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Original em inglês:
Abreviaturas
Introdução
I. Quem escreveu este evangelho?
II. Consideramos primeiro o “onde” e logo o “quando”
III. Por que foi escrito?
IV. Quais são suas características?
V. De que forma está organizado?
MARCOS 1
Mc. 1:1–8 - O ministério de João Batista
Mc. 1:9–11 - O batismo de Jesus
Mc. 1:12–13 - A tentação de Jesus no deserto
MARCOS 11
Mc. 11:1–11 - Entrada triunfal em Jerusalém
Mc. 11:12–14 - Maldição da figueira
Mc. 11:15–19 - Purificação do templo
Mc. 11:20–25 - A lição da figueira seca
Mc. 11:27–33 - A autoridade de Cristo: pergunta e contra
pergunta
MARCOS 12
Mc. 12:1–12 - A parábola dos lavradores maus e seus efeitos
Mc. 12:13–37 - Perguntas capciosas e respostas com autoridade.
Além disso, a pergunta de Cristo
Mc. 12:38–40 - Denúncia contra os escribas
Mc. 12:41–44 - A oferta de uma viúva
MARCOS 13 - Discurso de Cristo sobre os últimos tempos
Mc. 13:1–4 - A ocasião. Predição da destruição do templo
Mc. 13:5–13 - O começo dos ais ou dores de parto
Mc. 13:14–23 - A grande tribulação
Mc. 13:24–27 - A vinda do Filho do Homem
Mc. 13:28–31 - A lição da figueira
Mc. 13:32–37 - A necessidade de estar sempre preparado, à
vista da incerteza sobre o dia e a hora da
vinda de Cristo
Marcos (William Hendriksen) 6
MARCOS 14
Mc. 14:1, 2 - O propósito de Deus contra a confabulação
humana
Mc. 14:3–9 - A unção em Betânia
Mc. 14:10, 11 - O acordo entre Judas e os principais
sacerdotes
Mc. 14:12–21 - A Páscoa
Mc. 14:22–26 - A instituição da Ceia do Senhor
Mc. 14:27–31 - Jesus prediz a negação de Pedro
Mc. 14:32–42 - Getsêmani
Mc. 14:43–50 - A traição e arresto de Jesus
Mc. 14:51, 52 - O jovem que fugiu
Mc. 14:53–65 - O juízo diante do Sinédrio
Mc. 14:66–72 - A tríplice negação de Pedro
MARCOS 15
Mc. 15:1 - A decisão do Sinédrio de matar a Jesus. Jesus é
conduzido diante de Pilatos
Mc. 15:2–5 - Pilatos interroga Jesus
Mc. 15:6–15 - Jesus é sentenciado à morte
Mc. 15:16–20 - A zombaria
Mc. 15:21–32 - O Calvário: A crucificação de Jesus
Mc. 15:33–41 - O Calvário: A morte de Jesus
Mc. 15:42–47 - A sepultura de Jesus
B. A RESSURREIÇÃO
MARCOS 16
Mc. 16:1–8 - O Senhor ressuscitado; as mulheres surpreendidas
Bibliografia Seleta
Bibliografia Geral
Marcos (William Hendriksen) 8
ABREVIATURAS
A. Abreviaturas de livros
B. Abreviaturas de Revistas
1
Para a evidência que apoia todas estas datas, veja-se W. Hendriksen, Bible Survey, pp. 62, 64, 70, 71;
também CNT sobre o Gl 2:1.
Marcos (William Hendriksen) 14
sua esposa em suas viagens missionárias (1Co. 9:5) e que Jesus pouco
tempo depois de Sua ressurreição apareceu a tal apóstolo (1Co. 15:5).
Mas este tipo de afirmações não invalidam de modo algum o fato de que
o Novo Testamento não oferece indicação alguma sobre o paradeiro de
Pedro a partir dos anos 50/51 até o final de sua vida, que foi
possivelmente pelo ano 64 d.C. O próprio Senhor havia predito que
Pedro selaria seu testemunho com o martírio (Jo. 21:18, 19; veja-se CNT
sobre esta passagem; cf. 2Pe. 1:14; I Clemente V; Tertuliano, Antidote
for the Scorpion’s Sting XV; Orígenes, Contra Celso II. xIV; e Eusébio,
História Eclesiástica, III. i).
Portanto, a teoria de que Pedro reinou como Papa em Roma por
vinte e cinco anos, do ano 42 a 67, carece de base bíblica. É a igreja
Romana a que sustenta essa tradição. Na realidade, se essa tradição fosse
verídica, quando Paulo escreveu sua Epístola aos Romanos (em ou ao
redor do ano 58), Pedro teria sido achado no apogeu de seu reinado.
Entretanto, na extensa lista de saudações que Paulo dirige aos crentes de
Roma de maneira individual (Rm. 16:3–15), nem sequer menciona
Pedro.
Agora, com relação à presença de Pedro em Roma, não há razão
para escolher nenhum dos dois extremos. Por um lado, devemos
abandonar fantasias como a dos vinte e cinco anos de episcopado
romano de Pedro e a identificação de sua tumba. Por outro lado, o
mesmo se deve fazer com a declaração de que Pedro jamais tenha estado
em Roma. Como no ano 58, Paulo escreve aos Romanos “esforçando-
me, deste modo, por pregar o evangelho, não onde Cristo já fora
anunciado, para não edificar sobre fundamento alheio” (Rm. 15:20),
alguns concluem que Pedro jamais pôde ter estado em Roma antes do
ano 58. Este é um argumento, por certo, falacioso. A igreja de Roma
tinha sido fundada muito tempo atrás, conforme o indica claramente a
mesma epístola. Provavelmente a igreja originou-se quando os
“visitantes vindo de Roma; judeus e prosélitos” voltaram aos seus lares
Marcos (William Hendriksen) 15
com prazerosas novas, depois de terem ouvido o sermão que Pedro
pregou em Jerusalém para a festa do Pentecostes (At. 2:10b, 14ss).
Referente ao significado de Rm. 15:20, quando Paulo diz que quer
pregar o evangelho onde Cristo não seja conhecido, referia-se a Espanha,
lugar que desejava visitar via Roma (veja-se Rm. 15:24). De modo que
Pedro, a quem Jesus ao edificar Sua igreja tinha atribuído um papel de
muita importância (Mt. 16:18), bem pôde ter feito uma visita anterior a
Roma, especialmente em consideração aos judeus cristãos residentes ali.
Segundo já observamos, os relatos do Novo Testamento nos deixam
com uma lacuna de vários anos quanto à vida de Pedro. Nada nos é dito
sobre onde esteve durante os anos 33 a 36; 42 e 43; 45 a 49; ou 52 a 62.
Pelo que diz Colossenses 4:11 (cf. Fm. 23, 24), é evidente que não esteve
em Roma durante os anos da primeira prisão de Paulo (talvez 60 a 62),
porque Paulo certamente não teria escrito Colossenses 4:11b, se Pedro
tivesse estado em Roma por aquele tempo. Mas isto ainda deixa a
possibilidade de muitos anos a partir do ano 33, tempo durante o qual
pôde ter estado fortalecendo a igreja de Roma com sua presença,
orações, pregação e direção. Finalmente, isto nos leva à uma data
próxima no final da vida de Pedro e de Paulo, quando reaparece
novamente evidência de uma íntima relação entre a. Pedro e Marcos e b.
Paulo e Marcos. Falaremos disto mais adiante.
A última data que mencionamos em conexão com Marcos foi o ano
44 d.C. Nesse ano não achamos Marcos na companhia de Pedro, e sim
de Barnabé e Paulo. Lembrar-se-á que estes dois homens foram enviados
a Jerusalém numa missão de socorro, e que tinham levado Marcos
consigo a Antioquia da Síria. Quando impulsionada pelo Espírito Santo,
a igreja comissionou a Barnabé e a Paulo para começar o que logo se
chamou a primeira viagem missionária de Paulo (At. 13:1–3), estes
homens levaram Marcos como “auxiliar” (At. 13:5). É evidente que
Marcos estava subordinado aos outros dois. Era um assistente. Não se
diz o que é que incluía exatamente este papel. Naturalmente nos vêm à
mente várias tarefas; por exemplo, talvez seria uma espécie de
Marcos (William Hendriksen) 16
administrador que organizava os detalhes relacionados com o itinerário
de viagem, assegurando a provisão de alimentos e alojamentos, enviando
mensagens; e, sobretudo, servindo como catequista, quer dizer,
continuando com o que os outros dois tinham começado. Como
catequista relatava a história da peregrinação de Cristo na terra e Seu
final triunfante, sublinhando a mensagem central da vida e ensinos de
Cristo, perguntando e respondendo perguntas, etc. Se para aquele então
Marcos já tinha escrito seu Evangelho, maior razão para considerá-lo
como a pessoa indicada para levar a cabo a tarefa de mestre ou
catequista.
Existiam também outras razões para considerar Marcos como a
pessoa mais adequada como auxiliar. Não era o filho de uma mulher tão
hospitaleira como Maria? Não resulta natural supor que ao ser
comissionados a ir ajudar Jerusalém (At. 11:29, 30; cf. 12:25), Barnabé e
Paulo tivessem sido alojados na casa dela, tendo oportunidade de ter
comunhão tanto com a mãe como com o filho? Além disso, não era
Barnabé primo mais velho de Marcos (Cl. 4:10)? Não é possível que
Marcos e seus pais (quando seu pai era vivo) trasladaram-se de Chipre a
Jerusalém, o que era o caso de Barnabé (At. 4:36, 37)? Além disso, não
era João Marcos bilíngue e não eram acaso também bilíngues seus
superiores, ou ainda poliglotas?
Os três missionários cruzaram até o Chipre via Selêucia, o porto da
cidade de Antioquia sobre o rio Orontes (At. 13:14). Tendo pregado a
palavra de Deus nas sinagogas de Salamina, os missionários
atravessaram toda a ilha, até chegar a Pafos na costa sudoeste. Ali o
famoso mago Barjesus lhes opôs e sem êxito tratou de impedir que o
procônsul Sérgio Paulo escutasse o evangelho. O mago e falso profeta
foi castigado com a cegueira, e dali eles se dirigiram a Ásia Menor.
