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Literatura como testemunho da ditadura. A Ditadura militar brasileira em dois romances: Bernardo Kucinski e Urariano Mota [Ameméria cola 58 existe como ‘campo de forcas” deriva do embate das meméras ind ‘duals. Este um construe cheia de meandros @tenso, que comple a meréria colatva, com base nas nossas meméras inaviduas © de grupos e subgtupas socias. Os testemunnos, sobre quando se ‘va do testemunna de dramas sobs, como dtaduras, perseguigdes a minors ou mesmo catstotes natura, d-se nessa duplainser¢o, individual e coltva. A testomunha necessia curar suas feidas Psiqicase, para tatoo vabaho de elaboracotestemunhal 6 essencia. Ao testemunhar, el se rv ‘ula sosedade. Ao fazer 0 por um giupo, ela tanta deruncia as doves vvids caletvamente como, ro momento em que reafia sua pertenca& esse grupo, aida nessa re-castua do eu 20 mundo. NBO ‘existe testemunno sem uma escuta, sem uma acolhda. A sotiedade fem que estar abeta ao testemurhe {ano para altar na elanoragso dos traumas dessesincvidvos coma para redesenhar sua mem ‘que deve acoher também essas histgriasnviduas-cletivas que o tstemunto porta, Seo tester no deriva de uma vivéncia aumatea, ele est suimetda a uma ressincia ao testemunho tanto do ingviduo (que pode tomer reves seu passado taumsteo) come da sociedad, Sobretudo ro eas0 de sociedades pés-dtatonais, as plticas de reconcilagao, as quis, mutas vezes, so acompanhadas de fanstias como uma espécie de esquecimento deerelado afcalmente, geram uma resistencia ao reste Tmunho. Conta essas resistencias, aricula-se a necessiace ou mesmo imperatvo do testemurho: ele ‘0 caminna prvlegado das elaboracées ndvdual¢ coletva. Mas ele rio deve sero Unica caro, o's ele deve vir acompanhado da hestoriogafa, com uma revo critca da Histria, edo vabalho das Instiigdesjuridias. © testerunho, assim, deve galga ‘ambém seu espago ra esfera do ubunale no Tear Imitade as ates, aos vos de Historia cu as salas de consulios de psicotrania, Para o individu, resgata fates histrcos, como os ocorides no period da dtadura no Brasil Implica una usta histriea, ou sea, 0 reconecimonto da quebra das Insttuigbos, do uso gonerala do da orga eda voléncia como meta de impor o poder de uma faa da Sociedade, cvirmiltare seus aados no exteter, Sem essa passagem para a meméia coletva, para o Scuso da Histéia e sem a sign |itic com relago & quebra dos dietos humanos, esses indviduos feam roubados de sua cdadania, ‘de sua dgnidade e allendos de 5, da sua histria eda sua socedade. No plano coletvo, vale mesmo, ‘sociedad ea elidida da ura pate sgnfcava de seu passado, Cria-se um gusta aumitic, naa sa borado e falseado por uma mrad de falsas memdras, Essa denegagaa do passado impede o rabalho ‘deli pea dor e pelos mortos egera uma sociedade mais api, incanaz de ser sensvel para com as dores ¢ volencias que, mesmo depois do fim da tadura, a maior parcela de nossa populagd tem que suportar. uma sociedade sem moméria do ma, cabe fear condenada ao etculo internal e vicioso da repo da velne'a, © no cto voia $00 a forma da ago essa aga conv Sendo & mais bru possivel. Veja-se, por exempl,o caso dos povos anginaos no Bras. Na ctadura ¢ hoje, 0 Estado ta areas Tacs asta to Tans eos Pesos Tasconas na teat desereve un easo que fleau relaivamente conhecido no Brasil, ocortido em Resite no inicio de 1973, ‘8 que 01 baizado com 0 nome de "massacre da chécata Sdo Bono”, Na verdad, esse massacre NSO avonteceu nessa chécara, mas, sim, o delegado Fleury (que atuava no Departamento de Ordem Pottica € Social, DOPS) e sua equipe haviam antes rapa etortrado até a morte seis membros da Oposigso 8 tadura. es haviam sido denunciados pelo Cabo Anselmo (apeldo de José Anselmo dos Santos), lum agente duolo que se infivara na Oposie e fo responsive por mals de 200 mores, Naquele di, 7 de janeiro de 1973, a equipe de Fleury mortu uma farsa, colecando os sis cadaveres em uma casa do peeifleria de Recite eapresentando-os imprersa como um grupo de queries que havi sido assas: SSnado apbs tor resisido & vor de prisko. No Ivo de Urariano Mota, apersonagem cental, Soledad, 6 uma personagem ristrica: uma das seis viimas desse massacre. Soledad Barnet Viedma nascera no Paraguai e, ap6s exo no Urugual e em Cua, encontrava-se em Rese nessa ocasiae. Mota consti um eu-narrador fc, um posta simpatzae da causa dos quetiheros, que se apabona por Soledad & tem éaia de seu mario, Daniel, nade menos que 0 Cae Anselmo. Esse u-nevradorpossul fortes seme Thangas com o proprio autor, que, em mals de uma oeasiao,declarou que, de fat, cones alguns dos memos desse grupo de jovens assassinads de modo barbara em 1973. Oesde aquela ocass0, ele ‘quardou um vazie, Ua sensagio terivel de um crime monstruoso aeutado, que preisava ser reveiago ‘e narado. © impressionante nessa obra ¢ como ela se iia de um modo clazamente iéetiicavel como pertencente ao género romance histérco, mas, aos poucos, se estacela w assume o carter hiro de Tego, reportagem « homenager a Soledas. Ctagbes de