Você está na página 1de 14
Luiz Felipe de Alencastro Bahia, Rio de Janeiro e a nova ordem colonial 1808-1860 L Osnegros e a nagio Normalmente, a independéncia dos pafses latino-americanos é apresentada como um. periodo de transigio entre o colonialismo ibérico e o neo-colonialismo britinico. Na América espanhola “a rota de Liverpool substituia aquela de CAdiz e seus agentes dominavam o mercado como haviam feito aqueles do porto espanhol”, enquanto que, na América portuguesa, “a relago de forga e a politica de uma Coroa habituada & humildade pelas experiéncias acumuladas... tomava impossivel toda resisténcia ¢ inevitavel a integrag2o do Brasil 20 sistéma econdmico inglés”. Certamente, esta transigfo nfo & uniforme para 0 conjunto do sub-continente, jé que “a expanstio do centro encontra situagSes nacionais que tornam possiveis diferentes tipos de alianga, de resisténcia © de tensio”®). Estas dliangas, resistencias e tensdes sio geralmente conduzidas pelas burguesias mercantis das cidades portuérias latino-americanas. Conseqiientemente, esta camada social desempenha um papel decisivo na organizagaio do espago politico da América Latina, 0 qual ser marcado por uma fragmentagto dos vice-reinados hispano-americanos e pela unidade do vice-reinado luso-brasileiro. Partindo destas constatagdes, Celso Furtado propée uma explicagéo baseada na ‘oposigio existente entre as “burguesias crioulas”, constituidas em certas cidades portuérias da América espanhola no final do periodo colonial, e a burguesia mercantil portuguesa, que continuava a dominar o mercado intemo brasileiro: “Na América espantiola a burguesia crioula atuou contra a unio (dos vice-reinados); no Brasil, nfo ha burguesia crioula e @ burguesia (mercante) 6 portuguesa, portanto, ela atuou 2 favor da alianga com 2 Coroa (luso-brasileiray", Toga:se_al_num dos capitulos marcantes da histéria brasileira ¢ em uma das guestbes-c -chave da histSHa Tati i a afganiassa que “manteve as “diferentes, rezides brasileira umnidas? ar : ‘Nés j4 abordamos este assunto, tentando demonstrar que a economia colonial brasileira era bipolar, comportando uma zona de produgao escravista (0 Brasil) e uma zona de produgio de escravos (os mercados africanos sob 0 controle portugués). Este sistema econdmico desdobrado engendra uma camada de mercadores negreiros luso-brasileiros que assegura aos fazendeiros brasileiros o acesso aos mercados de escravos africanos até 1850. Sem poder enfrentar diretamente os interesses coligados dos mercadores negreiros e dos senhores, a burocracia imperial luso-brasileira ganhava tempo frente as pressbes britanicas contra 0 tréfico ~ ou trato — negreiro, garantindo assim a sua prépria sobrevida e a unidade do Império do Brasil, visto que 0 imperador apareceri como 0 mandatirio privilegiado das provincias e dos senhores junto A diplomacia européia'. Por esta razio, quando ela rompe a articulagio africana da economia brasileira, a Inglaterra pde fim a matriz espacial transcontinental perpetuada, até entZo, por intermédio das cidades portuérias brasileiras. Examinando 0 comércio entre o Brasil ¢ a Africa pelos portos da Bahia e do Rio de Janciro durante a primeira metade do século XIX, n6s nos propomos a aprofundar aqui o estudo dos mercadores negreiros, cujas atividades especulativas, clandestinas e aterritorisis escapam as referéncias nacionais que guiavam as “burguesias crioulas” da América espanhola; mas também nos afastamos das correntes tradicionais que mantém a ligagzo entre 0 comércio metropolitano portugués e o Brasil. TL, A autonomia do comércio negreiro no Brasil A descoberta © a exploragio do ouro, no inicio do século XVIII, dota o territério brasileiro de um centro econdmico dinamico, alarga o mercado intermo ¢ 0 campo de atividades produtivas, amplifica e diversifica a demanda de escravos. Desde a metade do século XVII, a presenga de um comércio especificamente brasileiro, que utiliza os navios € as mercadorias de troca brasileiras (ouro, tebaco, aguardente), é ampliada nas costas africanas, Escrevendo em 1779, 0 ministro portugués de Além-mar sublinha que “os americanos (brasileiros), se transportam para esta costa (afticana) com suas préprias embarcagées ¢, desde logo, lhes foi muito fécil estabelecer neste local seus negécios, excluindo inteiramente os negociantes do reino™”). ‘Ao contrério do que se produziu na Bahia — onde os comerciantes mantém uma .certa regulagao entre a oferta ¢ a demanda de escravos ~ o comércio negreiro toma:se uma " atividade, especulatéria auténoma no Ric Rio. de Janeiro. Além do mais, neste tiltimo porto, os mercadores negreiros abastecem tanto” os fazendeiros do litoral como também os exploradores de ouro e diamantes do interior e o setor tercidrio da capital do vice-reinado, Zona de contato de correntes ilegais, 0 comércio negreiro escapa 20 controle metropolitano — em beneficio dos interesses brasileiros — mesmo antes do monopélio comercial portugués no Brasil ser abolido em 1808. Quando se