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A LINGUAGEM COMO MÉDIUM ENTRE A HISTÓRIA E A

IDÉIA ETERNA
Gustavo Arantes Camargo
PUC/RJ - Departamento de Filosofia
Curso de Mestrado

Uma Compreensão Ampliada da


Linguagem

Dentro desta exposição, forma e


E m seu texto de 1916, intitulado
“Sobre a linguagem em geral e
sobre a linguagem humana”, Walter
conteúdo são indissociáveis. Isto não
quer dizer que o conteúdo espiritual
Benjamin expõe uma compreensão seja igual à linguagem. Benjamin usa
de linguagem que vai além da fala e a alegoria das meias, onde encon-
da escrita. Ele expõe a teoria de uma tramos as meias enroladas em forma
linguagem geral, que atinge também de bola, mas ao desenrola-las, en-
aos seres da natureza e aos objetos, contramos exatamente as meias. As
a todos os seres animados e inani- meias são meias, seja em forma de
mados. Dentro desta compreensão, bola seja em forma de pé. O conteú-
tudo possui uma linguagem. Tudo se do espiritual da meia se comunica em
apresenta em uma forma, que não se sua linguagem-bola ou em sua lin-
dissocia do conteúdo. Esta forma é a guagem-pé. Quando a expressão de
sua linguagem. A linguagem aparece algo é a comunicação de seu conteú-
entendida então, como toda e qual- do, isto é linguagem.
quer forma de comunicação de con-
teúdo, seja ele intelectual ou espiritu- De fato, é uma evidência plena de
al. A linguagem se estende a tudo, conteúdo a afirmação de que nada po-
sendo a linguagem humana da pala- demos imaginar que não comunique a
vra apenas um caso particular. Esta sua essência espiritual, manifestando-
compreensão de que tudo tem uma a na expressão (...).
1

linguagem decorre da proposta de


que cada coisa tem um conteúdo
É importante diferenciarmos aqui a
espiritual a ser comunicado. Este
linguagem daquilo que nela se ex-
conteúdo espiritual, presente até
pressa. Aquilo de que a linguagem é
mesmo nos objetos, como em um
expressão é a essência espiritual e
candeeiro, se comunica na lingua-
não a própria linguagem. O que se
gem. A linguagem é a forma na qual
se comunica o conteúdo. Por isto, o 1
Benjamin. “Sobre a linguagem em geral e
conteúdo não se comunica através
sobre a linguagem humana”, em Walter Ben-
da linguagem, mas na linguagem. jamin, pág 178

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expressa na linguagem, este “se”, é a Até aqui está se falando da lingua-


essência espiritual, diferenciada por- gem em geral, mas a linguagem do
tanto, daquilo que a comunica, que é homem, quando pensada dentro
a essência lingüística. A essência desta abordagem, ganha também
espiritual não está na linguagem, mas uma nova dimensão.
se comunica nela. Esta diferenciação
é muito importante. A filosofia corre O homem comunica sua própria es-
um sério risco ao identificar, logo sência espiritual na sua linguagem.
como hipótese, a essência lingüística Mas a linguagem do homem fala por
e a essência espiritual. palavras. O homem comunica, pois, a
sua própria essência espiritual (na me-
A essência espiritual é idêntica à lin- dida em que é comunicável) denomi-
güística só “na medida em que é co- nando todas as outras coisas”.4
municável”. O comunicável numa es-
sência espiritual é sua essência lin- A linguagem na qual o homem comu-
güística”.2 nica sua essência espiritual é uma
linguagem designadora e, por ser a
Existe então, uma essência espiritual única linguagem designadora que
não-comunicável que se diferencia da conhecemos, ela se torna interes-
linguagem. “Aquilo que numa essên- sante ao ser capaz de permitir que a
cia espiritual é comunicável é a sua essência espiritual se comunique em
linguagem”.3 Desta forma, a lingua- palavras. Mesmo assim, caso se in-
gem comunica a si mesma ao comu- corra no erro de fazer desta lingua-
nicar o que é comunicável em uma gem designadora a linguagem em
essência espiritual, que é a essência geral, perde-se a possibilidade de
lingüística. A essência se expressa uma “compreensão mais profunda e
imediatamente na linguagem, mas íntima das coisas”.5 A essência espi-
essência e linguagem não são a ritual do homem se comunica deno-
mesma coisa. O que se comunica em minando as coisas. Benjamin diz que
uma coisa é a coisa-linguagem, não a esta capacidade de denominá-las se
coisa toda. A linguagem é assim, o dá devido ao fato de as coisas se
médium da comunicação. Mas não comunicarem ao homem. O homem
um médium através do qual algo é se comunica denominando as coisas
comunicado, e sim o lugar onde algo porque as coisas se comunicam a
se comunica imediatamente a si ele. O homem comunica sua essên-
mesmo. Este imediatismo é, para cia espiritual no nome que dá às coi-
Benjamin, a principal questão da teo- sas. Mas a quem se comunica o ho-
ria da linguagem e chega a chamá-lo mem? A resposta não poderia ser
de mágico. mais característica deste filosofo.

2 4
Ibidem, p. 179 Ibidem, p. 180
3 5
Ibidem, p. 179 Ibidem, p. 180

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Contra uma compreensão burguesa comunica através da linguagem, mas


