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FACULDADE SÃO BASÍLIO MAGNO

CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA

MAURICIO SANGALETTI

TERCEIRO ANO/SEXTO SEMESTRE

OS MUROS ABSURDOS

CURITIBA
2016
1

MAURICIO SANGALETTI

OS MUROS ABSURDOS

Trabalho apresentado à disciplina de história da


filosofia contemporânea como requisito para a
obtenção de nota parcial.

Professor: Dr. Rogério Miranda de Almeida

CURITIBA

2016
2

INTRODUÇÃO

Venho por meio deste trabalho, apresentar uma breve reflexão sobre “Os muros
absurdos” em Camus. Almejo desenvolvê-lo, de modo específico, através da análise dos
capítulos I e II da obra O mito de Sísifo.
Escolhi a presente problemática por dois motivos. O primeiro pela discussão que ela
desenvolve sobre o absurdo da existência. Sem dúvida, assim como aponta Albert Camus,
entendo que não existe nenhuma questão mais importante na filosofia que a indagação sobre
se a vida vale ou não a pena ser vivida. Todas as demais inquirições são secundárias. É
verdade que é indispensável analisar a O mito de Sísifo tendo em vista o cenário que o
filósofo desenvolve a obra, ou seja, a guerra, a destruição da Europa, a morte de grande parte
da população.
O segundo motivo está relacionado com o tema do suicídio. Já me havia despertado
grande interesse a problemática do suicídio em Schopenhauer, embora não tenha conseguido
ainda desenvolver um estudo aprofundado sobre a questão. No entanto, diante da
possibilidade do estudo sobre o suicídio em Camus, optei por um aprofundamento maior na
questão a partir das ponderações do filósofo francês e, talvez, posteriormente retomarei a
discussão na perspectiva de Schopenhauer. O suicídio é algo intrigante. Até mesmo, se nos
é licito afirmar, parece um tema proibido de ser tratado no cotidiano. Pensar porque um
indivíduo decide que não vale mais a pena viver, me parece ser a chave para compreender
se realmente há motivos para viver. Não é porque a maioria das pessoas prefiram viver que
a vida vale a pena ser vivida. Na verdade, pode se tratar de uma ilusão crer que a vida deve
ser conservada.
Tendo em vista as ponderações supracitadas, evidenciamos que o trabalho se
desenvolverá em dois capítulos. O primeiro capítulo possuirá duas seções, onde trataremos
sobre a definição de absurdo e de mito, além de explanarmos, brevemente, o mito de Sísifo.

O segundo capítulo contará com cinco subtítulos. Primeiramente versaremos sobre a


obra e o autor. Para depois tratar, em linhas gerais, da filosofia existencialista. Então, no
terceiro subtítulo, versaremos acerca do suicídio. Depois trataremos sobre os “muros
absurdos”. Por fim, abordaremos a questão do absurdo e da arte.

Tendo em vistas as considerações citadas, adentramos, pois, no trabalho.


3

1. DEFINIÇÃO DE ABSURDO

De modo geral, em consonância com o Dicionário de Filosofia Abbagnano, “absurdo”


pode ser entendido como aquilo que não encontra lugar no sistema de crenças a que faz
referência ou que se opõem a algumas dessas crenças.1
O conceito “absurdo” foi empregado pelos filósofos para condenar, destruir, afastar
crenças ou fatos – verdadeiros ou falsos –, observações perturbadoras. Daí que muitas
doutrinas e experiências assentidas como verdadeiras por algum tempo foram tidas por
absurdas. A crença nas antípodas, refutada pelos antigos filósofos, é um exemplo disso.2
Num sentido mais restrito, “absurdo” significa impossível, porque é contraditório.
Aristóteles, nessa perspectiva, fala de raciocínios por absurdo ou redução ao absurdo, que é
um raciocínio que assume como hipótese a proposição contrária ao que pretende demonstrar.
De tal hipótese deriva uma proposição oposta à própria hipótese. 3
Leibniz designou o raciocínio por absurdo de demonstração apagógica. Tal
demonstração foi tida, pelo filósofo, por útil ou pelo menos dificilmente eliminável. Kant
aplica a mesma denominação leibniziana ao raciocínio por absurdo. Contudo, justifica as
demonstrações apagógicas somente na ciência, excluindo-as da filosofia.4 Após essas
ponderações preliminares, passamos à análise do mito de Sísifo.