Então sucedeu algo inesperado: quando chegaram a Perge, na Panfília,
Marcos os abandonou e voltou para Jerusalém (At. 13:13; cf. 15:36–
41)! Isto pôde ter ocorrido no ano 47. Não nos é revelado qual pôde ter
sido a razão exata pela qual Marcos se apartou deles. Foi porque lhe
Marcos (William Hendriksen) 17
desagradou o fato de que seu primo Barnabé cedesse a Paulo a
liderança? Contraste-se “por intermédio de Barnabé e de Saulo” (At.
11:30; 12:25; 13:2, 7), com “Saulo, também chamado Paulo” (At. 13:9),
“Paulo” (At. 13:16), e “Paulo e Barnabé” (At. 13:43, 46, 50, etc.). Sentia
falta de seu lar? Sentia-se preocupado pela segurança de sua mãe? Tinha
receios pela oferta de salvação que se fazia a judeus e gentios sem
distinção?
Têm sido oferecidas todas estas respostas. Ou seria talvez as
dificuldades vinculadas ao o trabalho missionário numa terra estrangeira,
os rigores da região montanhosa, seus terrores e perigos? (cf. 2Co.
11:26). O autor do presente comentário pensa que se alguma destas
respostas é factível, a última é a mais razoável. De acordo com At.
15:38, Paulo considerou Marcos como um desertor, alguém cujo coração
se acovardou por causa do “trabalho” que era preciso enfrentar. E não
implica At. 15:40 que se a igreja tomou partido com alguém deles, fê-lo
ficando do lado de Paulo? Em todo caso, o relato inspirado não nos deixa
a impressão de que Marcos fosse totalmente inocente quando voltou para
casa, deixando Paulo e Barnabé em momentos difíceis.
Depois da primeira viagem missionária e da conferência de
Jerusalém, Barnabé teve a ideias de levar Marcos na segunda viagem,
mas Paulo recusou categoricamente aceitar a ideia. Assim que,
“Barnabé, levando consigo a Marcos, navegou para Chipre” (At.
15:39b). Depois de At. 15:39, Lucas não volta a mencionar a Marcos, e
nem mesmo ao querido Barnabé (15:25).
Isto significa que o livro de Atos (e na realidade, todo o Novo
Testamento), não entrega nenhuma informação a respeito de Marcos,
nem sequer implícita, em relação aos dois longos períodos que
respectivamente cobrem os anos 31 a 43 e 52 a 59. Simplesmente, não
sabemos onde esteve nem o que fazia. Os incidentes que temos descrito
pertencem inteiramente aos anos 30, 44–47, 50/51. E as únicas
referências até aqui são Mc. 14:51, 52 (provavelmente); At. 12:12, 25;
13:5, 13; 15:37–39.
Marcos (William Hendriksen) 18
Oferece a “tradição” extra-canônica alguma informação confiável a
respeito de Barnabé e Marcos depois que atracaram a ilha de Chipre?
Realmente não existe, porque o livro chamado Os Atos de Barnabé é
uma obra espúria. Este é um escrito atribuído a Marcos (!), embora foi
escrito com data muito posterior. Segundo este documento, depois que
Barnabé sofreu o martírio em Chipre, Marcos plantou a bandeira de
Cristo em Alexandria. Fontes do mesmo tipo afirmam que chegou a ser o
primeiro bispo da igreja de Alexandria — uma tradição bastante popular
—, posição que ocupou até o oitavo ano do reinado de Nero. Visto que
Nero governou de 54 a 68, seu oitavo ano seria o 61. Entretanto, os
renomados pais alexandrinos Clemente e Orígenes nada dizem
absolutamente a respeito de alguma atividade ou de sequer a presença de
Marcos em Alexandria.
Voltando agora às Escrituras, única fonte de confiança, a única
coisa que dão a entender claramente com relação a Barnabé são duas
coisas: Primeiro, o que nos informa mediante os relatos a respeito dos
primeiros anos (veja-se At. 4, 9, 11–15; e segundo Gálatas, que quando
Paulo escreveu 1 Coríntios 9:6 (ao redor do ano 57 d.C.), Barnabé, primo
mais velho de Marcos, obviamente ainda vivia. Por certo, o nome
“Barnabé” também se encontra em Colossenses 4:10, mas somente para
indicar sua relação com Marcos: eram primos.
Ao redor da data mencionada acima, ou seja, “o oitavo ano do
reinado de Nero”, ou talvez um ano depois, Paulo escreve as epístolas
conhecidas como Colossenses e Filemom. Um dos que o acompanham é
Marcos, quem havia tornado a ganhar a confiança de Paulo. Durante seu
primeiro encarceramento, o apóstolo faz um comentário a respeito dos
judeus: “Aristarco, meu companheiro de prisão, e Marcos, primo de
Barnabé … Jesus, que se chama Justo, os quais são da circuncisão. Estes
unicamente são os meus cooperadores para o reino de Deus, os quais se
têm tornado a minha consolação” (Cl. 4:10, 11, TB; cf. Fm. 24; veja-se
CNT sobre estas passagens). Embora Paulo, em certo sentido, rejeitasse
Marcos (William Hendriksen) 19
Marcos em outro tempo, aqui Marcos aparece como um consolo para ele,
um colaborador valioso, altamente estimado e bem amado!
Pedro se achava em Roma, quando Paulo saiu da prisão e visitou
várias congregações de seu estendido domínio espiritual (veja-se CNT, 1
e 2 Timóteo e Tito, pp. 48, 49). Ali Pedro escreveu a carta que se
conhece como a “Primeira epístola de Pedro”, a qual se dirige aos
expatriados ou estrangeiros dispersos pelo Ponto, Galácia, Capadócia,
Ásia e Bitínia, escolhidos segundo a previsão de Deus o Pai (1Pe. 1:1,
2a). Ao despedir-se em sua carta, diz a todos: “Saúda-vos a igreja que
está em Babilônia, eleita convosco, e o mesmo faz meu filho Marcos”
(1Pe. 5:13, TB). A data é talvez ao redor do ano 63. Não pode ter sido
mais tarde que o ano 64, porque provavelmente foi no final desse ano
que Pedro sucumbiu, vítima da ira de Nero. Não nos é indicado o próprio
termo “meu filho” que a instrução e supervisão paternais de Pedro
vinham há muito tempo? Não é possível que mesmo antes de Pedro ter
escrito isto, tivesse havido frequentes contatos entre ele e João Marcos?
Não é verdade que Pedro era precisamente aquele que soube por
experiência própria que sempre há esperança para aqueles que de um
modo ou outro sucumbem à tentação de não ser totalmente leais a Cristo
e à Sua causa? Parece, pois, que a soberana graça de Deus usou a
“carinhosa tutela de Barnabé” (F. F. Bruce), a firme disciplina de Paulo e
a poderosa influência de Pedro, para triunfar sobre a vida de Marcos.
É claro, então, que durante alguns anos — provavelmente 61–63 ou
64 — o ministério de Marcos se desenvolveu em Roma, a capital do
mundo. Ao que parece, depois do martírio de Pedro, Marcos voltou a ser
assistente de Paulo. O apóstolo enviou Marcos e Timóteo para
realizarem uma excursão pelas igrejas da Ásia Menor. Possivelmente no
ano 66 e um pouco antes de sua morte, Paulo escreve a última epístola
que conhecemos de sua pena. Como Timóteo e Marcos ainda se
encontravam na Ásia Menor, Paulo escreve a Éfeso (veja-se CNT, 1 e 2
Timóteo e Tito, p. 53). Em sua carta diz a Timóteo “Toma contigo
Marcos e traze-o, pois me é útil para o ministério” (2Tm. 4:11b). Em
Marcos (William Hendriksen) 20
contraste com Demas, que foi aquele que o abandonou (2Tm. 4:10a),
Marcos voltou para Paulo!
Afinal de contas, quem foi Marcos? Não foi um grande líder, mas
antes, um seguidor. Não foi um perito arquiteto, e sim um auxiliar. Não
foi um homem irrepreensível, e sim aquele que teve que lutar para poder
vencer suas fraquezas; não era sedentário, e sim um viajante constante;
não era acima de tudo contemplativo, e sim um homem de ação, alguém
que se deleitou em descrever a Cristo em ação, para o bem da salvação
dos pecadores para a glória de Deus.
Embora seja verdade que Marcos escreveu o Evangelho mais breve
de todos, que nunca alcançou a popularidade dos outros três evangelistas
e que nunca é citado com a mesma frequência que aos outros, devemos
cuidar-nos contra tê-lo em pouco. Na igreja primitiva costumava-se
associar os quatro Evangelhos com quatro rostos: rosto de homem, de
leão, de bezerro e de águia. Estes eram os rostos dos seres viventes
descritos em Ezequiel 1:6, 10 (cf. Ap. 4:7). O rosto de “homem” com
frequência era associado (embora nem sempre) com Mateus; o “bezerro”
com Lucas, a “águia” com João. Quanto a Marcos, as autoridades não se
puseram de acordo. Embora todos descobriram neste Evangelho um
quadro verdadeiro de Cristo, ao lê-lo alguns lembravam o veloz voo da
águia, outros ao poderoso leão, outros ao homem humilde e outros ao
bezerro sacrifical. 2 Num sentido, todos estavam certos!
A seguir apresentamos a evidência que respalda a afirmação de que
Marcos realmente foi o escritor deste Evangelho, o mais breve.
Eusébio escreveu a começos do quarto século d.C. Em sua história
eclesiástica (Madri: BAC, 1973), II.xiv. 6–xv.2, declara: “Efetivamente,
pisando os pés [os de Simão, o mago] durante o império de Cláudio [41–
54 d.C.], a providência universal, santíssima e muito amante dos
homens, ia levando pela mão até Roma, como contra um tão grande
açoite da vida [quer dizer, contra Simão, o mago, quem tinha fugido a
2
Veja-se A. B. Swete, The Gospel according to St. Mark (Londres, 1913), pp. xxxvi–xxxviii.
Marcos (William Hendriksen) 21
Roma onde se erigiu uma estátua em sua honra] o firme e grande
apóstolo Pedro, porta-voz de todos os outros por causa de sua virtude.
