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Nelson Rodrigues

ÓDIO AO
HERÓI
“Barrault morreu! Barrault morreu!” Quem dizia isso ou, melhor,
quem soluçava isso era o próprio Barrault ou, por extenso, o próprio
Jean-Louis Barrault. Estamos em Paris, no teatro Odeon, ocupado pelos
estudantes. Não há um lugar vago. Uns por cima dos outros. E, súbito,
aparece Barrault. Vai ao limite extremo da ribalta, alça a fronte e fala.
Simplesmente, ele, Barrault, está ali para comunicar a própria morte.
Eis, na íntegra, as suas palavras: – “Anuncio-vos que não sou
mais diretor deste teatro. Sou um ator como os outros”. Está de gesto
erguido e faz pausa, faz suspense. E, então, berra com invejabilíssima
saúde vocal: – “Barrault morreu!”. Explode uma ovação formidável.
Nunca uma morte foi tão aplaudida. Barrault vive o seu grande
momento de ator. Nunca morrera tão bem.
Via de regra, cada um de nós morre uma única e escassa vez.
Só o ator é reincidente. O ator ou a atriz pode morrer todas as noites e
duas vezes aos sábados e domingos. Sarah Bernhardt não fez outra
coisa senão morrer no 5º ato de A dama das camélias. E o nosso
Barrault tem feito da morte profissional o seu ganha-pão. No palco,
fremente, era um defunto salubérrimo.
Só não entendo como se pode ser ator “como os outros”.
Ninguém é ator “como os outros”. E repito: – só um soldadinho de
chumbo é igual a outro soldadinho de chumbo. De mais a mais,
qualquer ator reage como um Narciso. Ninguém mais Barrault do que
Barrault. Estava, ali, arrancando mais um efeito plástico. Por outro
lado, a apoteose parece descabida. Por que aplaudir um sujeito que se
demite de uma simples função burocrática? Deixara de ser funcionário,

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e daí? Onde está o heroísmo, sim, onde está o martírio?
A propósito da França, resmungava um amigo meu: – “Tudo
isso é bobagem!”. E perguntava: – “Você não acha bobagem?”.
Neguei com a maior ênfase: – “Absolutamente!”. E, de fato, tudo que
a França faz tem uma platéia mundial. Qualquer suspiro ou rugido
francês é histórico. Aqui, as gerações não perdem uma representação
de França. É a mais teatral das nações. Mesmo que o quisesse, a
França não seria boba, jamais.
Mas vejamos o que lá acontece. Deixemos de lado o nosso
Barrault. O que fez, no Odeon, não teve nenhuma densidade. Foi
apenas uma pirueta profissional de ator. O patético é o comportamento
da própria França. De repente, o país é varado de correrias. Todo
mundo começa a correr. E eu me pergunto que mão atirou a primeira
pedra. E de onde partiu o primeiro grito? Ninguém sabe. Ao mesmo
tempo, explodiu uma solidariedade nunca vista. Todo mundo está
solidário com todo mundo. Os franceses parecem ferozmente unidos.
Ninguém é contra os estudantes. Mas essa unanimidade tem um
defeito: – falta-lhe uma causa.
A primeira Revolução Francesa era profunda e nítida. Tinha
razões precisas. O próprio Terror era lúcido. Ao passo que a presente
agitação não tem profundidade, nem nitidez. Os estudantes
começaram tudo. Em seguida, os operários ocuparam as fábricas. E
mais: – seqüestram os gerentes e não os devolvem. A única
perplexidade que se conhece, na França atual, é o Partido Comunista.
Ora dá a sua solidariedade, ora a retira. Lá os professores estão com

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os estudantes. E também os cineastas. Cannes entra em greve. Mas não
há um líder. Os estudantes carregam cartazes de Mao Tsé-tung,
Guevara, Lenin. Mas Lenin está no seu túmulo de vidro. Nunca um
túmulo foi líder de coisa nenhuma. Enquanto isso, os estudantes, no seu
formidável dinamismo destrutivo, viram carros e os incendeiam, e
arrancam das avenidas a capa de asfalto. Mas, eis o que o mundo
pergunta: – além dos carros virados, o que querem os estudantes?
Atiram pedras. E por que apedrejam?
Aqui começa a singularidade da atual Revolução Francesa: –
seu Terror não tem reivindicações. Ou por outra: – tem um nome.
Chama-se “revolução cultural”. É pouco. Queremos saber o que se
esconde por trás do nome. Dois ou três sujeitos, estreitamente positivos,
respondem: – “Não se esconde nada”. Mas comparem as duas
imagens: – a presente França e a Rússia de 17. Na Rússia, foi a
guerra perdida que instalou o caos. Todas as estruturas desabaram.
Mas a França não luta com nenhum inimigo externo. Perdeu a sua
última guerra, mas em seguida a ganhou (graças aos Estados Unidos).
Por outro lado, em 17, houve um Lenin para tirar partido do
caos, para organizá-lo, discipliná-lo. Deu ao caos uma linguagem,
uma inteligência, uma ordem. Mas era Lenin e tinha, a seu lado, toda
uma seletíssima elite de revolucionários. Ao passo que, na França,
estamos vendo o caos gratuito. Sim, o caos com a obtusidade do caos.
E nada mais.
O patético da agitação estudantil não é a festa dos carros
virados, nem os gerentes seqüestrados, que ninguém devolve. O pior,

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repito, é um cartaz, um simples cartaz, que os estudantes empunharam,
desde o primeiro dia. Lá está escrito: – DE GAULLE ASSASSINO.
Vejam vocês: – assassino. Eis o que o mundo pergunta numa
perplexidade total: – “Será mesmo assassino?”.
Vejamos o seu retrospecto, como se De Gaulle fosse um cavalo
de corrida. Na última guerra, a França tinha o maior Exército da
Europa e entregou-se. Hoje, Barrault morre no palco e, em seguida, vai
comer um bom bife. Por que, na guerra, não se atirou debaixo de um
tanque nazista? Na capitulação, a França era uma paisagem sem
franceses. Nenhum francês, nenhum. Ou por outra: – restava, na
solidão de França, um único francês.
Era o assassino De Gaulle. Não me falem em Resistência. A
Resistência só tem um nome: – De Gaulle.
E, mais tarde, quando o país precisou de um líder, de um herói,
só encontrou um: – o assassino, que já a salvara uma vez. Assim foi
todo o povo, inclusive os comunistas, que pôs De Gaulle no poder.
Cabe então a pergunta: – e por que, de repente, esse mesmo povo
trai o seu amado líder?
O cartaz citado parece-me o dado essencial. Aí está o ódio ao
herói. Jamais se viu um sentimento de culpa tão nítido e tão cruel.
Sentimento de culpa apenas latente e que, por fim, explode. Os que
capitularam precisam destruir o que não se rendeu.

[O GLOBO, 21/5/1968]

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