Resumo: Esse artigo investiga alguns percursos da composição artística do ator de teatro
contemporâneo, refletindo sobre seus processos criativos, de autoria e comunicação,
observando a elaboração da cena, destacando as trans relações entre corpo, memória e imagem, a
partir procedimentos que envolvem o fazer teatral contemporâneo na produção de sua visualidade e
pensamento. A investigação do trânsito entre linguagens inserido nos processos criativos é essencial
para pensarmos criticamente o ator contemporâneo diante de sistemas e redes comunicacionais no
escopo da cultura, lançando olhares sobre a construção dos seus diversos objetos comunicativos que
atuam em interseção, revelando diferentes modos de construção de ações e tessituras criativas. A
fundamentação teórica se estrutura a partir dos estudos da Prof.ª. Dr ª. Cecilia Almeida Salles, que
investigam processos de criação no âmbito da complexidade dos sistemas; Além disso, o referencial
teórico propõe diálogos com pensadores fundamentais aos estudos do ofício do ator, do corpo, da
imagem e da cultura (Christine Greiner, Helena Katz, Lucia Santaella, Norval Baitello, Edgar Morin,
RoseLee Goldberg, Klauss Vianna e Flávio Desgranges).
Uma foto, a lembrança das rugas, o eco distante de uma cor da voz permitem
reconstruir uma corporalidade. Primeiro, a corporalidade de alguém
conhecido, depois, cada vez mais distante, a corporalidade do desconhecido,
do antepassado. Será literalmente a mesma? Talvez não literalmente, mas
como poderia ter sido. É possível chegar lá atrás, como se a sua memória
despertasse. É um fenômeno de reminiscência, como se nos lembrássemos do
Performer do ritual primário. Toda vez que descubro algo, tenho a sensação de
que é algo de que eu me lembro. As descobertas estão atrás de nós, e, para
alcançá-las, temos que fazer uma viagem para atrás. Com o irromper – como
no retorno de um exilado – será que se pode tocar algo que não está mais
ligado às origens, mas – se ouso dizer – à origem? Acredito que sim. Será que
a essência é o fundo oculto da memória? Eu realmente não sei. Quando
trabalho próximo à essência, tenho a impressão de que a memória se atualiza.
Quando a essência é ativada, é como se fortes potencialidades se ativassem.
Talvez a reminiscência seja uma dessas potencialidades. (GROTOWISK,
2015, p. 5)
Assim, percebemos que a memória pode vir a ter um papel significativo na criação no
teatro, atuando na ativação de “essências” e/ou singularidades, podendo ser manifestar em
várias graus como elemento definidor das formas (imagens/texto) que se darão no corpo.
Stanislavski, por exemplo, preconizava a memória como parte essencial na construção do
personagem.
Constatamos que a complexidade das relações entre imagem e corpo também avançam
muito além do que está circunscrito no obviamente visível. Assim a memória, utilizada no
teatro em suas várias possibilidades de replicação/recriação de uma lembrança, por exemplo,
pode vir a ser ativada no sentido de invenção e criação e, então, o ator, pode oferecer imagens
e significados poderosos. A grande questão da imagem na cena está em possuir poder de
comunicação mais imediato e direto, mas, ainda assim, aberto. Essa abertura coloca-se na
chance sempre presente no teatro, da memória do público se tornar parte integrante da obra,
influenciando-a e, também, “atuando” sobre o corpo/memória do ator e, ainda, da forma
espetacular. As imagens que daí se originam, podem vir a oferecer vias de mão dupla na
2António Rosa Damásio. (Lisboa, 25 de fevereiro de 1944) é um médico neurologista, neurocientista português
que trabalha no estudo do cérebro e das emoções humanas. É professor de neurociência na Universidade do Sul
da Califórnia. Além de ter escrito o grande livro "O Erro de Descartes” que mudou a ideia das pessoas verem a
junção "da razão e emoção" na qual por seus estudos ele afirma que o sistema límbico (parte do cérebro que
controla as emoções e ações básicas) e o neocórtex (parte da razão) estão relacionadas pois trabalham sempre em
conjunto.
construção de significados na cena, na composição dos corpos – memória da experiência
física e mutuamente elaborada, entre ator e público. Segundo Quilici, “O corpo deve ser um
emissor de signos que lança novas luzes sobre a situação dramática, explicitando contradições
fundamentais da trama” (QUILICI, 2015).