1.1 SOBRE O MITO DE SÍSIFO

Encetamos definindo o que é mito. De acordo com Abbagnano, além da acepção geral
de narrativa, presente, por exemplo, na Poética de Aristóteles, é factível assinalar, do ponto
de vista histórico, três significados de mito: o mito como forma atenuada de intelectualidade,

1
Cf. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia: 1a.ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. art. Absurdo.

2
Ibidem.

3
Ibidem.

4
Ibidem.
4

o mito como forma autônoma de pensamento ou de vida, o mito como instrumento de estudo
social.5 Vejamos, brevemente, cada uma das noções supracitadas.
Na antiguidade clássica, referente a primeira concepção, o mito era entendido como
um produto inferior ou deformado da atividade intelectual. A “verdade” estava associada ao
intelecto, enquanto ao mito, no máximo, a “verossimilhança”. Essa é a perspectiva de Platão
e Aristóteles. Platão contrapõe o mito à verdade ou a narrativa verdadeira, mas lhe atribui a
verossimilhança.6
O mito, em consonância com a segunda noção, é uma forma autônoma de
pensamento e de vida. Nessa, a validade e a função do mito são originárias e primárias, não
secundárias e subordinadas ao conhecimento racional. O romantismo adotou esse ponto de
vista, ampliando-o em uma metafísica teológica. A obra “Filosofia da mitologia”, a título
de ilustração, de Schelling, encara o mito como religião natural do ser humano, uma das
fases da auto-revelação do absoluto.7
A terceira ideia de mito serve de justificação retrospectiva dos elementos
fundamentais que são responsáveis pela constituição da cultura de um grupo. O mito, assim,
é indispensável a qualquer cultura. Lévi-Strauss estudou os mitos nas sociedades primitivas
e mostrou que eles não são narrativas históricas, mas representações de fatos que recorrem
na vida dos homens, de modo uniforme, como: nascimento e morte, luta contra a fome e as
forças da natureza, etc.8
O mito de Sísifo, se nós é licito fazer tal inferência, está vinculado à terceira
compreensão de mito exposta, já que tem como abordagem a retratação de elementos
constituintes da vivência do homem que constantemente recorrem, se fazem presente,
retornam. Segundo Camus, os deuses condenaram Sísifo a empurrar uma rocha
incessantemente até o ápice de uma montanha, de onde caía devido ao seu peso. Os deuses
pensaram, “com certa razão”, que o trabalho inútil e sem esperança é o mais terrível dos
castigos possíveis ao homem.9 É a este trabalho inútil e sem esperança que o homem está

5
Cf. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia: 1a.ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. art. Mito.

6
Ibidem.

7
Ibidem.

8
Ibidem.

9
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 121.
5

condenado diante do absurdo de sua existência, conforme veremos ulteriormente. Sísifo é,


como bem podemos intuir, o herói absurdo.10
Várias versões almejam dilucidar o porquê da condenação de Sísifo. De acordo com
Camus, apresentado uma dessas possíveis narrativas, que tem sua gênese em Homero, Sísifo
era o mortal mais sábio e prudente. Ele havia acorrentado a Morte. Plutão, como
consequência, enviou o deus da guerra, ou seja, Marte, para libertar a Morte, de onde seguiu-
se a sentença de Sísifo.11
Após termos tratado sobre a definição de absurdo, ressaltando o seu duplo aspecto,
de ser entendido como impossível, porque é contraditório, e de se opor a um sistema de
crenças a que faz referência ou simplesmente a algumas dessas crenças; de termos
evidenciado as três definições de mito, de termos situado o mito de Sísifo dentro dessas
noções e de apresentamos, de modo geral, a narrativa do mito de Sísifo, no próximo capítulo
aspiramos versar nomeadamente sobre o absurdo da existência a partir da obra de Camus “O
mito de Sísifo”.

