Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Este artigo busca identificar quais são os discursos mobilizados pela youtuber1
Ana Paula Xongani sobre estética negra. A influencer2 possui uma marca de roupas e
acessórios chamada Xongani, além de uma canal no YouTube que leva o mesmo nome.
Nos vídeos veiculados em seu canal, assim como em suas redes sociais, Ana Paula cria
conteúdos sobre assuntos diversos, mas que possuem em comum a temática racial e de
gênero. Geralmente, seus vídeos seguem um padrão confessional, em que ela narra suas
experiências pessoais, profissionais e sociais, estimulando reflexões acerca do
desenvolvimento das subjetividades e das identidades de mulheres negras.
Além das narrativas de si, a youtuber mobiliza discursos sobre moda e estética
afro-brasileira, articulando referências africanas e características fenotípicas do corpo
negro, como o cabelo, à construção de uma identidade racial positiva e empoderada.
Selecionou-se como recorte para esta análise um vídeo publicado por Ana Paula
Xongani no YouTube em 10 de novembro de 2016, intitulado: Tipo de militância... Moda
Afro é militância?
1
Recentemente tal denominação foi adicionada ao dicionário inglês Oxford, devido à crescente
popularidade do termo. De acordo com o referido dicionário, a palavra significa “um usuário frequente
do website de compartilhamento de vídeos YouTube, especialmente alguém que produz e aparece em
vídeos desse site” (tradução livre). Em resumo, o termo é designado aos sujeitos que mantém canais na
plataforma, destinados a produzir e divulgar conteúdos diversos através da postagem frequente de
vídeos.
2
Termo usado para designar alguém que possui influência em determinada área no meio digital.
as crenças, os comportamentos e os desejos são transformados, ressignificados e
substituídos em ritmo acelerado.
Longe de ser uma prática atual, a historiadora Ângela de Castro Gomes (2004)
destaca que as escritas de si, emergem como um exercício de produção de si no século
XVIII, consolidando-se ao longo do século seguinte. De acordo com a pesquisadora, a
incorporação desse exercício de escrita e de memória de si nas sociedades modernas, está
estreitamente vinculado às mudanças ocorridas na percepção do sujeito enquanto indivíduo
e nas transformações políticas e culturais da modernidade.
Para Sibilia (op. cit.), as narrativas de si, produzidas nas diferentes modalidades
de diários íntimos virtuais, indicam uma transformação na constituição das subjetividades
pós-modernas, bem como do conceito de intimidade, de público e privado, de realidade e
ficção. Ela chama atenção para a tendência, que não paramos de aperfeiçoar, de
transformar cada detalhe do cotidiano em grandes espetáculos, que devem ser expostos
aos olhares alheios para que sejam legitimados.
Nas sociedades ocidentais do século XXI, tudo vira produto e é estilizado. A casa,
os móveis, o carro, as roupas, os acessórios, a alimentação, a profissão, o estilo de vida e
o corpo de cada um devem estar em consonância com quem dizemos ser. Esse conjunto
de coisas e de comportamentos, sobre os quais investimos tempo e dinheiro, são
cuidadosamente selecionados para compor nossas imagens e narrativas pessoais.
Ainda que parte da população brasileira continue sem acesso à internet, a inserção
das ferramentas tecnológicas no cotidiano dos sujeitos contemporâneos está facilitando o
acesso à histórias e memórias coletivas e possibilitando a produção de autonarrativas de
sujeitos que, historicamente, tiveram seu lugar de fala deslegitimado.
Nessa direção, a internet tem sido palco de jovens mulheres negras protagonistas
de narrativas que buscam desconstruir discursos machistas e racistas, buscando promover
práticas culturais comprometidas com a equidade de gênero e racial. Os meios através
dos quais essas iniciativas operam na web são variados. Além de sites de maior destaque,
como o “Correio Nagô”, “Nação Z”, “Mídia Étnica” e “Geledés”, não param de crescer
coletivos locais que buscam democratizar o direito à comunicação, ao dar espaço para
que diferentes vozes se manifestem e visibilizem a representação de diferentes formas de
existência.
3
É o processo de transição enfrentado por quem decide deixar o cabelo crescer naturalmente, deixando
de usar química. Neste período, o cabelo apresenta formato e textura diferentes na raiz e nas pontas.
4
É muito comum entre um nicho específico de youtubers, que pode ser classificado como confessional,
gravar vídeos mostrando aspectos de sua rotina e de sua vida pessoal. Por exemplo, exibindo sua rotina
de cuidados de beleza, mostrando a decoração de sua casa, acompanhando alguma viagem, evento ou
trabalho que esteja fazendo, etc.
