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OS DEZ MANDAMENTOS COMO LEIS DE ORGANIZAÇÃO EM DEFESA DA

VIDA NAS TRIBOS DE ISRAEL

1. A OCUPAÇÃO DA TERRA

Antes de tratarmos da formação do povo de Israel, discorreremos sobre o modo


como a terra foi ocupada por este povo. Há três hipóteses que almejam explicar a tomada
da terra prometida por parte dos hebreus no tempo de Josué e dos juízes. Vejamos cada
uma delas.

A primeira hipótese considera que a formação de Israel sucedeu através da


ocupação violenta. Esta ocorreu por meio de três ou quatro campanhas que foram
lideradas por Josué. A união das tribos, segundo esta corrente, se deve ao fato de haver
parentesco entre elas. Na verdade, é como se todas descendessem de Abraão e, por
conseguinte, pertenceriam a mesma raça. Esta hipótese é a mais antiga, conhecida e
tradicional. Contudo, ela se fundamenta numa leitura fundamentalista da bíblia.
Contradições presentes nos livros de Josué e Juízes tiram a sua credibilidade. Os livros
de Josué e Samuel mostram que a conquista da Terra foi um processo longo, lento e
difícil, finalizado durante o reinado de Davi.1 A explicação mais plausível é que os textos
que falam de violência foram escritos durante o reinado. Os teólogos da corte fizeram
uma retroprojeção das conquistas violentas de Davi para o período da formação das tribos,
com o objetivo de legitimar as práticas sanguinárias que levaram Davi a tantas
conquistas.2

A segunda hipótese defende que a formação das tribos ocorreu por meio de uma
ocupação pacífica, de uma lenta e progressiva infiltração e imigração de tribos
seminômades. Estas provinham das regiões semiáridas ou das estepes. Aí elas
apascentavam os rebanhos. Como nômades, buscavam pastagens melhores. Todavia,
progressivamente este povo se estabeleceu em terras cultiváveis. Fixaram-se em meio aos
cananeus. Abraão e Sara são exemplos dessa migração (Gn 12,1-9; 13,1-4). Esta corrente
surgiu em 1900. Ela, entretanto, não explica suficientemente a experiencia alternativa na

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formação das tribos de Israel em relação as cidades-estado cananeias, o que a faz cair em
descrédito3.

A terceira hipótese apresenta a união das tribos enquanto uma rebelião aos reis de
Canaã. Ela assevera que regiões desocupadas, foram ocupadas por camponeses e outros
setores excluídos que haviam se revoltado com os reis cananeus. Nas montanhas eles
refugiaram-se e organizaram-se. A este grupo juntaram-se, posteriormente, outros grupos
empobrecidos. Alguns oriundos das estepes e de fora de Canaã. Haviam também grupos
de escravos fugitivos do Egito. O que explicaria a insurreição somente dos hebreus no
Egito e a não menção das revoltas de camponeses de Canaã é a seguinte: a redação da
memória de Israel realizou-se durante a monarquia; logo, a corte não tinha interesse em
conservar rebeliões populares contra reis.4 Esta corrente defenderemos enquanto
explicativa da formação das tribos de Israel, conforme poderemos observar no próximo
subtítulo.

2. PRINCIPAIS GRUPOS QUE PARTICIPARAM DA FORMAÇÃO DE


ISRAEL

O principal fator que levou os camponeses endividados e escravizados a fugirem


foram as condições econômicas. As fugas, num primeiro momento, tinham como destino
as montanhas, visto que os carros de guerras dos reis não conseguiam chegar nelas. São
experiências de êxodo vivida por esses povos. Nas estepes montanhosas, certamente
tomadas de mata, haviam algumas cidades, a saber: Hebron, Jerusalém, Betel, Siquém.
Além das necessidades econômicas, a religião desenvolveu um importante papel no
processo de libertação. Israel significa “Deus lutará”. Isto indica o surgimento de Israel
no campo de batalha, na luta pela terra em nome de Deus. Provavelmente, o maior
contingente envolvido com a formação de Israel provém dos setores empobrecidos dos
campos de Canaã.

Esses camponeses possuíam a “festa da primavera”. Se trata de uma festa da


colheita. É a ceifa da cevada. Os festejos prolongavam-se por uma semana. Neles se

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comiam pães sem fermento, simbolizando: cevada nova, farinha nova, pão novo, vida
nova.5 A festa era um rito de passagem. Ulteriormente, na formação do povo de Israel,
esta festa e a páscoa vão se juntar, formando uma só festa.

O segundo grupo que participou na formação das tribos de Israel foram os pastores
seminômades das estepes de Canaã. Eles ficavam acampados em uma região enquanto
houvesse alimentação para o grupo e os animais. Após, mudavam para outras áreas. Estes
pastores são conhecidos por nós como grupo dos pais (Abraão, Isaac e Jacó), bem como
das mães (Sara, Agar, Rebeca, Raquel e Lilia).