2 SOBRE A OBRA “O MITO DE SÍSIFO”

O Mito de Sísifo foi publicado por Albert Camus. Nesse trabalho, o filósofo discorre,
dentre outros pontos, sobre: a gratuidade da existência, a opacidade das coisas, o nosso
desejo de clareza, o divórcio entre o homem e a sua vida. O mito de Sísifo teve publicação
praticamente simultânea a da obra O estrangeiro. Entre o ensaio e o romance é possível
perceber uma relação que é reforçado pelos próprios comentários de Camus.12
Evidenciamos ainda dois pontos. Primeiro, que o suicídio e o absurdo são temas que
constantemente são retomados nas obras do filósofo francês. Segundo, que as peças literárias
e os escritos de Camus tiveram um enorme impacto na geração do pós-guerra. O escritor,
além disso, foi associado à corrente existencialista e tido como um dos seus principais

10
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 122.

11
Ibidem, p. 121.

12
Ibidem, p. 5.
6

expoentes. As obras de maior destaque do filósofo são: O estrangeiro (1942), A peste (1942),
O mito de Sísifo (1947) e O homem revoltado (1951).

2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O EXISTENCIALISMO

O existencialismo, ou filosofia da existência, é uma corrente filosófica


contemporânea. Essa se firma na Europa logo depois da primeira guerra mundial. O
existencialismo, devido a sua expansão, acabou se tornando moda, sobretudo no contexto
pós-guerra.13 No sentido mais geral, o existencialismo pode ser compreendido como a
acentuação da importância filosófica que a existência individual tem, com as suas diversas
características irredutíveis.14
Levando em conta o contexto histórico e o desenvolvimento do existencialismo, fica
evidente que essa corrente expressa a situação de uma Europa dilacerada fisicamente e
moralmente por duas grandes guerras, sendo que a população experimenta a perda da
liberdade, devido a regimes totalitários.15
A época do existencialismo é caracterizada pela crise. O otimismo do romantismo
que, durante todo o século XIX e a primeira década do século XX, postulava um sentido da
história em nome da Razão, do Absoluto, da Ideia ou da humanidade, não apresenta
correspondência diante do cenário que a Europa então estava imersa. O existencialismo,
diversamente do romantismo, considera o homem um ser finito e dilacerado por situações
problemáticas ou absurdas. É no homem que essa corrente pauta suas análises, como já
aludimos. O homem que não é simplesmente um momento do processo de uma Razão
oniabrangente. A realidade não se reduz somente à racionalidade.16

13
CF. REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 2003, p.593.

14
Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
art. Existencialismo.

15
CF. REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 2003. p.593.

16
Ibidem, p. 593.
7

O existencialismo, em suma, se apresenta como manifestação da crise sucedida no


hegelianismo. Isso se expressa previamente no pessimismo de Schopenhauer, no humanismo
de Feuerbach, na filosofia de Nietzsche e nas obras literárias de Dostoiévski e de Kafka.17
De certo modo, toda a filosofia pode ser concebida como existencialista. A questão
da existência humana é constante nos escritos filosóficos. Todavia, e aqui reside a diferença
principal, o existencialismo que se desenvolveu no entre guerras é marcado pela
problemática da angustia, da náusea, etc. Nas raízes desse existencialismo está o pensamento
de Kierkegaard.
Os principais representantes do existencialismo são: Heidegger, Jaspers, Sartre,
Camus e Merleau-Ponty. O existencialismo de Heidegger, por exemplo, em linhas gerais,
possui um caráter ontológico. O que está em jogo é o desvelamento do Ente (Sein), por meio
dos entes (seienden), que são as “portas” na qual o Ente se vela e se desvela, aparece como
um jogo de luz e de sombra. O Ente está além de todos os entes. O infinito, que é o Ente,
jamais se dá definitivamente no finito, que são os entes. O homem é o ente privilegiado no
qual ocorre o desvelamento do Ente, pela indagação do Ente nos entes, embora nunca se
poderá alcançar um completo desvelamento. É por meio dessa indagação que o homem pode
se pautar por um projeto autêntico.
O existencialismo de Sartre, por sua vez, é essencialmente ético, do vir a ser. O
filósofo francês dá ênfase às relações intersubjetivas. A essência do homem se constrói
através de suas escolhas, graças à liberdade do indivíduo, que não possui uma essência dada
que o delimite. Na fórmula de Lequier: “fazer e, ao fazer, fazer-se”.18 Não existe
neutralidade, somos obrigados a escolher e, optando, sempre escolhemos como deve ser toda
a humanidade. Daí a necessidade de ser responsável pelas escolhas e de não recorrer a outros
como justificação de uma procedência, o que caracterizaria a má-fé.
O existencialismo de Jaspers, ao contrário dos anteriores, é de caráter ético e
religioso. Ele pressupõe o transcende. Para o filósofo, o Ser é um todo englobante que está
além dos seres finitos. O homem deve superar as situações limites, as cifras, as resistências,
que por sua vez apontam a novas resistências a serem superadas. Essas situações limites
assinalam um transcendente. A morte é a última situação limite, um muro além do qual não

