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Nelson Rodrigues

Um dos momentos mais patéticos da minha


infância foi quando ouvi alguém chamar alguém de
“canalha”. Note-se: — era a primeira vez. Teria eu
que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Vá lá: —
cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: — de
medo. Foi medo e não espanto. Para mim, uma pa-
lavra estava nascendo, era o nascimento de uma
palavra.
Paro de escrever. Por um momento, repito
para mim mesmo: — “Canalha, canalha”. O som
ainda me fascina como na infância. E pergunto a
mim mesmo se “o canalha” é uma dimensão obri-
gatória de cada um. Pode haver alguém que não
tenha um mínimo de canalha? Um santo, talvez, ou
nem isso. Disse não sei quem que há santos cana-
lhas.
Eis o que eu queria dizer: — o medo dos
cinco anos perdura em mim até hoje. Ainda agora
me pergunto se alguém tem o direito de chamar
um semelhante de canalha. Poderão objetar que

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pulha é um insulto equivalente. Ilusão. Vi um su-
jeito ser chamado de “pulha”. Retrucou ao outro:
— “Pulha é você!”. E o incidente morreu aí. Dez
minutos depois, os dois pulhas estavam, na es-
quina, bebendo cerveja.
O sujeito pode ser pulha e como tal beber
cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e
a cerveja. Mas ninguém pode ser canalha. A sim-
ples palavra constrói uma solidão inapelável e
eterna.
Eis o que eu queria dizer: — o canalha é o
pior solitário. Esse destino de solidão é o seu,
eternamente.
Mas tinha eu, como já disse e repeti, cinco
anos. Meio século depois, me pediram um pro-
grama de televisão. Recomendaram: — “Coisa ori-
ginal”. Tratei de recorrer à minha originalidade. E,
então, lembrei-me da cena de Aldeia Campista. Di-
ante de mim estava um sujeito chamando o outro
de canalha (e meio século depois, a minha úlcera

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teve contrações de víbora agonizante). Imediata-
mente, ocorreu-me a ideia. Liguei para o patroci-
nador. Disse-lhe: — “Já tenho o título”. O anunci-
ante esperou. E eu anunciei: — Os falsos canalhas.
Era o título. Expliquei o resto. Seria uma re-
visão de valores. No Brasil, como em qualquer
país, a história, a glória, a lenda são tecidas de equí-
vocos fatais. Nunca se sabe se o grande homem é
grande homem, se o gênio é um débil mental, se a
senhora honesta é uma messalina.
Eu queria fazer, justamente, o processo dos
nossos falsos canalhas. Assim como há a falsa vir-
tude, existe a falsa abjeção. E os falsos canalhas an-
dam por aí. Nós os encontramos nas primeiras pá-
ginas, nos editoriais; ou na boca das esquinas e dos
botecos. Estão no parlamento, nos consultórios,
nos lares e no banho de mar.
Começaríamos o programa, exatamente,
com Roberto Campos. A meu ver, não há, em
todo o Brasil, e por toda a nossa história, um falso

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canalha mais translúcido e mais exemplar. Ou por
outra: — era tão canalha como O inimigo do povo,
de Ibsen. O herói ibseniano acabou apedrejado
como uma adúltera bíblica. E, súbito, ele descobriu
que o grande homem é o que está “mais só”.
Falei em solidão e já retifico. O falso canalha
é mais solitário do que o verdadeiro. O poder foi,
para Roberto Campos, a solidão total. Não houve
ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Que-
riam matá-lo, simplesmente matá-lo. Vi um pau-
d'água berrando: — “Dou um tiro nesse Roberto
Campos!”. Ao mesmo tempo que dizia isso, pen-
dia-lhe do lábio a baba elástica e bovina do homi-
cida.
E Roberto Campos seria o meu primeiro
falso canalha. Mas acabei desistindo do programa
e explico. Foi tudo o medo antigo, pueril e insu-
portável de uma palavra, de um som, de um efeito
auditivo. Quando me sentei à máquina para fazer
o script do programa e escrevi a palavra canalha,