da linguagem, onde esta é vista de na linguagem. A linguagem apresenta
forma utilitária, na qual o homem co- esta essência. Esta compreensão fica
munica através de palavras um ob- mais clara quando Benjamin coloca
jeto a outro homem, Benjamim intro- como principal questão da filosofia a
duz a dimensão teológica que acom- questão da apresentação da verdade.
panha seu pensamento. “No nome, a A verdade possui uma dimensão
essência espiritual do homem trans- sensível, ela não se separa da sua
mite-se a Deus”.6 apresentação. A linguagem apre-
senta a verdade, pois esta se encon-
Aqui aparece a grande importância
tra naquela no momento de sua apa-
da linguagem humana que, ao nome-
rição, ainda que seja apenas por um
ar as coisas, adquire um significado
instante tão rápido como um relâm-
altamente elevado. O nome “é a es-
pago. Não se trata de representar
sência mais íntima da própria lingua-
com símbolos a verdade, pois neste
gem”.7 “O nome é aquilo (...) no qual
caso a verdade estaria ausente, seria
a própria linguagem se comunica, em
possível, no máximo, representa-la e
absoluto”.8 O nome comunica a pró-
não apresenta-la. A verdade não é
pria linguagem. Sendo o nome a lin-
dedutível pela forma de um sistema
guagem do homem, a essência espi-
perfeito, ao contrário, a filosofia, ao
ritual do homem é a única totalmente
buscar a verdade, deve abandonar a
comunicável. A expressão daquilo
forma de sistema se quiser atender
que é mais espiritual torna-se possí-
àquilo que se propõe. A verdade,
vel na linguagem do nome, chegando
para Benjamin, não é capturável sob
assim ao conceito de revelação. A
a forma de conhecimento. O conhe-
linguagem da matéria é menos com-
cimento lida com um objeto externo a
pleta que a linguagem do nome. Esta
ele, busca apreender cada vez mais
última é puramente espiritual e por
informações sobre este objeto. Já a
isto é tão importante. O potencial
filosofia, com o uso da reflexão, volta-
messiânico de revelação e redenção
se para dentro de si mesma e busca-
está contido na linguagem do nome
rá apresentar aí a verdade. A verda-
e, por isto, ela é tão importante para
de foge a qualquer tipo de posse, e
Benjamim. Veremos agora, como
saber é posse, por isto não é possível
este nome pode chegar à verdade.
chegar até ela pelo conhecimento. A
forma de apresentação da verdade
Linguagem e Verdade: uma Crítica não pré-existe como um sistema, ela
do Conhecimento é dada juntamente com a verdade.
Não existe método direto para se
A linguagem é capaz de comunicar
chegar à verdade. Para dar conta de
uma essência. Esta essência não se
sua tarefa, a filosofia deve atentar
6 para a forma, esta, como já foi visto
Ibidem, p. 181
7
Ibidem, p. 181 anteriormente, não é dissociável do
8
Ibidem, p. 181 conteúdo. Se a filosofia se propõe ter

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como conteúdo a apresentação da ela deve ser também a apresentação


verdade, então a forma como esta das idéias. Apresentação que se dá
verdade se apresenta é fundamental na linguagem, fugindo da relação
para o sucesso de sua empreitada. O sujeito-objeto, que caracteriza o sa-
tratado filosófico ou o ensaio são as ber. Esta relação da verdade com a
formas onde melhor se apresenta a idéia e não com o conhecimento fica
verdade. Esta se mostra inapreensí- ainda mais explicitada quando se
vel pelo rigor matemático que termina busca o modo de ser das idéias.
apenas por limitar coercitivamente o Conforme está colocado no livro “O
pensamento. Não é um sistema fe- banquete” de Platão, a verdade é
chado que será capaz de chegar à entendida como o conteúdo essencial
totalidade da verdade, mas justa- do belo, e a verdade é bela. A beleza
mente os fragmentos pormenorizados se relaciona com a verdade. “O lado
do pensamento é que compõem, sensível da verdade é a beleza”.11 A
como num mosaico, uma possível verdade é bela quando se apresenta
totalidade. Uma totalidade que se e então, a busca pela verdade é tam-
encontra já em cada fragmento e não bém a busca pelo belo. Pode a ver-
em uma dedução ou intuição lógica. dade fazer justiça a este lado sensí-
vel? A materialidade de uma obra, ao
A unidade do saber, se é que ela
penetrar no mundo das idéias, con-
existe, consiste apenas numa coerên-
some-se como uma obra em chamas
cia mediata, produzida pelos conheci-
e o que penetra no plano eterno das
mentos parciais e de certa forma por
idéias é a sua verdade. A justiça
seu equilíbrio, ao passo que na essên-
acontece quando a matéria sensível,
cia da verdade a unidade é uma de-
dissolvida em cinzas e escombros
terminação direta e imediata.9
alcança a idéia e, portanto, a eterni-
A verdade é total e una, sem perder a dade, se salvando.
singularidade, por isto é uma môna- A Historicidade do Eterno
da.
A questão aqui parece ser também
A apresentação de que Benjamin fala como apresentar a verdade em sua
é a apresentação das idéias. As idéi- unidade, mas preservando sua sin-
as são o objeto da investigação filo- gularidade. Longe de um conceito
sófica. “A distinção entre a verdade e que identifique o não idêntico, que
a coerência do saber define a idéia despreze as diferenças em nome de
como Ser”.10 Desta forma, a verdade uma unidade inexistente, a dificulda-
está ligada às idéias e não ao conhe- de aqui é, justamente, entender como
cimento. Por isto, se a filosofia pre- algo singular pode trazer em si algum
tende ser a apresentação da verdade tipo de unidade, que é inerente à ver-
dade. Aqui aparece de novo a grande
9
Benjamin, “Questões introdutórias da crítica
11
do conhecimento”, p. 52 Muricy, “O ser das idéias” em “Alegorias
10
Ibidem, p. 52 da dialética”, p. 138

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importância da linguagem humana Mas os fenômenos não estão nas


para a apresentação da verdade, ou idéias. Estas são eternas e, portanto,
da essência. Os elementos materiais anteriores àqueles. O que acontece é
não entram em contado direto com a a ordenação dos fenômenos no cam-
idéia. A salvação do fenômeno ou da po das idéias. Ao serem salvos, os
obra de arte se dá quando eles se fenômenos se inscrevem em uma
vêem incendiados e decompostos em ordenação dada pelas idéias que os
seus elementos e somente estes se interpretam objetivamente. As idéias
salvam. “Nessa divisão, os fenôme- constroem uma constelação com os
nos se subordinam aos conceitos. fenômenos, mas os fenômenos não
São eles que dissolvem as coisas em são as idéias e vice-versa. Ao salvar
seus elementos constitutivos”12. A uma coisa de sua perdição na histó-
linguagem como médium permite aos ria, o conceito relaciona os fragmen-
fenômenos participarem do mundo tos desta coisa com a idéia, tornan-
das idéias, salvando-os. A salvação do-os eternos e, ao mesmo tempo,
do fenômeno se dá justamente quan- atualizando a idéia. Ao atualizar a
do ele escapa do caráter passageiro idéia que salva a experiência empíri-
do tempo e salta para fora dele, sal- ca, o conceito deve conseguir tam-
vando-se e se redimindo no mundo bém apresentar a verdade da idéia.
das idéias. O conceito proporciona a Esta dupla tarefa é a tarefa do con-
redenção do fenômeno. Este mesmo ceito, da linguagem. Aqui a lingua-
caráter mediador da linguagem per- gem aparece com sua grande im-
mite a apresentação das idéias. A portância para Benjamin, ela é res-
verdade se apresenta empiricamente ponsável não só por apresentar a
no conceito, que então faz o caminho verdade e a idéia, como também por
inverso do feito pelo fenômeno e salvar os fenômenos do esqueci-
apresenta a idéia em sua dimensão mento, escrevendo sua história. His-
sensível. “A redenção dos fenômenos tória e linguagem se articulam na
por meio das idéias se efetua ao dimensão teológica da redenção. A
mesmo tempo em que a apresenta- pedra de toque desta linguagem re-
ção das idéias por meio da empiria”.13 dentora da experiência empírica e
Desta forma há um encontro entre apresentadora da verdade e das idéi-
duas temporalidades. A temporalida- as é o nome. Este é o modo de ser
de eterna da idéia que encontra sua das idéias, sua forma de apresentar-
historicidade ao apresentar-se no se, a idéia apresenta-se no nome, a
conceito, e a historicidade do fenô- linguagem do homem como nomea-
meno que encontra sua eternização dora do mundo. Benjamin evoca aqui
redentora no mundo das idéias com o uma linguagem original, que chama
conceito. de adâmica, onde ao nomear já se
apresentava imediatamente a verda-
12 de. A perda desta linguagem está
Benjamin, “Questões introdutórias da críti-
ca do conhecimento”, pág 56 ligada a queda do paraíso. Depois do
13
Ibidem, p. 56 (tradução modificada) pecado original, o homem se viu em

