Você está na página 1de 4

O PAPEL DO PSICÓLOGO SOB A ÓTICA DA BIOÉTICA

À medida que a ciência evoluiu, fomos cada vez mais impelidos na direção de uma
aprendizagem que nos permitisse administrá-la, visando que essa evolução não venha a ferir o
respeito à pessoa, ao paciente.

No ambiente hospitalar, ao longo dos anos, aprendi que se o profissional de saúde não fizer
um constante questionamento sobre sua atuação frente a cada um de
seus pacientes certamente será "engolfado" pela rotina de trabalho.

Entendo que, tanto para a evolução da ciência quanto para as rotinas


hospitalares diárias, necessitamos de um antídoto tão eficaz quanto
os que a medicina produz frente a um medicamento com efeitos
colaterais, ou seja, necessitamos da Bioética para não prejudicarmos
o paciente expondo-o a um progresso que pode tornar-se nocivo.

Nos aportes teóricos de T. Beauchamp, entre outros autores, tenho


encontrado os elementos norteadores que me auxiliam na condução
daqueles casos que despertam dúvidas e angústias de caráter
bioético. Para Beauchamp, expondo de modo sucinto, existe um
paradigma ético constituído por quatro princípios fundamentais: o da
beneficência, que é o promover o bem em relação ao paciente ou à sociedade, e de evitar o
mal; o da não-maleficência, qual seja, abster-se de prejudicar, procurando prevenir o mal; o da
autonomia, que se refere ao respeito aos direitos fundamentais do homem, inclusive o da
autodeterminação; e o princípio de justiça, que significa a igualdade e eqüidade de tratamento.

Entendo que, neste momento, o ideal seria ater-me a questões práticas para melhor ilustrar os
conflitos bioéticos que permeiam a atuação do psicólogo na prática hospitalar. Assim,
discorrerei sobre alguns aspectos da experiência adquirida dentro de um centro de medicina
fetal.

Tenho observado que, com o advento da ultra-sonografia e com os diagnósticos genéticos


cada vez mais sofisticados, os casais têm buscado nos exames pré-natais a confirmação do
sonho do "filho perfeito".

O ultra-som tornou-se o aparelho que tem o poder mágico de reproduzir a imagem do filho
saudável e, como todo processo de "magia", o desejo se impõe pela gratificação, aliás aspecto
inerente ao ser humano, não sendo incluídos resultados que porventura possam frustrar o
sonho do rebento idealizado.

A confirmação de um diagnóstico desfavorá-vel de uma gestação implica um ataque ao


psiquismo da mulher, do casal, extensivo à família, os quais terão que desmoronar o sonho do
filho imaginário para confrontar-se com os problemas de um feto malformado, ou com
problemas e/ou incompatível com a vida.

Quem tem sensibilidade certamente não ficará alienado aos significados, para o ser humano,
quanto à frustração de um dos seus sonhos mais importantes, ter um filho, sonho este tão
antigo como a própria humanidade, mas que se atualiza a cada gestação.

Diante da complexidade da referida realidade, como o psicólogo pode transformar em benefício


o dano inadvertido que causou a frustração da notícia de um feto com problemas?

A forma encontrada para trazer algum benefício para esses pacientes é a abordagem
psicológica, através da interconsulta. Trata-se de entrevista junto com a equipe, o que
possibilita não só avaliar as reações da gestante, nesse momento crucial, como também de
explicitar a leitura psicológica do que está ocorrendo.
Após a notícia, os momentos subseqüentes são de extrema confusão – vivenciados com muita
angústia. A possibilidade de a paciente comparti-lhar com o psicólogo a dor emergente e seus
sentimentos resultantes da frustração irá auxiliá-la, pois sentir-se-á amparada por alguém que
estará ali para ouvir suas "lamentações", sem "acusá-la", aliviando ou prevenindo o sentimento
de culpa, tão danoso para o ser humano.

No instante em que a equipe se coloca como continente das angústias dessa família e tanto a
gestante como o feto recebem o tratamento adequado para me-lhor condução da gravidez, não
resta dúvida de que o princípio da beneficência está sendo cumprido em toda a sua extensão.

Enquanto a paciente se propõe a levar sua gestação a termo, revelando um amor incondicional
por seu filho, certamente não gera nenhum conflito bioético na equipe. Gera, outrossim,
sentimentos de empatia com tais pessoas que terão que aprender a lidar com a dura realidade
de ter um rebento diferente do esperado.

No entanto, todos aqueles que trabalham com medicina fetal sabem muito bem que existe uma
realidade mais conflitiva do que a apresentada aqui.

Existem diagnósticos de malformações que levam à incompatibilidade com a vida e que


inevitavelmente trazem questionamentos diferentes para a equipe e para a família em questão.

Quando uma gestante recebe um diagnóstico de que o feto apresenta anencefalia, por
exemplo, uma das reações observadas é a de querer "livrar-se" do feto quase que
impulsivamente. É interessante observar que a equipe experimenta um sentimento
contratransferencial, parecido com a reação da paciente, achando que esta não irá suportar tal
dor e que o benefício maior seria a interrupção da gravidez.

Temos assim uma complexidade de questionamentos bioéticos. O psicólogo terá a função não
só de amparar a gestante e sua família, como também a de auxiliar a equipe no sentido de que
esta entenda que a impulsividade faz parte de uma reação inicial, que deve ser melhor
avaliada.

