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Navigator 11 A Tomada de Caiena vista pelo lado francês

A Tomada de Caiena vista do lado


francês
Ciro Flamarion Cardoso
Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1965) e doutorado em História
- Université de Paris X, Nanterre (1971). Atualmente é professor titular da Universidade Federal Fluminense.

RESUMO ABSTRACT

O presente artigo busca analisar a tomada de This paper analyzes the decision of conquering
Caiena, a partir do ponto de vista francês. A Caiena, as seen from a French point of view.
campanha de 1808-1809, que culminou na to- The 1808-1809 campaign culminated in the tak-
mada de Caiena, ao qual se seguiram mais ing of Cayenne, followed by eight years of Por-
de oito anos de administração luso-paraense tuguese administration in French Guiana. In the
da Guiana Francesa, foi inicialmente, na per- early opinion of Victor Hugues, this was only an
cepção de Victor Hugues, uma expedição expedition to establish boundaries. However,
para o estabelecimento de fronteiras. Entre- the presence of Britain showed that the setting
tanto, a presença dos britânicos demons- of borders was not the only goal. The attack on
trou que a fixação de fronteiras não era o Cayenne with British support was the only pos-
único objetivo. O ataque a Caiena, com o sible gesture by Regent Prince João after de-
apoio britânico, foi o gesto possível dos lu- claring war on France.
so-brasileiros após a declaração de guerra
à França, em 1º de maio de 1808, no Rio de KEYWORDS: Military History, Cayenne, Mili-
Janeiro, pelo Príncipe Regente Dom João. tary Campaign of 1808-1809

PALAVRAS-CHAVE: História Militar, Caiena,


Campanha Militar de 1808-1809

INTRODUÇÃO

A campanha de 1808-1809 culminou na tomada de Caiena, a que se seguiram mais de


oito anos de administração luso-paraense da Guiana Francesa. Apesar de, à primeira vista,
parecer insignificante como conflito e como feito de armas − no máximo caracterizaram-na
algumas escaramuças pouco sangrentas que envolveram um número reduzido de combaten-
tes −, parece mais razoável avaliar um episódio como o que nos ocupa em contexto e, não, por
meio de considerações abstratas. Para os recursos paraenses da época, a expedição militar
representou um esforço de considerável magnitude e grande dificuldade; uma dificuldade
que se estendeu, posteriormente, à própria ocupação da colônia, vencida, do lado português,
por tropas paraenses majoritariamente indígenas cuja vontade era, o tempo todo, a volta ao
Pará. Outrossim, o episódio da tomada de Caiena é relevante, no âmbito da História Militar,
por diversas razões:
(1) por ilustrar, em forma das mais interessantes, a incidência nos fatos militares em
andamento, ou quando da capitulação, de fatores extramilitares, sobretudo os interesses

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pessoais e as manipulações do comissário AS FONTES


Victor Hugues, administrador da Guiana
(1800-1809) − cujo governo local foi cha- A documentação com que se conta para
mado pomposamente de “proconsulado” estudar o episódio de 1808-1809 do lado fran-
pelo historiador guianense Jean-Pierre Ho cês compreende, em especial, numerosos
Choung Ten, termo que, pelo menos, reflete documentos disponíveis em três códices que
bem a empáfia e o viés autoritário desse ad- consultei há muitos anos em Paris nos Archi-
ministrador colonial francês; ves Nationales, mas são atualmente conser-
(2) pelo emprego de combatentes escra- vados nos Archives d’Outre-Mer (AOM): série
vos por ambas as partes em conflito, em cir- C14, volumes 85 a 87. Trata-se de uma docu-
cunstâncias e com efetividade, no entanto, mentação diversificada, atinente à Guiana
bastante diferentes em cada caso; Francesa, que inclui: documentos adminis-
(3) pelo que se pode depreender da con- trativos; papéis especificamente militares;
fluência de interesses no fundo bastante material privado reunido pelas autoridades,
diferentes na aliança dos luso-paraenses etc. Outrossim, existem documentos conser-
com os britânicos na expedição militar: vados em arquivos militares franceses, rela-
ambos os participantes da aliança coin- tivos ao inquérito e ao conselho de guerra
cidiam, porém, em ter grande pressa em realizados para apurar e julgar a responsabi-
concluir as operações militares e obter a lidade de Victor Hugues na derrota de 1809
capitulação (pressa que acabou servindo (sendo o acusado inocentado pela sentença
aos interesses de Victor Hugues), embora de 10 de julho de 1810). Também relevantes
por razões diferentes: do lado português, são as fontes publicadas por Carra de Vaux
mais de cem soldados estavam doentes, em: Documents sur la perte et la rétrocession
com malária, havendo urgência em pode- de la Guyane, no tomo 174 (1913) da Revue
rem ser tratados no hospital de Caiena; e o Française d’Histoire d’Outre-Mer.
comandante inglês James Lucas Yeo que-
ria, no menor prazo possível, deixar Caiena GUIANA FRANCESA E PARÁ
e transformar em dinheiro vivo sua impor-
tante presa de guerra; Tanto a Guiana Francesa quanto o Pará
(4) por terem sido as instruções do go- eram áreas periféricas nos respectivos
vernador do Pará ao comandante Manuel Impérios coloniais. Tinham em comum
Marques transmitidas em duas ocasiões o clima equatorial, a forte pluviosidade, a
diferentes, estabelecendo a cada vez ob- cobertura majoritariamente florestal, a im-
jetivos militares também muito diferen- portância dos rios para a colonização e, em
tes; depois de chegar ao Rio Oiapoque é termos gerais, um meio ambiente que opu-
que Marques foi informado de que a ex- nha grandes dificuldades ao povoamento e
pedição já não se destinava unicamente a à economia coloniais, em um contexto de
confirmar a fronteira efetiva naquele rio, escassez de capitais.
mas sim, que deveria tomar Caiena: tam- Certa vez o grande historiador Fernand
bém o comissário Victor Hugues, a que Braudel, numa ocasião quando, a seu con-
Marques comunicara somente a primeira vite, eu lhe expunha, em 1969, minha pesqui-
versão de seus objetivos − a fronteira do sa então em curso sobre a Guiana Francesa
Oiapoque −, demorou a perceber que a no século XVIII, orientada pelo Prof. Frédéric
própria colônia francesa e sua capital es- Mauro, resumiu os dados que eu lhe apre-
tariam sob ataque. A demora em o perce- sentava na frase seguinte: “Então, a Guiana
ber teve consequências de peso, do lado era outra das Antilhas”. Esta fórmula sintéti-
francês, no tocante aos preparativos mili- ca era adequada: apesar de estar a colônia si-
tares para a defesa. tuada em terras continentais da América do
Nossa finalidade precípua, nesta ocasião, Sul, a colonização francesa da Guiana jamais
será o exame desse episódio militar do ponto ultrapassou, até 1808, uma região costeira
de vista da própria Guiana Francesa e de seu plana de cerca de 5.200 km2 (a Guiana Fran-
administrador derrotado, Victor Hugues. cesa tem, atualmente, cerca de 90.000 km2).