17
CF. REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 2003. p. 594.

18
Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
art. Existencialismo.
8

é possível ir, mas o sujeito, por meio de sua liberdade, ainda pode escolher aceitar ou não a
morte.
O existencialismo de Camus, finalmente, é ético. Ele pressupõe a liberdade, embora
o filósofo não enfatize essa questão como Sartre. O existencialismo de Camus, ademais, é o
do absurdo, se tratando de uma ética do absurdo. Seu existencialismo não possui cárter
religioso, como o de Jaspers. Os sujeitos, segundo Camus, não vêem mais sentido na vida.
O mito e a arte aparecem como modo de colocar sentido na vida ou pelo menos de tentar
transformar o absurdo em obra de arte. Mesmo no estremo limite do absurdo, ele pode ser
transformado em obra de arte. Nessa mesma perspectiva, para Nietzsche, um dos filósofos
que mais influenciou o pensamento de Camus, os gregos não eram nem otimistas e nem
pessimistas, mas corajosos, pois percebiam os sofrimentos que a vida acarreta e justificavam
a sua existência por meio da arte.

2.2 SOBRE O ABSURDO E O SUÍCIDIO

Camus inicia o primeiro capítulo, da obra O mito de Sísifo, salientando que a questão
fundamental da filosofia não é julgar se o mundo possui três dimensões ou se o espírito
humano é dotado de nove ou doze categorias, mas sim se a vida vale ou não a pena ser vivida.
Essa deve ser a primeira indagação a ser posta. Constatamos, por conseguinte, pelo menos
na obra em questão, que a preocupação do filósofo não reside em assuntos filosóficos
abstratos, senão práticos.
A problemática em questão, para Camus, é mais premente em relação a todas as
demais que a filosofia pode levantar, em razão “das ações a que ela se compromete”19; dito
de outro modo, em consequência das implicações acarretadas pela resposta sobre a vida valer
ou não a pena ser vivida. Há aqueles que morrem por não considerar que existe uma razão
para viver, outros, em seu turno, se deixam matar por ideias e ilusões. No fim, tanto uns
como outros se condenam à morte, por vias diferentes.
Cabe levantar uma indagação: como podemos responder a essa questão preeminente
da filosofia? De acordo com Camus, existe somente dois métodos de pensamento, o de “La