Como nobre capitão de Deus, equipado com as armas divinas, Pedro
levava do Oriente aos homens do Ocidente a boa nova da própria luz, da
doutrina que salva as almas: a proclamação do reino dos céus.
“Assim é como, por habitar entre eles a doutrina divina, o poder de
Simão [o mago] extinguiu-se e se reduziu a nada em seguida, junto com
ele mesmo. Pelo contrário, o resplendor da religião brilhou de tal
maneira sobre as inteligências dos ouvintes de Pedro, que não ficavam
satisfeitos ouvindo-o uma vez, nem com o ensino não escrito da
pregação [querigma] divina, mas sim com todo tipo de exortações
importunavam a Marcos — de quem se diz que é o Evangelho e que era
companheiro de Pedro — para que lhes deixasse também um memorial
escrito da doutrina que pessoalmente lhes tinha irradiado, e não o
deixaram em paz até que o homem o acabou, e desta maneira se
converteram em causa do texto chamado Evangelho de Marcos.
“E dizem que o apóstolo, quando por revelação do Espírito soube o
que se fez, alegrou-se pela boa vontade daquelas pessoas e aprovou o
escrito para ser lido nas igrejas. Clemente cita o fato no livro VI de seus
Hypotyposeis, e o bispo do Hierápolis, chamado Papias, o apoia também
com seu testemunho. De Marcos faz menção Pedro em sua primeira
carta; dizem que esta a compôs na própria Roma e que ele mesmo
[Pedro] dá-o a entender nela ao chamar tal cidade, metaforicamente,
Babilônia, com estas palavras: Aquela que se encontra em Babilônia,
também eleita, vos saúda, como igualmente meu filho Marcos”.
Orígenes viveu um pouco antes (seu apogeu durante 210–250 d.C.).
Eusébio o cita como segue: “O segundo foi o Evangelho de Marcos,
quem o fez como Pedro o tinha indicado, o qual, em sua Carta católica,
proclama-o até como filho dele, com as seguintes palavras: Aquela que
se encontra em Babilônia, também eleita, vos saúda, como igualmente
meu filho Marcos” (op. cit., VI.xxv.5).
Marcos (William Hendriksen) 22
Podemos retroceder ainda mais, e mencionar Clemente de
Alexandria (em seu apogeu durante 190–200 d.C.), mestre de Orígenes.
Eusébio cita a obra de Clemente, Hypotyposeis, com estas palavras:
“Que o Evangelho de Marcos teve a seguinte origem: achando-se Pedro
em Roma, pregando publicamente a doutrina e explicando o Evangelho
pelo Espírito, os que estavam presentes — e eram muitos — exortaram a
Marcos, visto que o seguia desde fazia longo tempo e se lembrava do
que havia dito, a que o pusesse por escrito. Depois de o fazer, distribuiu
o Evangelho a quantos o pediam. E ao inteirar-se Pedro, nem o impediu
nem o estimulou” (VI.xiv.6, 7).
Tertuliano (em seu apogeu durante 193–216), em seu tratado
Contra Marcião, diz: “Pode dizer-se que o Evangelho que Marcos
publicou pertence a Pedro, cujo intérprete foi Marcos” (IV.5).
Irineu foi contemporâneo de Clemente de Alexandria e de
Tertuliano. Eusébio cita sua obra Contra as heresias III.i.1, dizendo: “…
Pedro e Paulo estavam em Roma, evangelizando e pondo os alicerces da
Igreja. Depois da morte destes [lit. depois da partida destes], Marcos, o
discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos por escrito, ele também, o
que Pedro tinha pregado” (V.viii.2, 3).
O Fragmento do Muratori consiste numa lista incompleta dos livros
do Novo Testamento. O fragmento está escrito num latim pobre e deve
seu nome ao cardeal L. A. Muratori (1672–1750), que o descobriu na
Biblioteca Ambrosiana de Milão. O fragmento pertence aos anos 180–
200 d.C. e tem bastante importância para a história do cânon do Novo
Testamento. Infelizmente é só um “fragmento” incompleto que perdeu o
que o original continha referente a Mateus. Contudo, definidamente dá
por sentada a existência e reconhecimento dos quatro Evangelhos. A
linha fragmentada que resta e que agora constitui o princípio da lista, diz
o seguinte com relação ao Evangelho de Marcos: “… no qual não
obstante se achava presente, e assim o colocou”. Em vista de todos os
outros testemunhos citados (Eusébio, Orígenes, Clemente de Alexandria,
Tertuliano, Irineu, etc.) seria muito precipitado sustentar que o autor
Marcos (William Hendriksen) 23
desta lista de livros não se estivesse referindo ao Evangelho segundo
Marcos.
Nos meados do segundo século d.C., Justino Mártir escreve: “E
quando se diz que a um dos apóstolos pôs o novo nome de Pedro e, além
disso, que a outros dois irmãos lhes pôs o nome do Boanerges, que
significa filhos do trovão, isto é um anúncio do fato de que, etc.”
(Dialogue with Trypho CVI). Isto mostra claramente que Justino tinha
lido o Evangelho segundo Marcos, porque é o único lugar onde se acha o
termo Boanerges, e onde, em imediata sucessão, menciona-se aquele que
a Simão, Tiago e João lhes acha posto outro nome (Mc. 3:16, 17).
É provável que já na primitiva data de 125 d.C., os quatro
Evangelhos estivessem reunidos numa coleção para seu uso nas igrejas,
indicando-se seus títulos. “Segundo Marcos” foi o título do mais breve
dos quatro.
Papias, discípulo do “presbítero João” (com toda probabilidade o
apóstolo João), parece ter nascido entre os anos 50 e 60 d.C., e ter
morrido pouco depois de mediados do segundo século. Ao investigar a
respeito da peregrinação de Cristo sobre este mundo, Papias se
interessava mais na “voz viva” ou testemunho oral dos primeiras
testemunhas que ainda viviam, que em documentos escritos (veja-se
Eusébio, op. cit., III.xxxix.1–4). Baseado, então, no que Papias diz ter
aprendido de João, Eusébio o cita um pouco mais adiante, dizendo:
“Marcos, intérprete que foi de Pedro, pôs cuidadosamente por escrito,
embora não em ordem, quanto lembrava do que o Senhor fez. Porque ele
não tinha ouvido o Senhor nem o tinha seguido, mas, como disse, a
Pedro mais tarde, o qual comunicava seus ensinos segundo as
necessidades [de seus ouvintes] e como quem faz uma composição das
sentenças do Senhor, mas de sorte que Marcos em nada errou [ou: não
fez mal] ao escrever algumas coisas tal como as lembrava. E é que pôs
toda sua preocupação numa só coisa: não descuidar nada de quanto tinha
ouvido nem enganar nisso no mínimo que fosse” (III.xxxix.15).
Marcos (William Hendriksen) 24
Portanto, não existe evidência que contradiga o veredito da
tradição, segundo a qual foi João Marcos, primo de Barnabé, quem
escreveu o mais breve dos amplamente reconhecidos quatro Evangelhos.
A evidência estende-se através de vários séculos, desde Eusébio até o
próprio Papias. Vem de todas as regiões: Ásia, África e Europa. Em
outras palavras, a tradição procede do Este (Papias de Hierápolis,
Eusébio de Cesareia), do sul (Clemente de Alexandria, Tertuliano de
Cartago), e do Oeste (Justino Mártir e o autor do Fragmento do Muratori,
de Roma). Às vezes uma testemunha representa duas regiões: o Este e o
Oeste (Irineu da Ásia Menor, Roma e Lyon); o Sul e o Este (Orígenes de
Alexandria e Cesareia). Ortodoxos e heterodoxos, textos gregos antigos e
versões anteriores acrescentam seu peso à mesma conclusão.
Não há dúvida de que há pontos nos quais a tradição varia. Por
exemplo, o papel preciso de Pedro em conexão com a composição do
Evangelho de Marcos ou a data em que o Evangelho foi escrito (a
respeito do qual, veja-se a seção II). Não obstante, todos as testemunhas
concordam em que a pregação de Pedro em Roma teve parte
significativa na produção desta obra. Embora seja razoável pensar que
Marcos tenha consultado várias fontes, tanto orais como escritas, a
tradição estabeleceu sem dúvida que ele foi o “intérprete de Pedro”.
Além disso, o conteúdo do livro confirma esta conclusão. Marcos
registra fielmente os pecados e fraquezas de Pedro, mas omite os
louvores que lhe são dados em outra parte (p. ex., em Mt. 16:17). Às
vezes Marcos menciona Pedro pelo nome (5:37; 11:21; 16:7), quando
Mateus não o faz. Além disso, o Evangelho de Marcos se caracteriza por
sua vivacidade, rapidez de movimento e atenção aos detalhes,
características que se associam facilmente com um Pedro ativo, vivaz e
entusiasta. Veja-se, p. ex., Mc. 1:16–31, 35–38; 5:1–20; 9:14–29; 14:27–
42, 54, 62–72. Em Mc. 1:36 menciona-se os discípulos com estas
palavras: “Simão e seus companheiros”.
Se a única coisa que tivéssemos fosse o Evangelho de Marcos, seria
impossível chegar à conclusão de que se escreveu como resultado (em
Marcos (William Hendriksen) 25
alto grau, ao menos) da pregação de Pedro. Por outro lado, a tradição
nos diz que, sem lugar a dúvida, esta foi a forma em que se escreveu.
Com base neste testemunho é possível, conforme se demonstrou, achar
no próprio Evangelho evidência que confirmam esta conclusão.
3
Segundo uma interpretação popular das palavras de Irineu citadas mais acima, Marcos escreveu o
seu Evangelho depois da morte de Pedro. Entretanto, Irineu confirma a quase unânime tradição de que
este Evangelho foi escrito em Roma pelo “intérprete de Pedro”. Além disso, existe muita controvérsia
quanto ao sentido das palavras de Irineu quanto a poder arrojar alguma luz sobre a data em que se
escreveu o Evangelho de Marcos. São muitas as perguntas que se levantam a respeito: Como é
possível que eles tenham fundado a igreja de Roma, ou é acaso que Irineu usa a expressão pondo os
alicerces num sentido pouco usual? O que quer dizer com “a partida destes”?