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Em 1809, sua irradiação sobre a região cos- francesa, como propriedade estatal que era,
teira atlântica do Contestado luso-francês, a fazenda acabou por cair, afinal de contas,
atual Amapá, era insignificante; também o sob o controle de Luís XVIII). Note-se que,
era, diga-se de passagem, a presença luso- com exceção de Macouria, toda a planície
brasileira na mesma região. A densa floresta costeira da colônia a noroeste da capital
e as cachoeiras que cortavam em direção ao apresentava unicamente atividades pecuá-
interior o curso navegável dos rios faziam efe- rias e agricultura de víveres, destinadas ao
tivamente funcionar essa planície setentrional mercado interno.
como uma espécie de ilha. O Grão-Pará, só em 1808 integrado admi-
Em comparação com as Antilhas Fran- nistrativamente ao conjunto brasileiro, era
cesas, a Guiana apresentava um quadro in- uma região colonial de grande extensão ge-
dubitável de pobreza e subdesenvolvimento, ográfica − mesmo se considerarmos só as
em termos do que se podia esperar de uma terras mais próximas ao Amazonas e seus
colônia escravista de plantation bem-sucedi- afluentes, as únicas integradas de verdade
da. Sua diversidade de produções e exporta- à colonização − mas muito limitada em po-
ções − muito raramente o açúcar, com maior pulação e recursos. O censo de 1801 indica-
frequência o urucum, o algodão, o cacau, o va, para a Comarca do Pará, uma população
café, as especiarias (estas, a partir das últi- total de 80 mil habitantes, predominando
mas décadas do século XVIII), o anil − indica- os índios; essa população achava-se maci-
va a pobreza dos recursos disponíveis, numa çamente concentrada na parte oriental da
época em que, nas possessões francesas, o Comarca. A cidade de Belém tinha então
açúcar era considerado, dentre as produções 12.500 habitantes (cerca da metade dessa
dependentes da mão de obra escrava, a de população era considerada branca, sendo
maior prestígio. É verdade que, com a perda seus demais componentes, por ordem de
de Saint-Domingue (Haiti), a importância re- grandeza, escravos negros e pessoas de cor
lativa da Guiana aumentara no Império fran- livres − índios, negros e mestiços).
cês. As guerras da Revolução e do período de Desde as reformas introduzidas em mea-
Napoleão haviam também aberto a oportuni- dos do século XVIII pelo irmão de Pombal, o
dade para atividades lucrativas de corsários Governador Francisco Xavier de Mendonça
baseados em Caiena, uma iniciativa forte- Furtado (1751-1759), as estruturas econômi-
mente apoiada pelo comissário dos cônsules co-sociais da Comarca do Pará, antes base-
e depois do imperador, Victor Hugues, que adas principalmente no uso da mão de obra
dela auferiu, ao que se dizia, fortes ganhos. constituída pelos índios das missões para a
Os parcos recursos agrários estavam, extração das “drogas do sertão” − que podia
em 1808, fortemente concentrados na assim ser muito lucrativa e exigia poucos capitais
chamada Ilha de Caiena e seus arredores −, atividade já em declínio por volta de 1750,
imediatos: 2/3 da população − que não che- passaram a uma outra organização em que
gava a 15 mil habitantes −, a maioria abso- o setor dominante seria representado, do-
luta dos 12.355 escravos existentes em toda ravante, por fazendas de certa importância
a colônia e quase 60% das propriedades ru- voltadas para a produção tropical de expor-
rais com mais de dez escravos situavam-se tação − o Pará exportava cacau, algodão, ar-
nos “quartiers” (divisões administrativas) de roz, café − ou para a pecuária destinada ao
Caiena, Roura e Macouria. Em Roura fica- consumo local, havendo ao seu lado um vas-
va a mais valiosa das fazendas,La Gabrielle, to setor econômico subsidiário e heteróclito
cujas terras eram excepcionalmente férteis de base camponesa exercido por pequenos
e que era o centro da produção de especia- proprietários e posseiros brancos, mestiços
rias; tal fazenda, pertencente ao governo, ou índios, além da lavoura dos escravosne-
foi reivindicada aos portugueses como pro- gros em seu tempo livre em parcelas cujo
priedade pessoal sua pelo futuro Luís XVIII, usufruto lhes era concedido nas fazendas.
sem sucesso imediato (de certo modo, ao A produção desse setor subsidiário, onde de
ser devolvida a Guiana à França em novem- fato se achava a maior parte dos trabalha-
bro de 1817, portanto já sob a Restauração dores, estava voltada para a autossubsistên-