documentos oficial, cépias de passagens de lives sobre a dadura no Basi fotos de Soledad, imagons de jomais da pecareprecuzindo as ment: ras ofciais sobre o massacre de Sio Gentoo um tom claamente testemunhal a vo, A fcgdo cade |Areportagem - ofiio de profes do de Urarano Mota, Tatase de um romance abortado, que abre m0 ‘ds eédigos do género,sucumbindo sob o peso da hstéra que nara e, sobretudo, do dao e deseo de vinganga de Daniel codinome de Cabo Anselmo -, que ndo apenas seurtara& Soledad, mas veo au >éllr no seu assassnato quardo ela portava um fo dees no vente. Essa violencia @ uma imagem que ‘representa tornam-se 0 umbigo #0 pontocego da naratva.Essa“imagem crua"(p.113),na express8o ‘do proprio Mota, ¢ apresenteds no Ivo com base em um testemunho da acvogada Mercia Albuquerque, ‘de 1996, dante da Secretaria de sustiga de Pernambuco, que vra os eadaveres do massacre 23 anos antes. 0 autor eta 8s comaventes palavias de Mercia! ke tomelconhecimerto de que sos corposestavay no recroto[.] om um bar esava Soledad Baer Vena. Ela esa desi, na mato argue as ora, res paras. NO ‘undo do bar se encorrava também ufo [| Soledacetava cm os Ofos rte abe fos, com umm exoreseaa mit grande de Tero, [| aie hororzada, Com Soea9 ‘esavaom p, com os traces lado do cope, eu el aminhaanaquae ologue ne pascog> ‘ein OTA, 2009, 5200, Eo narrador comenta esse impressionantetestemunho: “0 seu relato& como um fagrante des: montdvel, 6a more para vida. E como o instante de um hi, & que padéssemos retraceder imagem or imagem, w com o relome de cadveres a pessoas, relomdéssemos clara de Sorento" (MOTA, £2008, p. 110) Mota reaza om sou vo justamento esse movimento de passar of dots para tonto, ‘dedando Soledad viver ainda uma vez e seu nartador viver a paixdo por ela. Seu trabalho de meméria. ‘Sie it hava a, wl 7 Ion Cte sia Tarpon Abe ata oma poeta apaxonada pela Tropica, movimento que, como sabernos, desde o ino, eve sua reserva Crtica com rela & ta armada. Desse modo, o autor cia um ooservador de segunda orem, que pode deserever os fatos acordos em Recte no fms 1972 Mota escreve a noe conta o espaco pés-hstrico. O passado é imagem, sem densidade tem poral e sem vialdade, mas Mota quer vansformar em carne. Sua narrava, que tera fap renascer Soledad dentro de um romance, acaba, no entamo, por Gesconstulr esse gener, ansbordndo para lum dscursetestemunhal em primera pessoa. Na era dos testemunhos,corelata& era das catasttes, ‘romance, apesar de toda sua incrvel plastcidade, ¢redimensionado pela necessidade de inser do ‘rata, No por acaso, o romance abre-se com a afrmatva tpiea do testemunno [uralen: Eu ut (MOTA, 2008, 19), Trafa-se, no enanto, mals de um eu vv", ou sala eu sobrevi quela paca dos anos de chumba # quero atesar. A aestagao da sabrevvéncia. ou sea, a atest factogréica, eagarga 0 96 nero remance. desvo pela ego, que, como Linas persava, pode ser uma garanta de verdade e, portant, no necessariamente seria avesso ao tetemunho ~ come ene ottas, as obras de Jorge Sem prune Zw Koltz ocomprovam - parece nBo ser sufcientemente slo para aproposta de Mota. Ele di tim passo para fora e faz questo de usar seu incicador ndax, ara debar clara que devemos tata a histra de Soledad coma stra com ‘ maidscua, Ele acumlaprovas: document efotogratias, Sua fescita da dor exige nomear os assassinos, dar as datas local, exge usta As pusBes de arquiar, de arestar, de denunciare de comprovaracabam por se sobreper ao gesta de escrever uma fcqdohistérica © otavocaptul abre-se com um subtle que romp o huxo da narativa e faz sucumbir uso a entdo constuids ‘Daniel, als, Jonas, ait, Jonas, als, Cabo Anselmo” (MOTA, 2009, . 62) Com essas palavas, Mota pe um pé para ora do romance, cu ainda, seu romance tansforma-se em relator. Vale lembrar que, nesse mesmo capitulo, lemos uma interessante elagdo que 6 estabelact da ence a iteratura eo papel de espido exercido pelo Cabo Anseime: 2 pia eahonestdace me cia ze esa asap e dr tase tem potas er temssics em forma se mente 7 forma de verde, ou deren isd (MOTA, 2008.6). Essa osclagdo, ao daterminar 0 que seta a verosimihanga do esctor—"em forma de mantra, fem forma de verdad” -,talvez esteiana base de uma opgée, tale nia to consciene, pelo quase abandono da “montra’ do esertore pela passagem para os arguvos, com tetemunhes, documentos, fotese lites etados, come o caso do volume Direite & memeriae & verdade, publeado pela Comiss80 Especial sobre Mortos @ Desaparecidos Poicas da Secretaria Especial dos Dietos Humanos da P ssdénca da Repiblica, de onde Mota retra as bografias de Pauline Reichstul, Eudalo Gomes da Siva, Evaldo Luz Ferreira de Souza ede José Manuel da Siva (NOTA, 2008, p. 103), companhirs de ta ce Soledad # qualmente assassinados naquela ocasi, O Uline eapituo, 013%, acaba por assum a uso completa, ou metamorfose, do naar fis em dre, o ao rarrador-autr do egisto da egoescra a lotestemunal, Mola lembra que, quando langou Seu primeiro romance, Os coragées futurists, também

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