Os seminômades são os primeiros grupos que resistem a opressão das cidades-


estado. Sua resistência consiste na fuga para as estepes. Eles, portanto, também fizeram
sua experiência de êxodo. Suas instituições básicas são: família e clã (grupo de famílias
originarias de um ancestral em comum). As famílias possuíam autonomia nos aspectos
econômicos, políticos e religiosos. Neste modelo, o sistema patriarcal é demasiadamente
forte.

A experiência religiosa dos seminômades é a do Deus da benção (Gn 12,1-3), da


promessa de água e pastos para o rebanho, de herdeiros (Gn 15;17). É o Des que caminha
com o povo. Entre eles não haviam sacerdotes especializados e nem templos. Salientamos
que Js 24,2.14s afirma que antes deles integrarem nas tribos de Israel, seguiam vários
deuses. Na assembléia de Siquém, Josué convida-os a seguir o Deus dos israelitas. Estes
pastores celebravam a páscoa. Ela representava a passagem de um acampamento antigo
para um novo.6 Na despedida de um acampamento, o grupo comia um cordeiro assado.

O terceiro grupo que participa da formação das tribos de Israel são os escravos do
Egito. Os líderes dessa fuga foram: Moisés, Aarão e Miriam. O êxodo do Egito foi o mais
“espetacular” de todos, dado a façanha de libertar-se justamente onde o poder era mais
forte, no “centro da escravidão”. Este tornou-se símbolo de todos os demais êxodos. A
saída do Egito representa já a própria fundação do povo.7

A palavra “hebreus” aponta para um grupo de pessoas da mesma condição social.


Em Ex 1,8-14, percebemos que os hebreus são os trabalhadores forçados que prestam

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serviços pesados, sob muita opressão, em obras do rei faraó. Moisés, como bem sabemos,
assume a luta em defesa de seus irmãos hebreus; contudo, num primeiro momento, pela
sua ação violenta e individual, lhe sobreveio a perseguição. Fugindo para Mediã, Moisés
casou-se com a filha do sacerdote do Deus cujo nome era YHWH (Ex 2,16; 3,1; 18,1-
12). Foi aí que Moisés recebeu a revelação de Deus. Cada vez mais lhe foi ficando claro
que o Deus vivo é uma experiencia misteriosa ligada ao povo, à conquista da vida e da
liberdade. Os hebreus egípcios não conheciam esse Deus.

As pragas do Egito representam uma “queda-de-braço” entre o Deus dos hebreus


e as divindades do faraó. Com o êxodo do Egito, os hebreus se dirigem às montanhas de
Canaã, visto que no delta do rio Nilo não haviam espaços despovoados. Sem dúvida, o
grande milagre do êxodo hebreu foi a conquista da liberdade; entretanto, a experiência da
presença de Deus junto às águas ficou cravado no povo como essencial para vencer o
poder que oprimia. Em leituras posteriores, quanto mais distante do fato, mais a presença
de Deus era engrandecida.8 Para os hebreus, a páscoa é a passagem da escravidão para a
liberdade.

Observamos, para finalizar, que a experiência dos hebreus no Egito é indepen-


dente da dos pastores de Mediã quanto a sua origem. Ambos os grupos se encontraram
somente na terra de Canaã ao fazerem o seu êxodo. É a ulterior tradição teológica que une
as duas experiências antes de seu real encontro. Talvez a intenção dos autores era unir as
duas experiências que durante o período tribal participaram da formação da fé israelita.9

O grupo dos pastores de Mediã possuíam características muito semelhantes a dos


pastores de Canaã. Contudo, ao contrário destes, aqueles procedem dos arredores do
monte Sinai (Horeb). Quanto ao nome de Deus, já aludimos que ele é denominado
YHWH: “Eu sou aquele que está aí”; “Eu sou o que sou”. Este culto se constitui como a
principal herança que Israel recebeu dos pastores de Mediã. Se trata de um culto anterior
a Israel, enquanto povo organizado, e de fora de Canaã.

O Deus YHWH, para esses povos, é o único e não admite outros deuses. É um
Deus fiel, ciumento, exige fidelidade de seu povo (Ex 20, 2-6; Dt 4,24). Os pastores de

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Mediã, como os demais povos supracitados, também fazem sua experiência de êxodo. A
dominação edomita sobre Mediã provocou migrações de grupos excluídos para Canaã.

As diversas experiências supramencionadas se juntaram durante a formação das


tribos nas montanhas de Canaã. As diversidades culturais e religiosas foram acolhidas na
nova organização, isto é, na sociedade tribal. A festa da páscoa é fruto dessa integração.
Nela se celebra o Deus que conduzia a saída do Egito. Na cerimônia há o pão sem
fermento, o cordeiro e as ervas amargas.10

3. DÉCALOGO: LEIS A SERVIÇO DA VIDA

Na época tribal não haviam leis escritas. As que estão especialmente no pentateu-
co, foram escritas durante a monarquia, o exílio e após o exílio. Muitas dessas leis são tão
antigas que remontam à época tribal. Entre elas se destacam os 10 mandamentos. O
Decálogo pode ser encontrado em: Ex 20, 2-17; Dt 5,6-21. Os mandamentos são referên-
cias importantes na vida de Israel. O Decálogo como conhecemos hoje remonta ao século
VII.