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uma Babel de línguas, sendo tarefa aparece justamente nas múltiplas


da filosofia agora, traduzir na língua explicações para uma alegoria e não
do homem moderno aquela verdade em um sentido único e certo para o
perdida da língua adâmica. Se a lin- conhecimento. A multiplicidade de
guagem pudesse recuperar sua di- sentidos dissolve simultaneamente o
mensão expressiva, retornaríamos ao sujeito e o objeto do conhecimento.
paraíso. Mas isto não é possível,
Na medida em que somente depois
nossa linguagem desgastada se
de dissolvido em conceitos que o
permite apenas uma “frágil força
fenômeno passa a integrar a conste-
messiânica”.14 Entretanto, esta frágil
lação das idéias, a verdade destas
força messiânica conserva uma cen-
idéias aparece como construção. O
telha, uma dimensão, ainda que sutil,
fato da idéia e da verdade poderem
daquele caráter expressivo original, e
sempre ser renomeadas e atualiza-
nisto reside a importância da lingua-
das faz com que, a pesar de eternas,
gem, que ainda é capaz de apresen-
elas não estejam de maneira nenhu-
tar a idéia. Tentar rememorar a ex-
ma paradas. A questão passa a ser
pressividade da linguagem adâmica
então: qual é o ser do vir a ser? A
significa aproximar a filosofia da
idéia é um eterno vir a ser e está di-
questão do ser. Na linguagem adâmi-
retamente relacionada com a história
ca o nome não se diferencia do ser.
a ponto de podermos afirmar a histo-
Trata-se de encontrar na linguagem
ricidade de algo eterno. A experiência
cotidiana a dimensão adâmica que
empírica é importante, mas na medi-
ainda persiste e assim, apresentar o
da em que só é salva pelo nome, é
ser. Se o nome é o modo pelo qual
também uma construção. Esta cons-
se apresentam as idéias, a linguagem
trução, como já foi dito, não evoca
do texto filosófico pode apresentar a
um sujeito consciente que nomeia e
verdade. A linguagem que não mais
explica o empírico. O pesquisador
convence com argumentos excessi-
constrói o fato, constrói interpreta-
vos que detém o conhecimento certo,
ções do mundo, mas é o mundo real
mas a linguagem que experimenta
que revela uma interpretação. Não é
formas alegóricas de apresentar a
a subjetividade do pesquisador que a
verdade em imagens, imagens literá-
cria. O mundo real se apresenta
rias que apresentem melhor do que
como tarefa pois estamos nele mer-
qualquer argumentação a idéia que
gulhados, ele apresenta uma inter-
se esconde naqueles nomes. O ca-
pretação. As coisas se apresentam à
ráter imagético da idéia aparece no
contemplação filosófica, e esta é ca-
nome. O ser da idéia aparece no
paz de interpreta-las e apresentar
nome. A verdade se diferencia do
uma verdade. Mas a imersão na ma-
conhecimento também pois pode
terialidade do empírico é fundamental
sempre ser renomeada. A verdade
para esta tarefa, pois é aí que se
apresentam as idéias. É na imersão
14
Benjamin, “Sobre o conceito de história”, total nos pormenores do empírico que
tese 2

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é possível de se chegar a uma idéia. ria. Agora se compreende a necessi-


É no fragmento que se encontra o dade de se fazer história. Mas não
todo. O todo não é um somatório de qualquer história e sim uma história
fragmentos. “Pois é o minúsculo que materialista, que mergulha na materi-
a reflexão encontrará a sua frente, alidade e aí encontra a verdade pa-
sempre que mergulhar na obra e na rando o tempo e instaurando a ori-
forma de arte para avaliar seu conte- gem do acontecimento. Esta nova
údo”.15 A salvação do fenômeno se temporalidade rompe com uma expli-
dá portanto, na imersão em seus cação causal dos acontecimentos
pormenores. Esta é uma característi- históricos e propõe a busca de sua
ca da idéia como mônada. explicação não fora dele, mas em
seus detalhes. O conceito de môna-
Aqui se introduz um conceito funda-
da, conceito de Leibniz, aparece aqui
mental para a compreensão de lin-
para caracterizar ainda melhor a idéia
guagem, salvação e história em
e fortalecer a proposta histórica de
Benjamin que é o de origem. A ori-
Benjamin. Tanto a obra de arte
gem é uma categoria histórica, mas
quanto o acontecimento histórico não
diferencia-se totalmente da gênese. A
podem ser explicados por elementos
origem não é o momento do surgi-
exteriores a eles e que os inclua em
mento de algo, mas seu encontro
uma história da arte ou em um tempo
com a verdade no reino das idéias. O
homogêneo e vazio. Já na epígrafe
instante fugaz em que o aconteci-
do prefácio de sua tese de livre do-
mento histórico é renomeado e se
cência, Benjamin expõe o caráter
salva é o que determina sua origem.
monadológico que quer ampliar inclu-
A salvação do acontecimento como
sive para a ciência, pois quem sabe
idéia instaura sua origem. É um mo-
assim, ela se torna capaz de atingir a
mento de temporalidade intensiva
verdade. Esta epígrafe mostra a difi-
que rompe com a cadeia cronológica
culdade de se chegar a alguma com-
do tempo e possibilita uma certa pa-
preensão do todo e aponta a ciência
rada no tempo. O acontecimento pára
como incapaz de atingir tal objetivo
o tempo ao tocar a idéia. Como já
pois busca este todo na soma das
vimos, só poderá tocar a idéia ao ser
partes. Longe deste somatório, o todo
decomposto em conceitos que sejam
aparece sempre em cada obra indivi-
capazes de apresenta-lo como ver-
dual. Cada obra de arte se apresenta
dade. O acontecimento tornado ver-
como singular e única, mas isto não
dade ao ser decomposto em concei-
nos impede de classificarmos tanto
tos, a verdade apresentando-se no
um quadro quanto uma música de
acontecimento que tem aí sua ori-
obras primas. A obra de arte é uma
gem, assim a linguagem se articula
mônada pois cada obra de arte, por
de maneira inseparável com a histó-
mais singular que seja, traz consigo
uma totalidade que nos permite cha-
15
Benjamin, “Questões introdutórias da críti- má-la de arte, ao mesmo tempo, uma
ca do conhecimento”, p. 67 obra de arte não precisa ser igual a