19
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 19.
9

Palice” e o de “Dom Quixote”. Contudo, é somente pelo equilíbrio de ambos que se ascende
ao mesmo tempo à emoção e à clareza.20
O suicídio, que sempre foi arrazoado como fenômeno social, é encarado pelo filósofo
francês como a relação entre o pensamento individual e o suicídio. Esse se prepara no
silêncio do coração. O homem o ignora, até que chega uma noite em que o indivíduo se dá
um tiro ou se lança pela janela. Esse verme, o suicídio, habita o coração do homem. São
evidências sensíveis, mas é preciso ir ao fundo até torná-las claras para o espírito.21
O absurdo surpreende o homem em sua rotina, na sua vivência, na medida em que se
pensa o que até então se ignorava, mas que já se achava no coração. Em outras palavras: o
sentimento do absurdo, o divórcio do homem com sua vida, é uma evidência sensível ao
coração, na qual a inteligência recorre como modo de esclarecer. Podemos perceber aqui,
talvez, uma influência de Feuerbach, no sentido de que o homem não é só razão, como em
Hegel, mas também coração. É necessário ver a totalidade do homem, não reduzi-lo.
O suicídio possui diversas causas, não somente uma. Nem sempre, e esse é um ponto
curioso, as mais aparentes causas foram as que definiram a atitude. A causa é sempre uma
ação do indivíduo que a executa, de modo que aos demais somente cabe levantar
especulações em torno dos motivos. Raramente, embora tal hipótese não possa ser
descartada, alguém realmente se suicida por reflexão. O motivo é antes algo incontrolável.
Vale lembrar que para os estoicos o suicídio é a maior prova da liberdade humana, se trata
da indiferença total diante das paixões.
Não é possível fixar de modo preciso o momento em que alguém apostou na morte
ao invés da vida. É mais fácil extrair de tal gesto as consequências que ele supõe. Trata-se,
em concordância com Camus, de confessar que a vida não vale a pena ser vivida. Ora, o que
fazemos em nossa vida é dar prosseguimento aos gestos impostos pela existência por
diversos motivos, entre os quais o costume; aliás, o primeiro deles. Por conseguinte, optar
pela morte por vontade própria supõe que se reconhece, mesmo que instintivamente, como
é ridículo esses costumes, a ausência de motivos para se viver, o caráter de insensatez da

20
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 20.

21
Ibidem, p. 19.
10

agitação cotidiana e a própria inutilidade do sofrimento. Por costume entendemos: conduta


diária ou hábitos; usos de um país, de uma classe de homens.22
O homem ante um mundo privado de ilusões – pelas quais possa dar sentido para a
sua estéril existência, como os costumes – e de lazer, faz com que o mundo não se manifeste
como familiar. Diante dessas condições o indivíduo se sente estrangeiro. Isso nada mais é
que um exílio sem solução. O espírito se encontra privado das lembranças de uma pátria
perdida ou da esperança de uma terra que lhe é prometida. O sentimento do absurdo é o
divórcio do homem com a sua própria vida.23 As ilusões são necessárias para a vivência
familiar entre o mundo e o homem. Este busca familiaridade com aquele. Contudo, cabe
levantar uma indagação: é possível encontrar um ser humano que não seja dividido,
insatisfeito (com o mundo, consigo, com os demais homens), incompleto, ou, numa palavra,
neurótico?24
Para Camus, há um laço entre o suicídio e a aspiração ao nada. Todos os homens
sadios já se depararam com esse sentimento.25 Não obstante, as causas são tão complexas
que quaisquer inferências feitas a esse respeito podem ser questionadas, pois, apesar de
exteriormente os homens serem iguais, interiormente são completamente distintos. Daí que
não necessariamente há uma aspiração ao nada pelo fato de todos já terem pensado no
suicídio, embora o homem possa muito bem ter inclinação de voltar de onde veio, quer dizer,
ao nada. Mas será que as causas do suicídio, antes de uma tendência para o nada, não seriam
uma tendência para a felicidade? A busca por uma vida que concedesse o que a presente não
está dando, mesmo que isso esteja ligado ao modo como representamos a existência? Na
verdade, independente das causas que levam ao suicídio, ao divórcio entre o mundo e a vida,
a vontade humana necessita de um alvo, um objetivo, um sustento. Ela teme e odeia o vazio.
O homem prefere querer o nada a não querer de modo algum. 26 A aspiração ao nada, por

22
Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
art. Costumes.

23
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 21.

24
Cf. ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e Freud. São Paulo: Loyola, 2005. p. 212.

25
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 21.