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cia e o mercado interno. O escoamento dos portante: a aplicação da recomendação do


produtos dependia em boa parte dos pou- Governador do Pará, José Narciso de Maga-
cos possuidores de barcos relativamente lhães Menezes, de libertar, armar e treinar os
grandes, já que a navegação no Amazonas escravos negros guianenses que aderissem
e seus afluentes era a única forma de trans- à invasão luso-inglesa.Os dados disponíveis
porte. A escravidão negra avançara nas indicam grande relutância do comandante,
unidades agrícolas maiores, mas sabe-se Tenente-Coronel Manuel Marques, e dos ou-
que, em sua maioria absoluta, os escravos tros oficiais luso-paraenses em cumprir tal
introduzidos pela Companhia de comércio diretiva, assustadora para as pessoas livres
pombalina (Companhia Geral do Grão-Pará que residiam em áreas coloniais, sobretudo
e Maranhão, que funcionou entre 1756 e após o precedente do Haiti. Foram os ingle-
1778) na Comarca do Pará foram reexporta- ses que arregimentaram militarmente, na
dos para as regiões de mineração do Brasil: Guiana Francesa, muitos escravos negros,
faltavam capitais e poucos dos fazendeiros armando-os (com armas brancas somen-
locais podiam comprar escravos africanos. te) e dando-lhes algum treinamento. Dois
A mão de obra continuava a ser em boa par- franceses capturados informaram que, no
te constituída por índios, teoricamente livres Navio Confiance, comandado por James
mas, de fato, submetidos a formas variadas Lucas Yeo, os ex-escravos saudavam uma
de coação. As antigas missões religiosas, bandeira própria, decorada com a represen-
transformadas em “vilas” ou “lugares”, de- tação da cabeça de um negro e com a frase
sapareceram ou perderam o seu caráter in- “Liberdade para os negros”. Uma curta mas
dígena exclusivo em função da exploração eficiente atividade de espionagem − rea-
desenfreada dos índios ali residentes. lizada em Caiena, em agosto de 1808, por
A pobreza era a tônica da Comarca do dois oficiais portugueses do forte de Maca-
Pará no início do século XIX. As exportações pá, Tenente Valério José Gonçalves e Aspi-
da região paraense representavam, em 1796, rante Florentino José da Costa, disfarçados
só pouco mais de 4% do comércio exportador de pescadores e acompanhados de índios
dos portos da América portuguesa com a me- remeiros − precedera a expedição militar.
trópole; a análise de Roberto Santos aponta Mesmo assim, os ex-escravos recrutados
para um crescimento das exportações paraen- foram essenciais no sentido de informar e
ses (e, mais em geral, da economia regional) guiar os luso-britânicos. Além do mais, ata-
até 1805, seguindo-se uma fase de declínio. caram, pilharam e incendiaram cerca de 30
Por sua vez, José Jobson Arruda enxerga uma fazendas, fator invocado por Victor Hugues
tendência à estagnação do comércio exterior para justificar a capitulação. Note-se que
paraense no período 1796-1811. Refletindo a não há notícia de terem matado quaisquer
pobreza local, os recursos − incluindo os efe- pessoas quando dos ataques e pilhagens de
tivos militares − sob controle do Governo de propriedades rurais.
Belém eram limitados. Um bom exemplo tem A Ilha de Caiena, onde se situava a capi-
a ver com a expedição à Guiana Francesa: os tal de mesmo nome, não era uma verdadeira
uniformes das tropas luso-paraenses não fo- ilha mas, sim, um teritório delimitado ao Nor-
ram confeccionados pelo governo mas, sim, te pelo Oceano Atlântico, a Leste pelo con-
pelas damas de Belém, suas filhas e suas es- junto fluvial navegável Comté-Orapu-Mahury,
cravas, a pedido do Governador José Narciso a Oeste pelos Rios menores Caiena e Montsi-
de Magalhães Menezes. néry (cujo estuário forma a baía e o porto de
Caiena), ao Sul por um canal artificial (Crique
A CAMPANHA MILITAR DE 1808-1809 Fouillée) e pelo pequeno Rio Tour de l’Île.
EXAMINADA DO LADO FRANCÊS Barcos de guerra de grande calado arma-
dos de canhões não poderiam atacar do lado
Não abordaremos aqui as escaramuças do mar a cidade devido à presença de uma
ocorridas, nas regiões dos Rios Oiapoque e artilharia costeira mantida em bom estado e,
Aprouague, antes do ataque à capital, Caie- principalmente, à falta de profundidade das
na, a não ser para assinalar um dado im- águas marítimas locais (uma consequência