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outra para poder ser chamada de estão dados na obra. A obra tem au-
obra de arte, ou seja, ela mantém sua tonomia na medida em que ela se
singularidade. A mesma coisa acon- autojulga através dos seus critérios
tece com os fatos históricos. Eles imanentes. Trata-se de "incendiar" a
guardam em suas minúcias a chave materialidade da obra para que se
que permite ao historiador ou ao filó- possa extrair o conteúdo de verdade.
sofo estuda-lo e salva-lo. É ao des-
A arte é um meio privilegiado de ex-
vendar seus pormenores que se tor-
pressão, pois é possível encontrar o
na possível a intelecção da totalida-
absoluto através da arte. Para Hegel,
de. Pois é a partir da decomposição
o absoluto pode ser pensado, pode
dos pormenores que o fato ou a obra
ser encontrado através da racionali-
de arte tornam-se factíveis de serem
dade. Neste contexto, a arte seria
salvos. É na descrição dos pequenos
superada pela filosofia. Para Benja-
acontecimentos que a verdade sobre
min, a verdade se encontra justa-
um todo pode aparecer. A estrutura
mente naquilo que não conseguimos
de mônada permite tanto à arte
explicar, no sentimento que muitas
quanto à história manterem sua sin-
obras de arte são capazes de nos
gularidade sem que caiam em estru-
fazer experimentar por um momento.
turas que lhes são exteriores. Ca-
Eis aí a verdade. E já se foi... a ver-
bendo à linguagem, como sempre,
dade pode se apresentar, mas foge
ser o médium entre a arte e a histó-
ao conhecimento que a explique. As
ria, de um lado, e as idéias e a ver-
obras de arte são um médium de
dade, de outro.
apresentação do absoluto. A obra é
uma reflexão. Então a crítica é um
A Arte, Crítica de Arte e a Capaci-
conhecimento da obra por ela mesma
dade de Salvação
no sentido de que continua a reflexão
Já vimos que verdade não está na da obra. A crítica é uma reflexão li-
lógica e na ciência. Vimos também mitada da obra. Essa limitação tem
que ela necessita de uma dimensão que ser dissolvida pelo absoluto da
sensível que é a linguagem. Neste arte. Sendo a obra um médium de
sentido, a arte aparece como a lin- transmissão do absoluto, a crítica
guagem de que a verdade necessita. deve encontrar o absoluto, sendo
A arte é uma linguagem expressiva também uma arte.
capaz de mostrar a verdade. Nesta Benjamin entende a criticabilidade da
teoria, o crítico deve intervir e traduzir obra de arte como peça fundamental
a linguagem das obras. A verdade se da própria arte. A crítica é uma po-
apresenta na materialidade da obra. tencialização da reflexão da obra. E
O crítico deve ser capaz de encontrar para os românticos, essa reflexão é
na obra o seu conteúdo de verdade. inerente a tudo. Tudo fala, tudo se
A crítica deve ser imanente à obra, e expressa. Reflexão no sentido de que
não um julgamento baseado em crité- cada coisa reflete de si mesma. Nes-
rios exteriores. Os critérios da crítica se sentido, a crítica é uma intensifi-

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cação da obra. A obra reflete a si, e o obra. No entanto, Benjamin acha que
crítico reflete em cima desta reflexão. os românticos valorizaram de manei-
Goethe se opõe aos românticos no ra excessiva a forma. Sendo sim-
que diz respeito a criticabilidade das plesmente essa forma o essencial
obras de arte. Ele não considera a para se atingir a verdade. Neste
obra de arte algo criticável. Para ele, ponto, Benjamin se aproxima de Go-
uma crítica metódica, necessária é ethe quando concorda que existe
impossível. Com os românticos, a uma verdade por trás da obra. No
crítica não só é necessária como se entanto, para Goethe a idéia está na
encontra no paradoxo de poder ser natureza (arquétipos), para Benjamin
mais importante do que a própria a idéia está na história, ainda que
obra. Pois é dela que extraímos o seja eterna.
absoluto. Goethe diverge também
Benjamin encontra na arte uma opo-
quanto à teoria da arte, pois para ele,
sição à teoria da representação. A
a arte não é capaz de nos apresentar
verdade está na obra mas a obra não
algum conteúdo puro. "Os puros
representa a verdade. A verdade
conteúdos como tais não podem ser
aparece por trás da obra. É preciso ir
encontrados em obra alguma. Goethe
além da simples materialidade para
denomina-os de arquétipos. As obras
chegarmos à verdade. É preciso "in-
não podem atingir aqueles arquétipos
cendiar" a obra. O conteúdo de ver-
invisíveis- mas intuíveis- cujos guar-
dade é o enigma da obra, são as
diões os gregos conheciam sobre o
chamas vivas. O papel do crítico é
nome de musas"16. Esses conteúdos
revelar essa verdade. Por isso, o crí-
puros seriam o Ideal da arte. Pode-
tico desempenha um papel tão im-
mos apenas intuir esse Ideal. A arte
portante na teoria da arte de Benja-
se aproxima dos arquétipos. "Em
min. A questão da filosofia é a busca
relação ao Ideal, a obra singular per-
a verdade. A obra de arte também
manece como um torso".17 Para os
está às voltas com essa questão da
românticos, a obra não poderia ser
filosofia. A arte apresenta essa ver-
um torso. "Na medida em que ela se
dade através de seu segredo inex-
limita em sua forma, se faz transitória
presso. Neste sentido, a questão da
numa configuração casual, numa
arte é a mesma da filosofia: a verda-
configuração passageira torna-se, no
de. Uma obra só está completa
entanto, eterna, via crítica".18 Benja-
quando se encontra a verdade nela
min concorda com os românticos
oculta. Apenas o que há de inexpres-
quanto à importância da crítica de
so é capaz de acabar a obra. Nesta
arte. Esta é fundamental para encon-
lógica, o crítico, em última instância,
trarmos o que há de teológico na
é quem finaliza a obra ao liberar seu
conteúdo de verdade.
16
Benjamin. "A teoria da arte primeiro ro-
mântica e Goethe", p. 116
17
Ibidem, p. 118
18
Ibidem, p. 119