concretizam as primeiras concessées diplomdticas em vista da supressio do trato negreiro (1810), seguidas do reforgo da regulamentagiio e do aumento das taxas sobre as importagies de escravos (1813 ¢ 1818), este ramo do comércio atlantico toma-se mais e mais clandestino. Duas regides afficanas de tréfico so particularmente submetidas & influéncia brasileira: Benguela, cujo desenvolvimento havia sido suscitado pelos mercadores negreiros do Rio de Janeiro, e a costa da Mina, onde o comércio da Bahia detém posigdes s6lidas®. Tal era a situagao em 1808, quando dois acontecimentos fundamentais para a historia do trato negreiro se verificam. Logo depois seguidos pela maior parte das poténcias européias, a Inglaterra ¢ os Estados Unidos abandonam 0 comércio intemacional de escravos, perdendo, assim, uma parte da sua influéncia mercantil na Africa. No mesmo momento, os Hispano-cubanos ¢ 0s Luso-brasileiros que continuam a praticar o “infame comércio” passario a dispor de uma oferta suplementar de escravos nos portos africanos. Por outro edo, privadas, dai em diante, do acesso direto aos mercados de escravos afficanos, as plantagdes antilhanas, concorrentes das cubanas e das brasileiras, conhecem um periodo de incertezas. Em segundo lugar, é também em 1808 que os portos brasileiros sio abertos A livre navegacao, pondo fim ao monopélio comercial lusitano. B ainda preciso levar em consideraso 0 fato de que a presenga da Coroa portuguesa no Rio de Jancito, entre 1808 e 1821, canaliza em diregao a este porto uma série de noves correntes de comércio. Neste contexto, a patente de 4 de fevereiro de 1811, autorizando 0 comércio direto entre os diferentes portos das colénias portuguesas, permitiré & rede negreira brasileira monopolizar 0s cativos exportados de Mogambique e dos portos de trifico da A rica oriental. Pouco a pouco, o Rio de Janeiro torna-se o lugar de encontro e de reciclagem de duas rotas de comércio distintas, mas complementares. Por um lado apresenta-se a oferta de escravos da maior parte das zonas africanas de tréfico. Por outro, desembocam os produtos manufaturados norte-americanos ¢ europeus exportados em dirego 20 mercado intemo brasileiro, mas também ~ por meio do viés das reexportagdes — em direg%o do Prata e dos mercados afticanos onde o trato negreiro ainda dominava as trocas. E porque eles lucravam. com os produtos brasileiros de troca, com o dinheiro obtido nos portos do Prata ¢ com as mercadorias fornecidas pelos comerciantes estrangeiros estabelecidos no Rio de Janeiro, que 08 negreiros luso-brasileiros poderao captar a maior parte dos escravos disponiveis na costa africana, logo em seguida da saida dos negreiros europeus e americanos: entre 1801 ¢ 1850 o Brasil recebe 80% do total de escravos retirados da Africa”. Ponto de convergéncia dos fluxos comerciais que se compensam ¢ se completam, 0 Rio de Janeiro é a sede de um sistema de crédito dindmico que seré gradualmente conectado & cultura do café. A medida que a oferta atlantica de escravos € muito mais sustentada no Rio de Janeiro que nos outros portos brasileiros, a cultura do café toma progressivamente o lugar da cana-de-agticar, substituindo o Nordeste pela regio centro-sul como o primeiro plano da vida nacional. Mas este é um outro setor onde a dinamica do comércio negreiro teré conseqiléncias também importantes. Com efeito, € gragas as facilidades de crédito concedidas pelos negociantes de escravos do Rio de Janeiro, que numerosos pequenos cultivadores ¢ funcionarios poderdo organizar as plantagdes de café no centro-sul do pais. Sob este ponto de vista, faz todo sentido a oposigo levantada: por | certos historiadores, entre ao caréter “democratic” da cultura do café ¢ a natureza aristocratica” da economia agucareira, Notar-se-A também a importincia do tréfico negreiro e dos mercadores de escravos, para a concentragdo de riquezas e para a evolugao politica do Brasil no século XIX. Lembrémo-nos das diferentes fases do comércio brasileiro com a Africa antes de estudar a situag%io do Rio de Janeiro e da Bahia: + 1808-1815: Luso-brasileiros ¢ Hispano-americanos ocupam as zonas africanas de trato abandonadas pelos traficantes dos outros paises. ~ 1815-1831: O comércio negreiro ¢ ilegal ao norte do equador, mas ele continua legal a sul do equador e no Brasil, = 1831-1840: Este comércio é ilegal no Brasil mas legal em Angola até 1834 ¢ em Mogambique até 1840. = 1840-1850: O trato negreiro prossegue clandestinamente, quando se tornou ilegal no Brasil e na Africa. + 1850-1860: Reciclagem do comércio ilicito em comércio licito: fim do tréfico africano. IILA influéncia do Rio de Janeiro sobre Angola Durante a segunda metade do século XVII, cresce 0 mimero de mercadores itinerantes em Angola, ao mesmo tempo que desembarcam na colénia pequenos comerciantes ¢ aventureiros provenientes de Portugal, mas também do Brasil. A razio aparente desta migragéo inter-colonial é a depressto do mercado interno brasileiro, em

Você também pode gostar