Marcos (William Hendriksen) 27
do terrível período da guerra dos judeus contra os romanos, com sua
sequela de amargas contendas entre os vários partidos existentes entre os
próprios judeus. Nem Lucas nem Atos indicam que estivesse ocorrendo
algo desta natureza quando estes livros foram escritos.
Sugeriu-se como data os últimos anos da década de cinquenta. O
resumo histórico que apresentamos sobre os eventos de importância nas
vidas de Pedro e de Marcos demonstrou que, pelo que à Escritura
concerne, não existe objeção à hipótese de que em algum momento entre
os anos 52 e 59, Pedro e Marcos tivessem estado juntos em Roma
(excetuando, segundo já se indicou, o ano 58, quando Pedro não se
achava naquela cidade).
Entretanto, tem-se dito que é possível fixar a data em que foi escrito
o Evangelho de Marcos entre os anos 35–50, ou ainda melhor 40–50,
distanciando-nos assim dos anos 50–65. As seguintes considerações
parecem favorecer este ponto de vista:
Primeiro, de acordo com a declaração de Eusébio que citamos mais
acima, foi durante o reinado de Cláudio (41–54 d. C.) que “a providência
universal … ia levando pela mão até Roma … o firme e grande apóstolo
Pedro” e que Marcos, “companheiro de Pedro”, escreveu um registro dos
ensinos de Pedro que chegou a ser o Evangelho segundo Marcos. O que
Marcos escreveu foi a pedido dos ouvintes de Pedro”.
Em segundo lugar, os unciais mais antigos (manuscritos com letras
maiúsculas) e os cursivos (manuscritos de escritura comum) têm
cabeçalhos que nos informam que o Evangelho segundo Marcos foi
escrito 10 ou 12 anos depois da ascensão de Cristo; portanto, entre os
anos 39 e 42.
Em terceiro lugar, o sacerdote espanhol O’Callaghan examinou um
pequeno fragmento de papiro encontrado na cova Nº. 7 perto de Qumran,
e afirma que tal papiro contém Mc. 6:52, 53. O papiro pertence ao
material ao qual se atribui uma data ao redor dos anos 50 d.C., o que
implicaria que o Evangelho foi composto numa data bastante anterior à
data do papiro (50 d.C.). Em consequência, uma data ao redor do
Marcos (William Hendriksen) 28
começo do reinado do imperador Cláudio poderia não estar longe da
realidade. Além disso, demonstrou-se que Pedro e Marcos bem puderam
ter passado algum tempo juntos em Roma naquele período.
A descoberta e identificação deste papiro que contém a passagem-
chave de Marcos, despertou grande interesse entre os estudiosos do
Novo Testamento. As observações que se fazem sobre este fato vão
desde “nada mudou” até “as probabilidades matemática de que o Dr.
O’Callaghan esteja certo são astronômicas”. Da minha parte, recomendo
a leitura dos excelentes artigos por William White, Jr., “O’Callaghan’s
Identifications: Confirmation and Its Consequences”, WTJ, 35 (Outono
1972): pp. 15–20, e “Notes on the Papyrus Fragments from Cave 7 at
Qumran”, WTJ, 35 (Inverno 1963), pp. 221–226.
Conclusão: Quando foi escrito Marcos 1:1 – 16:8? Resposta: em
algum momento entre os anos 40–65 d.C., com o peso da evidência
favorecendo agora a parte mais anterior deste período. Seria muito
precipitado falar de maneira mais definida. Nunca é sábio apressar
conclusões (Is. 28:16b). Referente a Mc. 16:9–20, veja-se o comentário
sobre essa seção.
Podría surgir la siguiente objeción: “Pero si el Evangelio fue escrito
en una fecha tan temprana, Marcos lo compuso cuando todavía era un
poco inmaduro espiritualmente, pues el acto de abandonar a sus
compañeros Pablo y Bernabé ocurrió tan sólo unos años después. ¿No es
verdad que esta situación rebajaría el aprecio que pudiéramos tenerle al
libro escrito por Marcos?”.
No entanto, se aplicarmos esta classe de crítica ao Evangelho
segundo Marcos, também deveríamos fazê-lo a todos os casos.
Estaríamos dispostos a rejeitar os primeiros Salmos de Davi porque
quando os escreveu seu pecado com Bate-Seba e seu subsequente
arrependimento encontravam-se a anos de distância? Olharemos com
desdém ao poderoso e eficaz sermão que Pedro pregou no Pentecostes
porque uns vinte anos mais tarde o homem que o pregou teve um
“comportamento imperdoável” em Antioquia (Gl 2:11–21)? Teremos
Marcos (William Hendriksen) 29
que descartar uma epístola escrita por um irmão do Senhor porque seu
autor teve que confessar que “todos tropeçamos em muitas coisas” (Tg.
3:2)? E lançaremos pela janela o livro de Apocalipse porque quando
João recebeu estas revelações ainda cometia erros em sua conduta
pessoal (Ap. 19:10; 22:8, 9)? Claro que não! O que se aplica a todos os
livros da Bíblia é válido também para Marcos: não atribuímos perfeição
aos homens que os escreveram, e sim atribuímos inspiração plenária ao
produto que, sob a direção do Espírito, eles nos deram.
Por conseguinte, devemos dar lugar à possibilidade de que este
Evangelho tenha sido escrito durante a primeira parte do período 40–65
d.C. Esta data anterior não é de modo nenhum segura. Veja-se P. Garnet,
“O’Callaghan’s Fragments: Our Earliest New Testament Texts?” EQ
XLV, Nº. 1 (janeiro-março 1973): pp. 6–12. Quando escreveu Marcos
este Evangelho? A resposta prudente seria “em alguma data entre o
período 40–65 d.C.”.
4
Não obstante, as parábolas podem ser catalogadas de maneira diferente. Veja-se CNT sobre Mateus,
pp. 29–32.
Marcos (William Hendriksen) 33
partes dos outros discursos, as que com frequência espalha por seu
Evangelho. Mas veja-se também Marcos 4.
Tudo isto significa que a brevidade de Marcos se relaciona
especialmente com as palavras de Jesus. Contudo, não são poucos os
versículos de Marcos que encerram tais palavras, visto que chegam a
278 (alguns versículos têm só uma ou duas delas). As palavras de Jesus
acham-se especialmente nos capítulos 2, 4, 7, 9, 10, e 12. Lucas tem 588
versículos que contêm palavras de Cristo, Mateus tem 640. Em
consequência, estas palavras cobrem o 60% dos 1068 versículos de
Mateus, 51% dos 1147 versículos de Lucas. Mas em Marcos cobrem só
o 42% de seus 661 versículos. Marcos é francamente o Evangelho da
ação. A omissão de tantos ditos de Jesus faz com que este curto
Evangelho possa reter uma série de histórias de milagres quase tão longa
como em Mateus, que é muito mais extenso. Cada um dos primeiros
onze capítulos de Marcos contém o relato de pelo menos um milagre
(Mc. 1:21–28, 29–31, 32–34, 39, 40–45; 2:1–11; 3:1–6; 4:35–41; 5:1–
20, 21–43; 6:30–44, 45–52, 53–56; 7:24–30, 31–37; 8:1–10, 22–26;
9:14–29; 10:46–52; e 11:12–14, 20, 21). Os que se registram em Mc.
7:31–37; 8:22–26 encontram-se unicamente em Marcos. Além disso, em
vários casos, o que se apresenta em Marcos é mais detalhado e gráfico
que o dos outros Sinóticos.
Isto nos conduz à segunda característica deste Evangelho, quer
dizer, a viveza. O estilo 5 de Marcos é faiscante. Não foi acaso intérprete
do vivaz, profundamente emotivo e animado Simão Pedro?
5
Para o vocabulário e estilo do original observe-se o seguinte:
a. H. B. Swete, op. cit., pp. 409–424 tem uma lista das palavras usadas no Evangelho de Marcos.
Em tal lista, as que vão precedidas por um asterisco não se usam em nenhum outro lugar do Novo
Testamento. Destas há aproximadamente 80, sem contar os nomes próprios.
b. Quanto ao estilo, em geral pode-se dizer que Marcos não só tem um estilo mais difuso, mas
também o mais vivo. Mateus tem um estilo mais sucinto e delicado. Lucas é o mais variado dos três
sinóticos.
c. O caráter gráfico da forma de escrever de Marcos se observa no seguinte: vê-se em suas
descrições do olhar de Cristo em várias ocasiões (Mc. 3:5, 34; 10:23; 11:11); nos atos e gestos de
Cristo (Mc. 8:33; 9:35, 36; 10:16, 32); na descrição das emoções e sentimentos do Senhor (Mc. 3:5;
Marcos (William Hendriksen) 34
Portanto, tendo estudado o Evangelho segundo Mateus, não se pode
passar por alto a Marcos pensando, “Este livro não contém quase nada
que não tenha sido dito pelo publicano convertido em escritor”. Por
6:34; 7:34; 8:12, 33; 10:14, 21; 11:12); e na descrição das pessoas que O rodeiam (Mc. 1:29, 36; 3:6,
22; 11:11, 21; 13:3; 14:65; 15:21; 16:7). Às vezes Marcos menciona o número de pessoas, animais,
etc. presentes. Nestas ocasiões os outros Evangelhos quase omitem estes detalhes ou os expressam de
maneira diferente (Mc. 5:13; 6:7, 40; 14:30). As indicações de lugar e tempo abundam neste
Evangelho (Mc. 1:16, 19, 21, 32, 35; 2:1, 13, 14; 3:1, 7, 13, 20; 4:1, 10, 35; 5:1, 20; 7:31; 12:41; 13:3;
14:68; 16:5, por dar só uns exemplos).
d. Outra das características que aumenta a viveza do estilo de Marcos é que com frequência muda o
tempo gramatical dos verbos que usa. Além disso, Marcos com frequência usa um tempo distinto ao
achado em Mateus e/ou Lucas. Exemplos: ἐγγίζουσιν (= “se aproximavam”, Mc. 11:1) versus ἤγγισεν
(= “ao aproximar-se”, Lc. 19:29); no mesmo versículo aparece ἀποστέλλει (= “ele envia”) versus
ἀπέστειλεν (= “ele enviou”). O mesmo sucede com φέρουσιν (= “levaram”, Mc. 11:7) versus ἤγαγον
(= “trouxeram”, Lc. 19:35); no mesmo versículo ἐπιβάλλουσιν (= “põem em cima”) versus
ἐπιρίψαντες (= “puseram em cima”, um verbo sinônimo). Em geral poderia dizer-se que em muitos
casos onde Marcos usa o tempo presente, Mateus e Lucas usam o aoristo ou o imperfeito. Veja-se J.
