurose universal. Nesta, estariam se
manifestando os complexos mais arcaicos da humanidade; isso não impede de reconhecer
que a religião possui uma forte capacidade patogênica para os pacientes neuróticos, que
incorporada a comportamentos patológicos colabora para a desintegração da personalidade
em formas como o delírio paranoico e as perversões.

As noções de inconsciente, de repressão psíquica, de projeção e de sublimação subjazem


à interpretação freudiana do ato religioso. Freud insiste também na analogia entre a história
do indivíduo e a história da humanidade. O exame da história individual revela indícios que
pertencem à história do gênero humano. Há um paralelo entre a proibição do incesto que
atua com vigência em toda pessoa e os tabus e obrigações que derivam da pertença ao
mesmo clã totêmico. A ressonância obscura de um homicídio ou delito original se impõe ao
indivíduo. A história de Édipo pode constituir-se no paradigma estrutural de toda uma rede de
comportamentos impulsivos e afetivos da família. A partir da mesma perspectiva, o vocabulário
religioso, que se expressa como a perda do paraíso, castigo e culpa, juntamente com sexo,
pecado e redenção, é igualmente comum ao analista, e é possível que a religião, apesar de
sua utilidade, venha a ser superada, graças à evolução e progresso da humanidade.

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 49


DESAPARECIMENTO OU VITALIDADE DO SAGRADO

Max Weber descreveu os processos de Modernização do Ocidente. Quando fala da


burocratização, vê nela uma perda de liberdade; quando fala do desencantamento do mundo,
vê nesse desencantamento uma perda de sentido. Ao mesmo tempo, é de Weber que vem a
famosa visão como uma gaiola dura como o aço e a afirmação de que o moderno reduziu os
seres humanos à condição de hedonistas sem coração e especialistas sem cérebro. Weber
assinalou este processo em curso no Ocidente, mas as realidades que vivemos atualmente só
parcialmente dão razão a Weber. O desencantamento do mundo já aconteceu e experimenta
seu ocaso. De novo os deuses povoam a terra criando um Olimpo novo e poderoso. Mas,
a massificação e a redução da experiência vital de homens e mulheres, por meio da
burocratização, mediante a criação de aparelhos e aparatos de produção e reprodução do
poder em variadas esferas, em uma ideologização permanente por meio de práticas de
sujeição e da produção de súditos, incluindo os aparatos religiosos de cooptação legitimadora,
confirmam as previsões weberianas.

A discussão sobre Modernidade e Pós-modernidade continua.


A variedade de opiniões e conceitos sobre o que é uma e outra,
a indeterminação histórica sobre as origens de ambas, apenas
confirma o fato de que se trata de uma discussão sobre a era
que vivemos. Dietrich Bonhoefer, do fundo de sua prisão
nazista, colocou com veemência a questão: “Como falar de
Dietrich Bonhoefer Deus num mundo adulto?” Boa parte, senão todo o esforço da
teologia moderna se direcionou para buscar respostas a esta questão. A reflexão teológica
sobre a fé é uma hermenêutica da relação necessária entre o que afirmamos e o que
praticamos. É preciso romper com a perspectiva imposta pela Modernidade que, privilegiando
um dos sujeitos emergentes do processo histórico dos últimos três séculos - a burguesia -
cativou as Igrejas e manteve aprisionada a Palavra de Deus.

Uma civilização urbana, com megalópoles e seus problemas, como fragmentação, anonimato,

50 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


velocidade dos acontecimentos e a perda do sentido de comunidade caracteriza hoje a
sociedade. À semelhança de conjunturas históricas passadas, as Igrejas e suas teologias
foram se reformulando em função dos novos valores que iam emergindo e se impondo a
elas pelas novas realidades socioculturais em que se encontravam aprisionadas, razão do
surto de novas expressões eclesiásticas que respondem às novas visões de mundo vigentes,
com seu culto ao individualismo e à solução de problemas pessoais independentemente de
suas motivações sociais. O poder aparentemente insuperável do neoliberalismo globalizante,
que transforma tudo em mercadoria, até os bens religiosos mais caros de todas as culturas,
parece ser uma prova disso. Mas, a incapacidade das Igrejas de resistirem a esse processo
ao longo dos séculos da Modernidade, dando a legitimidade religiosa pedida pelas diferentes
articulações sistêmicas, segundo as demandas de cada conjuntura histórica, parece encerrar
as práticas eclesiais e as formulações teológicas que lhes seguiam, em uma outra “gaiola dura
como aço”, neutralizando a força histórica do Evangelho.

ALVES, Rubem. O enigma da religião. Campinas Papirus, 2006.


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WHITE, James. Introdução ao culto cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997.

ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 51


ATIVIDADE DE AUTOESTUDO I

Leia com atenção o parágrafo que segue e, em seguida, escreva um texto sobre verdadeira e
falsa religião, inclusão e exclusão religiosa.

A tendência da exclusividade religiosa se encontra pouco depois cristalizada em Arnobio de


Sicca, cujo discípulo Lactâncio (século III d.C.) não só contrapõe a “religião de Deus” a “religião
dos deuses”, mas também introduz a inovação mais importante: o antagonismo entre vera
(“verdadeira”) e falsa religio (“falsa religião”). A partir do monopólio da religião cristã [...] Para
ele, o termo religião deriva de religare, porque Deus se liga ao homem e o ato pela piedade.
Pode-se dizer que só a religião verdadeira religa e não a falsa; e o que importa é o que se
venera e não a forma de adorar. Com essa proposta nova e clara da experiência do homem
com o sagrado, que se afirma sobre a base de uma relação exclusiva entre Deus e o homem,
desaparece um conceito de religião, que é substituído por outro de origem judaica e de impulso
cristão (“as duas alianças”), o qual dominará total e irrestritamente o intelecto ocidental.

ATIVIDADE DE AUTOESTUDO II

Faça uma pesquisa sobre a vida do teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer e descreva o que ele
entende por secularização.

52 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância


REFERÊNCIAS

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ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância 53


WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

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54 ESTUDOS EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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