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reduzir os seus livros, a sua bi- baleias nem a maçãs. «No pri-
blioteca inteira, a um só livro meiro caso apenas se refere um
chamado ‘Os Livros’, a Bíblia». peixe, o que pode implicar toda
Agora que esta biblioteca chega uma variedade de monstros
ao leitor português numa tradução marinhos; e no segundo, fala-
que, guindada por um extremo ri- -se na experiência essencial da
gor filológico, privilegia a com- fruição, ou degustação do fru-
preensão do texto grego, é-lhe pos- to de uma árvore, o que é clara-
sível reaver «o grande código» mente mais genérico e mais
(William Blake), acompanhado de místico [...]. As coisas que hoje
notas que dão relevo à materiali- nos parecem mais ridículas fo-
dade histórico-linguística do texto. ram as primeiras explicações
Deste modo, Frederico Lourenço racionais e não os primeiros
dá prevalência ao caráter literal, e contornos religiosos ou primi-
é nas arestas que o tradutor se re- tivos. Se essas imagens origi-
cusou a limar, nas realidades in- nais tivessem sido deixadas ao
convenientes e inconsistências, seu mistério natural ou som-
nas insuspeitadas profundezas bria fruição ou tenebrosos
onde o leitor já não quererá ser monstros das profundezas, não
guiado senão pelos seus instintos teria havido tanta discussão à
que estes livros se mostram vivos. sua volta […]. Portanto, é injus-
É nesses ecos mais esquivos ou zo- to virar o bico ao prego e tentar
nas de sombra, e até naquilo que, culpar a Bíblia por causa de to-
por qualquer razão, perdeu o sen- das essas lendas e anedotas e
tido, e deambula repetindo para si alusões jornalísticas, que são
palavras desatadas, como um ser encontradas na Bíblia por pes-
que perdeu as chaves do seu pró- soas que nunca a leram».
prio labirinto, é no golpe desses ru- Agustina Bessa-Luís terá escri-
mores nascidos no interior de qual- to num dos seus romances – pro-
quer obra tão antiga quanto vasta, vavelmente A Jóia de Família,
que se penetra uma beleza terrível. segundo lembra João Bénard da
Ali chegam a sugerir-se hipóteses Costa numa das suas crónicas (In-
que soariam heréticas noutros sé- troibo ad altare dei) –, que a Igre-
culos, desvios face aos dogmas, e é ja Católica nunca saberá quantos
nessa deriva que reencontramos o crentes perdeu no momento em
vigor pulsante, a inquietação lite- que decidiu deixar de celebrar a
rária própria dos grandes textos, e missa em Latim. «Desde que, em
que assinala a perenidade na res- 1970, Paulo VI aprovou a tra-
piração de uma obra capaz de um dução, para as diferentes lín-
pacto entre o sagrado e o profano. guas do mundo, dos livros litúr-
=i\[\i`ZfCfli\eƒf1eflkifjk\dgfjj\i`Xm`jkfZfdfld_\i\j`XiZX gicos e, nomeadamente, do Or-
FZXd`e_fgXiXfjd`jk„i`fj dinário da Missa, suprimindo
hebraico e o Novo Testamento Testamento na sua língua ori- carem mitos, lembra que no gre- Como assinalou Tolentino Men- o uso do latim, o que, para mim
em grego – e assim resolvia-se ginal: o grego. O cristianismo go a palavra Bíblia é plural, e desi- donça, o desconhecimento da Bí- tinha o sentido dos mistérios,
da melhor forma a problemá- do século XXI deve estar apto a gna esse heterogéneo conjunto blia, não é «apenas uma carên- deixou de ter sentido», escreve
tica levantada pela tradução da aceitar que o rigor linguístico dos sessenta e tal livros canónicos cia do ponto de vista religioso, Bénard da Costa, acrescentando:
Bíblia». A propósito do 1.º volu- não é inimigo da teologia – de Roma e Israel. Ou seja, a Bíblia mas é uma forma de iliteracia «Sentido em mistérios? A frase
me, aquele que reúne os quatro muito menos da fé. Nem a Bí- é na realidade, uma biblioteca, cultural, pois significa perder é aparentemente contraditória,
evangelhos, Lourenço defendeu blia se torna menos santa por lembra Borges. «Que ideia exce- de vista uma parte decisiva do mas tão contraditória como
que «é preciso voltar a estudar lermos nela o que realmente lá cional, a de reunir textos de di- horizonte onde historicamen- tudo o que se disser sobre mis-
e compreender o texto do Novo está escrito». ferentes autores e épocas dis- te nos inscrevemos. A Bíblia térios. E a Missa é um mistério.
Jorge Luis Borges costumava ci- tintas e atribuir-lhes um autor (...) constitui uma espécie de E a liturgia é um mistério».
tar a resposta de Bernard Shaw único, o Espírito!», desabafava chave indispensável à decifra- Para aquele que tinha Frederi-
quando, certa vez, lhe pergunta- numa entrevista. «Não é maravi- ção do pensamento, imagina- co Lourenço como seu afilhado di-
ram se acreditava que o Espírito lhoso? Que obras tão díspares ção e quotidiano, mesmo da- leto, assistência na missa perce-
Santo era realmente o autor da Bí- como o Livro de Job, o Cântico queles que nunca a leram, de beria tanto em português como
blia, ao que ele terá respondido: dos Cânticos, o Eclesiastes, o Li- tal modo ela está disseminada em abexim, limitando-se «a deco-
«Não só a Bíblia, como todos os vro dos Reis, os Evangelhos e o na cultura». rar um palavreado cujo senti-
livros que vale a pena reler». Genesis: atribuí-los todos a um De resto, em torno da Bíblia do forçosamente lhe escapa». Se
Desta noção Borges aproveitava a só autor invisível. Os judeus ti- persistem uma longa série de em latim o mesmo se passava, pelo
ideia de que, para os crentes, o Es- veram uma ideia estupenda. É equívocos, interpretações grossei- menos, defende Bénard, «não ha-
pírito Santo é aquilo a que os an- como se alguém pretendesse ras que fizeram escola, muitos via a ilusão de compreensão e
tigos chamavam a Musa. E recor- juntar num só tomo, as obras pontos foram acrescentados aos havia a certeza da tradição».
w ŕ da a tradicional invocação com a de Emerson, Carlyle, Melville, seus episódios e parábolas. E Agora, graças à dedicação e em-
Mfcld\@M#Kfdf@ qual Homero inicia a Ilíada: Henry James, Chaucer e como disse Chesterton, se muita penho de Frederico Lourenço, os
88MM#kiX[lƒf[\=i\[\i`Zf «Canta, ó Musa, a cólera de Shakespeare, e declarar que gente assume que Eva comeu textos estão vertidos num portu-
Cfli\eƒf Aquiles»... Mas o argentino, a tudo aquilo provém de um mes- uma maçã, ou que Jonas foi engo- guês literário, talvez o sentido con-
Hl\kqXc#efm\dYif[\)'(/ quem sempre surpreendeu mais mo autor». E remata: «Foi uma lido por uma baleia, a verdade é tinue a escapar-nos mas, por uma
+'/gg%#(0%0'\lifj o talento dos homens para fabri- ideia magnífica esta dos judeus: que na Bíblia não há referência a vez, o caminho está desimpedido.

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