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PESQUISA EDUCACIONAL EM CRISE: ONTEM, HOJE - QUE CAMINHO TOMAR? OYARA PETERSEN ESTEVES fo de Educacio da Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO © ‘trabalho focaiza virios aspectos da “crise” com que hoje se depara a pesquisa educacional, elientando fata de um crtério, expecttico 3 educaréo, na excolha de problemes ps ‘estudo, a inadequagio da metodologia empregade com meior fre: ance @ 2 natureza fragmentada, inutiidade mesmo, dos resul- tados apresentados das sugestées formuladas. Historicamante falanco, chegamos a esse estado de coisas pelo dersjo ambiio- 40, sinda que som baso real, de fazer da educecso uma "ciéncia positive”, apenas exquecendo de que nada é "positive" nar vi vénclas humanas —a nfo ser fato de que éatrows delas que co dds_um de nds constr! e transforma ia mega e onde termina 2 aprendizagem humans. Nove questies so colocadas através de porguntas e respostas, sendo que 2 Ut 2 considers o recivecionamento da pesquisa em educaeso of recando uma scie de proporigsee. ‘A expotigdo tom um eariter a0 mesmo tempo informs: tivo @ didétio, pois visa a engalar 0 letor num procasto dials ico ou dialtico de conhecer, fazendo um convte a retlexdo ert. ‘ea que hoje, mais do que nunca, se toma imprescindivel pes ‘quits no contexto da edueacso br ‘SUMMARY ‘The essay address the present-day “erisis” in educatio: nal research and points out the abeance of a criterion, specific 10 education, for the selection of problems to be studied, the inappropriate methodology more frequently employed and the fragmented, often useless, nature of the reported findings and recommendations. Historically speaking, we got to this palat out ‘of an ambitious hope, yet unrealistic, to make of education & ostivescienes, only forgetting that in human affairs nothing 's “positive” — oxcope for the fact that It is through lfe-ar-ex- perionced that each of Us constructs and transforms our own nces, thus also transforming the social rolity we all tha- ‘re and where all human learning begins and ends. Nine themes ‘te discussed through quertions and. answers; the lest question Speaks to the re-orlontation of educational esearch by making 2 series of propositions “The essay is Informative in style but embodies 2 pedago- ical feature as wall fori intands to involve the reser in a dis: logical or dialectical learning process; It maker n invitation to critical thinking, which is» necessory posture for one to take ward research, togay more than ever, in the context of Braz Tian education, Cad, Pesq., So Paulo (50): 3-14, ago. 1984 — Por favor, como devo fazer pare sair dequi? (perguntou Alice 20 Gato) = Depende muito de onde vocé quer ir = Onde, néo tem importéncia — Entéo néo tem importéncia 0 caminho que vo- 6 tomar, respondeu 0 Gato. Alice no Pafs das Maravithas Num fivro antigo ~ escrito muito antes de se falar lem pesquisa educacional e em tecnologia, muito antes de se falar em ciéncia e em psicologia, muito antes da era cristd, e antes mesmo da nossa civitizacio Ocidental, que se chama TALMUD e contém o texto da lei civil e cané- niica do povo judaico encontra-e o sequinte aforisma: “Ns no vernos as coisas / como elas so / ~ nds vemos 1 coisas / como nés somos.” Curiosamente, € num livro da atualidade e de pu blicagdo recente (1977.2) ~ escrito por um renomado economista inglés, Schumacher, mas que viveu muitos ‘anos na fhdia e foi bastante influenciado pela cultura do Oriente — que vamos encontrar talvez a mais elogiiente ilustragio do aforisma judaico. A obra a que me refiro intitulase, em inglés, guide for the perplexed, cuja ‘traducdo literal seria “Um guia para o perplexo. ‘A titulo de anedota, Schumacher relata a conver