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A Salvação dos Fatos Históricos A origem é capaz de instaurar uma


ou a Eternização do Passageiro quebra no tempo. A temporalidade
aqui, não é a temporalidade homogê-
Esta parte do trabalho foi escrita ba- nea de um tempo infinito, a tempora-
seada no livro “História e narração lidade está no objeto de estudo, e
em Walter Benjamin”, de Jeanne Ma- não fora dele. Esta questão fortalece
rie Gagnebin. ainda mais a idéia de mônada, onde
Voltando à questão da história, temos a totalidade, inclusive sua temporali-
que o conceito de origem aparece dade, já se encontra no próprio objeto
como forma de se pensar uma outra de estudo. Os fatos históricos apare-
temporalidade para a história. A ori- cem isolados e, para serem salvos,
gem como o momento de contato devem formar uma constelação, es-
entre a história e a idéia. Desta forma tabelecendo novas ligações entre o
salva-se eternamente na idéia o fato passado e o presente. A origem é o
histórico passageiro. O historiador momento da salvação, é a salvação
aparece como colecionador que es- do fato que caracteriza sua origem.
tuda cada acontecimento como uma Salvação aliás, que é o objetivo da
peça singular de sua coleção, e não filosofia. Ao ser salvo, o fato histórico
como alguém que estabelece rela- passa a fazer parte da ordem das
ções de causa e afeito entre os idéias. O papel da linguagem é o de
acontecimentos. Aqui o fato histórico mediação salvadora do momento
não é encadeado em uma cadeia de histórico na eternidade das idéias, é o
explicação que lhe é exterior. Esta papel de criar a origem instaurando
forma de apresentação salva o fenô- outra temporalidade.
meno do esquecimento que a histori-
(...) para serem salvos, os fenômenos
ografia causal promove ao dar-lhe
devem ser arrancados pelo conceito
uma explicação já pronta. A origem é
a uma falsa continuidade, aquela
capaz de dar outra temporalidade ao
que é abusivamente chamada objetiva,
estudo da história.
como se a cronologia não fosse, ela
O Ursprung designa, portanto, a ori- também, o fruto de uma construção
gem como salto (Sprung) para fora da historiográfica”20
sucessão cronológica niveladora à
qual uma certa forma de explicação A construção de uma historiografia
histórica nos acostumou. Pelo seu sur- linear, diz Benjamin nas “Teses”, inte-
gir, a origem quebra a linha do tempo, ressa a uma classe dominante que
opera cortes no discurso ronronante e pretende com esta narração coerente
19
nivelador da historiografia tradicional. instaurar um determinismo na histó-
ria. A quebra deste determinismo só
pode se dar pela instauração de uma
nova temporalidade que faça com
19
Gagnebin, “História e narração em Walter
20
Benjamin”, p.11 Ibidem, p. 16 e 17

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CAMARGO. Gustavo Arantes. A Linguagem como Médium... 35

que o acontecimento histórico pare o ração do tempo dificulta o trabalho do


tempo e o torne intensivo. Esta tem- historiador que é bombardeado por
poralidade é atingida com o conceito inúmeros fatos diários e não pode
de origem. dispor de tempo para pensa-los. Esta
temporalidade é inseparável da pro-
A linguagem alegórica aparece como dução capitalista, que visa sempre a
a melhor maneira de apresentar a produção de novidades e avanços
verdade e a idéia pois a alegoria, ao tecnológicos, mas que, por trás des-
abarcar várias interpretações, foge ao tes avanços esconde uma história
sentido congelado da linguagem lite- triste de se ler. O tempo que corre em
ral. A alegoria possui uma historici- direção a um progresso cada vez
dade que se dá em cada nova inter- mais sem sentido é a característica
pretação. A verdade se dá nos múlti- de uma modernidade perdida e que a
plos sentidos da alegoria, e não no história materialista quer redimir.
sentido estrito e fechado da escrita
É justamente na interrupção deste
sistemática e simbólica. O que se faz
tempo escorrido moderno que se
com a escrita alegórica é buscar na
instaura a proposta revolucionária de
frase singular uma característica de
Benjamin. A interrupção desta histó-
totalidade. Encontrar na alegoria a
ria cronológica possibilita outras in-
verdade que ela apresenta. A alego-
terpretações dos acontecimentos.
ria como linguagem capaz de romper
Uma parada necessária no tempo
com a temporalidade eterna e fazer
para podermos juntar os cacos de
aparecer sempre uma nova origem.
nossa história e recompor, a partir
“A verdade da interpretação alegórica
daí, um mundo há muito perdido e
consiste neste movimento de frag-
que pede uma rememoração. A re-
mentação e de desestruturação da
denção messiânica da humanidade
enganosa totalidade histórica;” 21.
pode se dar em sua história. Contra o
É interessante notar que a escrita tempo que traz consigo o conceito
histórica proposta por Benjamin pre- embotado de causalidade histórica,
tende romper com a ordem temporal que insere cada acontecimento em
da modernidade, que se caracteriza uma cadeia que o prende ao passa-
pela alta velocidade com que algo do, a proposta é afirmar a possibili-
moderno torna-se obsoleto. Quase ao dade de que algo novo aconteça. Em
nascer, o moderno já se torna o seu uma cadeia causal de fatos, a história
oposto, o velho. Esta temporalidade torna-se teleologia e não há nunca
acelerada é a temporalidade do pro- novidade. A salvação, a redenção, a
gresso onde a tradição se perde. A revolução, como novidades, só são
tradição hoje é a própria passagem, a possíveis com a quebra desta cadeia
própria velocidade com que a experi- causal. A afirmação de que algo novo
ência se perde no tempo. Esta acele- que foge à explicação pode ocorrer, é
a afirmação de uma nova temporali-
21
dade, de um tempo-agora, de um
Ibidem, p. 43

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36 CAMARGO. Gustavo Arantes. A Linguagem como Médium...

