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«» gciictuugias gregas eram p0u


mais do que “contos de criança” ( tkxÍÔojv [...] jUlSGcav).137a iden I
fieaçio entre mito e genealogia chega a B occacd o , que recolherj
exposição dos mitos da Antigüidade so b o título Genealogia deo
rum gentiliunu Aristóteles, para quem (Poética, 1455b) o autor de
uma tragédia só deveria inserir os n om es d as personagens apóster
elaboradoa trama, parece sugerir o con trário .l3S M as essa afirma­
ção écontradita por outro trecho da Poética (1453a), em que Aris­
tótelesregistra que as tragédias passaram a girar sempre em torno
dos mesmos nomes e das m esm as fam ílias. <cB asta pronunciar o
nome de Êdipo que todo o resto já se sabe”, escreve Ateneu, citando
as palavras do comediógrafo Antí fones, “ seu p a i Laio, sua mãe
Jocasta, os filhos e as filhas, o que acontecerá com ele, o que fez. 0
mesmo se dá com Alcméon: b asta n om eá-lo, e as crianças logo
dizem que, enlouquecido, matou a mãe.” 159O s n om es, verdadeiros
microcontos,140resumiam os mitos, fornecendo ao grupo partici­
pante um poderoso instrumento de iden tificação que excluía o
estranho: uma função desenvolvida paralelam ente pelas genealo­
gias não míticas.
f O nome isolado, “nem verdadeiro nem falso”, a que Aristóte-
]les associou o verbo isolado, é o núcleo do m ito.141“A filha de Minos
'e de Pasífae”, o único verso que o esnobism o parn asian o de Bloch
(o amigo do narrador da Recherche) salvava em to d a a obra de
Racine, porque tinha o mérito de “ não sign ificar absolutam ente
nada”, é, de todos os versos de Phèdre, o m ais d en so de conteúdo
J mítico.142O mito é, por definição, um conto que já foi contado, um
l conto que já se conhece.

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i. Representação
A palavra, a idéia, a coisa

f . Nas ciências hum anas fala-se muito, e há muito tempo, de


“representação”, algo que se deve, sem dúvida, à ambigüidade do
termo. Por um lado, a “ representação” faz as vezes da realidade
representada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível
a realidade representada e, portanto, sugere a presença. Mas a con­
traposição pod eria ser facilm ente invertida: no primeiro caso, a
representação é presente, ainda que como sucedâneo; no segundo,
ela acaba remetendo, por contraste, à realidade ausente que preten-
|fde representar.1N ão entrarei nesse aborrecido jogo de espelhos.
J Basta-me fazer entender o que, em tempos recentes, os críticos do
i positivismo, os pós-m odernistas céticos, os cultores da metafísica
\d a ausência, volta e m eia encontraram no termo “representação?
A oscilação entre substituição e evocação mimética já está
registrada, com o observou Roger Chartier, no verbete représenta-
tioti do Dictionnaire universel de Furetière (1690). Nele, são citados
tanto os m anequins de cera, m adeira ou couro que eram deposita­
dos sobre o catafalco real durante os funerais dos soberanos ffan-
woc mgieses como o íeuo mneore vazio e coberto com
«a»
u m \,
çol mortuário que mais antigamente representava” o sobe
atio
defunto. A vontade mimética presente no primeiro caso esta
ausente no segundo; mas em ambos se falava de “representaçõ^
Partamos daqui.

2.0 testemunho mais antigo de um catafalco vazio num fune­


ral régio remonta a 1291. Nesse ano, informa-nos um documento
conservado nos arquivos de Barcelona, os sarracenos que viviam
na cidade aragonesa de Daroca atacaram os judeus agrupados em
tomo de um esquife“que estava ali representando [in representa-
tionem]” Afonso m, o soberano que acabara de morrer.5Já a utiliza­
ção do manequim nos funerais dos reis é bem mais tardia; na
Inglaterra, remonta a 1327 (quando da morte de Eduardo n); na
França, a 1422 (quando da morte de Carlos vi).4Desses manequins
— objetos frágeis, destinados a um uso efêmero — , pouquíssimos
restaram, quase sempre grosseiramente restaurados.5
Emst Kantorowicz sustentou que o manequim exibido nos fu­
nerais dos soberanos ingleses e franceses ao lado do cadáver
exprimia de forma palpável a teoria jurídica do duplo corpo do rei.
De um lado, o manequim, o corpo eterno do rei, associado a uma
instituição pública ( dignitas); de outro, o cadáver, o corpo efêmero
do soberano com o indivíduo.6 A dem onstração é convincente,
ainda que seja forçoso recordar que, pelo menos na França, o cos­
tume de exibir nos funerais um a efígie do defunto, cham ada preci­
sam ente de representacion , não se lim itava aos soberanos.7 M as
com o surgiu o hábito de exibir ambos? Segundo Ralph Giesey, ado-
j tou-se o m anequim com o “ substituto do corpo” por m otivos de
/ ordem prática: as técnicas de em balsam am ento se encontravam
] tão pouco evoluídas que, se não se quisesse expor um cadáver semi-
( putrefato, era preciso recorrer a um m anequim de madeira, couro
Vou cera.* Trata-se, no entanto, de um a explicação pouco convin-