s2 entre dois padres que eram amigot e tinham um pro- blema idéntico. Buscavam harmonizar seus deveres ‘conduta religiosa com prazeres um tanto ou quanto mundanos, pois ambos tinham o hébito de fumar e o fa- ziam abertamente, mesmo enquanto cumpriam suas obri- (g305es sacerdotais. Inseguros sobre como resolver a di ficuldade que 0s afligia - fumar ou no furnar, em pilbli- co e na hora do expediente — chegaram a conclusio de que 2 solucdo definitiva desse problema deveria vir de Roma. Para tanto, concordaram em escrever 30 Sumo Pontifice. Duas cartas foram enviadas ao Papa, cada uma explicando a situagio e pedindo aconselhamento. ‘Algum tempo decorreu até que os amigos tives- sem um novo encontro, cada qual mais curioso por sa ber a resposta que o outro teria recebido de Roma. O de- sapontamento inicial foi a aparente incoeréncia do San- to Mestre, pois havia permitido que um sacerdote con- ‘inuasse furrando, mas recusava 0 mesmo direito ao ou tro. Nesse momento, o interesse de ambos se voltou pa- +a.0 teor das mensagens. Indaga um: — Que disse voc 20 Papa? ~ Respon- de 0 outro: — Perguntei se eu podia fumar enquanto re- zo, © Sua Santidade disse que néio, que eu néo devia e Jo podia. — Continua o didlogo: — E voo8, que per- gunta fez? Explica entdo 0 amigo: ~ Pois eu perguntei se podia rezar enquanto fumo e o Santo Padre disse que sim, que eu podia e devia rezer sempre. Esta estéria pode ser considerada uma anedota ou. pode parecer um jogo de palavras, mas tem um alcance ‘muito maior. Como acontece as vezes com anedotas, @ estéria tem valor heuristico pelo ensinamento que con- tém. © mesmo ocorre com 0 aforisma judaico a que me referi anteriormente. Em ambos 08 casos, a mensagem & simples @ expressa a mesma conviceo, que pode ser a 4 ‘esum. Ja: 0 elemento mais importante no relacions- mento das pessoas, tanto entre si como com 0 mundo que as cerca, é precisamente aquilo que nfo se vé, 0 fer riémeno que o observador no registra porque permane- ce escondide e que, quando vis(vel, pode mesmo estar disfarcado: a intencionalidede. € a intencionalidade do comportamento human que tem maior importénda, aquilo que a prépria pessoa vé e sabe, mas nem sempre coincide com aquilo que os outros véem e pensam que sabe. Para aqueles dentre nés que aceitam e reconhecem, © certamente j4 constataram em sua prépria experiéncia, 2 presenga do elemento invisivel nos contatos que temos ‘com a vida; para aqueles que no escondem endo se ate- morizam com a dimensdo pessoal e Gnica que caracteriza ‘© comportamento do individuo como ser humano ~ pa- +a todos nés que defendemos esse ponto de vista —a pes- quisa educacional, assim como tem sido desenvolvida, deixa muito a desejar, tanto na sua parte metodolégica quanto no que diz respeito aos pressupostes filosdficos sobre 06 quals repousa. ‘Cumpre uma adverténcia — a posiedo que defendo ‘nfo & das mais populares nos efrculos educacionais, pelo menos no nos Estados Unidos, onde adquiri grande par- te da minha experiénce de ensino universtério. De qual: ‘quer forma,os métodos mais freqUentemente usados @ 05 pressupostos filoséficos que determinam a utilizacéo des- ses métodos, a meu ver, impdem sérias limitacSes & pes- ‘quisa educacional. Hi que reconhecer a existinda de muitos outros fatores que restringom o desenvolvimento da pesquisa ‘em educaggo no contexto universitrio. A influéncia des- ses fatores, situagGes ou circunstincas, 6 negativa e deve ser minimizada. Refiro-me, em particular, por exemplo, 8 disponibilidade de verbas orcamentérias; & disponibili- dade de locais de trabalho adequados ao desempenho do pesquisador, bem como sua disponibilidade de tempo durante o expediente de trabalho, permitindo reunir 0 maior nimero posstvel de