tempo intensivo. O instante imobiliza salvação seja da obra de arte, seja


o andamento temporal. A história do acontecimento histórico. Isto mos-
escrita do presente para o presente tra que além da preocupação com o
imobiliza o passado, suspendendo a fato ocorrido, existe também uma
cronologia. Esta suspensão é o mo- forte preocupação com a escritura
mento da origem. Momento de para- historiográfica destes fatos. É esta
da e de criação. A interrupção do escritura que deve apresentar a ver-
tempo cronológico aparece como dade contida no acontecimento sal-
resistência política a um mundo que vando-o de um tempo homogêneo e
se assemelha a um trem em alta ve- vazio, onde tudo passa e tudo se
locidade, que corre lotado, com as perde. O importante aqui é romper
portas abertas e não pára para socor- com uma cadeia cronológica e causal
rer os que caem. Parar o tempo é da história que a torna teleológica e,
parar o trem e atender os feridos é portanto, determinista. Nesta com-
olhar a história. Da interrupção pode preensão burguesa do tempo, um
nascer o novo. Não se trata de ofere- acontecimento é explicado por fatos
cer outra explicação “mais correta” anteriores e exteriores a ele e que o
para os fatos ocorridos, trata-se de colocam em uma posição em que
criar um abalo na explicação tradicio- seria impossível ser diferente. Ao
nal e assim, abrir espaço para um contrário desta postura que leva irre-
novo tempo. Introduzir rupturas na mediavelmente ao conformismo, o
história dos vencedores pela dinâmi- rompimento com esta temporalidade
ca da origem, que retoma redentora- causal traz a compreensão de que o
mente o passado pelo e no presente. presente comporta a possibilidade de
A lembrança do passado aparece diversos futuros diferentes. Em um
pela necessidade de transformação tempo onde o acontecimento históri-
do presente. A história, ao invés de co pode romper com a causalidade
ser explicada, pode ser minuciosa- cronológica dos fatos, um novo futuro
mente descrita. E nesta descrição pode ser pensado. Por isto, para se
apresentar um sentido salvador para transformar a realidade que tanto
o presente. Esta prática implica jus- desagrada a Benjamin, a instauração
tamente na suspensão de uma histo- de uma nova temporalidade é funda-
riografia causal e aí, nesta interrup- mental. A temporalidade moderna
ção, a história pode mostrar sua si- escorrida, que tem no progresso seu
gnificação salvadora para o presente. grande valor, é a temporalidade bur-
Uma narração que cura. guesa da história que nos apresenta
um homem que ainda hoje não é ca-
História Materialista e História
paz de se redimir de seu próprio pas-
Burguesa: uma Leitura das Teses
sado. Esta realidade que Benjamin
sobre o Conceito de História
critica e quer transformar é uma rea-
Já vimos que a linguagem desempe- lidade histórica sombria, que paira
nha um papel fundamental para a sobre a modernidade como uma nu-
vem carregada pronta para descarre-

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CAMARGO. Gustavo Arantes. A Linguagem como Médium... 37

gar de novo sua tempestade a qual- história. E esta redenção só pode vir
quer momento. Uma história da qual com o rompimento da temporalidade
ao invés de se orgulhar o homem burguesa e a instauração de uma
moderno se envergonha, uma história temporalidade intensiva, que permita
triste e que ainda não foi, mas preci- ao homem debruçar-se sobre seu
sa ser, redimida. Somente quando o passado e descobrir a verdade sobre
homem for capaz de citar sua histó- si mesmo. À burguesia não interessa
ria, em cada um de seus momentos, a verdade do homem, interessa a
ele estará redimido e salvo. A tempo- verdade da burguesia, isto é, o pro-
ralidade burguesa não permite esta gresso. Por isto o progresso nos im-
redenção pois impele o homem, com pede de olhar o passado com mais
uma força violenta, para o futuro em cautela. E é aí que estará sempre o
nome do progresso. O preço que a historiador materialista, para apre-
humanidade paga por este progresso sentar quantas vezes for possível e
tecnológico é o preço de não poder necessário a história que a burguesia
falar de sua história. Ao não falar se recusa a contar: a história dos
dela, esconde-se também todas as vencidos, a história do proletário.
calamidades e holocaustos já reali-
Nas “Teses sobre o conceito de histó-
zados em nome deste mesmo pro-
ria” Benjamin apresenta o materialis-
gresso. Desta forma segue-se a cro-
mo histórico de Marx como um fanto-
nologia do tempo linear que nos força
che, controlado por um anão corcun-
a andar para frente, em nome do
da, que se esconde mas é capaz de
progresso, sem que possamos parar
vencer qualquer desafio desde que
e examinar um pouco melhor esta
leve a teologia em consideração.
história que continua a ser construída
Uma possível explicação para esta
a cada momento. As calamidades
apresentação do materialismo históri-
cometidas perdem-se assim no es-
co é que ele é capaz de mostrar a
quecimento e o conformismo pode
verdadeira história perdida na tempo-
reinar. A tarefa do historiador materi-
ralidade cronológica, pois ganha
alista é justamente mergulhar nos
sempre. Ao mostrar esta verdade,
pormenores da matéria, encontrando
permite a salvação, que é sua dimen-
aí sua verdade, sua totalidade. Ao
são teológica. Esta teologia entre-
escrever a história a partir de sua
tanto, não pode mostrar-se, pois hoje
materialidade o historiador salva o
se encontra pequena e feia. Por isto
acontecimento do esquecimento,
se esconde em um jogo de espelhos
conferindo-lhe uma nova interpreta-
que não a revela e veste uma másca-
ção e rompendo desta forma, com a
ra, ou um fantoche, para que possa
temporalidade teleológica, sendo
exercer sua força. Para Benjamin
então capaz de propor um novo sen-
história e teologia são inseparáveis
tido ao presente. Somente esta histó-
assim como o fantoche e o anão cor-
ria materialista, que salva o aconte-
cunda.
cimento e apresenta a idéia, pode
trazer a redenção do homem em sua

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38 CAMARGO. Gustavo Arantes. A Linguagem como Médium...

