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À medida que a ciência evoluiu, fomos cada vez mais impelidos na direção de uma
aprendizagem que nos permitisse administrá-la, visando que essa evolução não venha a ferir o
respeito à pessoa, ao paciente.
No ambiente hospitalar, ao longo dos anos, aprendi que se o profissional de saúde não fizer
um constante questionamento sobre sua atuação frente a cada um de
seus pacientes certamente será "engolfado" pela rotina de trabalho.
Entendo que, neste momento, o ideal seria ater-me a questões práticas para melhor ilustrar os
conflitos bioéticos que permeiam a atuação do psicólogo na prática hospitalar. Assim,
discorrerei sobre alguns aspectos da experiência adquirida dentro de um centro de medicina
fetal.
O ultra-som tornou-se o aparelho que tem o poder mágico de reproduzir a imagem do filho
saudável e, como todo processo de "magia", o desejo se impõe pela gratificação, aliás aspecto
inerente ao ser humano, não sendo incluídos resultados que porventura possam frustrar o
sonho do rebento idealizado.
Quem tem sensibilidade certamente não ficará alienado aos significados, para o ser humano,
quanto à frustração de um dos seus sonhos mais importantes, ter um filho, sonho este tão
antigo como a própria humanidade, mas que se atualiza a cada gestação.
A forma encontrada para trazer algum benefício para esses pacientes é a abordagem
psicológica, através da interconsulta. Trata-se de entrevista junto com a equipe, o que
possibilita não só avaliar as reações da gestante, nesse momento crucial, como também de
explicitar a leitura psicológica do que está ocorrendo.
Após a notícia, os momentos subseqüentes são de extrema confusão – vivenciados com muita
angústia. A possibilidade de a paciente comparti-lhar com o psicólogo a dor emergente e seus
sentimentos resultantes da frustração irá auxiliá-la, pois sentir-se-á amparada por alguém que
estará ali para ouvir suas "lamentações", sem "acusá-la", aliviando ou prevenindo o sentimento
de culpa, tão danoso para o ser humano.
No instante em que a equipe se coloca como continente das angústias dessa família e tanto a
gestante como o feto recebem o tratamento adequado para me-lhor condução da gravidez, não
resta dúvida de que o princípio da beneficência está sendo cumprido em toda a sua extensão.
Enquanto a paciente se propõe a levar sua gestação a termo, revelando um amor incondicional
por seu filho, certamente não gera nenhum conflito bioético na equipe. Gera, outrossim,
sentimentos de empatia com tais pessoas que terão que aprender a lidar com a dura realidade
de ter um rebento diferente do esperado.
No entanto, todos aqueles que trabalham com medicina fetal sabem muito bem que existe uma
realidade mais conflitiva do que a apresentada aqui.
Quando uma gestante recebe um diagnóstico de que o feto apresenta anencefalia, por
exemplo, uma das reações observadas é a de querer "livrar-se" do feto quase que
impulsivamente. É interessante observar que a equipe experimenta um sentimento
contratransferencial, parecido com a reação da paciente, achando que esta não irá suportar tal
dor e que o benefício maior seria a interrupção da gravidez.
Temos assim uma complexidade de questionamentos bioéticos. O psicólogo terá a função não
só de amparar a gestante e sua família, como também a de auxiliar a equipe no sentido de que
esta entenda que a impulsividade faz parte de uma reação inicial, que deve ser melhor
avaliada.
Gostaria de esclarecer que não estou falando de ação, mas sim de sentimentos que permeiam
qualquer equipe que lide com esse tipo de realidade.
Também não se pode esquecer que o psicólogo não está "vacinado" frente a este turbilhão de
dúvidas e sentimentos. Compartilhar com a equipe o que lhe é suscitado leva a desenvolver
uma melhor percepção e discriminação da realidade, podendo auxiliar sobremodo a paciente
em questão.
O ser humano necessita de um tempo para elaborar qualquer situação de estresse, e este
período varia para cada indivíduo, até porque as reações são movidas pela história e valores
de cada um, podendo determinar rumos e situações diferentes do esperado.
Nesses casos, as dúvidas giram em torno de: como não causar dano? Como respeitar o
princípio de autonomia dos pacientes? Como diferenciar uma manifestação de impulsividade
de uma decisão madura diante dos fatos?
Acredito que nem sempre teremos as respostas; porém, alguns elementos norteadores da
prática psicoterápica nos auxiliam na busca do bom-senso.
A troca é mútua, pois o psicólogo, ao questionar as reações da equipe, também recebe apoio,
o que atenua a solidão de ter que lidar com uma tarefa tão difícil, que é o "lamento de alguém
frente a uma impossibi-lidade", às vezes até irreversível.
Mas a angústia não pára por aqui, pois existem outras situações que suscitam sentimentos de
impotência e de conflitos bioéticos de difícil solução.
Para melhor compreensão, citarei um caso de modo sintético: paciente com 22 anos, solteira,
auxiliar de enfermagem, com 20 se-manas de gestação e diagnóstico de um feto anencéfalo.
Recebeu acompanhamento psicológico desde o referido diagnóstico e tem-se revelado
bastante madura e equilibrada. Tem verbalizado que "está difícil tolerar" as 20 semanas
restantes, pois a barriga está crescendo e os movimentos do feto irão aumentar. Diz ser difícil
tolerar a idéia de que irá apegar-se a este bebê, que, ao nascer, irá morrer quase que
imediatamente. Diz que se soubesse que ele teria chances, mesmo que malformado, não se
importaria de levar a gravidez adiante. No entanto, a idéia de que está fazendo um "esforço
psíquico em vão torna tudo mais difícil". Diz que não irá "enlouquecer" se chegar aos nove
meses, mas que cada dia da gestação "é uma eternidade, um martírio."
São casos como este que me deixam em muitos momentos totalmente perplexa. Não tenho
dúvidas de que o aborto e uma interrupção precipitada trazem conseqüências maléficas para o
psiquismo da mulher e do casal. Porém, como ficar insensível diante de questio-namentos
como os da referida paciente?
O que é benefício? Será que ela não ficará com marcas maiores por empurrar com a própria
barriga essa gestação? Ou será que irá sentir-se melhor por ter feito tudo por esse feto, mesmo
que, para o ego, lhe tenha custado um esforço sobre-humano?
Não sei se tenho respostas, acredito, no entanto, que somente a paciente poderá "sinalizar" o
que é melhor para si, sem que, como assinalei no início, se fique desatento, não se espere
demais, nem se tomem decisões precipitadas, pois lidamos com o que é mais importante,
lidamos com a vida, lidamos com o feto que está em formação e lidamos com a família que
está gerando esse feto.
Acredito que as ciências médicas podem cada vez mais se beneficiar com os princípios da
Bioética, pois ela nos ajuda, sobremaneira, a conhecer, entender e respeitar o ser humano.