profisionais interessados em se engajar na pesquisa em educacéo. Todas essas varidveis 850 importantes, em cortos casos indispensévels mesmo, para incentivar e desenvolver a pesquisa em educacSo. Entretanto, no momento, minha atengSo no est voltada para o que eu identificaria como condigdes ex- ternas, que S80 aquelas que promover ou retardam, tor- nam possivel ou obstruem a pesquisa educacional. Meu interesse focaliza outros aspectos que poderfamos chamar dde condigdes internas, pois dizem respeito & selegdo dos problemas que constituem objeto de pesquisa, & metodo logia adotada, & qualidade e utilizago dos resultados. AA rigor, $80 as condigées internas que, de fato, ‘mais empobrecem ¢ limitam a produtividade da pesquisa fem educagio. A t/tulo de ilustragSo, prevalece entre os Ieigos — € até mesmo nos meios académicos ~ a noglo de que 2 atividade de pesquisa é privilégio de equipes es pecializadas, que articulam a disponibilidade de verbas @ tam acesso @ sofisticadas modelos estatisticos e tecnolé- gicos para a obtencfo de dados, andlise e interpretagéo dos resultados. Na verdade, existe uma literatura exausti- va que focaliza a pesquisa com menos sofistcagio porém ‘no Seu contexto proprio: a complexidade da sala de aula como laboratério de estudo, relacionando 0 processo en Cad. Pesq. (50) ago. 1984 sino-aprendizagem & interagdo aluno-professor, e dando Prioridade aos aspectos de desenvolvimento humano ma de qualquer outro objetivo educacional (Wilson, 1978; Evans, 1978; McAleese e Hamilton, 1978). Assim, os préprios profestores estariam em posiggo privilegiada para conduzir ou, pelo menos, para pat par de projetos de pesquisa, uma vez que so eles que sentem, conhecem ou, pelo menos, esto em posigzo de perceber os fendmenos/problemas a serem estudados: Porque é através deles, professores e educadores, que @ pesquisa poderd fazer a sua maior contribuigo & educa- lo. Para manter em foco a abordagem dos pontos que considero bésicos, 0 assunto que segue foi organizado em torno de questdes ou perguntas. O diagrama incluso tem por finalidade facilitar a visualizagSo desse questiona- mento. Que 6 pesquisa, que faz o pesquisador? Pesquisar & localizar ou produzir respostas, é tor- nar vis(vel o que no se vé, 6 conhecer a intencionalidade das coisas que existe e dos fendmenos que observamos. ditado popular diz que “quem procura acha” mas hé ‘que acrescentar: 86 encontra 0 que procura quem esté consciente da busca. Em termos de pesquisa cientlfica, 0 sucesso da procura é determinado pala adequagdo entre (0 dados colhidos ~ observacio empirica e/ou argumen 10$ logicos ~ e a hipétese formulada para explicé-os. Pesquisar, portanto, & produzir conhecimentos ¢ conhecer ¢ criar, ou mesmo recriar respostas que sejam ‘adequadas para explicar os fendmenos estudados, pois © pesquisador quem dé organizaggo e sentido aos dados e resultados do estudo. Assim, a pesquisa é um trabalho pessoal, criativo e (nico para quem a conduz, cujo obje- tivo é a produgio de conhecimentos novos que so disse- minados pelo(s) pesquisador(es) através de relatérios, conferéncias e outras formas de comunicagio. Que se entende por conhecer, ‘que é 0 conhecimento ¢ de onde vem? A percepgio que temos do mundo, das observa es que fazemos e da interpretacdo que damos a nossa experiéneie, € uma atividade de elaboracio pessoal e Gni- 2, € um trabalho criativo. As opinides que cultivamos; 2s preferéncias; 35 intuigdes e emoges que senti convicgles, preconceites e divides que certezas e julgamentos acumuladas ao longo dos anos — tudo isso faz parte do conhecimento humano e é onde ‘tudo comeca, inclusive o conhecimento cientifico. Neste plano de experincias, todas as pessoas agem e reagemn através de comportamentos