Uma coisa muito interessante da se- manidade é torna-la capaz de citar


gunda tese é a constatação de que seu passado. O passado terrível que
nossa compreensão de felicidade é a humanidade carrega só pode mes-
totalmente marcada pelo presente, já mo ser citado em caso de uma re-
está no presente. Mesmo que dese- denção da humanidade. Esta reden-
jemos algo no futuro, este desejo já ção é o objetivo do historiador mate-
está totalmente inserido em uma rialista e se assemelha, para Benja-
construção presente, senão não seria min, à revolução. Realmente, ao pen-
possível. Isto traz um chamado ime- sarmos nas terríveis experiências às
diato a lutar aqui e agora por esta quais a humanidade impôs a si mes-
felicidade, que não está no futuro, ma, lembrando que dentro desta hu-
está no presente. A felicidade já está manidade existe uns que impõe a
no presente, lute por ela. O presente experiência terrível e outros que a
não sente inveja do futuro, ele não sofrem, temos a impressão que so-
prefere o futuro a si mesmo porque a mente o juízo final será capaz de
felicidade está aqui e não lá. Este redimi-la de uma vez por todas. A
presente feliz é o presente que se humanidade hoje não pode apropriar-
salva. A história do passado dirigida se de seu passado, e isto é bom para
para o presente salva-o. Este próprio a burguesia, pois assim, esquecemos
passado pede por redenção e so- tudo aquilo a que ela já fez a huma-
mente o historiador materialista, ao nidade se submeter.
salvar este passado, eternizando-o
A força do espírito se manifesta ati-
nas idéias, será capaz de redimir a
vamente na luta de classes, onde os
humanidade. O papel deste historia-
oprimidos retiram desta força sua
dor revolucionário é também o papel
confiança, coragem, humor, etc. as
de um homem atuante na história.
coisas materiais pelas quais lutam os
Esta atuação é um apelo tanto do
oprimidos têm em vistas aumentar e
passado quanto do presente por re-
melhorar estas características espiri-
denção e salvação. O mundo nos faz
tuais. Falando simplesmente: sem
este apelo e este “não pode ser re-
comida, sem casa, sem saúde, é
jeitado impunemente”.22 Aceitar o
mais difícil se tornar um homem ple-
apelo significa lutar pela felicidade
no.
presente, nisto consiste a frágil tarefa
messiânica concedida a cada gera- Contra um historicismo que pensa ter
ção. posse de toda a história para esque-
ce-la aí mesmo onde pretende pos-
“Somente para a humanidade redimi- suí-la, Benjamin aponta para a ins-
da o passado é citável em cada um tantaneidade do instante em que se
de seus momentos”.23 Redimir a hu- mostra a verdade da história. Este
instante se dirige ao presente, cada
22 instante se dirige ao presente e,
Benjamin, “Sobre o conceito de história”,
tese 2
quando o presente não atenta para
23
Ibidem, tese 3 este direcionamento que lhe é dado,

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CAMARGO. Gustavo Arantes. A Linguagem como Médium... 39

o fato se perde. A perda da história Esta história deve deixar claro o es-
engrandece a classe dominante que tado deplorável em que a humanida-
continua sua marcha em direção ao de se encontra. A tristeza que nos
progresso. arrebata a cada olhar no passado
precisa ficar evidente. Desta forma,
“Articular historicamente o passado
novos episódios assombrosos tor-
não significa conhece-lo “como ele de
nam-se mais difíceis de ocorrer. O
fato foi”. Significa apropriar-se de
fato de ainda hoje ocorrerem tais as-
uma reminiscência, tal como ela re-
sombros mostra que para nossa cul-
lampeja no momento de um perigo”.24
tura a história não serve para nada.
Esta reconstituição do passado fiel
Não aprendemos com ela, não for-
aos fatos é tanto mais impossível
mulamos acertos a partir dos nossos
quanto constrói uma explicação cau-
erros. A importância da experiência
sal coerente para a história, justifi-
na constituição do homem foi desta-
cando assim a vitória da classe rica.
cada por Benjamin. Mas ele atentou
O perigo que a tradição corre é per-
exatamente para a pobreza do tipo
der-se nesta temporalidade teleológi-
de experiência pela qual a moderni-
ca e “entregar-se às classes domi-
dade passa. O presente que não
nantes, como seu instrumento”.25 O
aprende com a história mostra uma
conformismo da impossibilidade de
história que tem como objetivo es-
outros futuros precisa ser quebrado
conder os assombros provocados em
pelas centelhas de esperança que o
nome do progresso. É uma história a
passado lança e que caba ao histori-
serviço das classes dominantes. Por
ador materialista apresentar como
isto “a concepção de história da qual
história.
emana semelhante assombro é in-
A história contada até hoje é a histó- sustentável”.26 Ao invés de uma ca-
ria dos vencedores. Os vencedores deia de acontecimento, a história
de hoje são herdeiros dos vencedo- apresenta-se como uma catástrofe
res de ontem. São eles que se apro- única, da qual não podemos parar e
priam dos bens culturais e que lhe socorrer os feridos, pois o progresso
conferem um sentido que lhes bene- nos impede. Assim, o progresso, ao
ficia. O historiador materialista preci- nos impedir de pensarmos nossa
sa fugir desta história dos vencedores história, faz com que a esqueçamos
e fazer uma outra história, uma anti- ao invés de nos redimirmos.
história, uma história a contrapelo.
Uma história que se oponha ao que Por ser o progresso a principal arma
até hoje já foi visto. e o principal valor burguês, o revolu-
cionário não pode jamais toma-lo
como um valor para si. Seria um gra-
ve erro, pois assim, sua ação estaria
24 a serviço da classe dominante e não
Benjamin, “Sobre o conceito de história”,
tese 6
25 26
Ibidem, tese 6 Ibidem, tese 8

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40 CAMARGO. Gustavo Arantes. A Linguagem como Médium...

da dominada. A adesão ao progresso salva em idéia, criando sua origem.


como valor decorre do costume que “A origem é o alvo”28 que o historia-
adquirimos de pensar a história cro- dor materialista deve atentar se pre-
nologicamente, conforme nos ensina tender a redenção. Esta origem é
a classe dominante. Desta crença no possível devido ao caráter de môna-
progresso o marxismo vulgar tira da do acontecimento histórico. Esta
também sua concepção de trabalho, mônada apresenta as tensões que
que domina a natureza subjugando-a comunicam a totalidade a qual se
e que em nada difere de uma con- quer chegar. Esta mônada originária
cepção direitista de trabalho. Benja- rompe o curso homogêneo do tempo
min está chamando atenção para o pois já contém em si mesma sua pró-
risco de cairmos em uma concepção pria temporalidade. O momento que
burguesa de progresso ao pensar- contém em si “um resumo incomen-
mos em revolução sem levar em con- surável da história de toda a humani-
sideração o rompimento com a tem- dade”.29 A “imobilização messiânica
poralidade burguesa. dos acontecimentos” é também “uma
oportunidade revolucionária de lutar
A idéia de um progresso da humanida-
por um passado oprimido”.30
de na história é inseparável da idéia de
sua marcha no interior de um tempo
Apêndice: pequeno ensaio sobre a
vazio e homogêneo. A crítica desta
arte na era de sua comercialização
idéia de progresso tem como pressu-
mercadológica
posto a crítica da idéia desta marcha.27
Depois de estudar um filósofo tão
Fazer explodir o continuum da histó-
preocupado com as questões da mo-
ria é romper com este tempo vazio e
dernidade me senti tentado a escre-
homogêneo, instaurando uma tensão
ver um pequeno ensaio sobre um
dialética entre períodos distintos,
tema complexo que a modernidade
rompendo com a teleologia cronoló-
capitalista impõe à arte.
gica que nos joga no conformismo. A
revolução é um destes momentos de Não devido à possibilidade de ser
ruptura. A consciência de classe reproduzida tecnicamente, diminuin-
neste contexto, apresenta-se como a do a importância do original, mas
consciência da necessidade deste devido ao fato de se tornar mercado-
rompimento com a temporalidade ria, uma obra, para merecer o título
para a revolução. Este rompimento de arte, deve ser criticamente estu-
se dá também ao garantir-se a sin- dada pelos amantes da arte.
gularidade de cada acontecimento,
mostrando-o como uma experiência
única que ao mesmo tempo em que 28
Kraus, Karl. “Palavras em verso” em Ben-
apresenta a verdade na história se jamin, “Sobre o conceito de história”, tese 13
29
Benjamin, “Sobre o conceito de história”,
tese 18
27 30
Ibidem, tese 13 Ibidem, tese 17