Ana Paula Xongani5 é uma paulista de 30 anos, casada com um africano e mãe de
uma menina. Ana é formada em design pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, e
sócia-fundadora e estilista da Xongani6, marca de moda afro. O canal da estilista foi
criado em julho de 2012 e atualmente está com 166 vídeos e 65.052 inscritos.
5
https://www.youtube.com/user/xonganiartecomtecido/featured - último acesso em 20/12/2018.
6
Segundo Ana Paula, a palavra vem do changana, língua africana do sul de Moçambique, e significa algo
como “arrumem-se”, “enfeitem-se” ou “fiquem bonitas”.
público que mais consome os conteúdos da internet. Tal importância, é destacada pelas
próprias mulheres que interagem na plataforma. Tanto quem produz, quanto quem
consome esses conteúdos, relatam que é fundamental para elas sentirem-se representadas
e contempladas em suas especificidades. Encontrar referências em que possam se
espelhar para construírem uma imagem positiva de si, é uma estratégia muito potente para
as lutas de resistência e empoderamento feminino negro.
De acordo o mesmo autor, como o significado não é fixo, tais estratégias são
capazes de conferir novos sentidos para as representações raciais. Nesse sentido, destaca
os movimentos dos direitos civis das décadas de 1960 e 1970, como um marco importante
na luta pela representação, pela positivação da diferença e pela afirmação da identidade
cultural negra. Neste contexto de lutas, que as mulheres negras vêm inserindo na cena
social e política como uma de suas principais pautas, a reivindicação pelo direito de falar
de/por si. Desta forma, disputam o poder de autodefinição e autorepresentação, com vista
a evidenciar suas complexidades e multiplicidades.
O vídeo selecionado como recorte para este texto tem 5min. 24seg., teve 4.913
visualizações, 545 likes e 2 deslikes7. Nos primeiros dois minutos, a youtuber fala sobre
os tipos de ativismos sociais que atuam na sociedade e sobre a importância de cada um
7
Like e deslike no contexto digital, significa gostei e não gostei, respectivamente. É um recurso disponível
na plataforma YouTube que serve para que o usuário registre sua avaliação a respeito do conteúdo que
está assistindo.
deles para a cultura negra. Em seguida, ela se posiciona dizendo que o tipo de ativismo
que ela desenvolve é através da moda.
Sobre as tradições da cultura popular negra, Staurt Hall (2014) afirma que ao
longo da história o corpo negro foi usado como se fosse seu único capital cultural.
Segundo ele, “temos trabalhado em nós mesmos como em telas de representação” (op.
cit., p. 342). Com a estetização e a mercantilização da vida, características da atualidade,
as mulheres negras, em especial, jovens dos centros urbanos, estão usando seus corpos
para manifestar sua etnicidade a partir de referências de uma África recriada no Brasil ao
longo do processo diaspórico.
Segundo Livio Sansone (2003, P. 91), “as interpretações das coisas e traços tidos
como de origem africana, tem sido axial no processo de mercantilização das culturas
negras”. Para o mesmo autor, a cultura negra baiana viveu nos últimos trinta anos um
processo de “reafricanização”, que é caracterizado por uma exibição de símbolos que
remetem à África. A incorporação desses símbolos africanos pode ser observada desde o
cenário do vídeo de Ana Paula. Percebe-se que ele foi gravado no escritório do ateliê da
Xongani, no qual é possível observar referências étnicas nos objetos, como no quadro,
nas cores, nos tecidos que compõem o cenário e no próprio corpo da youtuber, que tem
cabelo endredado e usa roupas e brincos de sua própria marca.
Ana Paula tem muitos vídeos mostrando peças produzidas pela Xongani e
ensinando a usar os acessórios que produz, como cordão, turbante e faixa de cabelo. Os
dreads da youtuber também são tema de muitos vídeos, onde ela dá dicas de como cuidar
e ensina a fazer penteados para esse tipo de cabelo. Observa-se, portanto, não só a partir
dos discursos sobre moda afro, mas sobretudo, a partir do próprio corpo de Ana Paula,
uma positivação e valorização dos cabelos afro, dos traços fenotípicos do corpo negro e
da incorporação de símbolos africanos nos modos de se vestir.
Sansone (2003), ao analisar o que ele denominou como “nova cultura negra
baiana”, observou que ela está mais centrada no corpo, na cor, na indústria da música e
do lazer – próprias da juventude moderna – do que nos sistemas simbólicos e religiosos.
Para o autor:
BIBLIOGRAFIA
GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro:
FGV, 2004.
SANSONE, Livio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na
produção cultural negra no Brasil. Tradução: Vera Ribeiro. Savador: Edufba; Pallas,
2003.
SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2º ed., rev. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2016.