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aconteceu isto: — senti a minha úlcera vibrando
como uma víbora. Tirei o papel da máquina e o
rasguei. Liguei para o patrocinador; disse-lhe: —
“Olha. Nada feito. Esse título me dá vômito”.
Ao mesmo tempo, prometi a mim mesmo
não chamar ninguém, jamais, de canalha. Queria-
me parecer que é mais puro o sujeito que nasce,
vive, envelhece e morre sem usar, contra outro
homem, a mais cruel e inapelável das palavras. E,
no entanto, vejam vocês, nem pensei nas surpresas
do mundo.
Eis o caso: — li, ontem, isto é, anteontem, um
artigo do dr. Alceu. Sou, não nego, o seu mais fiel
e obstinado leitor. Diga-se de passagem que,
quando repasso os seus escritos, caio em frustra-
ção e pena. Durante vários anos, tentei ser seu
amigo e fracassei. Muito bem: — e que diz em tal
artigo o notável pensador católico?
Houve, em Cuba, um congresso, ou coisa que
o valha, de quatrocentos intelectuais. E começa o

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dr. Alceu: — “Não sei, realmente, se os quatro-
centos intelectuais reunidos em Cuba se esquece-
ram ou não de protestar contra o resultado iníquo
de mais esse crime contra a liberdade de inteligên-
cia que acaba de ser cometido em Moscou”. Bem.
Em primeiro lugar, ninguém “esqueceu” nada. Os
totalitários são insuscetíveis de tais lapsos. Sim-
plesmente, os quatrocentos intelectuais estão in-
teiramente a favor da polícia soviética e apóiam,
de alto a baixo, “mais esse crime”.
Mas o que me faz rilhar os dentes de horror
é que venha o dr. Alceu, para a imprensa, dizer que
“não sabe”. Não sabe que, por trás de toda a Cor-
tina de Ferro, e em qualquer regime totalitário, in-
clusive Cuba, não existe nenhuma liberdade de
pensamento, de criação artística, de inteligência ou
que seja? E se o dr. Alceu “não sabe”, nem descon-
fia do óbvio ululante, como ousa assinar uma co-
luna de jornal? Insisto: — se “não sabe”, então que
devolva o dinheiro que o dr. Britto lhe paga pela

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colaboração tão cega e tão surda.
Mas sabe. Aí é que está o grave, o patético, o
inconcebível: — o dr. Alceu sabe. Sabe que, há
pouco tempo, um poeta foi processado, em Mos-
cou, por vadiagem, e condenado. Quando lhe per-
guntaram pela profissão, respondeu: — “Sou po-
eta”. E o juiz, fulminante: — “Isso não é profis-
são!”. A Rússia encarcerou o poeta pelo crime de
ser poeta. Aliás, esse juiz não é juiz, mas um tira
abjeto.
Insinuará alguém a seguinte hipótese: — o dr.
Alceu tem uma boa-fé obtusa. Nem isso. Sabe. E
insisto na pergunta: — “E, se sabe, por que vem
dizer, de olhos baixos: — 'Eu não sei'?”. Mas, se
sabe, não deve nem rezar. O dr. Alceu pode enga-
nar, a mim, ou ao dr. Britto, ou aos seus leitores.
Mas não enganará a Deus. Deus também sabe e
sabe que o dr. Alceu sabe. Ou achará que Deus é
um dr. Britto? Mas eu direi ao eminente sábio, sob
minha palavra de honra: — Deus não é o dr.

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Britto. Amém.
O que é que eu ia dizer mais? Já sei. Ia dizer
que o dr. Alceu vê a torpeza e não a identifica, vê
a podridão e não lhe sente o cheiro.
Direi, por fim, que os quatrocentos intelectu-
ais de Cuba em nada diferem dos oitocentos que,
na Rússia, assassinaram Pasternak. São canalhas
uns e outros.

[O GLOBO, 5/2/1968]

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