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nte. Teria sido possível recorrer ao catafalco fünebre coberto com
umlençol mortuário: uma alternativa baseada numa evocação não
J fljimética, e consagrada pela tradição.* Já em Londres, em 1327,
i decidiu-se pagar um artesão para que fizesse quandam ymaginem
de ligno ad similitudinem dicti domini Regis, uma imagem de
madeira que se parecesse com o rei morto, Eduardo n. Por quê? E
por que essa inovação seria adotada na França um século depois,
prolongando-se por tanto tempo em ambos os reinos?10
Falei de “inovação”, termo talvez ilegítimo. As imagens de
cera utilizadas durante os funerais dos imperadores romanos nos
séculos ii e m eram muito semelhantes — notou Julius von
Schlosser — àquelas de cera, madeira ou couro dos reis franceses
e ingleses exibidas em circunstâncias análogas um milênio depois.
Devemos supor uma filiação ou uma redescoberta espontânea?
Schlosser inclinava-se para a primeira hipótese, se bem que os tes­
temunhos de tal continuidade sejam mirrados." Pela segunda hi­
pótese pronunciaram-se outros historiadores, entre eles Giesey.
Ele não nega as semelhanças (sobre as quais voltarei em breve)
entre os funerais dos reis franceses e ingleses e os dos imperadores
J romanos; mas a comparação entre ritos pertencentes a culturas
j tão distantes entre si lhe pareceu “fácil, porém estéril” de um ponto
/ de vista histórico.12E acrescentou: “Do ponto de vista da antropo-
logia cultural, as semelhanças são estimulantes, mas as conexões
Vhistóricas são frágeis”."
A hipótese que orienta estas páginas é exatamente oposta.
Procurarei demonstrar que as semelhanças transculturais podem
\ ajudar a compreender a especificidade dos fenômenos de que par-
j tiram . É um caminho laborioso, que demanda uma quantidade
significativa de vaivéns espaciais e temporais. Os manequins dos
reis franceses e ingleses servirão de ponto de referência.

«7
V

3 . 0 p ró p rio G ie se y re v e la te r p a r t id o , p o r SUge8tà
mestre K antorow icz, claro , d o e n s a io d e E lia s ° de * * \
apoteose d o s im p e ra d o re s r o m a n o s (1 9 2 9 ) .16E m págin as brilha * \
tes, que suscitaram crític as v ig o r o s a s , B ic k e rm a n analisou os rito, \
da comecratio, b ase ad a em u m a d u p la in c in e ra ç ã o : a do corpo do \
im perador e, dias d e p o is, a d a s u a im a g e m d e cera. G raças a esse
funus im aginarium , a e sse s “ fu n e r a is d a im a g e m ”, o imperador
que já havia ab a n d o n ad o seu s d e s p o jo s m o r ta is , e ra recebido entre \
os deuses. B ickerm an sa lie n ta v a e x a t a m e n t e a s an a lo g ias entre l
esses ritos e os fen ô m en o s in glês e fra n c ê s d a Id a d e M édia tardia; 1
n u m a n ota, tam b ém a lu d ia a o s r ito s f u n e r á r io s e stu d a d o s por 1
Frazer. A paren tem en te, e s c a p o u -lh e a “ C o n t r ib u iç ã o para um 1
estudo sobre a representação coletiva d a m o r te ” q u e R ob ert Hertz
havia publicado em Année sociologique ( 1 9 0 7 ) .15 E n o entanto, no
fim do prim eiro parágrafo do e n saio de B ic k e rm a n p o d e m o s ler
um a afirm ação que poderia ter sid o su b sc r ita p o r H e rtz: A morte
não constitui o fim da vida do corp o no m u n d o : n ã o é o fato bio 6
gico, m as o ato social— os fu n erais— q u e se p a r a o s q u e se vão dos
que ficam ” 16 O esplêndido ensaio de H ertz in v e stig a , n u m a pers­
p e c tiv a bastante am pla,o rito do duplo se p u ltam e n to e stu d a d o por
j Bickerm an no contexto rom ano. H ertz m o stra q u e a m o r te , toda
m orte, é um acontecim ento traum ático p ara a c o m u n id a d e : um a
j v e rd ad e ira crise, que pod e ser d om in ad a m e d ia n te a a d o ç ã o de
rito s q u e tran sfo rm am o acontecim ento b io ló g ic o n u m p ro c e sso
social, co n tro lan d o a passagem do cadáver putrescen te (o b je to in s­
t á v e l e am ea ç ad o r p o r excelência) a esqueleto. E ntre e sse s rito s e stá
o se p u ltam e n to p ro v isó rio ou, em outras culturas, a m u m ific a ç ã o
e a cre m a ç ão , às vezes co m b in adas: soluções específicas, s e g u n d o
H e r tz , d e u m p r o b le m a e xtrem am en te d ifu so .17 N a R o m a d o s
A n to n in o s, a ssim c o m o n a In glaterra e na França d o Q u a tr o c e n to s
e d o Q u in h e n to s, o s fu n e rais d o c o rp o d o s im peradores e d o s re is
tin h a m u m a fu n ç ã o c o m p a rá v e l à d o s sepultam entos p r o v isó rio s