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dos aluviões depositados pela corrente oriun- raenses, em 23 de dezembro), situado entre
da da foz do Rio Amazonas), que não permiti- o Oiapoque e Caiena, Hugues percebeu não
ria − a não ser quando das marés mais altas, ser o estabelecimento da fronteira o único
de rara incidência − uma aproximação sufi- objetivo da expedição; foi também nessa oca-
ciente dos navios para bombardear a cidade, sião que soube da presença de britânicos em
além de que também dificultaria qualquer tal expedição. Só então deu início a medidas
tentativa de desembarque. Caiena seria vul- destinadas à defesa de Caiena.
nerável sobretudo a uma expedição que, na- De acordo com os dados já indicados,
vegando no Mahury em direção ao sul, atra- seria preciso fortificar com guarnições do-
vessasse depois em pirogas a Crique Fouillée tadas de canhões a entrada do Mahury e o
e/ou o Tour de l’Île, chegando então à parte curso desse rio até o canal da Crique Fou-
meridional da cidade, desprovida de fortifica- illée. Foram estas as disposições tomadas
ções: as muralhas de Caiena desse lado, já pelo comissário Hugues, apressadamente,
praticamente arruinadas, haviam sido derru- além de convocar os militares reformados e
badas por ordem de Victor Hugues. Daí que a as milícias brancas e negras da colônia para
presença, na frota luso-paraense, de barcos reforçar seus efetivos militares minguados −
de baixo calado, capazes de navegar no Rio cujo núcleo de profissionais era o que resta-
Mahury, mas dotados de canhões, tenha sido va do batalhão da Alsácia, chegado a Caiena
o fator mais importante na tomada de Caie- em 1792, mais reforços recebidos em 1800 e
na; não por acaso, o comando das operações 1808. Arregimentou, também, certo núme-
terrestres foi confiado a Manuel Marques, um ro de negros escravos da Guiana Francesa,
artilheiro, sendo do britânico Yeo o comando denominando-os “pioneiros”, encarregados
das operações navais. O barco britânico Con- principalmente da fortificação do Mahury; ao
fiance, com seus 22 canhões, não teve maior contrário dos luso-britânicos, não alforriou,
papel na tomada da cidade, a não ser impe- porém, os recrutados. Hugues decidiu ain-
dindo o eventual desembarque de reforços da enviar à França, com uma solicitação de
por um barco francês que chegou quando já reforços, o Navio Joséphine, carregado com
se cumpriam os passos previstos na capitu- gêneros coloniais (em parte de propriedade
lação para a entrega de Caiena aos portugue- do comissário). As providências de defesa es-
ses. As tropas britânicas e luso-paraenses, tavam mais ou menos concluídas em 28 de
no ataque à capital da Guiana Francesa, de- dezembro. O barco partiu para a França dois
veriam ser embarcadas em barcos menores dias depois.
(vindos do Pará ou tomados aos guianenses) No tocante à defesa do Mahury, o gover-
para a navegação e combates no Mahury, nador estabelecera fortificações improvisa-
respondendo ao fogo das baterias ribeirinhas das e guarnições dotadas de artilharia de
francesas, e o posterior desembarque com a calibres variados em três pontos da margem
finalidade de atacar a cidade pelo sul. esquerda do rio: Diamant, Degras de Cannes
Do Oiapoque, Manuel Marques, utilizan- e Trio. Diante da guarnição de Trio colocou
do índios da região como estafetas, enviara a outra guarnição com canhões, destinada
Victor Hugues um comunicado em cujo texto a proteger a entrada do canal artificial de
a expedição era apresentada como estando Torcy (que unia o Mahury ao Kaw, afluente
destinada unicamente a estabelecer uma do Aprouague), que ele mesmo mandara
fronteira definitiva naquele rio. O comissário escavar alguns anos antes, ao longo do qual
a recebeu em 12 de dezembro de 1808, em- havia diversas propriedades rurais, incluin-
bora já soubesse da presença dos luso-bri- do a sua própria; também esperava desse
tânicos diante do Oiapoque por informação modo, com fogo cruzado dessa guarnição
do capitão de um barco francês, o Joséphine, em conjunto com a de Trio, impedir o avanço
que fora apresado mas conseguira escapar à e posterior desembarque dos inimigos pela
noite dos inimigos, recebida uns dias antes Crique Fouillée. O melhor e mais experiente
(talvez em 5 de dezembro). Só quando infor- oficial das guarnições, o capitão Charlemont,
mado do avanço inimigo até o Rio Aproua- à frente de 20 soldados, foi designado pelo
gue (que ocorreu, quanto às tropas luso-pa- comissário para o ponto fortificado situado