C. Hawkins, Horae Synopticae, pp. 143–153.
e. Outra diferença chamativa entre Marcos, por um lado, e Mateus e Lucas, por outro, é a
preferência que estes dois últimos têm pela partícula δέ contra a forte inclinação de Marcos pelo uso
de καί. É assim como nas passagens já citadas para mostrar as diferenças de estilo quanto aos tempo
verbais (Mc. 11:1–8, comparado com Lc. 19:29–35), Lucas usa καί cinco vezes para iniciar uma
cláusula ou frase, conquanto Marcos uma dúzia de vezes. Nestes mesmos sete versículos, Lucas usa δέ
três vezes (também uma vez no v. 36 e uma vez no v. 37), mas Marcos só uma vez (também uma vez
no v. 8). Sobre este ponto veja-se também Mc. 16:9–20.
f. Em conexão com o generoso uso que Marcos faz de καί deve mencionar-se também que é
característico que Mateus e Lucas com frequência coloquem um particípio onde Marcos usaria um
verbo finito com καί. Em tais casos, os dois favorecem a subordinação, enquanto Marcos a
coordenação. A respeito da influência semítica em Marcos veja-se Robertson, pp. 106, 118, 119, BDF
§ 321, 353. E veja-se Mc. 13:19, 20.
g. Uma característica que aumenta a faiscante forma de expressão de Marcos é o uso frequente do
advérbio εὑθύ: em seguida, imediatamente (umas quarenta vezes: Mc. 1:10, 12, 18, etc.). Também é
preciso mencionar o uso frequente do discurso direto (em lugar do indireto): “Silêncio! te acalme!”
(Mc. 4:39); “Sai deste homem, espírito maligno!” (Mc. 5:8); “Como te chamas?” (Mc. 5:9); “Manda-
nos aos porcos; deixe-nos entrar neles” (Mc. 5:12).
h. Em vista de tudo o que se mencionou, não é estranho que o estilo de Marcos seja enfaticamente
vernáculo. Eis aqui um homem comum que fala à gente comum, em sua maioria sem educação. Usa
um estilo que chama a atenção, uma linguagem que é ao mesmo tempo dele e deles. Não surpreende,
então, que faça uso frequente de diminutivos, tais como θυγάτριον (Mc. 5:23; 7:25); κοράσιον (Mc.
5:41, 42; 6:22, 28); κυνάριον (Mc. 7:27, 28). Marcos adora usar o duplo negativo popular (Mc. 1:44;
5:3; 16:8); não tem medo de empregar uma frase pleonástica (τότε ἐν ἐκειίνῃ τῇ ἡμέρᾳ, Mc. 2:20); e
adora os verbos compostos (Mc. 1:16, 36; 2:4; 5:5; 8:12; 9:12, 15, 36; 10:16; 12:17; 14:40; 16:4, etc.).
Marcos (William Hendriksen) 35
certo, se falarmos de material totalmente novo que não aparece de modo
algum em Mateus ou Lucas, existe muito pouco. Em geral mencionam-
se apenas 31 versículos de Marcos (Mc. 1:1; 2:27; 3:20, 21; 4:26–29;
7:3, 4; 7:32–37; 8:22–26; 9:29; 9:48, 49; 13:33–37; 14:51, 52). Por outro
lado, também é verdade que, em muitíssimas passagens ou parágrafos,
Marcos oferece alguns toques pitorescos que não se acham nos outros.
Não só se trata das passagens recém-mencionadas, porque estas
pinceladas que acrescentam vida ao relato se veem em outros lugares.
Eis aqui alguns exemplos: No deserto, onde Jesus foi tentado, o Senhor
“estava com as feras” (Mc. 1:13). A pregação de João Batista não foi só
negativa. Não só falou sobre arrependimento à concorrência, mas
também acrescentou: “crede no evangelho” (Mc. 1:15). Quando os
pescadores deixaram o seu pai no barco para seguir a Jesus, não o
deixaram recarregado de trabalho, mas o deixaram “com os empregados”
(Mc. 1:20). Ao curar a sogra de Pedro, Jesus não só a tocou, mas
também meigamente “tomou-a pela mão” (Mc. 1:31). Naquela tarde, ao
pôr do sol, “toda a cidade estava reunida à porta” da casa de Pedro (Mc.
1:33). “Tendo-se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar
deserto e ali orava”. Foi onde Pedro e seus companheiros O encontraram,
para lhe dizer que todos O buscavam (Mc. 1:35–37).
A casa onde Jesus proclamava a mensagem se encheu a ponto de
não poder conter mais quantidade de gente; melhor dito: “tantos que nem
mesmo junto à porta eles achavam lugar” (Mc. 2:2).
Num sábado, o Senhor Se encontrava numa sinagoga. Seus
inimigos O olhavam com olhos críticos para ver se nesse dia curaria a
um homem que tinha a mão seca. Nessa oportunidade, “Olhando-os ao
redor, indignado e condoído com a dureza do seu coração” (Mc. 3:5).
Foi “ao anoitecer” quando os discípulos tomaram a Jesus “tal como
estava” e foram com Ele no barco (Mc. 4:35, 36). Logo “Jesus … estava
… dormindo sobre um travesseiro” (Mc. 4:38). Ele diz ao mar: “Acalma-
te, emudece!” (Mc. 4:39). Pergunta a seus discípulos, “Como é que não
tendes fé?” (Mc. 4:40).
Marcos (William Hendriksen) 36
Marcos relata a história da cura do endemoninhado gadareno com
muito mais detalhe que Mateus e Lucas. Marcos lhe dedica vinte
versículos (Mc. 5:1–20), Lucas quatorze (Lc. 8:26–39) e Mateus sete
(Mt. 8:28–34). Por exemplo, Marcos diz em seu relato que ninguém era
capaz de atá-lo, e acrescenta, “Andava sempre, de noite e de dia,
clamando por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras”.
Os três Sinóticos nos informam que quando Jesus autorizou os
demônios, estes saíram do homem e entraram nos porcos. Ao ser
possessos, os animais se precipitaram barranco abaixo no mar. Marcos
acrescenta que eram “cerca de dois mil” (v. 13) porcos que se afogaram.
O que é certo com relação à cura do endemoninhado, também é válido
no caso da mulher que tocou o manto de Jesus: Não é Mateus (três
versículos, 9:20–22) nem Lucas (seis versículos, Lc. 8:43–48) aquele
que relata a história completa, mas sim Marcos (dez versículos, Mc.
5:25–34). Observe-se especialmente o que Marcos diz a respeito dos
médicos! (Mc. 5:25), o qual é omitido pelo “Dr.” Lucas (Lc. 8:43).
Outros detalhes registrados exclusivamente por Marcos encontram-se em
Mc. 5:29b, 30. Embora Marcos fosse o “intérprete de Pedro” não é
Marcos senão Lucas aquele que inclui a Pedro no relato (Lc. 8:45).
Jesus não pôde fazer “nenhum milagre” em sua própria aldeia (Mc.
6:5). Depois se informa que Herodias “E Herodias o odiava, querendo
matá-lo, e não podia. Porque Herodes temia a João …” (Mc. 6:19, 20).
Quando os apóstolos voltam de sua viagem missionário e informam a
Jesus, ele lhes diz: “Venham comigo vocês sozinhos a um lugar
tranquilo e descansem um pouco” (Mc. 6:30, 31). Em conexão com a
alimentação dos cinco mil, diz-se que a multidão reclinou-se em grupos
“de cem e de cinquenta” (Mc. 6:40; cf. Lc. 9:14). Depois Jesus envia os
discípulos a atravessar de barco à margem oposta. Mais tarde vê que os
discípulos faziam grandes esforços para “remar” (Mc. 6:48; cf. Mt.
14:24).
Jesus entrou “numa casa, queria que ninguém soubesse” (Mc. 7:24).
Quando a mulher siro-fenícia acudiu a Jesus não levou consigo a sua
Marcos (William Hendriksen) 37
filhinha que estava gravemente doente. A mulher roga ao Senhor que
tenha piedade dela e que a cure. Marcos deixa tudo isto claro dizendo
que a mulher “Voltando ela para casa, achou a menina sobre a cama,
pois o demônio a deixara” (Mc. 7:30).
Quando os fariseus discutem com Jesus e Lhe pedem que lhes
mostre um sinal do céu, Jesus “arrancou do íntimo do seu espírito um
gemido” (Mc. 8:12). Os discípulos “no barco, não tinham consigo senão
um só” pão (Mc. 8:14; cf. Mt. 16:5).
Os três discípulos (Pedro, Tiago, e João) discutiam entre si as
palavras de Jesus (Mc. 9:9), e perguntavam-se o que significaria “o
ressuscitar dentre os mortos” (Mc. 9:10). Estes mesmos discípulos,
depois de descer do monte da transfiguração, observaram uma grande
multidão que rodeava os outros discípulos e que “os escribas discutiam
com eles” (Mc. 9:14). Ao ver Jesus, a multidão foi “tomada de surpresa”
(Mc. 9:15). Marcos oferece uma descrição detalhada dos sintomas da
epilepsia e da forma em que o menino foi curado (Mc. 9:18–27). Este
evangelista registra também as notáveis palavras do pai do menino, “Eu
creio! Ajuda-me na minha falta de fé!” (Mc. 9:24). Por essa data Jesus
não quis que se divulgasse que viajaria através dos lugares separados da
Galileia (Mc. 9:30). Jesus pergunta aos Seus discípulos o que discutiam
no caminho. Respondem-lhe com silêncio (Mc. 9:33, 34; cf. Mt. 18:1;
Lc. 9:46, 47a). Jesus tomou o garotinho “nos braços” (Mc. 9:36). Lucas
9:49, 50 entrega uma razão que explica por que, um exorcista alheio ao
grupo de Jesus, não devia ser proibido de seguir fazendo o que fazia. A
isto, Marcos acrescenta outra razão (Mc. 9:41; em contraste com Mt.