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analisados por Hertz. Em ambos os casos, eram seguidos do* fune­
rais das imagens, ou seja, de um rito não apenas definitivo, mas
V eternizador. O imperador era consagrado deus; o rei, em virtude da
afirmação da perenidade da função monárquica, não morria
nunca. As imagens imperiais de cera e as efígies reais, que consuma­
vam a morte dos imperadores como processo social, equivaliam,
num plano diferente, às múmias ou aos esqueletos. Já há algum
tempo, Florence D upont chegou à mesma conclusão, seguindo
outro roteiro de pesquisa."
Nesse horizonte amplo, transcultural, é possível avaliar me­
lhor a especificidade da solução idealizada quer na Roma dos
Antoninos, quer na Inglaterra e na França do Quatrocentos e do
Quinhentos. Neste último caso, sabe-se que a esfinge mostrava o rei
“vivo” ; m as também em Roma a imagem era inscrita no que foi
definido como um a“ ficção da soberania postmortem”.'* Uma pági­
na bem conhecida da História romana de Díon Cássio descreve a
estátua de cera do imperador Pertinax, falecido em 193, “adornada
com hábitos triunfais”; diante dela, “um jovem escravo espantava
as moscas com um leque de plumas de pavão, como se o soberano
estivesse dorm indo”.20Herodiano descreve com ainda maior rique­
za de detalhes as cerimônias que se seguiram à morte de Sétimo
Severo: durante sete dias a imagem de cera do imperador, acomo­
dada num grande leito de marfim com cobertura dourada, foi visi­
tada por médicos que constatavam que o doente estava “cada vez
pior”.21 Essas descrições certamente lembram o que aconteceu na
França em 1547, depois da morte de Francisco i. Por onze dias,
Jfo ra m realizados banquetes, primeiro junto do cadáver, depois
j junto da efígie do rei: comia-se junto dele, bebia-se junto dele, e
( “bacias de água limpa [eram] oferecidas ao trono do supracitado
i Senhor, com o se ainda ali estivesse sentado, vivo’’.22Giesey observa
que o texto de Herodiano começou a circular na França por volta
de 1480 e que os mais antigos testemunhos franceses sobre o costu-

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me do banquete fúnebre remontam ao fim do Quatrocentos’
tudo, como vimos, ele não acredita que essas analogias c?"
Antigíiidade romana se devessem a imitação consciente.23 5
As argum entações d e G iesey às v ezes d ã o m argem a dúvida
um detalhe discord an te, c o m o o in íc io d o b an q u ete fúnebre em
honra de Francisco I ao lad o d o cad áver, n ã o b a sta p ara demonstrar !
que os hábitos franceses eram to talm e n te independentes dos usos
rom anos.24 M as u m a criação a u tô n o m a n esse âm b ito certamente
era possível, até m esm o em so c ied ad es m a is d istan tes no espaço do
que a Rom a de Sétim o Severo e a F ran ça d e F ran cisco i no tempo.
f Um relatório de Francisco P izarro, o c o n q u ista d o r d o Peru, confir­
m ado por outros testem u n h o s, in fo rm a q u e n a s circunstâncias
| mais solenes os incas exibiam as m ú m ia s d e se u s reis, por eles con-
J servadas com grande cuidado, e a elas ofereciam b anquetes e brin-
\ des.25U m a analogia e spantosa, q u e talvez se ja p o ssív el explicar,
pelo menos hipoteticamente. N o Peru, o p a trim ô n io dos sobera­
nos defuntos se constituía no p a lá c io real d e C u z c o , em gado e
escravos,bens administrados por u m g ru p o fo rm a d o pelos herdei­
ros homens, com exceção do rei, que n ad a d e m aterial herdava do
( soberano que o precedera.26 P ortan to, em te o ria , o s soberanos
"S defuntos conservavam o poder— e os incas m an tin h am com suas
m úm ias relações de reciprocidade que se ex p rim iam no banquete
ritual. N a França também, uma ficção legal a tr ib u ía o pod er ao
soberano falecido, se bem que por um tem po lim itad o, q u e coinci­
dia com o período— que Giesey definiu com o “ interregno cerim o­
nial” — imediatamente precedente à coroação d o n o v o rei.27 Em
outras palavras, injunções análogas produziam, em circunstâncias
totalm ente heterogêneas, resultados convergentes.
Tudo isso aju da a reformular o problema que v árias vezes foi
J levan tad o a propósito dos funerais reais na França d o Q u in h en -
) tos. A alternativa entre “ imitação dos modelos ro m an o s e inven­
ç ã o in d ep e n d en te concerne somente a um lado d o p r o b le m a

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C om o sa lie n ta ra m v ig o ro s a m e n te M arc B loch e C laude Lévi-
Strauss a p r o p ó sito d e q u e stõ e s totalm en te distintas, o contato
(se é que h ou ve co n ta to , o qu e neste caso n ão é seguro) não expli­
ca a p erm an ên cia.28