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CAMARGO. Gustavo Arantes. A Linguagem como Médium... 41

Dentro da lógica do capital, só devem torna-se então o objetivo de empre-


existir as coisas para as quais exis- sas que, como já foi dito, visam ape-
tam pessoas que as compre. Muitas nas seus lucros.
coisas de valor intrínseco como até
Passam a ser produzidas então, ape-
mesmo a dignidade humana ou a
nas as obras que possibilitam altos
vida podem ter seu preço. Pensando
retornos do dinheiro investido. A pro-
assim, uma obra de arte só deve
dução em massa de uma determina-
existir se puder ser vendida. Pior ain-
da obra, associada a uma propagan-
da, seu valor corre o risco de ser de-
da midiática massiva é capaz de, aos
terminado apenas em alguma moeda
poucos, moldar não só o gosto mas a
corrente como o dólar por exemplo.
própria cultura de um povo. Neste
Algo que não venda, não deve ser
esquema, que não é totalitário mas
produzido. Uma pessoa que produz
tende a crescer junto com os lucros
algo que não vende, "morre de fome".
das empresas, a verdadeira obra de
arte pode estar sendo preterida a um
Se pensarmos um artista isolada-
produto que gere maior retorno finan-
mente, que produz seu trabalho e o
ceiro. Não necessariamente uma
vende, podemos achar tal lógica na-
obra de arte será escolhida para ser
tural: se sua obra for realmente arte,
produzida. Os diretores das empre-
alguém irá comprá-la. No entanto, se
sas podem julgar que outra obra tem
estendermos esse raciocínio para o
maior possibilidade de vender e es-
conjunto de grandes empresas res-
colhê-la. Quando a obra passa a de-
ponsáveis pela reprodução técnica
pender daqueles que detêm o poder
das obras, o conceito de arte pode
de reproduzi-la, isto é, dos proprietá-
estar sendo comprometido. Uma em-
rios dos meios de produção, a arte
presa que produz algo como discos
corre um sério perigo.
ou filmes, tem como força motriz o
lucro. Ao contrário do artista que se
Como os processos de produção, a
preocupa com sua obra em si, as
medida que se sofisticam, se tornam
empresas se preocupam com a ven-
mais caros, algumas empresas pas-
dabilidade dessas obras. Seu critério
sam a ser não só reprodutoras, mas
para produzir, reproduzir e vender
passam a deter o monopólio da pro-
uma obra não é o critério artístico e
dução da arte. Principalmente das
sim, o critério do capital. O fato de
artes que necessitam de tecnologia
poder ser reproduzida tecnicamente,
para serem produzidas. Para estas
sem perda de qualidade com relação
empresas, a arte deve dar lucro. Será
ao original, faz com que a arte se
que a arte, quando produzida com
torne algo factível de massificação.
esse intuito, ainda pode continuar
Ainda dentro da lógica capitalista,
sendo considerada arte? A arte
produzir um grande número de cópi-
quando produzida pela lógica do ca-
as da mesma obra é mais lucrativo
pitalista e não do artista perde o seu
do que produzir diversas obras dife-
conteúdo de verdade. Torna-se um
rentes. A massificação das obras

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produto como outro qualquer. O po- reproduzem trabalhos de artistas. No


tencial de salvação que a arte nos entanto, mesmo sendo arte, essa
trás acaba subsumido quando a arte produção está submetida ao mercado
passa a ter a função e também a e, portanto, deve vender. O que, ao
obrigação de gerar retornos financei- meu modo de ver, não pode ser con-
ros. siderado arte são as obras que têm o
compromisso a priori de vender. Se
Não se trata aqui de alardear o fim de uma verdadeira obra de arte vende
algumas artes e sua transformação não é problema, a questão é quando
em mercadoria. Trata-se ao contrário, se tentam produzir "obras de arte"
de fazer uma crítica imanente ao que com o intuito de vendê-las. E pior,
nos está sendo dado (ou melhor ven- quando a obra de arte deixa de ser
dido) hoje em dia como arte. Existem produzida, ou reproduzida, pelo fato
empresas que se preocupam em re- de não se encaixar na lógica da lu-
produzir arte de verdade, e para isso cratividade.

Referências Bibliografias

BENJAMIN, Walter. "Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana"

________________. "Questões introdutórias de crítica do conhecimento", in A origem do


drama barroco alemão.
________________. “Sobre o conceito de história”, in: Obras escolhidas. v. I, 4. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1985
________________. "A teoria da arte primeiro romântica e Goethe", in: O conceito de
crítica de arte no romantismo alemão, São Paulo: Iluminuras 1993.

_______________. “Experiência e pobreza”, in: Obras escolhidas. v. I, 4. ed., São Paulo:


Brasiliense, 1985.
______________. “Experiência”, in: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. 3. ed.
São Paulo: Summus editorial, 1984.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. "Nas fontes paradoxais da crítica literária. Walter Benjamin
relê os românticos de Iena". In: Leituras de Walter Benjamin, São Paulo: Annablume/
Fapesp, 1999.
_______________. Walter Benjamin. Brasiliense, 2.ed. São Paulo: 1993.
_______________. História e narração em Walter Benjamin. 2 ed., São Paulo: Perspecti-
vas, 1999”.
MURICY, Kátia. “O ser das idéias” in: Alegorias da dialética. Relume Dumará, 1999.

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