que so semelhantes para todos of membros de uma determinada sociedade, ou de classes sociais, ou de uma mesma cultura — isso. se ‘chama conhecimento a nivel do senso-comum. Portanto, conhecer ¢ dar sentido as nossas agdes @ reagées, é criare recriar interpretagSes, e é elaborar ex- Dlicagées que satisfacam os dados das observagSes que fazemos e das vivéncias que temos. Trata-se de um co- Mhecimento elementat, primério, porque muito abran- gente ¢ ni classificado; 0 que Ihe falta 6 organizacdo, es- Pesquisa educacional em crise.. trutura, um sistema de filtragem e constatao. © conhecimento do senso-comum ¢ stil, necessé rio, indispensével mesmo para a sobrevivéncia humana, ‘mas ele & também perigoso. O perigo esté na transmissd0 cultural, viarconsenso, de “critérios”, de ilusGo e realida- de, de melhor e pior — coneeitos e convicgSes esses que so adquiridos como sendo “‘verdades e valores” inques- tiondveis porque sancionados pela experiéncia comum de grupos sociais. Assim, por exemplo, no plano visivel da experiéneia, 0s dados da observacio empfrica leveram ‘nossos antepassados a acreditarem que @ terra foste pla- ra; e a mesma observacSo, hoje, ainda pode levar pessoas 2 acreditarem que 0 Sol gira a0 redor da terra, como 0 fa- zem as criancas até certa idade. A aceitagio passiva e unilateral dos dados do sen- so-comum, iniciada na infancia e, no mais das vezes, con- tinuando pela vida adulta do individuo, é o que se enten- de por “socializagio” — uma visio do mundo aparente- mente ingénua, mas que traz na sua estrutura uma ideo- ‘ogia. © perigo disso reside na dimensio oculta da mensa- ‘gem que & assim transmitida. O perigo est, justamente, na auséncia de reflexio critica, de agfo consciente, de Préxis, ou seja, na falta de conscientizacdo que acompa- ‘nha a incorporacdo de mitos e estereétipos cultura Cumpre mencionar ainda o que se costuma chamar de sabedoria popular — um tipo de conhecimento que contém os grandes ensinamentos aprendidos nas vivén- 3 comuns de um grupo cultural e que sé0 vividos ¢ acumulados, portanto recriados, e so passados de gera- ‘elo em geragdo. Por exemplo, para os cristdos, esse co- nhecimento é legitimizado em expresses tais como “a voz do povo 6 a voz de Deus”. Contudo, tanto o conhecimento a nivel de senso- ‘comum como a sabedoria popular so pass/veis de refle- xo e de andlise critica, isto 6, podem-e devem tornar-se objetos de conscientizago — na medida em que toma- iéncia” de quem os usa, em que circunsténcias isso ‘corre e com que finalidade, em benef{cio de quem. Concluindo, a pesquisa em ciéncias sociais, em par- ticular a pesquisa educacional, no pode, como tem fe to, continuar ignorando a riqueza e complexidade do sa- ber humano — adquirido mesmo a nivel do senso-comum da sabedoria popular — jé que esses conhecimentos an- tecedem e constituem a textura dos comportamentos que $80 objetos de estudo do pesquisador e dos quais ele Proprio, pesquisador, compartiha. Que fazer para legitimar, validar ou desmistificar ‘08 contetdlos do conhecimento formulados ‘a nfvel do senso-comum? Vivenciar esses conhecimentos, refletir sobre eles; analisé-los do ponto de vista critico como hipéteses a se- rem testadas através da experiéncia propria 0 da expe- Figncia de outras pessoas; encontrar uma multiplicidade de respostas e detectar contradicées entre elas; constatar 108 e dialogar para resolvé-los — 6 © processo que 8 aceitagio ou rejei¢do da validez daqueles conheci- mentos, dependendo das exigéncias impostas pelo grau de conscientizag#o do préprio observador. E isso, preci- samente, 0 que fazom os estudiosos engajados ne ativida- de humana chamada pesquisa, em particular na pesquisa 5

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