4. Por q u e, e n tão , em R o m a e em o u tro s lugares, eram cons­


truídas im agen s d o s im p e ra d o re s ou reis falecidos? Florence Du-
pont d eu u m a r e sp o s ta , p a r tin d o d o u so , p ró p rio d as fam ílias
aristocráticas ro m an as, de confeccionar m áscaras de cera dos ante­
passados {imagines). A imago era considerada equivalente dos os-
{ sos, porqu e se acred itava qu e u m a e ou tros eram um a parte com
‘ respeito ao to d o , o co rp o .29 R ecordem os que M arcei M auss, anali-
\ sando a n o ção de p e sso a , já h avia salientado a estreita relação que
/ existia na R o m a an tig a entre a imago e o cognomen, isto é, a parte
m ais p e sso a l d o siste m a d o s três n om es.30 Entretanto, o uso das
m áscaras d o s a n te p a ssa d o s n ão se restringia às famílias aristocráti­
cas.31 B ickerm an cita u m a lei, que rem onta aos anos 133-6, em que
um colégio o u u m a asso ciação de Lanúvio se reservava o direito de
celebrar u m funus imaginarium, “ funeral da imagem”, no caso de
um p a tro n o m a lv a d o n ão conceder o corpo de um escravo m em ­
bro d o co légio.32
N e ste ú ltim o ca so , a imago funerária su bstitu ía o cadáver
ausente. E sse d a d o converge com o ponto de chegada de u m a d is­
cu ssão qu e se o rig in o u de um tema circunscrito— o significado d a
palavra g re ga kolossós— , m as que se am pliou até alcançar o estatu ­
to d a im a g e m c o m o tal. Q uem a iniciou foi Pierre C h an train e
( 1 9 3 1 ) ,c o m u m a nota sobre a etimologia da palavra kolossós, qu e a
seu ver d ev ia ser investigada fora do âm bito indo-eu ropeu . N o en ­
tanto, a o co rrigir o rascunho do artigo, acrescentou q u e a lei sa g ra ­
d a d e C iren e, publicada havia pouco, m ostrava qu e o sig n ific ad o
o r ig in a l de kolossós não era aquele com qu e n o s fa m ilia r iz a m o s
d e v id o a o colosso de Rodes — o de “ e státu a d e g ra n d e s d im en -
sões” — , mas simplesmente o de “estátua”. D ois anos de 0-
artigo de Émüe Benveniste orientou a pesquisa em o u tra d W
De acordo com a lei sagrada de C irene (segunda metade do £
iv), quem acolhia em sua casa suplicantes estrangeiros devia inv0°
car três dias seguidos o nom e da pessoa que os protegia. Se essa pes
soa estivesse morta ou fosse desconhecida, aquele que pronuncia-
va a invocação devia confeccionar kolossoí, fantoches de madeira
ou de argila, de sexo masculino e fem inino, que seriam posterior­
mente “plantados num a m ata virgem ”. Tal explicação pareceu
estranha para vários estudiosos, se não p u ra e simplesmente ilógi­
ca. Mas, objetou Benveniste, “quem sabe a ad m issão de que um ser
vivo desconhecido é como se não existisse não obedece a uma lógi-
jc a mais profunda?”. Daí a conclusão: “ Eis o significado autêntico da
jpalavra: estatuetas funerárias, substitutos rituais, duplos que to-
t mam o lugar dos ausentes e continuam su a existência terrena.
Poderiamos acrescentar: representações. Entre os fco/ossoí gre­
gos e as efígies funerárias de cera, couro, m adeira, d os soberanos
franceses ou ingleses, as analogias são im pressionantes tanto no
que concerne à forma como no que d iz resp eito à função. A lei
sagrada de Cirene previa explicitamente um ban qu ete ritual com
as estatuetas funerárias, como o que seria celebrado m ais tarde no
Quinhentos, em Cuzco ou em Paris. Em E sp arta, inform a-nos
Heródoto (vi, 58), quando um rei m orria na guerra, fazia-se seu
simulacro (eíbcoAov), que era exibido então num leito adornado.
Tal utilização foi comparada por ]ean-Pierre V ernant com aquela
prevista na lei sagrada de Cirene.54Devem ser evitadas aqu i as refe­
rências à magia, que não explicam nada.55 Porém , as observações
sobre a ligação entre imagens funerárias e imagens em geral perm i­
tem reler de um ponto de vista novo o ensaio de Ern st G om brich
Meditations on a hobby horse, assim como o não m en os im p o rtan ­
te de Krzysztof Pomian sobre sua coleção.Também G om b rich p ar­
tiu d a representação. Suas reflexões sobre o cavalo de p a u co m o

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“substituto de um cavalo” o levaram a salientar a função da substi­
tuição nos arranjos funerários: “ O cavalo ou o servo de barro,
sepultados nos túmulos dos poderosos, substituem os cavalos ou
os servos vivos”. Essa observação, referida por exemplo ao Egito
antigo, é projetada por Gombrich, hipoteticamente, num plano
mais geral: “A substituição precede a intenção de fazer um retrato,
e a criação, a de comunicar”. Somente em algumas sociedades— a
Grécia, a China, a Europa do Renascimento — uma mudança de
funções acabou gerando o surgimento de uma arte diferente, liga­
da à“idéia da imagem como representação no sentido moderno do
termo”. Dez anos mais tarde, essas fórmulas rápidas e brilhantes
foram desenvolvidas pelo próprio Gombrich em seu fundamental
íArte e ilusão.36Pomian, por sua vez, para entender o que unifica os
J objetos tão díspares que encontramos nas coleções, partiu das ofer­
tas funerárias: nelas reconheceu, assim como nas relíquias, nas
^curiosidades, nas imagens,“intermediários entre o aquém eo além,
entre o profano e o sagrado [...] objetos que representam o distan­
te, o escondido, o ausente [...] intermediários entre o espectador
j que os mira e o invisível de que provêm [...]”. No momento em que
< são subtraídos do âmbito dos objetos de uso para serem isolados no
/ espaço à parte do túmulo ou da coleção, esses objetos se tornam
v“semióforos”, portadores de significado.”
A substituição precedeu a imitação, supunha Gombrich.
Tanto nos kolossoícomo nas representationesfunerárias, o elemen­
to substitutivo prevalece nitidamente sobre o elemento imitativo.
Antes de discorrer sobre este último, quero salientar que todas as
pesquisas mencionadas até aqui, além de tratarem de temas bem
diferentes, foram realizadas de maneira independente. As conver-
r gências que assinalei se mostram, portanto, ainda mais significati-
J vas. Mas como interpretá-las? Devemos associá-las às característi-
)cas universais do sinal e da imagem, ou a um âmbito cultural
(específico? E, neste último caso, a qual?