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à margem direita do rio, para proteção das homens), os que chegaram até Caiena eram
propriedades rurais do Canal de Torcy, fato cerca de 800 − 80 dos quais ingleses. Mais
pelo qual Hugues seria depois criticado de cem homens, porém, em especial índios
quando do inquérito a respeito da derrota, do Pará, estavam doentes de malária e inca-
tendo sido considerado uma providência em pacitados de combater: em 5 de fevereiro de
seu próprio proveito, destinada a resguardar 1809, menos de um mês após a capitulação,
a sua propriedade privada Quartier Général a cifra relativa a luso-paraenses internados
(que, no entanto, foi saqueada e queimada). A no hospital de Caiena era alta (159).
comissão de inquérito encarregada de apurar As tropas aliadas deixaram por mar o
a responsabilidade de Hugues na derrota de Aprouague para dirigir-se a Caiena em 6 de
janeiro de 1809 considerou “insuficientes” as janeiro de 1808. Ao fazê-lo, já haviam sido
guarnições do Mahury e sua artilharia, orga- postos a bordo de barcos leves, mas providos
nizadas segundo as instruções do comissário. de artilharia, os 250 homens que deveriam
Não se sabe ao certo com que efetivos desembarcar após o avanço pelo Rio Mahury
contava o governador. Ele alegou, mais tarde, (o desembarque, ao ocorrer, sob o comando
que uma parte das tropas mencionadas por de Yeo, utilizou dez pirogas e durou várias ho-
seus inimigos no inquérito destinado a apu- ras). Os barcos maiores ficaram ancorados
rar as razões da derrota e a responsabilidade, relativamente longe de Caiena, perto da Ilha
nela, do comissário, ao pretenderem que ele La Mère, e não tiveram a ver diretamente com
capitulara apesar de comandar mais solda- o ataque à cidade, que aconteceu, como era
dos do que os invasores − o que não parece esperado, pelo sul. A tomada dos pontos for-
ser verdadeiro − estava longe de Caiena na tificados franceses ao longo do Mahury de-
ocasião. O número de escravos negros arre- pendeu, militarmente, em especial da ação
gimentados dos dois lados é impossível de dos fuzileiros embarcados em barcos capa-
computar; ao que parece, embora Hugues zes de navegar no rio. Foi facilitada por deci-
pretendesse convocar 500, não conseguiu sões erradas de Victor Hugues, que em mais
mais do que 200 “pioneiros”, como os cha- de uma ocasião atrasou sem motivos válidos
mou, que desertaram em sua maioria duran- os ataques franceses. Hugues não era um
te as operações militares (um dos desertores militar, mas tivera experiência de combate na
tornou-se o líder principal dos escravos liber- ilha antilhana de Guadeloupe, que governara
tados e armados pelos invasores). Do lado antes da Guiana; e, na própria Guiana, dirigi-
luso-britânico, os escravos alforriados e ar- ra a luta contra quilombolas quando do res-
mados foram ao que parece mais numerosos tabelecimento da escravidão, em 1804. Uma
e sua ação, bem mais importante; eram co- das consequências das procrastinações do
mandados por um chefe chamado Apollon, comissário francês foi que as tropas mais
assessorado por outro líder, Cidalie. Nas profissionais e experimentadas de Caiena
guarnições do Mahury, Hugues decidiu mes- não chegaram a intervir nos combates. Seus
clar as diferentes modalidades de homens ar- adversários franceses alegaram que, quan-
mados de que dispunha. Caso consideremos do dos afrontamentos de 7 a 9 de janeiro de
todos os tipos de combatentes, se somarmos 1809, deixara de atacar a tempo, com tropas
as tropas deixadas na capital e as destinadas sob seu comando vindas de Caiena e esta-
às guarnições do Mahury, Hugues contava cionadas em posições intermediárias entre
na Ilha de Caiena para opor-se à expedição o Mahury e a capital. Deveria ter ordenado
luso-britânica, segundo suas próprias ale- o ataque enquanto o desembarque inimigo
gações, com 338 homens capazes de lutar estava ainda em curso, uma vez vencidas as
(dos quais 206 brancos, entre metropolitanos guarnições fluviais, mas só o fizera quando
e coloniais, e 132 soldados negros), se bem todas as tropas adversárias já haviam desem-
que o cômputo oficial dos efetivos militares barcado. É interessante notar que, nos despa-
da colônia mencionasse, no início de janeiro chos de Yeo, as perdas luso-paraenses quan-
de 1809, 511 homens (dos quais 368 bran- do das escaramuças ao longo do Mahury
cos). Do lado dos invasores, se descontar- foram sistematicamente minimizadas. Foi a
mos a guarnição deixada no Aprouague (72 partir de 10 de janeiro que ocorreram, nos

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“quartiers” de Caiena e Roura, os ataques a enorme sucesso ao conseguir ver assinado


fazendas e seu incêndio pelas tropas negras pelos vencedores um tal texto. Este êxito se
de ex-escravos arregimentados pelos invaso- explica, pelo menos em parte, pela pressa
res, que trataram de sublevar os demais cati- que tinham Marques − desejoso de alimentar
vos que trabalhavam nas plantations. Quanto suas tropas, cujos víveres já escasseavam, e
ao ataque à fazenda pertencente a Victor Hu- de internar no hospital de Caiena numerosos
gues e seu saque, ocorridos uns dias antes, doentes − e Yeo − que queria partir o mais
foram de iniciativa de Yeo, que recolheu ali cedo possível de Caiena para negociar sua
um butim considerável. Em sua capitulação, considerável presa de guerra (que incluía di-
Victor Hugues alegaria ter-se rendido devido versas embarcações tomadas ao inimigo) −
a tais ataques, com a resultante destruição em concluir as atividades militares.
de propriedades e, não, propriamente, ao as- Como já se disse, Hugues, bem no início
salto das tropas luso-britânicas − o que era do texto da capitulação que propôs, afirmava
falso, mas destinava-se a justificá-lo perante render-se, não tanto à força das armas mas,
as autoridades francesas metropolitanas; ele sim, após asssitir à queima de várias fazen-
intuíra, com razão, que um inquérito e talvez das, “ao sistema destruidor de libertar todos
um julgamento o esperavam na França. os escravos que se colocassem do lado ini-
Em 10 de janeiro de 1809, pela manhã, o migo, e incendiar todas as fazendas e pos-
comissário retornara a Caiena com as tropas tos onde houvesse resistência”. Entretanto,
de que ainda dispunha, tendo perdido toda o expediente de alforriar e armar escravos,
a artilharia disposta à margem esquerda do que constava das instruções do governador
Mahury e na extremidade oeste do Canal de do Pará a Marques, tinha um precedente na
Torcy. Hugues, secretamente, incitou alguns guerra de independência dos Estados Unidos
dos colonos presentes na capital a lhe dirigi- da América, durante a qual ambas as partes
rem uma petição pressionando-o a capitular. em conflito o usaram.
Foi acusado de negociar a capitulação quan- Eis aqui os principais pontos do docu-
do ainda poderia ter combatido em defesa mento cuja aceitação pelos comandantes
da cidade, à espera dos reforços que pedira, das tropas invasoras − levando-se em con-
embora provavelmente sem possibilidades ta a situação militar − parece mais surpre-
verdadeiras de sucesso (isto é, a continua- endente (o documento foi assinado em três
ção da resistência seria o que os franceses versões, em francês, português e inglês, que
chamam de baroud d’honneur). Reforços vin- apresentam pequenas variações; traduzo da
dos da França chegaram no Barco Topaze, versão francesa):
sem desembarcar, em 13 de janeiro, quando (1) no preâmbulo da capitulação, Napo-
a cidade já se preparava a ser passada aos leão é mencionado como “Imperador e Rei”,
vencedores, na véspera da entrega da colô- coisa impensável tanto para o Governo inglês
nia aos portugueses segundo os termos da quanto para o português ora sediado no Rio
capitulação, que começara a ser negociada de Janeiro, já que reconhece seus títulos e
em 11 de janeiro de 1809 e fora assinada no sua autoridade como legítimos, pelo simples
dia seguinte; a intervenção dos maiores bar- fato de afirmá-los em documento público
cos de guerra luso-britânicos, ancorados per- asssinado por Marques e Yeo;
to de Caiena, provavelmente teria frustrado, (2) no mesmo preâmbulo, a libertação
de qualquer maneira, o desembarque. dos escravos arregimentados pelos invaso-
Alguns artigos do documento de capitula- res vitoriosos e o ataque a fazendas segui-
ção, proposto por Victor Hugues e aceito por do de seu saque e incêndio, atos anterior-
Marques e Yeo, são deveras surpreendentes. mente caracterizados no texto como um
Certos pontos enfureceriam, no Pará, o Gover- “sistema destruidor”, são, com todas as
nador Narciso de Magalhães Menezes − que, letras, atribuídos às “ordens de Sua Alteza
no entanto, não instruíra Marques, totalmente Real o Príncipe Regente” João (quando, na
inexperiente em assuntos assim, sobre como verdade, as instruções nesse sentido que
proceder − e, no Rio de Janeiro, as autorida- chegaram a Marques emanaram unica-
des portuguesas. No conjunto, Hugues teve mente do governador do Pará): este ponto

