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O MESMO E O OUTRO: INVENCAO E DOMINACAO" Alessandra Carlos Costa” RESUMO O presente ensaio busca discutir a problemética do aparecimento da América no Ocidente vis-a-vis a perspectiva de Edmundo O'Gorman, O autor faz uma reavalia- ¢40 critica demonstrando a construgdo “légica” de uma realidade inferiorizada, tomando-se, desse modo, pertinente abordar certas questdes do género responséveis por um discurso sexista. O grande problema da histéria americana consiste, segundo Edmundo O’Gorman em A Invengdo da América, em dar conta de uma explicagaio plausivel sobre o aparecimento da América na cultura ociden- tal. A designagdo de que o continente foi descoberto passa, depois das inquictagdes de O’Gorman, a nao dar conta do fendnemo histérico. O que o autor faz em seu livro é averiguar a origem dessa idéia ¢, para tornar isso tornar possivel, ele esgota todas as possibilidades logicas para a accitagao da descoberta O que buscarei demonstrar neste ensaio ¢ que a “Invengdo” se tornou possivel em fungao da estrutura mental dos curopeus, moldada por uma tradigaio medieval comprometida com questées de ordem teolgica A elaboragito deste texto deveu-se, na sua orientagio geral ¢ em grande parte, a alguns dos {6picos abordados na disciplina Representacdo do Poder e da Alteridade no Discurso Cronistico ‘ministrada no curso de Mestrado em Letras ¢ Lingaistica da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goias (UFG). Mestranda em Estudos Literdrios na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiés (UFG) Signotica, 9:1-10, jan/dez. 1997 1 Neste ponto, sera. necessario ressaltar a questo do género, a qual possibilita a construgéo de um discurso sexualizador marcado por “binarismos classificat6rios ¢ hicrarquizados”.' Alguns desses binarismos devem ser destacados: homem/mulher; ordem/desordem; civilizado/selva- gem. O que ira se constatar acerca desse aspecto é que houve o privilégio da realidade masculina sobre a feminina. Em fungdo disso, ha a necessidade de uma reavaliagao critica que permita a desconstrugdo do discurso patriarcal ¢ suas tendenciosas estratéyias que fundamentam a sua pretensa seguranga légica e monolitica ¢ a infabilidade da sua capacidade de representagdo da verdade,” pois, cle funciona como uma hierarquia sexual de valores ¢ de poder. Essas consideragGes sao necessarias, pois, segundo o Prof. Pedro Fonseca, funcionam como preliminares teéricos para uma reavaliagaio do discurso cronistico. A construgao desse discurso sexualizador possibilitou 4 mentalida- de ocidental cultivar um complexo de superioridade ¢ garantiu o direito de conquistar civilizagdes que consideravam inferiores. E nesse ponto que se da a aculturag4o do Outro, que é Outro exatamente em fungao de suas diferengas culturais. O que ocorreu foi um processo de ocidentalizagao, com o discurso centrado no /ogos masculino, dai a feminilizagdo da outra realidade percebida. A preformagaio da natureza como feminina coincide com 0 desejo de posse do explorador. Neste caso, a raz4io opde-se ao desejo instintivo e caracteriza a justificagao do dominio, ou seja, a mulher é& enxergada como insaciavel, regida por instintos monstruosos que transgri- dem a ordem natural Essa concepgaio mis6gina funciona como estratégia discursiva e é ‘© combustivel que move a ordem simbélica do discurso patriarcal para consolidagdio de sua retérica hegeménica que,marcada por construgdes erdtico-sexuais, tem como fim a apropriagao ¢ a reificagao da realidade americana. O conhecimento da natureza se da a partir de relagdes analdgi- ‘cas com 0 corpo feminino nu, enxergado como objeto, dai a construgdo “racional” que justifica a apropriagao e a exploragao. Neste caso, a realidade do continente americano € vista como receptiva, passiva, totalmente sujeita ao controle do homem curopeu A estrutura mental do homem medieval moldada por uma série de preconceitos morais ¢ culturais, 4 considera a priori a inferioridade do 2 COSTA, Alessandra Carlos, O mesmo ¢ 0 outro: invengaio e dominagao. que lhe é novo e periférico. A explicagdo da feminilizagao da América é reforcada pelos aspectos da monstrualizagao ¢ naturalizagao A sexualizagao da terra-natureza, analoga ao corpo feminino, relaciona-se aos atos de penetragao ¢ consumagao por parte do explora- dor. Essas imagens aparecem em Thevet, ou seja, a terra apresenta-se pronta para a penetragao do curopeu Mostra-nos a Terra, exteriormente, uma face triste e melanc6li- ca, recoberta, em sua maior parte, por pedras, espinhos, cardos e coisas que tais, No entanto, se vem o lavrador abri-la com arado ou chamua, ali encontrara a exceléncia do solo, pronto a produzir a mancheias e a recompensa-lo centuplicadamente * Essa feminilizagao carrega em si toda uma carga preconceituosa e discriminatoria, pois a imagem da mulher é associada a Sata, e possui, portanto, uma forte tendéncia 4 deformagdo, a desintegra¢do moral ¢ fisica, por isso é preciso que a ordem seja restabelecida pelo poder masculino. O maniqueismo que plasma as relagdes coloniais s6 existe em fun- do do mal, pois o bem vence-o ¢ assimila-o, causando entdo a exclusio da participagao da realidade apropriada, dada a perda de suas referéncias culturais e de sua prépria identidade. No que se refere a naturalizagao ¢ 4 monstrualizagdo, André Thevet, logo nas primeiras paginas do seu livro ja adverte o leitor: Nao duvido de modo algum, leitor que o presente relato nfo te cause um certo espanto, tanto pela diversidade dos assuntos aqui expos- tos, quanto por tantos outros fatos que poderdo, a primeira vista, parecer antes monstruosos que naturais* A inclusio desses aspectos monstruosos numa realidade que apresenta alguma conformidade cria um ponto de indecisdo e leva a instauragdo do grotesco, ou seja, 0 normal que nao se completa. André Thevet, mesmo amenizando a possibilidade da existéncia de ragas monstruosas descritas por outros autores, ndo descarta a existéncia delas: A vasta € plana regio adjacente ao Cabo & pouco habitada, por ser muito agreste, Sua populagdo é barbara, selvagem, e até mesmo monstruosa. Entreianto no se deve acreditar que os homens dali sejam Signética, 9:1-10, jan /dez. 1997 3

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