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A alternativa qu e ap en as delin eei está n o centro de um e
em que Jean-Pierre Vernant re to m o u , desenvolvendo-o, o t r a b Í
de Benveniste sobre o kolossós. V ernant m o stra que o kolossós {&
parte de um gru po de term o s ( “ a lm a ”, “ im agen s oníricas”, “som­
bra”, “aparições sobrenatu rais” ) acerca d as q u ais “ temos o direito
de falar [...] de um a verdadeira categoria psicológica, a categoria do
‘duplo’, que pressu p õe u m a o r g a n iz a ç ã o m en tal diferente da
nossa”. Contudo, no fim do ensaio, V ernant m u d a repentinamente
de tom:

Talvez estejamos abordando aqui um problema que vai muito além


do caso do kolossós e que corresponde a um a das características
essenciais do signo religioso. O signo religioso não ^e apresenta
como simples instrumento de pensamento, não visa apenas evocar
na mente dos homens a potência sagrada a que remete, mas quer
sempre estabelecer também uma verdadeira comunicação com ela,
^inserir realmente sua presença no universo humano. No entanto,
procurando assim construir uma ponte ligando ao divino, ele deve
ao mesmo tempo ressaltar a distância, revelar a incomensurabilida-
de entre a potência sagrada e tudo o que a manifesta, de um modo
necessariamente inadequado, aos olhos dos homens. Nesse sentido,
o kolossós é um bom exemplo da tensão que existe no interior do
signo religioso e que lhe proporciona sua dimensão própria. Para a
f ua função operatória e eficaz, o kolossós tem a ambição de estabele­
cer, com o além, um contato real, de realizar sua presença aqui.
Todavia, nessa mesma tentativa, ressalto o que o além da morte com­
porta, para o vivo, de inacessível, de misterioso, de fundamental­
mente diferente.”

De um lado, a organização mental dos gregos, que era diferen­


te da nossa; de outro, as tensões intrínsecas ao signo religioso, que
p o d em o s encontrar tanto na Grécia como em nossos dias E ssa

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oscilação entre u m a p e rsp e ctiv a h istó ric a e u m a perspectiva uni-
versalista, que in sp iro u a s fe c u n d a s p e sq u isa s de V ernant, é m ais
que com preensível, ten d o em v ista a relação de to d o especial, um
misto de d istâ n c ia e filia ç ã o , q u e n o s sa c u ltu ra m an tém com a
grega.5’ M as n o c a s o d a im a g e m , c o m o em o u tr o s, verificou -se
entre nós e o s g re go s u m a fra tu ra p ro fu n d a, qu e deve ser exam in a­
da de perto.

5. V oltem os à consecratio d o s im p erad ores rom an os. Florence


Dupont salien tou q u e tal rito im p lica u m paradoxo. Em R om a,

para consagrar um m orto é necessário [...] tirá-lo do túmulo de mo-

)
do a inseri-lo no espaço sagrado em que se situará seu templo. Isso é
impensável, tanto do ponto de vista do morto, que ficaria sem sepul­
tura, como do ponto de vista do espaço sagrado, que seria horrivel­
mente contaminado com a presença de um cadáver [...]. Os túmu­
los são expulsos para fora da cidade [...] é proibido edificá-los no
chão público em que os templos são erigidos.

Já se v iu co m o o o b stácu lo foi superado:

Dois corpos possibilitam a presença do morto em dois espaços dis­


tintos, o dos túmulos e o dos templos, nos dois tempos incompatí­
veis dos cultos funerários e dos cultos públicos. O imperador per­
m anece presente entre os homens depois da sua morte de duas
m aneiras diferentes.40

E ssa situ ação foi subvertida pela vitória do cristian ism o. O s


cem itérios, as cid ad es d os m ortos, foram inseridos dentro d as cid a­
d es d o s v ivos. N e ssa “ abo lição m ilenar d a p roib ição religio sa de
p ra tica r o sepu ltam en to intramuros”, Jean G uyon recon heceu “ o
sinal de u m a verdadeira m utação histórica”.41P orém , algu n s d esses

