A fibula do garoto que quanto
mais falava sumia sem deixar
‘vis: cidadle, cotidiano e pod:
LuisAntoniodosS. Baptista
Oconto de fadas nos revela as primeiras
medidas tomadas pela humanidade para liber
tar-se do pesadelo mitico (...). Oconto de fadas
ensinou hd muitos séculoshumanidade,e
continua ensinando as criancas, que oque mais
aconselhével éenfrentarasforcasdo mundo
mitico com astiicia earrogncia.
Waker Benjamin
Oncarrador: Conscleragdessobre
aobradeNikolaiLeskov
“Professor Titulardo DepartamentedlePsicologiada UPP edo Programade PSs graduagioem Educagio
ds UFF.196 |
Era uma vez um corpo desbotado que habitava acima das luzes da
cidade. Acontecia muita coisa nesse lugar. Apesar da localizacao, inexistiam
trevase marasmos no dia-a-diados habitantes. Nada parecia tédio ousina.
‘Nolocal onde morava, muita coisa acontecia: derrotas,combates, vitérias,
estratégias faziam-seincansavelmente. Ausentes de calmaria, inventavam
e reinventavam particulares modos de defesa e de ataque. Destinos
histériasavolumavam-seem dispares versdes de fatos sem sossego. Nada
poderia ser de uma maneirae nio ser de outra. Ali desconheciamescolha
epaz. O corpo desbotado residia na parte da cidade proxima das nuvens,
bem distante da placidez do mesmo. Porémasluzeslaembaixoofuscavam
os combates eas heterogéneas verses como se nada estivesse acontecen-
do. Traduzia-osem sombras. Luzes de neon, do humanismo, da eletrici-
dade, da razio, entre outras, no chegavam até la. Ficavam em seus postos
projetando penumbra, sombreando para cima. Quando o sombreado
aumentava, a cidade se partia como se fosse composta por dois mundos,
por dois desejos.
O corpo desbotado era tio desbotado que impossibilitava o reco-
nhecimento de sua idade ou género. Desbotou porque gastava muito
corpo. Vive sempre lutando, ’s vezes vigoroso, mas sempre em alerta.
Esmaeceua pele devido aos usos, taticas, desusos, astiicias, utilizados no
presente eno passado, em séculosdeenfrentamentos. Aquele corpo gasto
sustentavaa historia subterraneado Brasil, das Américas, da Africae dos
sonhos e espantos de gente humilhada. Sustentava até os detritos esque-
cidos nas ruas, revelando habitos e prazeres urbanos. O desbotamento
assemelhava-se a0 tom dos objetos usados, a coisas gastas por apelos que
persistem seduzindo por contatos. Parecia-se com formas e tonalidades
moldadas por insurgénciase gestos incansiveis. Parecia-se também com
acidade quando resiste a ser partida em duas.
Nas ruelassinuosas por onde passava, entre sombrase encruzilha-
das emitia uma luz particular que se intensificava quando contava
versdes dispares de um mesmo fato; mas ninguém I4 embaixo o vianem| 197
o escutava; tornava-se mudo e opaco. Para os homens crédulos, somente
no que suas luzes focalizavam era definido em coisa turva, ou caréncia
de alguma coisa. Para eles o desbotamento misturado aos tracos e
refugos da cidade convertia-se em falta de nitidez; desta forma os
homens sabios apagavam os usos ¢ astiicias de varios séculos. Nesta
defini¢io 0 corpo desbotado deixava de sustentara cidade povoada por
dois ou mais desejos virando tinico e indivisivel. Nas ruelas sinuosas e
nasencruzilhadas, todo cuidado ¢ pouco; quando nao contavam iniime-
ras versdes dos acontecimentos enfraqueciam, Perdiam também vigor e
tempo fixadosno presente. Vivendo exclusivamente no presente diluiam
a meméria; sem meméria, o passado deixava escapar a forca do agora
tecendo os fios do ontem nio exaurido. Ausentar o dia-a-dia da historia
preocupava todos os moradores.
A sinuosidade das ruas onde ele morava exigia sagacidade no
desmonte de provaveisarmadilhas, O que mais amedrontava aos morado-
res seria cafrem nas armadilhas da sina. Se caissem, suas vidas se transfor-
mariam em previsibilidade e miséria, fixando-os na retidio do destino.
Todo cuidado seria pouco. Na sinuosidade e bifurcagées dessas ruas 0
corpo desbotado gingava, escapava da retidio do destino, narrando
acontecimentose combates nio exclusivos dele, até mesmo os i debaixo,
maseram abafados por fronteiras compactas ¢ luminosas. Se nao narrasse,
combatendo enfraqueceriae sofreria. Nao s6 ele, mas muitos. Ruastortas
exigiam dele uma hist6ria feita por gingae astiicia.
Um dia, uma luz ld embaixo chegou ao lugar onde habitavae ele
comegou a ganhar nitideze a falar esquisito. A sagacidade esmoreceue
a armadilha funcionou. Encruzilhadas viravam ruas retas, labirintos
desapareciam, o passado e presente incrustados em seu corpo desvenci-
Ihavam-se. O foco luminoso ld embaixo o atravessou, revestindo-o de