26
Cf. ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e Freud. São Paulo: Loyola, 2005. p. 213
11

conseguinte, pode significar tão somente um último intento de uma vontade que jamais finda
de desejar.
Camus especifica, dando continuidade à explanação, que O mito de Sísifo pretende
tratar justamente da relação entre o absurdo e o suicídio à medida que este é uma solução
para aquele. Num primeiro momento parece que há apenas uma saída para o problema do
absurdo da existência: ou você se mata ou não se mata. Seria fácil demais se assim fosse. É
necessário pensar ainda naqueles que não deixam de inquirir e que não chegam a nenhuma
conclusão. Esses são a maioria.27 Aqueles que se suicidam normalmente possuem certeza
acerca do sentido da vida. Outros costumam responder que a vida não vale a pena ser vivida,
mas agem como se valesse.
Reconhecer que a vida não vale a pena ser vivida e se apegar a ela como se valesse,
evidencia que o apego que o homem tem por sua vida é maior do que todas as misérias que
se encontram no mundo. O corpo recua diante de seu aniquilamento, mesmo que todos os
dias esteja se definhando, caminhando para o ocaso da existência. A vida, em última
instância, é preferível à morte. Parafraseando Blaise Pascal, poderíamos asseverar que o
corpo tem suas razões que a razão desconhece. Foi justamente o ódio pela morte e a paixão
pela vida que renderam a Sísifo seu suplicio indizível, de acordo com Camus. Ora, o que dá
sentido à existência, mas também a trai, é a esperança de uma outra vida que se deve merecer
ou mesmo o não viver a vida por si mesma, mas por algo que a ultrapasse. A isto Camus
denomina “esquiva”.28 Essa postura da busca de um sentido além da existência, no nosso
entender, somente confirmam que esta vida por si mesma não vale a pena ser vivida. Por
isso a procura de esperança na existência de uma instância onde “corre leite e mel”, que
legitime a existência onde ela não se atesta efetivamente.
Sempre se acreditou que negar um sentido para a vida equivale a atestar que ela não
vale a pena ser vivida. Segundo Camus, não existe uma medida obrigatória entre esses juízos.
As pessoas se suicidam somente porque a vida não vale a pena ser vivida, não por que ela
não possua um sentido. A vida é aquilo que se dá sentido, o absurdo é a morte. Mas será que
existe alguma lógica que conduz até a morte? A isto Camus intitula “raciocínio absurdo”. 29

27
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 22.

28
Ibidem, p. 23.

29
Ibidem, p. 24.
12

A lógica é uma fuga. A neurose faz bem; ela nos esconde dos verdadeiros problemas. Sua
superação, sem embargo, gera dor.
Tendo discorrido neste subtítulo sobre o absurdo da existência, o divórcio entre o
homem e a sua vida, das diversas causas que se encontram nessa problemática, que não é de
cunho social, senão que está associada ao indivíduo, no próximo subcapítulo, de modo
específico, versaremos acerca dos muros absurdos.

2.3 SOBRE OS MUROS ABSURDOS

O sentimento do absurdo, para Camus, pode “contagiar” qualquer pessoa, ninguém


está isento. Tal sentimento é inapreensível, contudo, merece reflexão. A reflexão, por
conseguinte, não deve ser destinada somente àquilo que somos capazes de apreender
definitivamente. São diversas as experiências que podem trazer à tona o absurdo, conforme
veremos. Quando o homem é despertado pelo absurdo, ele descobre as diversas contradições
inerentes a sua própria sensibilidade e inteligência, colocadas perante um mundo finito e
limitado.30
Os homens permanecem desconhecidos para nós. Neles reside algo irredutível.
Entretanto, posso conhecer na prática os homens. Por meio da prática me é possível definir
os sentimentos irracionais ligados ao ser humano. Disso define-se um método, que não é de
conhecimento, senão de análise. Esse método confessa que todo o conhecimento verdadeiro
é impossível. Somente é possível enumerar as aparências e apresentar o ambiente.31
Segundo o filósofo francês, as grandes ações e os grandes pensamentos possuem uma
gênese ridícula. O mundo absurdo não é exceção.32 Responder “nada” a uma pergunta sobre
a natureza de seus pensamentos, quando sincera, expressa o vazio eloquente do estado de
alma, rompendo as correntes dos gestos cotidianos, se caracterizando como primeiro sinal
do absurdo. O cotidiano é um torpor no qual o homem está avassalado. Daí que na maior
parte do tempo a rotina não denota problemas.

30
Cf. LOGOS - ENCICLOPÉDIA luso-brasileira de filosofia. São Paulo: Verbo, 1989. art. Camus.

31
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 26.