Gostaria de esclarecer que não estou falando de ação, mas sim de sentimentos que permeiam
qualquer equipe que lide com esse tipo de realidade.

Também não se pode esquecer que o psicólogo não está "vacinado" frente a este turbilhão de
dúvidas e sentimentos. Compartilhar com a equipe o que lhe é suscitado leva a desenvolver
uma melhor percepção e discriminação da realidade, podendo auxiliar sobremodo a paciente
em questão.

O ser humano necessita de um tempo para elaborar qualquer situação de estresse, e este
período varia para cada indivíduo, até porque as reações são movidas pela história e valores
de cada um, podendo determinar rumos e situações diferentes do esperado.

Nesses casos, as dúvidas giram em torno de: como não causar dano? Como respeitar o
princípio de autonomia dos pacientes? Como diferenciar uma manifestação de impulsividade
de uma decisão madura diante dos fatos?

Acredito que nem sempre teremos as respostas; porém, alguns elementos norteadores da
prática psicoterápica nos auxiliam na busca do bom-senso.

Procura-se avaliar, por exemplo, as manifestações de ambivalência frente ao feto, ou seja, de a


paciente achar que não poderá levar adiante a gestação, mas, ao mesmo tempo, verbalizar
que tem desconfiança de que o "médico errou no seu diagnóstico", que "talvez a máquina de
ultra-som esteja com defeito" ou, ainda, quem sabe, "se este feto permanecer em meu ventre,
não haverá uma reversão frente ao que foi diagnosticado?" Mesmo que a referida paciente
insista numa interrupção, é evidente que a sua manifestação não está embasada numa
decisão segura, mas sim pelo desejo de que "uma parte sua" quer livrar-se do "defeito" que
gerou. Logo, isso não é manifestação do princípio de autonomia, que muitas vezes pode deixar
a equipe confusa, isso é manifestação de um conflito psicológico que, se tratado
adequadamente, poderá auxiliá-la. A paciente deve entender que se agir enquanto tiver
dúvidas e ainda assim buscar uma interrupção precipitada, no futuro a culpa poderá trazer-lhe
danos maiores.

Verifico que, quando a paciente se tranqüiliza, a repercussão também é benéfica para a


equipe. O que quero salientar é que o psicólogo, na medida em que atende a paciente e realiza
a integração do seu trabalho junto à equipe, percebe que esta também tem benefícios.

A troca é mútua, pois o psicólogo, ao questionar as reações da equipe, também recebe apoio,
o que atenua a solidão de ter que lidar com uma tarefa tão difícil, que é o "lamento de alguém
frente a uma impossibi-lidade", às vezes até irreversível.

Mas a angústia não pára por aqui, pois existem outras situações que suscitam sentimentos de
impotência e de conflitos bioéticos de difícil solução.

Para melhor compreensão, citarei um caso de modo sintético: paciente com 22 anos, solteira,
auxiliar de enfermagem, com 20 se-manas de gestação e diagnóstico de um feto anencéfalo.
Recebeu acompanhamento psicológico desde o referido diagnóstico e tem-se revelado
bastante madura e equilibrada. Tem verbalizado que "está difícil tolerar" as 20 semanas
restantes, pois a barriga está crescendo e os movimentos do feto irão aumentar. Diz ser difícil
tolerar a idéia de que irá apegar-se a este bebê, que, ao nascer, irá morrer quase que
imediatamente. Diz que se soubesse que ele teria chances, mesmo que malformado, não se
importaria de levar a gravidez adiante. No entanto, a idéia de que está fazendo um "esforço
psíquico em vão torna tudo mais difícil". Diz que não irá "enlouquecer" se chegar aos nove
meses, mas que cada dia da gestação "é uma eternidade, um martírio."

São casos como este que me deixam em muitos momentos totalmente perplexa. Não tenho
dúvidas de que o aborto e uma interrupção precipitada trazem conseqüências maléficas para o
psiquismo da mulher e do casal. Porém, como ficar insensível diante de questio-namentos
como os da referida paciente?

O que é benefício? Será que ela não ficará com marcas maiores por empurrar com a própria
barriga essa gestação? Ou será que irá sentir-se melhor por ter feito tudo por esse feto, mesmo
que, para o ego, lhe tenha custado um esforço sobre-humano?

Não sei se tenho respostas, acredito, no entanto, que somente a paciente poderá "sinalizar" o
que é melhor para si, sem que, como assinalei no início, se fique desatento, não se espere
demais, nem se tomem decisões precipitadas, pois lidamos com o que é mais importante,
lidamos com a vida, lidamos com o feto que está em formação e lidamos com a família que
está gerando esse feto.

Acredito que as ciências médicas podem cada vez mais se beneficiar com os princípios da
Bioética, pois ela nos ajuda, sobremaneira, a conhecer, entender e respeitar o ser humano.

Maria Estelita Gil é psicóloga clínica; supervisora de estágio de


Psicologia Hospitalar na área materno-infantil – HSL-PUCRS; docente do
Instituto de Psicologia da PUCRS; mestre em Psicologia Clínica e
coordenadora do ESIPP (Estudos Integrados de Psicoterapia
Psicanalítica)

Você também pode gostar