A diversidade das trocas no trânsito para a edificação da tessitura da forma espetacular
aponta para a possibilidade de um ator capaz de oferecer ao público a parte que lhe cabe, ou
deveria caber, na criação do ato teatral. Falamos de um artista capaz de decodificar e
recodificar seus processos criativos, propondo interações vivas com o ambiente, vias de
múltiplos acessos, ou seja, experiências efetivas junto ao seu coletivo criativo e a plateia na
construção de comunicação, de significados e linguagem na elaboração da escrita e da leitura
cênica. Sobre esse aspecto Burnier afirma que:
Essa perspectiva de contaminação entre corpo e ambiente, fala diretamente aos modos
de criação de um ator permanentemente em estado provisório, em transição, em nomadismo,
em mutação. Fica claro que os modos de produção de sua arte, devem abarcar conceitos
acerca da mobilidade e do atravessamento, próprios das artes do tempo e se encontram
afinados com natureza da elaboração do pensamento artístico hoje. Assim, constatamos que
ator contemporâneo deve estabelecer um corpo permanentemente à deriva, no sentido de que
todo o seu processo criativo se dá em contínua investigação e inacabamento. Sobre esse
aspecto dos processos criativos, Salles afirma que:
O calor é uma noção que invadiu o universo físico. Em toda a parte onde há
calor, isto é, agitação de partículas ou átomos, o determinismo mecânico
deve abrir espaço para um determinismo estatístico, e a estabilidade imutável
deve ceder lugar a instabilidades, turbulências ou turbilhões. Assim como o
calor se tornou uma noção fundamental no devir físico, é preciso dar-lhe um
lugar de destaque no devir social e cultural, o que nos leva a considerar que.
Onde há “calor cultural”, não há um determinismo rígido, mas condições
instáveis e movediças. Do mesmo modo que o calor físico significa
intensidade/multiplicidade na agitação e nos encontros entre partículas, o
“calor cultural” pode significar intensidade/multiplicidade de trocas,
confrontos, polêmicas entre opiniões, ideias, concepções. E, se o frio físico
significa rigidez, imobilidade, invariâncias vê-se então que o abrandamento
da rigidez e das invariâncias cognitivas só pode ser introduzido pelo “calor
cultural” (MORIN, 2011, p. 35).
Sabemos que o artista do corpo é um corpo físico, vivo. O corpo é em si com toda a
complexidade da vibração de algo que tem consciência de seu estado/criação/vida. Ele é em si
e, é mídia que revela as formas de sua criação. Mas a revelação/apresentação/comunicação da
forma pelo corpo é um desafio, pois o corpo do ator atua, naturalmente, em impermanência
mais premente. O corpo é mídia no período de tempo em que a cena, coreografia, intervenção
é apresentada mas também, atua na memória. Como o artista visual, o artista do corpo
interage com o expectador para a criação de imagens e significados. Quilici pensa sobre as
importantes relações entre corpo e imagem na cena:
Assim, além das associações possíveis entre corpo, imagem e memória, entre tantas
possibilidades, a arte do ator contemporâneo pode ser pensada a partir do embate entre
individual e coletivo posto como construção de redes de criação complexas na busca do
estabelecimento de comunicação com o público e na estruturação de um corpo especializado
em apontar a condição e o tempo atual. Os processos criativos não são lineares. Os caminhos
que constituem a obra apresentam vários nós constituídos da formação técnica, empírica e/ou
acadêmica do artista, interações com o ambiente, são feitos de insigths, escolhas conscientes e
inconscientes, procedimentos repletos de idas e vindas, em ligações sutis ou nem tanto que se
esclarecem na medida em que acontecem, se desenvolvem e são postos no mundo. As
relações são formadas a partir de filtros ligados à experiência e ao olhar do ator. Segundo
Salles:
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