32
Ibidem, p. 27.
13

Diante da continuidade dos gestos, sem embargo, surge um dia a indagação “por
quê”. Com essa interrogação o mundo explicita a sua indiferença, alteridade e assombro. Se
trata de uma espécie de intuição sobressaltada.33 Tudo começa então a entrar numa lassidão que
inaugura um movimento da consciência. A consciência desperta e provoca sua continuação,
que é um retorno inconsciente para os grilhões ou um despertar definitivo para o absurdo.
Do despertar, com o tempo, aparece as consequências: suicídio ou restabelecimento.34
O tempo, em nossas ações cotidianas, nos leva. Porém, chega um momento em que
é nossa responsabilidade levá-lo. O anseio pelo amanhã, quando se deveria rejeitá-lo. O
homem mesmo querendo viver sabe que um dia vai morrer, que sua condição é mortal e não
eterna. Isso é o absurdo.
Em outro grau de absurdo se percebe que o mundo é “denso”. Há algo de desumano
no fundo de toda a beleza. As coisas, diante dessa constatação, vão perdendo o sentido
ilusório com as quais as revestimos, vão se tornando “inumanas”. O mundo, assim, nos
escapa, porque volta a ser aquilo que ele é. Não colocamos mais as figuras para previamente
entendê-lo. O que antes era disfarçado pelo hábito, isto é, um mundo familiar, volta a ser o
que é, um mundo desumano. A estranheza e a densidade do mundo é o absurdo.35 Diante
dessas condições o homem se sente estrangeiro, em exílio.
Os homens também são responsáveis por segregar desumanidade. Não somente o
mundo é desumano. Em momentos de lucidez tudo o que os rodeia se torna inútil. Percebem-
se os aspectos mecânicos presentes em seus atos. O mal estar diante da desumanidade do
homem, o perguntar-se o porquê de sua vida, é também o absurdo.36 Esse mal estar não está
relacionado somente aos outros homens, mas também com o próprio sujeito.
Referente à morte, todos vivem como se não “soubessem”. Isso decorre de não haver
experiência de morte, a não ser em relação à morte alheia. Diante da morte desponta a
inutilidade e isso também é o absurdo.37

33
Cf. LOGOS - ENCICLOPÉDIA luso-brasileira de filosofia. São Paulo: Verbo, 1989. art. Camus.

34
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 27.

35
Ibidem, p. 28.

36
Ibidem, p. 29.

37
Ibidem, p. 29.
14

Observamos que Albert Camus usa diversas expressões para apontar os estados que
se encontra o homem diante do absurdo, entre elas: “condição absurda”, “condição cruel e
limitada”, “condição sem futuro” e “vã condição”.38 O absurdo, todavia, não reside nem no
mundo e nem no homem. O absurdo é a confrontação entre ambos, sucede pela coexistência.
Em suma, a morte, o tempo, a desumanidade do homem e do mundo são “muros
absurdos”. Diante desses “muros absurdos” o homem se choca, encara a limitação e a
obscuridade de sua vida, em uma palavra, a sua finitude existencial, a contingência de sua
vida. São, valendo-nos de um conceito da filosofia de Jaspers, situações limites.

2.4 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ABSURDO E O MITO

Finalizaremos esta pesquisa abordando, brevemente, a questão do absurdo e do mito.


A revolta, sensação que emana da constatação da indiferença do mundo, em nada altera o
absurdo. O suicídio, por conseguinte, não pode ser tomado como solução. O suicídio apenas
suprime o homem, mas o mundo permanece como está, isto é, imerso no absurdo. Para
Schopenhauer, nessa linha, quem se suicida não busca a morte pela morte, senão a abolição
dos sentimentos; no entanto, o que é abolido é apenas o fenômeno, quer dizer, o homem, não
a vontade enquanto tal.
Trata-se, em Camus, de conferir um sentido maior ao mundo e à vida, por meio da
inteligência e dos sentidos, através da criação artística, dos mitos. A única saída é o confronto
com o absurdo.39 Por isso que os mitos são feitos para que a imaginação os anime.40
Albert Camus não chega a afirmar que toda a vida é um absurdo, pois se o fizesse
não haveria uma opção além do suicídio. Mesmo reconhecendo que a vida é um absurdo se
pode tentar vivê-la. Sísifo quando abandona os cumes e mergulha pouco a pouco nas
guaridas dos deuses é superior ao seu destino. Sísifo é consciente de sua situação; ele tem
esperança em triunfar.41 Do mesmo modo, quando o homem, mesmo reconhecendo o