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m ortos p o ssu ía m u m sta tu s e sp e c ia l a o s o lh o s d o s fiéis-
res. Peter Brow n in sistiu v ig o r o s a m e n te n a presença do ^ i
| em geral, d o san to , p o r m e io d a s r e líq u ia s. O statu s metm,- '
que se qu is atribu ir à imago d o s im p e r a d o re s rom an os se mostra,
neste caso, to talm en te ju stific a d o . A a lm a d e M artinho, lia-se na
inscrição gravada em seu tú m u lo em T o u rs, está ao lado de Deus
(cuius anima in manu Dei est); e n o en ta n to M artin h o hictotusest
praesens manifestus om ni gratia virtutum (está aqu i, inteiro, como
dem onstram m ilagres de to d o tip o ).42
A função atrib u íd a às relíq u ias d o s sa n to s n o m undo cristão
deve ter m od ificad o p ro fú n d am en te a a titu d e em relação às ima­
gens. Essa hipótese é u m sim p les c o ro lá rio d aq u e la anteriormen­
te form ulada, que sugeria a existên cia d e u m a relação estreita entre
/im agens e o além . M as as relíq u ias m e sm a s faziam parte de um
âm bito que não conhecem os em su a to ta lid a d e .43 A ntes de mais
nada,h á o fenôm eno que os p o lem istas c r istã o s ch am aram de ido-
I latria. Deveriamos levá-lo finalm ente a sério, ad m itin d o duas coi-
j sas: que sabem os muito pouco a seu respeito e qu e esse pouco que
\ é conhecido é de difícil interpretação.44A sob revivên cia (e as meta­
m orfoses) dos deuses antigos de um p o n to d e v ista artístico foi
esclarecida faz tem po por estu d io so s c o m o F ritz Sax l, Erwin
Panofsky, Jean Seznec, ligados prim eiro à W arbu rg Bibliothek e
depois ao Warburg Institute.4S M as ainda perm an ece largamente
inexplorada a gam a das reações (absorções, m etam o rfo ses, rejei­
ções) provocadas no plano religioso pelo en c o n tro en tre essas
im agens, inclusive as popularescas, e as tendências parcialm ente
n ão icôn icas, se não explicitamente antiicônicas, arra ig a d a s na
tradição hebraico-cristã.
Para ilustrar a complexidade desse encontro basta o exem plo
de santa Fé, que segundo a lenda foi martirizada aos doze an os de
idade, no início do século iv. Sua imagem, conservada no tesouro
da igreja d e C onques (ilustração 7), é considerada um a o b ra fún-

96
dam ental d a e scu ltu ra e d a ou rivesaria carolíngia. A m esm a im a­
gem d esem pen h a u m a fu n ç ão im p ortan te no Liber miraculorum
sancte Fidis. | j
O s d o is p rim eiro s livros d esse texto hagiográfico foram redi­
gidos entre 1013 e 1020 p o r B ernard d ’Angers, u m clérigo que estu­
dava na escola d e C h artres. B ernard, devoto fervoroso de santa Fé,
saíra em viagem co m u m am igo , u m escolar de nom e Bernier, com
destino a C o n q u es: a s relíqu ias d a san ta se encontravam ali fazia
um século e m eio, isto é, d esd e qu an d o haviam sido su btraídas de
um a basílica erigid a especialm ente para elas em Agen.“ D urante a
peregrinação, B ern ard ficou im pressionado com a abundância de
estátuas de ou ro , p rata e o u tros m etais, na região da Auvergne e de
Toulouse, qu e co n tin h am relíquias de santos. Para pessoas cultas
com o ele e seu am igo , tratava-se de u m a superstição, algo que re­
cendia a p ag a n ism o , se n ão a cultos diabólicos. Ele havia visto num
altar u m a estátu a de são G eraldo, coberta de ouro e de ped ras pre­
ciosas, q u e parecia olh ar para os cam poneses ajoelhados em prece
com o lh o s brilh an tes. B ernard voltou-se para o am igo e pergu n ­
tou -lh e em la tim ( latino sermone), com um so rriso m alicio so :
‘ Irm ão, o qu e acha deste ídolo? Júpiter ou Marte ter iam considera­
do u m a estátu a co m o esta indigna deles?”. As únicas estátuas que
p o d ia ad m itir, observou , eram os crucifixos. Pintar san tos n u m a
pared e — imagines umbrose coloratis parietibus depicte— tam b ém
era adm issível. M as a veneração das estátuas dos santos lhe parecia
u m a b u so inveterado de gente ignorante: se ele tivesse dito p o r ali o
qu e pen sava d a estátua de são Geraldo, tê-lo-iam tratad o co m o u m
crim in oso.
Três d ia s d epois, Bernard e Bernier chegaram a C o n q u es. A
im agem d a santa, denom inada “m ajestade de santa Fé” (M ajestas
sancte Fidis), estava conservada n u m a saleta, qu e se en co n trav a
ch eia de gente de joelhos. N ão poden do im itar o exem plo d aq u elas
p e sso a s, B ernard exclam ou: “ Santa Fé, de cu jo co rp o h á u m ffag-
mento conservado nesta estátua, ajuda-me no dia
julgado!” E, enquanto dizia essas palavras, o l h a v a ^ r a T ^
com o rabo do olho. Suas palavras estavam carregadas de dest* 8°
pela estátua-relicário da santa, como se ela fosse um simulacr^I
Vênus ou de Diana, um ídolo a que são oferecidos sacrifícios.
Mas isso tudo pertencia ao passado. No momento em que
escrevia, Bernard disse ter compreendido seu erro, graças aos mila­
gres de santa Fé descritos na antologia. Conta a história de umtal
de Ulderico, que havia falado em tom zombeteiro da estátua de
santa Fé. Na noite seguinte, a santa lhe apareceu agredindo-o com
/um porrete:“Por quê, celerado, ousaste insultar minha imagem?”.
J Bernard concluiu que a estátua não podia nem prejudicar a fé cris-
Jtã nemfazer temer uma recaída nos erros dos antigos. Elahaviasido
erigida em honra a Deus, e para conservar a memória da santa.47
í Peter Brown observou que a cólera e a vingança manifestadas
-por santa Fé são, por assim dizer, a correlação dos sentimentos de
j justiça da comunidade: “Ela era a voz grave do g ru p o ”.48Isso é ine­
gável. Contudo, os milagres de santa Fé, transmitidos pela cultura
oral, estão encerrados num texto escrito que contém trechos como
os citados acima, centrados numa série de oposições assimétricas,
indivíduos cultos/camponeses; latim/línguas vulgares; pintu-
ra/escultura; Cristo/santos; religião/superstição (sem contar a
oposição, não declarada mas onipresente, entre homens e mulhe­
res). Elas podem ser reduzidas a uma dupla oposição, cultural e
social: de um lado, a oposição entre cultura escrita (em latim) e cul­
tura oral (em língua vulgar); de outro, entre cultura escrita e ima-
( gens.48No âmbito das imagens se insinua uma nova h ierarqu ia, que
J remonta à tradição judaica: as estátuas são muito mais perigosas do
| que as pinturas, uma vez que servem de incentivo à idolatria.50É
( verdade que, no fim do capítulo, Bernard reconhece ter se engana­
do; a devoção dos camponeses pelas estátuas de são Geraldo e de
santa Fé nada tinha de supersticiosa, logo suas atitudes religiosas
devem ser toleradas (permittantur). Mas o olhar do douto, oriun-
do de um ambiente bem diferente, como era o do Norte da França,
permanece indulgentemente hierárquico.51