10:42).
O jovem rico corre até Jesus e se ajoelha diante dEle (Mc. 10:17).
“Jesus, fitando-o, o amou” (Mc. 10:21). Quando diz ao jovem o que tem
que fazer, este “retirou-se triste” (Mc. 10:22; cf. Mt. 19:22; Lc. 18:23).
Então Jesus “olhou ao redor” e, vendo que Seus discípulos estavam
surpreendidos, esclareceu o que havia dito a respeito da grande
dificuldade que experimentam os ricos em seus intentos para entrar no
Marcos (William Hendriksen) 38
reino de Deus (Mc. 10:23a, 24). O Mestre assegura aos que estão prontos
a sacrificar tudo por Ele, que receberão entre outras coisas “terrenas”,
embora tudo isto “com perseguições” (Mc. 10:30). A caminho de
Jerusalém “Jesus ia adiante dos seus discípulos. Estes se admiravam”
(Mc. 10:32; cf. Lc. 9:51b). Não foi só a mãe de Tiago e de João a que fez
um pedido egoísta (veja-se Mt. 20:20), mas também estes dois discípulos
(Mc. 10:35). O nome do cego que foi curado em Jericó era Bartimeu.
Não só era cego, mas também “mendigo” (Mc. 10:46). Marcos 10:49, 50
oferece vivos detalhes quanto à forma em que animaram Bartimeu e a
respeito de sua resposta.
Os discípulos acharam “o jumentinho preso, junto ao portão” (Mc.
11:4). Quando Cristo fez Sua entrada em Jerusalém, a multidão
exclamou: “Bendito o reino que vem …” (Mc. 11:10; cf. Mt. 21:9; Lc.
19:38). Referente à purificação do templo, Marcos diz: “Não permitia
que alguém conduzisse qualquer utensílio pelo templo” (Mc. 11:16).
“Ouve, ó Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!” (Mc.
12:29). O escriba respalda de todo coração o resumo que Cristo dá da lei,
o que motiva palavras de aprovação da parte de Cristo (Mc. 12:32–34).
“Mestre! Que pedras, que construções!” (Mc. 13:1; cf. Mt. 24:1; Lc.
21:5). “Pedro, Tiago, João e André lhe perguntaram em particular …”
(Mc. 13:3, é evidente que este detalhe ele recebeu de Pedro). “Um irmão
entregará à morte outro irmão, e o pai, ao filho …” (Mc. 13:12; mais
vívido que Mt. 24:10; Lc. 21:16). “Quando, pois, virdes o abominável da
desolação situado onde não deve estar” (Mc. 13:14).
Notemos os seguintes detalhes: Em conexão com a unção em
Betânia, Marcos relata que a mulher “quebrando o alabastro, derramou o
bálsamo …” (Mc. 14:3). Quanto às testemunhas que declararam contra
Cristo, quando este foi julgado diante do Sinédrio, diz-se que “os
depoimentos não eram coerentes” (Mc. 14:56). Quando Pedro nega a
Jesus, “e logo cantou o galo pela segunda vez …” (Mc. 14:72; cf. Mt.
26:74b, 75; Lc. 22:60).
Marcos (William Hendriksen) 39
O sedicioso Barrabás também tinha “cometido homicídio” (Mc.
15:7). A multidão pediu a Pilatos que soltasse um prisioneiro (Mc. 15:8).
Pilatos perguntou, “Que farei, então, deste a quem chamais o rei dos
judeus?” (Mc. 15:12; cf. Mt. 27:22). Simão de Cirene era “pai de
Alexandre e de Rufo” (Mc. 15:21; cf. Rm. 16:13). “Ao cair da tarde, por
ser o dia da preparação, isto é, a véspera do sábado”, quando José de
Arimateia “se atreveu” a apresentar-se diante de Pilatos e lhe pedir o
corpo de Jesus (Mc. 15:42, 43; cf. Mt. 27:57, 58; Lc. 23:50–52; Jo.
19:38). O que Pilatos fez antes de lhe conceder esta petição, detalha-se
em Mc. 15:44.
Foi no dia sábado, depois do pôr do sol, quando Maria Madalena,
Maria, mãe de Tiago e Salomé, compraram especiarias para ungir o
corpo de Cristo (Mc. 16:1; cf. Mt. 28:1). “Diziam umas às outras: Quem
nos removerá a pedra da entrada do túmulo?” (Mc. 16:3). O anjo disse às
mulheres, “Não vos atemorizeis; buscais a Jesus, o Nazareno” (Mc.
16:6). Depois lhes diz que vão dizer lhe aos discípulos “e a Pedro” (Mc.
16:7, outro recordatório da íntima relação existente entre Marcos e
Pedro; cf. Mt. 28:7). Mas “de medo, nada disseram a ninguém” (Mc.
16:8).
Por último, pareceria que, além de sua brevidade e viveza, o
Evangelho de Marcos é superior quanto à ordem cronológica. Desde
Marcos 1:1 a 6:13, os fatos que Marcos e Lucas relatam desenvolvem-se
de maneira notavelmente paralela. Lucas é o mais longo dos sinóticos,
assim que se em Lucas queríamos localizar um dos relatos de Marcos, só
devemos somar 3 (às vezes 4) capítulos ao número do capítulo onde
ocorre a narração de Marcos. Por exemplo, o relato da cura da sogra de
Pedro está no primeiro capítulo de Marcos (vv. 29–31). Se ao 1
somamos 3, atracamos o capítulo quatro de Lucas, onde se registra o
mesmo evento nos versículos 38–39. Veja-se CNT sobre Mateus pp. 14,
15. Não obstante, deve-se ter em mente que Lucas 7 não registra nenhum
paralelo com Marcos. Tampouco Marcos 7 se acha duplicado em Lucas.
Marcos (William Hendriksen) 40
Em contraste com Marcos, Lucas não se interessava na ordem
cronológica. Por exemplo, Lucas situa o rechaço que Cristo sofreu em
Nazaré no início de seu relato sobre o ministério de Jesus na Galileia,
apesar de que a própria história daquele rechaço (veja-se Lc. 4:23)
pressupõe que quando ocorreu, Jesus já tinha realizado considerável obra
na Galileia. Mateus (Mt. 13:53–58) e Marcos (Mc. 6:1–6) não relatam
este incidente, senão até ter chegado a quase a metade de seus
respectivos livros. De modo similar, ao chegar na metade de seu
Evangelho, Lucas faz várias indicações cronológicas tão indefinidas
(veja-se Lc. 11:1, 14, 29; 12:1, 13; 13:10, 18; 9:51 mas veja-se também
13:22; 17:11), que nos dá a entender claramente que, embora escreva
“ordenadamente” (Mc. 1:3), só busca uma distribuição cronológica
muito geral do material que dirige. Finalmente, quando Lucas coloca o
momento em que se identifica ao traidor (Mc. 22:21–23) depois da
instituição da Ceia do Senhor (Mc. 22:14–20; o que deve contrastar-se
com Mt. 26:20–29; Mc. 14:17–25; cf. Jo. 13:30), é óbvio que não
apresenta seu material em ordem cronológica. E por que teria que fazê-
lo? Lucas teve boas razões para relatar os fatos tal como o fez. Sua
narração ordenada de maneira temática é tão inspirada como o é o relato
de Marcos, que organiza seu material de uma forma muito mais
cronológica.
Quanto a Mateus, também é bastante claro que não procurou
apresentar os primeiros milagres na ordem em que ocorreram (cap. 8 e 9;
veja-se CNT sobre Mateus pp. 29–32). A maldição da figueira com a
respectiva lição que Jesus tirou do incidente, ocorreu parte na segunda-
feira da Semana de Paixão, e parte na terça-feira. Marcos chama a
atenção a este fato cronológico (Mc. 11:11, 12, 19, 20), mas Mateus o
ignora, pois deseja dar a conhecer toda a história de uma vez, num relato
coordenado e ininterrupto (Mt. 21:18–22). Naturalmente que tinha
razões justificadas para fazê-lo. Mas isto confirma a conclusão de que se
desejarmos uma ordem cronológica, devemos ir ao Evangelho de
Marcos, antes que a Mateus ou Lucas.
Marcos (William Hendriksen) 41
Algo muito significativo com relação a isto é o fato que em geral,
quando Mateus se afasta da ordem seguida por Marcos, Lucas o
conserva; e quando é Lucas aquele que se separa da ordem de Marcos,
Mateus o segue. Prova disto se oferece no CNT sobre Mateus, pp. 45–
48.
Pode ver-se que se dá uma clara relação entre Marcos e Mateus,
começando da história de João Batista (Mc. 6:14–29), para continuar
imediatamente na alimentação dos cinco mil (Mc. 6:30–44), e seguindo
até o final em ambos os Evangelhos (veja-se CNT sobre Mateus, p. 33,
34). Uma relação parecida existe entre Marcos e Lucas, começando do
relato em que Jesus recebe as crianças (Mc. 10:13–16) até o final de
ambos os livros (veja-se CNT sobre Mateus, p. 16).
Isto não quer dizer, entretanto, que cada seção de Marcos tem seu
paralelo em Mateus ou em Lucas ou em ambos. Marcos 6:14–16:8 pode-
se dividir em 62 perícopes ou seções que levam seu próprio título cada
uma. Dessas 62 seções, cinco não têm paralelo em Mateus (refiro-me às
seções de Mc. 7:31–37; 8:22–26; 9:38–41; 12:41–44; 14:51, 52). Das 42
seções em que Marcos 10:13–16:8 pode-se dividir, 8 não têm paralelo
claro em Lucas (as seções são Mc. 10:35–45; 11:12–14; 11:20–25;
11:28–34; 13:32–36; 14:3–9; 14:51, 52; 15:16–20. Com relação a Mc.