38
Cf. LOGOS - ENCICLOPÉDIA luso-brasileira de filosofia. São Paulo: Verbo, 1989. art. Camus.

39
Ibidem.

40
CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016. p. 122.

41
Ibidem, p. 122-123.
15

absurdo da vida, tenta transformar pelo mito esse absurdo, é maior que a própria condição
na qual está imerso.
16

CONCLUSÃO

Neste trabalho pretendíamos tratar sobre os “muros absurdos”, em Camus. Para isso,
dividimos a pesquisa em dois capítulos. No primeiro capítulo abordamos a definição de
absurdo e de mito, além de termos versamos sobre o mito de Sísifo. No segundo capítulo
discorremos sobre as características gerais do existencialismo, sobre o absurdo da existência,
os “muros absurdos” e o absurdo e o mito.
A problemática por excelência da filosofia, para Camus, é se a vida vale ou não a
pena ser vivida. Há os que morrem por não considerar que a vida vale a pena ser vivida,
enquanto outros se deixam matar por ilusões. O suicídio sempre foi tratado como um
fenômeno social, como em Durkheim. O filósofo francês, contudo, considera o suicídio
como uma realidade estritamente relacionada com o sujeito, não com a sociedade. O suicídio
é uma evidência sensível ao coração, que deve se tornar clara através da razão.
O suicídio possui diversas causas, não apenas uma. Não podemos traçar de modo
preciso o momento em que um indivíduo decidiu apostar na morte ao invés da vida. Sem as
ilusões e o lazer, os costumes que dão sentido a nossa estéril existência, o homem se sente
estrangeiro diante do mundo. O mundo, em decorrência disso, se apresenta como algo
desumano, se mostra como de fato é. Num primeiro momento, parece que há apenas duas
opções em relação ao absurdo: o suicídio ou a continuação da vida. Contudo, é preciso
lembrar aqueles que nunca param de pensar sobre a questão. Assim, o absurdo não apresenta
uma solução tão simples. Por sua vez, reconhecer que a vida não vale a pena ser vivida, mas
viver como se valesse, evidencia que a vida do homem é mais importante que todos os
sofrimentos que o mesmo possa enfrentar. O corpo recua ante o seu aniquilamento, mesmo
que todos os dias o seu acaso se aproxima.
O sentimento do absurdo pode contagiar qualquer pessoa, a qualquer momento.
Diversas são as experiências que podem trazer à tona o sentimento do absurdo. “Os muros
absurdos”, isto é, a morte, o tempo, a desumanidade do homem e do mundo, são realidades
diante das quais o homem se choca, encara a limitação e a obscuridade de sua vida, como já
apontamos. O suicídio, todavia, mesmo diante da revolta do homem face o absurdo da
existência, não é encarado como solução, já que ele ocasiona o fim do homem, não do
absurdo. O absurdo deve ser, por conseguinte, transformado pelo homem, por meio do mito,
da arte.
17

Acreditamos ter chegado ao ponto que almejávamos com este trabalho. Entretanto,
devido a pertinência do tema, e pelo fato do interesse pela pesquisa, nos comprometemos a
um estudo mais elaborado sobre a temática em questão, bem como o aprofundamento em
outros filósofos.
18

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola Dicionário de filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

ALMEIDA, Rogério Miranda de. Nietzsche e Freud. São Paulo: Loyola, 2005.

CAMUS, A. O mito de Sísifo: 6a.ed., Rio de Janeiro: BestBolso, 2016.

LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.

LOGOS - ENCICLOPÉDIA luso-brasileira de filosofia. São Paulo: Verbo, 1989.

REALE, Giovanni. História da filosofia. São Paulo: Paulus, 2003.

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