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causou grande mal-estar ao ser conhecido Guadeloupe, quando havia desenterrado,


no Rio de Janeiro; enforcado e incinerado o corpo do General
(3) ainda no preâmbulo, Marques diz Dundas), foram denunciadas por adversários
entregar a colônia “às forças de Sua Alteza seus − colonos e militares −, bem como mui-
Real o Príncipe Regente”, fingindo conside- tos exemplos do que se alegava fossem suas
rar o comandante britânico Yeo como um ações corruptas, desonestas e em proveito
oficial inglês sob a autoridade do Príncipe próprio, cometidas segundo o que se alega-
Regente João; va durante seu governo na Guiana Francesa,
(4) o artigo 6 prevê a deportação dos es- quando do inquérito e do conselho de guer-
cravos arregimentados e libertados pelos lu- ra a que foi submetido (tendo sido, também,
so-britânicos, alegando que, se permaneces- brevemente preso logo antes do conselho
sem na Guiana, “só poderiam ser um fator de de guerra). Foi acusado, ainda, de ter leva-
perturbação e dissensão” − estranha impo- do consigo, quando partiu de Caiena para a
sição de parte de um governador derrotado!; França, um cofre contendo dinheiro público
(5) o artigo 11 estabelece que “as leis civis da Caixa dos Inválidos e seus ganhos ilícitos
conhecidas na França sob o nome de Código como governador, incluindo os que auferiu
Napoleão serão seguidas e executadas” na da atividade dos corsários. Note-se no entan-
Guiana até a paz entre a França e Portugal, to que, mesmo sendo plausíveis pelo menos
agregando que “os Magistrados não poderão algumas das acusações feitas ao governador
se pronunciar a respeito dos interesses dos derrotado, não foram apoiadas em provas
particulares, no tocante às discussões a eles convincentes; como já se mencionou, o ex-
relativas, a não ser em virtude das menciona- comissário foi absolvido.
das leis” (isto é, do Código Napoleônico);
(6) o artigo 14 estabelece, como ponto A GUIANA SOB ADMINISTRAÇÃO LUSO-
específico, a preservação da fazenda na- -PARAENSE (1809-1817): UMA AVALIAÇÃO
cional La Gabrielle, centro da produção de
especiarias na Guiana Francesa: os futuros Manuel Marques foi promovido a gene-
administradores que agissem em Caiena por ral e nomeado governador interino da Guia-
ordem do príncipe regente português teriam na Francesa ora sob administração luso-
a obrigação de mantê-la no estado em que paraense, cargo que exerceu até outubro
se encontrava (fica implícito: até a Guiana de 1809. Pediu então exoneração por motivo
ser devolvida à França): bizarra limitação, no de saúde, indo de volta ao Pará por algum
relativo aos recursos da colônia, imposta aos tempo. Voltou a ser governador da Guiana
vencedores pelo comissário derrotado; e de fevereiro de 1812 até novembro de 1817,
(7) o artigo 15 estabelece que todos os pa- quando a colônia foi devolvida à França, des-
péis oficiais e atinentes à contabilidade públi- ta feita limitando-se aos assuntos militares.
ca presentes na colônia seriam depositados No período de sua ausência de Caiena, foi
sob controle cartorário, lacrados e conserva- substituído no governo pelo Coronel Pedro
dos à disposição “de sua Majestade Imperial e Alexandrino Pinto de Souza, um cartógrafo
Real”, ou seja, de Napoleão! Com este disposi- de talento, septuagenário e sem experiência
tivo, achavam os inimigos de Hugues que ele de comando, escolhido pelo governador do
estaria ocultando as provas de suas prevarica- Pará. Presente na Guiana desde janeiro de
ções e de sua corrupção. 1810 com a função de reorganizar as finan-
As manobras bem-sucedidas de Victor ças coloniais e a justiça local, o jurista João
Hugues, que queria se precaver contra acu- Severiano Maciel da Costa, nascido em Mi-
sações de covardia que sabia não deixariam nas Gerais, teria, de 1812 até 1817, a função
de ocorrer, na França, por seus muitos erros de intendente da Guiana, o que confirmava
no comando militar da defesa de Caiena e a tradição colonial francesa de separar o
por sua derrota, além de desejar também comando militar da gestão econômico-fi-
evitar sua própria queda em poder dos britâ- nanceira. O Governador do Pará José Narci-
nicos (devido a certos abusos que cometera, so de Magalhães Menezes, que perseguira
no passado, quando dos conflitos na Ilha de implacavelmente com suas críticas tanto