11:28–34, veja-se CNT sobre Mateus, p. 849, nota 763). Isto significa
que a maioria das seções de Marcos (de Mc. 10:13 em diante), têm
paralelo tanto em Mateus como em Lucas, desenvolvendo-se os três
relatos ao mesmo tempo.
Não se pretende que Marcos tenha sempre disposto as prováveis
seções básicas de seu Evangelho em estrita ordem cronológica. De vez
em quando as indicações de tempo são um tanto indefinidas (Mc. 10:13,
17; 12:1; 14:10). Por outro lado, Marcos não nos oferece um relato sobre
o Nascimento de Jesus. Tampouco cobre o primeiro nem o último
ministério na Judeia. Definidamente não foi o propósito de Marcos
apresentar uma “biografia” ou “vida de Cristo”. Tampouco tratou de
oferecer um resumo dos discursos de Cristo, apresentando-os na ordem
Marcos (William Hendriksen) 42
6
em que foram pronunciados. Tudo o que quer dizer é que, diferente de
Mateus e Lucas, a ênfase cronológica de Marcos nos proporciona uma
guia. Observe-se as muitas indicações definidas referente a tempo e lugar
(Mc. 10:32, 46; 11:1, 11, 12, 15, 19, 20, 27; 13:1, 3; 14:1, 3, 12, 17, 22,
26, 32, 43; 15:1, 22, 33, 42; 16:1, 2; estas, além das que se acham nos
primeiros nove capítulos).
Em conclusão, se buscarmos um evangelho que se caracterize por
ser breve, vívido e com ordem cronológica, nós o encontraremos
especialmente no Evangelho segundo Marcos! 7
6
Portanto, mesmo quando a citação de Papias (via Eusébio; veja-se mais acima, na p. 20) não é
inteiramente clara, pode-se dar-lhe uma interpretação que esteja em harmonia com os fatos.
7
A prioridade relativa do Evangelho de Marcos com relação a Mateus e a Lucas já foi analisada no
CNT sobre Mateus, pp. 44–50. Na mesma obra, veja-se também a seção dos três Evangelhos Sinóticos
sob o simbolismo de três rios, pp. 33–39.
Marcos (William Hendriksen) 43
A obra que lhe deste para fazer
I. Começada
II. Continuada
III. Consumada
9
Em favor da primeira posição vem Vincent Taylor, The Gospel According to St. Mark (Londres,
1953), p. 152. Também J. A. C. Van Leeuwen, Het Evangelie naar Markus (Korte Verklaring,
Kampen, 1935), p. 20. Em favor da primeira posição estão também G.C. Morgan, The Gospel
According to Mark (Nova York, etc., 1927), p. 12; e R.C.H. Lenski, The Interpretation of St. Mark’s
and St. Luke’s Gospels (Columbus, 1934), p. 15 da primeira parte deste volume. Embora A. B. Bruce,
The Synoptic Gospels (The Expositor’s Greek Testament, vol. 1, Grand Rapids, sem data), p. 341,
defende a ideia de que as palavras em questão devem tomar-se como uma inscrição para todo o
Evangelho, também considera que se obtém bom sentido, se as conecta com os vv. 2, 3, ou com o v. 4.
E. P. Groenewald, Die Evangelie volgens Markus (Kommentaar op Die Bybel, Nuwe Testament, Vol.
11, Pretória, 1948), p. 21, também favorece a ideia da inscrição (“opskrif’); e assim o fazem muitos
outros.
É muito interessante o ponto de vista de C. R. Erdman, El evangelio de Marcos (Grand Rapids: TELL,
1974), quem concede a possibilidade de que a teoria do título seja correta (p. 22), mas depois liga a
frase com o que se diz de João Batista, (p. 23).
Daqui daí em diante, as citações destes autores se indicarão usando a abreviação conhecida Op. cit.
(opera citato), que quer dizer “na obra citada”.
Marcos (William Hendriksen) 47
casa de Cornélio, também conectou seu princípio com João Batista (At.
10:37). 10
Por último, acaso não é verdade que também Jesus declarou que foi
João Batista quem começou a proclamar que o governo real de Deus
tinha chegado em Seu Filho? (veja-se Lc. 16:16).
Com base em todas estas considerações, parece que o significado
mais lógico do versículo 1 é: “As boas novas a respeito de Jesus Cristo,
Filho de Deus, iniciaram-se com João Batista. Foi João quem, conforme
foi predito, preparou o caminho para o advento de Cristo”.
Houve um tempo em que a palavra euangelion (= evangelho) servia
para indicar a recompensa que se outorgava a quem trazia boas novas.
Mas gradualmente começou ser usado para apontar às próprias boas
novas. Este é obviamente seu significado aqui em Marcos 1:1. O
evangelho é a mensagem de salvação que se dirige a um mundo perdido
no pecado. A parte mais importante destas boas novas não é o que nós
temos que fazer, mas o que Deus já tem feito em Cristo. Uma explicação
mais ampla se encontrará no CNT sobre Filipenses, pp. 94–99.
Agora, este evangelho tem que ver com “Jesus Cristo, Filho de
Deus”. Tanto Marcos como João Batista (anunciado nos vv. 2 e 3) têm
em comum que sempre dirigem a atenção do povo não a eles mesmos,
mas ao Seu Senhor. É assim que Marcos nunca menciona-se a si mesmo
pelo nome, nem no princípio de seu escrito nem em nenhum outro lugar,
nem sequer em Mc. 14:51, 52. Quão parecida é sua humildade à de João
Batista (Jo. 3:30)! Marcos 1:1 dá ao Salvador um título eminente. Seu
nome é Jesus, porque efetivamente “ele salvará” (veja-se Mt. 1:21;
11:27–30; Jo. 14:6; At. 4:12). Ao nome pessoal Jesus se acrescenta o
nome oficial de Cristo, que é o equivalente grego da palavra hebraica
Messias, que significa Ungido (veja-se Is. 61:1; cf. Lc. 4:16–21). Indica
que o portador de tal título foi ungido pelo Espírito Santo. É a unção do
10
Tem-se assinalado que a pregação de Pedro, segundo se mostra em At. 10:34–43, era quase idêntica
à que encontramos no Evangelho de Marcos. Veja-se F. F. Bruce, Commentary on the book of Acts
(The New International Commentary on the New Testament, Grand Rapids, 1964), p. 226.
Marcos (William Hendriksen) 48
Espírito a que separa, comissiona, habilita e ordena a Cristo aos ofícios
de Profeta, Sacerdote e Rei, a fim de levar a cabo o trabalho de salvar o
Seu povo para a glória do Deus Triúno.
Depois de “Jesus Cristo”, acrescenta-se o título “o Filho de
Deus”. 11 Em seu Evangelho, Marcos não só aplica vez após vez este
título a Jesus (além de Mc. 1:1, veja-se também Mc. 3:11; 5:7; 9:7;
14:61, 62; 15:39), mas o título harmoniza com o fato de que através de
todo seu livro, Marcos constantemente atribui a Jesus qualidades e
atividades divinas, mostrando assim que o escritor considera que o
Salvador é efetivamente o Filho de Deus no pleno sentido trinitário (e o
resto das Escrituras confirma este fato. Cf. Is. 9:6; Mt. 28:18; Jo. 1:1–4;
8:58; 10:30, 33; 20:28; Rm. 9:5; Fp. 2:6; Cl. 1:16; 2:9; Hb. 1:8; Ap. 1:8).
Seria muito inconsistente que alguém dissesse que Jesus era sábio e bom,
para logo afirmar que não era Filho de Deus num sentido único, porque
se Jesus não era efetivamente Deus, então suas pretensões eram falsas, e
se eram falsas, de modo algum teria sido sábio e bom. A negação da
deidade de Jesus destrói os próprios alicerces sobre os quais se edifica a
esperança do cristão. 12
De maneira que, o princípio do evangelho — não o Evangelho de
Marcos, mas as boas novas — que fala de Jesus Cristo, o Filho de Deus,
ocorreram tal e
2. Conforme está escrito na profecia de Isaías: Eis aí envio
diante da tua face o meu mensageiro, o qual preparará o teu
caminho.
Marcos nos diz que vai citar Isaías, e isto é o que faz precisamente,
mas não imediatamente. Primeiro, no versículo 2 Marcos cita Malaquias
11
Embora as palavras “Filho de Deus” estão omitidas no importantíssimo manuscrito Sinaítico (ou
Álef) e em outros manuscritos de menor importância, as palavras encontram-se no não menos valioso
uncial Vaticano (ou B) e também no códice Beza (D), e na realidade na grande massa dos
manuscritos” (A. T. Robertson). Parece não existir nenhuma razão sólida para as omitir na tradução.
12
A respeito do tema da negação da deidade de Cristo, veja-se também CNT sobre Mateus, p. 66–69.
Quanto ao debate entre J. R. Straton y C. F. Potter, Was Christ Both God and Man? (livro sobre os
debates entre o Straton e Potter, Nova York, 1924).
Marcos (William Hendriksen) 49
3:1; e logo, no versículo 3 cita Isaías 40:3. A primeira citação esclarece a
segunda. O leitor ou ouvinte primeiro medita no dito por Malaquias e
depois fixa sua atenção nas palavras de Isaías. Isto lhe permite entender
que a “voz” da qual fala a segunda citação não é uma abstração, mas
aponta ao “mensageiro” do Senhor.
Não é só Marcos aquele que usa este método de mencionar pelo
nome uma só de suas fontes, quando na realidade está usando mais de
uma. Mateus faz o mesmo, e com boas razões (veja-se CNT sobre Mt.
27:9, 10). Outro exemplo, 2 Crônicas 36:21 atribui a “Jeremias” palavras
tiradas de Levítico 26:34, 35 e de Jeremias 25:12 (cf. 29:10). Aos que
encontram um problema neste proceder, fazemos-lhes duas perguntas:
Primeira, que direito temos para impor nosso próprio método de citação
aos escritores das Bíblia? Segunda, se por implicação Marcos promete
dar-nos uma coisa (Mc. 1:2a), e logo nos dá duas — uma citação de
Malaquias 3:1 mais uma de Isaías 40:3 — por que nos queixamos?
