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Nelson Rodrigues

A EUFORIA DE
UM ANJO
Almocei, ontem, com o meu amigo Celso
Bulhões da Fonseca. Digo “amigo” e sinto que a
palavra vem sofrendo um aviltamento progressivo.
Dirá alguém que, com o tempo e o uso, todas
as palavras se degradam. Por exemplo: —
liberdade. Outrora nobilíssima, passou por todas as
abjeções. Os regimes mais canalhas nascem e
prosperam em nome da liberdade.
Hoje, “liberdade” é um palavrão que, como
tal, não devia entrar em casa de família. Mas,
vejamos “o amigo”. Essa palavra e essa figura
sofrem, do Paraíso aos nossos dias, um desgaste
hediondo. Perdemos todo o cuidado seletivo. O
amigo deixou de ser uma maravilhosa opção. Ainda
outro dia, estava eu com um pulha, realmente
pulha, da cabeça aos sapatos. Apresentei-o assim:
— “Aqui o meu amigo Fulano”. Não era “o amigo”,
não podia ser “o amigo”. E mal terminou a
apresentação, dei-me conta de que não fazemos
outra coisa senão corromper o nosso vocabulário.
Eis o que eu queria dizer: — para mim, a
amizade continua sendo o grande acontecimento.
Todos os sábados, lá vou eu almoçar com o Hélio
Pellegrino. Lembro-me de que, uma vez, teve o

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amigo uma luminosíssima idéia. Diz: — “Vamos
tomar vinho”. Assim é o Hélio. Mineiro e calabrês,
tem, por vezes, a volúpia européia do vinho. Abriu
uma garrafa e, com um olho rútilo, um olho
dionisíaco, disse: — “Bebe!”. Bebi para fazer-lhe a
vontade, Na verdade, sou o homem da água da
bica. Mas o Hélio bebeu, bebeu. E, de repente, pôs
a mão no meu braço. Disse exatamente isto: —
“Nelson, você é um dos meus amigos
fundamentais”.
Ora, eu atravessaria três desertos para ouvir
alguém dizer isso. E, então, percebi uma das
verdades mais lindas da terra: — o amigo é o
santo.
Não sei se me entendem e, se não me
entendem, paciência. Mas o fato de o Hélio estar
falando e eu a ouvi-lo, este simples fato era a
nossa salvação. Ali, naquele momento, ele foi um
santo e eu outro santo. Vejam vocês: — dois santos
bebendo aquele vinho translúcido e também
santificado. (Alguém dirá que tudo isso é piegas,
gratuito, discutível etc. etc. Não faz mal.)
Volto ao meu almoço com o Celso Bulhões da
Fonseca. Fiz a introdução acima para concluir: —

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Celso é, precisamente, o amigo. Na véspera, batera
o telefone para mim: — “Vamos almoçar amanhã?”.
E ria, ria ao fazer o convite. Era, ali, na alegria da
amizade, o límpido menino, o menino de cristal.
“Vamos, vamos”, respondi. “Onde?”. Disse-lhe o
primeiro nome: — “Nino”.
No dia seguinte, passou o Celso pela minha
porta e levou-me. Ao meio-dia e pouco entrávamos
no restaurante. Ocupamos uma mesa lá do fundo.
Nem sei o que comemos (eu, um bife). E
conversamos, simplesmente conversamos. Perto de
nós instalaram-se vários casais; mais adiante uma
família imensa fazia alarido. Mas não importa.
Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa
solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a
presença numerosa de um amigo real). E
conversamos de tudo. Houve um momento em que
o Celso abriu o coração. Fala: — “A morte do meu
pai”. E acrescenta, como quem pede desculpas: —
“Ainda não me recuperei”. Por um momento, tive
vontade de pedir-lhe: — “Nem se recupere, nunca,
nunca”. Eis a nossa degradação: — sofrer menos,
cada vez menos, até esquecer. Desde menino sou
um fascinado pela grande dor (acho que a grande

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dor não passa jamais). E não disse nada ao Celso,
não lhe fiz o apelo: — “Sofra, sofra”.
De repente ele diz, chorando: “Ainda choro”.
Foi aí que senti, como na casa do Hélio Pellegrino,
que éramos dois santos. Na mesa adiante, a tal
família imensa detonava todas as suas
gargalhadas. Mas podia vir o mundo abaixo. Tudo
era secundário, irrelevante, nulo. Mudei de assunto
e fiz mal. O certo seria tirar partido da nossa
tristeza (eu também pensava na morte do meu
pai). Temos um medo tão idiota do sofrimento, e
são tão poucos os nossos instantes de tristeza
total! Como é bom o doer de velhas penas.
Diante do Celso eu pensava na minha
infância. Naquele tempo não entendia que o adulto
chorasse. Aos sete anos eu estava certo de que só
as crianças choravam. (Vira uma vizinha, d. Laura,
gritando pela morte da filha. Mas, curioso! As
mulheres pareciam-me outras tantas crianças.
Adulto era o homem.) Só mais tarde, já em
Copacabana, vi um homem chorando: — meu pai.
Morávamos, então, na rua Inhangá, atrás do
Copacabana Palace (era nosso vizinho um garoto,
Basílio, hoje dr. Basílio, médico famoso). Meu pai

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acabara de fundar um jornal, A Manhã, que toda a
cidade lia. Eu estava na redação, esperando a
carona do meu pai, quando o telefone o chamou.
Alguém dizia: — “Venha que Dorinha piorou”.
Dorinha, Dora, era minha irmã de oito meses. Meu
pai apanha o chapéu, a bengala; chama: —
“Vamos”. A redação era na rua Treze de Maio.
Descemos e o automóvel, um Ford de bigode, nos
levou.
No caminho não pensei na morte. Dizia de
mim para mim: — “Nós não morremos”. Nem meus
irmãos, nem meus pais, ninguém morria lá em
casa, só os outros. Chegamos à casa e, já da porta,
ouvíamos o choro. Meu pai salta correndo. Entra
berrando: — “Que é isso? Que é isso?”. Largou no
chão o chapéu, a bengala. Uma voz está dizendo:
— “Ela morreu”. Era a notícia sem ponto de
exclamação. E a voz tão doce e sem lágrimas. Eis a
pergunta que ainda me faço, sem lhe achar
resposta: — “Quem nos deu a notícia?”. Foi alguém
de quem não me lembro, sim, alguém que não
sofria e apenas informava.
Vi no meu pai primeiro a cara do espanto; e
logo explodiu o choro. Meus irmãos também

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choravam, e minha mãe, e as empregadas. Mas
meu pai não chorava como os outros. Era o grande
choro. E, de repente, a rua se encheu do seu
gemido enorme. Um menino veio correndo lá da
casa de esquina, trazido pelo choro do meu pai. E,
por um momento, senti vergonha, humilhação. Não
queria que o menino visse o meu pai gritando.
Meu irmão Roberto repetiu, horas e horas: —
“É a primeira morte. A primeira morte”. Levantava-
se, vagava pelas salas; voltava: — “É o primeiro
que morre”. Eu, quieto num canto, pensava que
nós também morríamos.
Vinte anos depois escrevi a peça Vestido de
noiva. No segundo ato uma das noivas, Alaíde,
suspira: — “Enterro de anjo é mais bonito do que
de gente grande”. Era a nostalgia de minha irmã
Dorinha. Morreu com oito meses; e sua agonia,
quase imperceptível, foi leve, tão leve como a
euforia de um anjo.

[O GLOBO, 30. 12. 1967]

APEDEUTEKA GUINEFORT 2014

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