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Navigator 11 A Tomada de Caiena vista pelo lado francês

Marques como Pinto de Souza, morreu em vel a que se concedessem vantagens e uma
dezembro de 1810. posição social melhor aos negros e mulatos
Imediatamente após a conquista, Manuel livres de Caiena, referia-se por escrito aos ín-
Marques, sem experiência administrativa, dios paraenses como “tapuias ferozes” e “a
decidiu mexer o menos que pôde na organi- canalha índia”. Houve acusações esporádi-
zação que encontrou funcionando em Caie- cas de guianenses relativas a furtos e assas-
na. Sua decisão nesse sentido foi, aliás, con- sinatos cometidos por membros da tropa de
firmada como sendo o melhor a ser feito, em ocupação. As deserções eram relativamente
carta régia datada de 10 de junho de 1809. frequentes (69 desertores entre 1812 e 1816).
Entre outras medidas, entregou a maior par- Em 9 de junho de 1809, a tropa sediada
te das tarefas administrativas a uma junta de em Caiena se rebelou e alguns dos soldados,
notáveis locais. O resultado, segundo um de- armados com armas brancas (já que não ti-
portado de esquerda, Vatar, que, em Caiena, nham acesso fácil às munições), em grupos
espionava para autoridades policiais france- formados ao dispersar-se uma manifestação
sas, foi que o fazendeiro Vidal, também co- na praça principal da cidade, saqueou o co-
merciante e traficante de escravos, um dos mércio da capital. Quando da manifestação
primeiros a aderir ao Novo Regime, na prá- da tropa reunida, um bate-boca diante dos
tica governava a colônia em conjunto com soldados entre o governador − o General
André, jurista francês nomeado procurador, Marques − e o Coronel Palmeirim, segundo
em Caiena, do Príncipe Regente Dom João. em comando, nada fez para arrefecer os âni-
Vidal, um dos opositores de Victor Hugues mos ou restabelecer a disciplina. Quando de
no passado, parece ter enriquecido, aprovei- outra tentativa de motim, no início de março
tando bem as oportunidades abertas por sua de 1811, denunciada pela mulata Ethelinte
nova posição de autoridade. (que foi alforriada por Maciel da Costa), a in-
Um problema grave era a situação das tervenção severa das autoridades militares,
tropas de ocupação e, em consequência, o em especial do Tenente-Coronel Francisco
descontentamento e a indisciplina crônicos Rodrigues Barata, se fez sentir; quatro líde-
que nelas grassavam. Sem esperança de vol- res da rebelião foram fuzilados sem proces-
tar em breve, como desejavam, para o Pará − so formal, sob protesto de Maciel da Costa.
a chegada de tropas de reforço ocorreu pou- Naquela ocasião, os “livres de cor” de Caie-
co após a vitória, mas os efetivos disponíveis, na − que, ao que parece, tinham pânico dos
agora de cerca de 1.300 homens, que caíram soldados índios do Pará − ofereceram ao
mais tarde para pouco mais de 900, mal che- intendente Maciel da Costa formar uma mi-
gavam para guarnecer a capital e pontos es- lícia que, entre outras atividades, apoiasse as
tratégicos do litoral, e demorou a haver algu- autoridades de ocupação em suas tarefas de
ma renovação dos quadros com o envio de controle das tropas, o que foi recusado.
soldados de volta ao Pará para substituí-los O Governo do Rio de Janeiro insistia cons-
por outros que viessem −, com problemas tantemente para que a ocupação da Guiana,
sérios de abastecimento, recebendo o soldo tornada dependência do Pará, nada custasse
sempre com enorme atraso, sem solução aos cofres da administração central luso-bra-
visível para que obtivessem a sua parte pro- sileira. No afã de equilibrar as finanças da co-
metida na presa de guerra, contando sempre lônia, o intendente Maciel da Costa decidiu,
grande número de doentes (de 1812 a 1816 em março de 1812, estabelecer o sequestro
as minguadas tropas de ocupação sofreram dos bens dos ausentes. A administração e as
130 mortes, sendo 118 doentes enviados de rendas das fazendas pertencentes a proprie-
volta ao Pará), os índios e mestiços que pre- tários residentes na França foram postas sob
dominavam numericamente entre os solda- o controle das autoridades luso-paraenses de
dos eram também alvo do racismo dos habi- Caiena; tal renda adicional ficava à disposi-
tantes guianenses, quando não daquele dos ção do governo de ocupação; sem confisco,
poucos funcionários e oficiais brancos vindos no entanto, das propriedades rurais: Victor
de Belém. O intendente Maciel da Costa, por Hugues, por exemplo, tendo voltado a Caiena
exemplo, ao mesmo tempo que era favorá- ainda sob o domínio português, recuperou −