6. A estátua de são Geraldo, que sugerira a Bernard a compa­


ração, entre irônica e escandalizada, com os ídolos de Júpiter e de
Marte, se perdeu. Entretanto, a restauração da estátua de santa Fé,
também comparada por Bernard aos ídolos de Vênus e de Diana,
revelou que em fins do século x o corpo havia sido adaptado a uma
cabeça muito mais antiga, que remontava ao século iv ou ao início
do século v: a cabeça de ouro, coroada de louros, de um imperador
romano divinizado. A primeira reação de Bernard d’Angers não
fora, pois, de todo injustificada.52
A cronologia da estátua de Conques e das modificações que
sofreu foi muito discutida. Jean Taralon, que a restaurou, propôs
uma datação alta, próxim a ao fim do século ix. No âmbito do
“renascimento da escultura tridimensional da era pré-românica”, a
de santa Fé seria “a mais antiga estátua do Ocidente que chegou até
nós”.52Bernard d’Angers informa que as estátuas-relicários de san­
tos e santas eram muito difundidas na França meridional. As
Madonas com o menino Jesus em majestade podem ser considera­
das variantes do mesmo tipo.54Sua função de relicários nada tem de
marginal: ao que tudo indica, ela constitui uma espécie de álibi para
o retorno à escultura tridimensional.55O fragmento do corpo de
santa Fé, evocado em tom vagamente cínico na prece de Bernard
d’Angers, permitia confiar aos camponeses de Conques o invólu­
cro que encerrava a relíquia: a boneca dourada de olhos brilhantes,
com o manto incrustado de pedras preciosas, representando a
mártir menina.
Nos contos milagrosos relatados por Bernard d’Angers, a ima- ;
gem de santa Fé aparece envolta em uma ambivalência caracterís- ,
tica. De um lado, atraía a hostilidade e o sarcasmo dos detratores; i
priamente não havia nenhuma diferença. A argumentação propos
ta por Bernard d’Angers para evitar o risco de idolatria — a ima.
\gem como auxílio para a m e m ó ria — p o d ia atin gir apenas uma
[exígua minoria de fiéis.
As perplexidades que a im agem de san ta Fé provocavam em
Bernard d’Angers desapareciam qu an d o se falava de Cristo no cru­
cifixo. A Igreja difunde crucifixos escu lp id o s o u em baixo-relevo,
observou Bernard, para m anter viva a m e m ó ria d a Paixão.5* E no
À • •
entanto, as imagens de C risto tam b ém p o d ia m estar sujeitas a um
olhar idólatra. Em toda a E uropa, de V eneza à Islân d ia ou à No-
ruega, encontram-se imagens de C risto, em cru z o u em majestade,
acompanhadas de dísticos latin os c o m o este, q u e rem onta pelo
menos ao século xn:

Hoc Deus est, quod imago docet, sed non Deus ipse
Hanc recolas, sed mente colas, quod cernis in illa.
j (O que a imagem ensina é Deus, mas ela não é Deus
I Medita sobre a imagem, mas adora em espírito o que vês nela.)59

Medo das imagens e desvalorização das im ag e n s— essa atitu­


de ambígua prevalece em toda a Idade M édia européia. Contudo,
imago (com o figura) é palavra de múltiplos significad os.60 U m tre­
cho, novamente extraído do Liber miraculorum sancte Fidis, será
suficiente para darm os uma idéia de uma série de tem as aq u i ape­
nas esboçados. Ao citar o exemplo de um cavaleiro p u n id o p o r seu
orgulho, Bernard d ’Angers exclama, dirigindo-se a si m esm o:

100
Deve» ger feliz, ó d ou to, por tere» ví»to o Orgulho não em imagem
I imagínalíter), como leste na Psicomaquía de Prudéncío, m a* na
sua autêntica e corpórea presença [presentíalíter corporalíterque
proprie)