O decálogo é destinado exclusivamente a homens adultos, possuidores de terras,


gado e escravos; por conseguinte, exclui os escravos, mulheres, crianças e assalariados.11
As leis emanam daquele que tem a autoridade de quem libertou os hebreus da mão do
faraó. Este concedeu terra e liberdade a seu povo. Daí que os mandamentos visam
fundamentalmente duas coisas: impedir que brotem relações de exclusão tais como no
Egito; assegurar que a liberdade conquistada seja de fato garantida.

Os dois primeiros mandamentos se referem ao relacionamento com Deus. O


primeiro mandamento almeja evitar que a diversidade de cultos provoque divisões entre
as tribos e definhe o projeto fraterno: “Não terás outros deuses diante de mim...Não farás
para ti imagem [...]” (Ex 20,3-6). A fidelidade a YHWH, o Deus libertador, é fator de
unidade entre as tribos. O segundo mandamento proíbe o falso juramento, isto é, o uso do

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nome de Deus com o Objetivos maléficos e mentirosos: “Não proferirás o nome de
YHWH, teu Deus, para fins fraudulentos” (Ex 20,7).12

O terceiro mandamento pretende impedir que o povo fique sem descanso. Daí que
o sétimo dia é santificado simplesmente não trabalhando: “Lembra-te do dia do sábado,
para santifica-lo [...]” (Ex 20,8-11). Fundamentalmente, portanto, o objetivo primário é o
descanso, não o culto. Este é concedido ao homem livre e a toda a sua casa: escravos,
filhos terra, etc. Ponderamos este mandamento reside numa posição intermediaria entre
os dois primeiros mandamentos cujo foco é o relacionamento com Deus e os mandamen-
tos seguintes que tem como fim o relacionamento com outras pessoas. 13

A partir do quarto mandamento, o enfoque está no relacionamento com as pessoas.


O quarto mandamento discorre sobre a relação de pessoas adultas com os seus pais e mães
idosos: “Honra teu pai e tua mãe” (Ex 20,12). Este mandamento defende, em suma, a
segurança social e material dos idosos. Naquela época os idosos dependiam dos filhos
homens, dado que naquela sociedade patriarcal, as filhas casadas passavam a se integrar
na família do marido.14

A partir do quinto mandamento, a centralidade reside na preservação da própria


liberdade por meio do respeito a liberdade do próximo. Sinteticamente, trata-se de não
arrancar do outro aquilo que a própria pessoa possui: vida (5), esposa (6), e sua proprie-
dade (7,9,10).15 A partir do sétimo mandamento o enfoque são as propriedades do
próximo. A perda da propriedade significava a volta para a escravidão.

O quinto mandamento tem como tema a vida: “Não matarás” (Ex 20,13). Este
mandamento está associado a matar um inocente. Aqui ambiciona-se combater todo
comportamento que leva a morte outra pessoa. Quer assegurar tanto a liberdade quanto a
vida concedidas por YHWH.16

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O sexto mandamento tem como fim a proteção da vida dos israelitas livres e de
suas famílias. Destina-se especificamente aos homens, proibindo-os de cometer adultério,
de relacionar-se com mulheres casadas ou legalmente comprometidas: “Não cometerás
adultério” (Ex 20,14). Adulterar era uma questão de vida ou de morte. Tanto o adúltero
quanto o cúmplice penalmente pagavam com a vida.17

O sétimo mandamento intenta evitar todas as formas de furto contra o próximo e


sua propriedade: “Não furtarás” (Ex 20,15). A proibição está em que alguém aumente
suas terras e prive outro deste mesmo direito. Propões, consequentemente, uma sociedade
na qual todos possam ter acesso aos bens que são necessários à vida e prosperidade.18

O oitavo mandamento se coloca contra a mentira e favorável ao exercício da


justiça: “Não declararás contra teu próximo como testemunha falsa” (Ex 20,16). De modo
geral, este mandamento almeja evitar as frequentes distorções do direito e da ordem
jurídica.19

O nono e o décimo mandamentos são uma “radicalização” do sétimo “mandamen-


to”. Aqui além de roubar é proibido toda a ganância, desejo e tentação de roubar. Em
suma, eles querem garantir a fraternidade nas relações.20

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 A formação do povo de Israel está associada a grupos excluídos que se organizaram
de forma alternativa. Disso adveio algo novo para a época;
 O decálogo almeja defender e promover o sistema igualitário, a vida e a liberdade
conquistadas;
 Mandamentos enumeram as condições para preservar a o que YHWH concedeu;
 Não se quer o desmantelamento de Israel como povo libre;
 O decálogo não quer ser um instrumento de subjugação, de privação de liberdade;
 É a partir dá perspectiva de um Deus que concede liberdade que podemos almejar e
trabalhar em vista de um outro mundo;

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