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Ciro Flamarion Cardoso

embora só após longo processo administrati- 12.355 numa população de 14.445 em 1808,
vo − sua fazenda Quartier Général. O seques- em 1817 eram 13.369 numa população de
tro atingiu 29 fazendas, avaliadas em dois 16.056. Não havia nem recursos disponíveis,
milhões e meio de francos, que continham nem boas razões para que ocorressem mui-
cerca de 20% dos escravos ativos da colônia. tos investimentos luso-brasileiros na Guiana.
A iniciativa do sequestro provocou interminá- Apesar de, antes da expedição de 1808-1809,
veis protestos dos proprietários absenteístas os ingleses e portugueses terem pensado
afetados e de seus amigos ou parentes resi- na ocupação de Caiena com a finalidade de
dentes na Guiana. O comerciante Vidal, em- destruí-la, eliminando a presença francesa
bora já não fosse membro da junta criada por na América do Sul, e de Maciel da Costa ter
Marques (dissolvida por Maciel da Costa em submetido às autoridades do Rio de Janeiro
julho de 1810), foi acusado de enriquecimen- um plano para reunir as Guianas num reino
to ilícito, aproveitando-se das oportunidades dependente do Brasil, a opinião mais plau-
abertas pelo sequestro instituído pelo inten- sível era que, em dia não muito distante, a
dente português. O próprio Maciel da Costa Guiana seria devolvida à França.
sofreu denúncia similar de parte de detra- O exame dos dados relativos ao comér-
tores, sem que houvesse indícios ou provas cio exterior da Guiana ocupada indica que a
que apoiassem essa acusação. maior parte dos lucros comerciais foi auferi-
Se o saque em 1809 e a ameaça de motim da pelo comércio britânico; em especial, as
em 1811 assustaram a população de Caiena, trocas com os britânicos eram extremamen-
e se o sequestro dos bens dos ausentes foi te deficitárias para os guianenses. Em 1815,
objeto de muitas críticas, outras medidas e por exemplo, a exportação do porto de Caie-
atitudes dos ocupantes foram bem recebi- na para a Inglaterra, em valor, configurava
das. O próprio fato de ser a Guiana integrada cerca de um quinto da importação de artigos
a um conjunto maior, o do Brasil e em espe- britânicos pelo mesmo porto; no relativo ao
cial a Amazônia portuguesa, trouxe efeitos Caribe inglês, que efetuava com Caiena um
benéficos para os guianenses. Por exem- comércio de reexportação, o déficit era ainda
plo, o gado agora recebido regularmente mais importante: mil francos de exportações
de Macapá e da Ilha de Marajó regularizou em confronto com mais de 300 mil francos
o abastecimento de carne, antes muito pre- de importações de Caiena. Deixando aos
cário. A abertura ampla do porto de Caiena luso-brasileiros o ônus da administração da
ao comércio internacional facilitou também Guiana ocupada, os britânicos auferiram to-
o abastecimento em mercadorias diversas das as oportunidades de lucro que puderam
provenientes da Europa e dos Estados Uni- no comércio com a ínfima colônia. Já as
dos, incluindo os insumos necessários às trocas de Caiena com Belém tendiam a ser
fazendas. O pequeno grupo formado pelos levemente deficitárias para o Pará. Em 1816
comerciantes maiores de Caiena tinha, dora- e 1817, os dois últimos anos da ocupação,
vante, acesso aos portos do grande conjunto o comércio francês, nulo de 1809 até 1815,
brasileiro e, depois de estabelecido um acor- fez-se presente outra vez em Caiena, prenun-
do a respeito, aos do Caribe inglês. As taxas ciando a devolução da colônia aos franceses,
alfandegárias portuguesas eram, outrossim, prevista pelo Congresso de Viena.
menos pesadas do que as francesas. Maciel
da Costa estabeleceu que os comerciantes CONCLUSÃO
de fora que vendessem em Caiena deveriam
forçosamente associar-se a comerciantes lo- A França entrou de novo na posse da
cais. Os guianenses apreciavam o fato de ser Guiana Francesa em 8 de novembro de
a burocracia luso-brasileira menos multitudi- 1817. Os portugueses, diante da ameaça
nária e intrusiva do que a francesa. feita em julho do mesmo ano por Richelieu
O fomento da colônia que se atribui às de retomar Caiena pela força, tendo obtido o
vezes à ocupação luso-brasileira foi, porém, ministro francês o consentimento da maio-
exagerado. O número de fazendas não pa- ria das potências europeias em tal sentido,
rece ter aumentado. Os escravos, que eram assinaram em 28 de agosto a convenção de

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Navigator 11 A Tomada de Caiena vista pelo lado francês

restituição de Caiena, sem que obtivessem sa simbólica, rendendo-se a seguir e entre-


nenhuma das vantagens que, durante as gando a colônia incondicionalmente.
longas negociações com os franceses, até Em 1817 terminaram, portanto, o episó-
então haviam solicitado, em especial uma dio de conquista e os anos subsequentes
fronteira firme no Oiapoque − assunto que de administração da ínfima colônia fran-
se arrastou até o fim do século XIX− e uma cesa da América do Sul. O ataque a Caie-
indenização. É verdade que, já em 1814, na, com apoio britânico, foi o gesto possí-
numa carta do Marquês de Aguiar, as ins- vel dos luso-brasileiros após a declaração
truções às autoridades luso-paraenses de de guerra à França em primeiro de maio
Caiena para a eventualidade de um ataque de 1808, no Rio de Janeiro, pelo Príncipe
naval francês era que efetuassem uma defe- Regente Dom João.

FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

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