f As c o n o ta ç õ e s sa c ra m e n ta is d esse trecho são sem d ú vid a in-


) voluntárias, e p o r isso m e sm o revelad oras. H avia m u ito qu e imago
era u m a p a la v ra a sso c ia d a a o E vangelho: “ U m b ra in lege, im ago in
(. Evangelio, v e rita s in c a e le stib u s” (a so m b ra na lei, a im agem no
E vangelh o, a v e r d a d e n a s c o is a s ce le ste s), h avia escrito san to
A m brósio.62 M a s n o trech o q u e citam o s acim a, imago evoca a fic­
ção, talvez a a b s tr a ç ã o ; e m to d o c a so , u m a realid ad e p á lid a e
em pob recid a. Presentia, a o co n trário — palavra ligada há tem p o s
às re líq u ia s d o s sa n t o s — , te ria sid o c a d a vez m ais a sso c ia d a à
eucaristia.63
A o p o siç ã o entre eu caristia e relíquias é explícita no Depigno-
ribus sanctorum, o tra ta d o sob re relíquias de G uibert de N ogen t,
con clu íd o em 1125.MG u ibert não se lim itava a repelir as falsas relí­
q u ias, c o m o o su p o sto dente de leite d o m enin o Jesu s osten tad o
( pelos m o n g e s de Sain t-M éd ard . A creditava que a única m em ória
1 d eixad a p o r C risto era a eucaristia. Isso o levava a d esvalorizar as
/ re líq u ia s su b stitu tiv a s ( repraesentata pignorà) e as sin é d o q u e s,
! co m o fig u ra lin gü ística cara aos ignorantes.65V em os delinear-se a
ten d ên cia q u e co n d u ziria, em 1215, à p roclam ação d o d o g m a d a
tran su b stan ciação .
A im p o rtâ n c ia d ecisiva d esse aco n tecim en to n a h istó ria d a
p e rc e p ç ã o d a s im agen s já foi salien tad a p o r o u tr o s e s tu d io s o s.66
M as su a s im plicações não são totalm ente claras. Tentarei fo rm u lar
a lg u m a s d elas à luz d o qu e foi d ito até aqui. A descon t i n u idade p r o ­
fu n d a entre as idéias qu e se distin gu em p o r trás d o kolossós grego e
a n o ç ã o d e presen ça real salta im e d ia ta m e n te a o s o lh o s. C la ro ,
tr a ta - se , em a m b o s o s c a so s, d e sig n o s re lig io so s. P o ré m , se ria

101
impossível relacionar à eucaristia o que Vernant falou do *
isto é, que, “para a sua íunção operatória e eficaz, o k o b s s ó n ^
ambição de estabelecer, com o além, um contato real de reaijj 1
sua presença aqui”. À luz da formulação do dogm a da transubsun
riação não se pode falar simplesmente de “contato”, mai sim de
/ sençano sentido mais forte do termo. A presença de Cristo nahós-
< tia é, de fato, uma superpresença. Diante dela, qualquer evocação
I ou manifestação do sagrado — relíquias, imagens — empalidece,
l pelo menos em teoria. (Na prática, as coisas são diferentes.)
As hipóteses, mais ou menos ousadas, que seguem darão idéia
de alguns possíveis desdobram entos destas páginas. Depois de
v 1215, o medo da idolatria começa a diminuir. Aprende* se a domes­
ticar as imagens, inclusive as da Antigüidade pagã. Um dos frutos
dessa reviravolta histórica foi o retorno à ilusão na escultura e na
pintura. Sem esse desencantamcnto do m undo das imagens, nlo
teriamos tido nem Arnolfo di Cam bio, nem Nicola Pisano, nem
Giotto. Attidéia da imagem como representação no sentido moder­
no do termo", de que Gombrich falou, nasce aqui.
Esse processo teve repercussões sanguinolentas. A ligação
entre os milagres eucaristicos e a perseguição d o s judeus é bem
conhecida.*7 Supôs-se que a acusação de sacrifício ritual lançada
contra os judeus a partir da metade do século xit tivesse projetado
para o exterior uma angústia profunda, relacionada à idéia de pre-
( sença real vinculada à eucaristia.** Alguns elementos da polêmica
j antijudaica tradicional assumiram então um novo significado: a
j acusação de idolatria centrada no conto bíblico do bezerro de ouro,
( o u a de excesso literal na interpretação da p a lav ra d e D e u s. O
M ogm a d a transubstanciaçào, na medida em que n egava o s d a d o s
sensíveis em nom e de um a realidade profunda e invisível, p o d e ser
interpretado (pelo m enos poT um observador externo) como u m a
vitória extraordin ária da abstração.

102
A abstração tam b ém triunfa, no mesmo período, no âmbito
da teologia e d a liturgia política. Na grande pesquisa de Kantoro-
v?icz sobre o d u plo corpo do rei, as alusões à eucaristia são curiosa­
mente m arginais.** Ê provável, porém, que o dogma da transubs-
tan ciaçio ten h a desempenhado, nesse processo histórico, uma
função decisiva. V ou me limitar a um exemplo, retirado da descri­
ção das cerimônias que se realizaram em Saínt-Denis por ocasião
das exéqu ias do condestável Bertrand du Guesciin (1389). O
m onge au tor da crônica de Saint-Denis relata uma cena que viu
com os próprios olhos: o bispo de Autun, que estava celebrando a
m issa, a o chegar ao ofertório, saiu do altar com o rei para ir ao
encontro de quatro cavaleiros que, na entrada do coro, exibiam as
arm as do defunto “com a finalidade de mostrar, por assim dizer, a
presença corpórea dele [ ut quasi ejus corporalem presenciam de-
monstrarent]".79As implicações eucarísticas dessa extraordinária
comunhão heráldica e eqüestre (de norma, reservada a barões e
príncipes) se explicam facilmente à luz da hipótese que proponho.
ÍE a presença real, concreta, corpórea de Cristo no sacramento que
] possibilita, entre o fim do Duzentos e o princípio do Trezentos, a
\ cristalização do objeto extraordinário de que parti, até fazer dele o
/ símbolo concreto da abstração do Estado: a efígie do rei denomi-
\ nada representação.

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