Quanto às palavras citadas, “Eis aí envio diante da tua face o meu
mensageiro, o qual preparará” (cf. Mt. 11:10; Lc. 7:27), veja-se a
tradução que a LXX faz de Êxodo 23:10. 13 Isto é substancialmente o que
se acha no original hebraico de Malaquias 3:1. O significado de
Malaquias 3:1 é, com toda probabilidade, “Ponha atenção, eu o Senhor
envio o meu mensageiro, para que seja seu precursor, pois você é o
Messias”. Além disso, na análise final o precursor a quem se faz
referência opera num sentido espiritual. Sua tarefa é preparar os corações
dos homens para receberem o Messias. Deste modo, o precursor “aplaina
o caminho” para a primeira vinda do Messias. Mas já que Deus desce a
Seu povo nas duas vindas do Emanuel, fica claro que até a segunda
vinda de Cristo se acha incluída no contexto de Malaquias. Na realidade,
como era comum nos profetas, ainda não se faz uma clara distinção entre
os dois adventos do Senhor. Contudo, Marcos aplica a profecia
13
Entretanto, na segunda linha a LXX lê: “para que te guarde em teu caminho”.
Marcos (William Hendriksen) 50
especialmente à primeira vinda, segundo se demonstra claramente no
versículo 4 (veja-se Mt. 11:13, 14).
Antes de mencionar o nome do arauto e sem nenhuma palavra de
transição, Marcos cita Isaías 40:3, que diz:
3. voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor,
endireitai as suas veredas.
Estas mesmas palavras se acham em idêntica forma em Mateus 3:3
e em Lucas 3:4. Embora idênticas nos três Sinóticos, estas palavras
diferem da forma em que aparecem em Isaías 40:3, tanto no Antigo
Testamento hebraico como na tradução grega da LXX. Poderia explicar-
se a notável identidade que há entre Mateus, Marcos e Lucas, supondo
que Mateus, o ex-publicano, fez sua própria paráfrase das passagens do
Antigo Testamento que se cumpriram no Novo. Esta tradução junto com
outras notas, teria circulado extensamente antes de qualquer dos quatro
Evangelhos ser escrito. 14
Isaías 40:3–5 descreve simbolicamente a chegada do Senhor com o
fim de guiar a procissão dos judeus que voltariam jubilosamente à sua
pátria depois de longos anos de cativeiro. O caminho devia ser preparado
no deserto da Síria, no lance entre Babilônia e Palestina. Era preciso
preparar o caminho para a vinda do Senhor. Assim que a grande voz, um
arauto lhe diz ao povo:
“Preparai o caminho do SENHOR;
endireitai no ermo vereda a nosso Deus”.
Os quatro Evangelhos aplicam a figura do arauto a João Batista em
sua qualidade de arauto de Cristo. Quando o Batista diz “Eu sou a voz
…”, declara que está de acordo com esta interpretação (Jo. 1:23). O
14
Esta é a leitura do texto hebraico. Contudo, nos Evangelhos e no texto da LXX encontramos uma
leitura bastante diferente. Entendemos que a frase “no deserto” modifica a “voz do que clama”, e não
a “preparai o caminho”, como o exige no hebraico a acentuação massorética de Is. 40:3. A construção
tal como aparece no texto hebraico também se apoia no paralelismo: “no deserto preparai” está em
paralelismo com “endireitai … na solidão”. Entretanto, a diferença que vemos entre os Evangelhos e o
texto hebraico não é gravitante, porque é natural supor que aquele que clama no deserto, como porta-
voz dAquele que o envia, deseja que se aplaine o caminho no deserto.
Marcos (William Hendriksen) 51
próprio Jesus estava de acordo (Mt. 11:10). Os judeus voltaram para seu
país a fins do sexto século a.C., mas essa volta do cativeiro só foi um
tipo daquela libertação muito mais gloriosa que estava reservada para
todos os que recebem a Cristo como seu Salvador e Senhor. Em outras
palavras, o que Isaías diz a respeito da voz que clama, não teve seu
cumprimento pleno até que o arauto e o próprio Messias apareceram na
história. 15
Embora saibamos que Marcos refere-se a João Batista nos
versículos 2 e 3, não menciona seu nome até chegar ao versículo
4. Apareceu João Batista no deserto, pregando batismo …
O apropriado de que se aplique Isaías 40:3 à pessoa de João Batista
é evidente pelo seguinte: a. João pregava no deserto (Mc. 3:4); e b. a
tarefa que lhe tinha sido atribuído desde sua infância (Lc. 1:76, 77) e
mesmo antes (Lc. 1:17; Ml. 3:1), foi justamente a de ser arauto do
Messias, um que lhe prepararia o caminho. João devia ser a “voz” do
Senhor para o povo, tudo isto mas nada mais que isto (cf. Jo. 3:22–30).
Como tal, não só devia anunciar a vinda e presença de Cristo, mas sim
insistir com o povo a preparar o caminho do Senhor. Isto queria dizer
que, em virtude da graça e poder de Deus, deviam efetuar uma mudança
completa de suas mentes e corações. Deviam endireitar seus veredas,
isto é, deviam prover ao Senhor acesso livre aos seus corações e vidas.
Deviam endireitar todo o torcido, tudo o que não harmonizasse com a
santa vontade de Deus. Deviam tirar todos os obstáculos que tinham
amontoado no caminho; obstruções tais como a justiça própria e a
presumida complacência em si mesmos (“Temos por pai a Abraão”, Mt.
3:9), a cobiça, a crueldade, a calúnia, etc. (Lc. 3:13, 14).
João pregava no deserto” (Mc. 1:4), “o deserto da Judeia” (Mt. 3:1),
frase que indica as onduladas e más terras localizadas entre as agrestes
15
Não deve nos surpreender que o que se diz de Jeová no Antigo Testamento se refira a Cristo no
Novo. Para casos similares que mostram uma transição desde Jeová a Cristo, veja-se Êx. 13:21, cf.
1Co. 10:4; Sl 68:18, cf. Ef. 4:8; Sl 102:25–27, cf. Hb. 1:10–12; e Is. 6:1, cf. Jo. 12:41. É no Emanuel
que Jeová deve habitar com Seu povo.
Marcos (William Hendriksen) 52
colinas da Judeia pelo oeste, e o Mar Morto e o sob o Jordão pelo este,
estendendo-se rumo ao norte até chegar mais ou menos ao ponto onde o
rio Jaboque desemboca no Jordão. É na realidade uma desolação, uma
vasta extensão ondulante de terra estéril e com gesso, coberta de calhaus,
partes de pedras e rochas. Isoladamente se vê um ou outro matagal, com
serpentes que deslizam por baixo. Não obstante, segundo Mateus 3:5 (cf.
Jo. 1:28) é evidente que o território onde se desenvolvia a atividade de
João se estendia até a ribeira leste do Jordão. Marcos afirma que afinal
de contas, tanto na pregação de Isaías como na de João, “o deserto”
através do qual devia abrir-se caminho para o Senhor é o coração do
homem; coração que está sempre inclinado a todo o mal.
O que se enfatiza com relação a João é que batizava, que era o
Batista. Agora, o novo e surpreendente não era o fato de que batizava,
porque o povo já conhecia o batismo de prosélitos. O surpreendente era,
antes, que o rito que era sinal e selo (Rm. 4:11; cf. Cl. 2:11, 12) de uma
transformação fundamental de mente, coração, e vida fosse requerido até
dos filhos de Abraão! Também eles deviam converter-se, pois Marcos
prossegue: pregando batismo de arrependimento 16 .… Poderia dizer-se
também, “com miras à conversão” (Mt. 3:11). Para ser claros, um adulto
deve converter-se primeiro, antes de que possa receber devidamente o
batismo. Não obstante, também é verdade que por meio do batismo se
estimula poderosamente a conversão. Como poderia ter um efeito
diferente a devota reflexão na graça de Deus que adota, perdoa e
purifica?
A palavra que eu traduzi como “conversão” (nota 16) — traduzida
“arrependimento” na RA e em muitas outras traduções — indica uma
mudança radical da mente e do coração que resulta numa mudança
completa da vida (cf. 2Co. 7:8–10; 2Tm. 2:25). O arrependimento é
indubitavelmente um elemento básico da conversão. Tal conversão é
16
Hendriksen traduz: “batismo de conversão”. Ou: “volta de 180° quanto a mente e coração”. Veja-se
a explicação.
Marcos (William Hendriksen) 53
para remissão de pecados. Quando João batizava, chamava o povo a
confessar os seus pecados (Mt. 3:6). A lei de Deus, a consciência, o
lavamento com água, as palavras do Batista, tudo imprimia na pessoa a
necessidade de confessar-se e ser purificados de seus pecados. O entrar e
sair do Jordão lembrava-lhes que o antigo e pecaminoso “eu” devia ser
enterrado, para que os batizados fossem levantados à uma vida nova.
A palavra “remissão” significa perdão ou demissão. É uma
expressão muito alentadora que nos lembra passagens tais como Levítico
16 (os dois bodes); Salmo 103:12 (“como longe está o oriente do
ocidente”); Isaías 1:18 (“ainda que os vossos pecados sejam como a
escarlata …”); 44:22 (“Desfaço as tuas transgressões como a névoa …”);
55:6, 7 (“…é rico em perdoar”); e Miqueias 7:18 (“Quem, ó Deus, é
semelhante a ti, que perdoas a iniqüidade e te esqueces da transgressão
…”). A importância deste favor divino, sem o qual é impossível obter a
vida eterna, enfatiza-se também em muitas passagens do Novo
Testamento (cf. Mc. 3:29; Lc. 24:47; At. 2:38; 5:31; 10:43; 13:34, 38;
19:4; 26:18; Ef. 1:7; Cl. 1:14). O próprio João Batista ensinou que para
tirar o pecado era necessário o derramamento do sangue do Cordeiro (Jo.
1:29). Isto estava em completa harmonia com o ensino de Cristo e dos
apóstolos, conforme o indica Marcos e outros escritores do Novo
Testamento (Mc. 10:45; cf. 14:24; Mt. 20:28; 26:28; Lc. 22:20; Jo. 6:53,
56; Rm. 3:25; Hb. 9:22; 1 P. 2:24; Ap. 1:5; 5:6, 9).
Embora Marcos nos informe que “João Batista veio”, não nos diz
quando foi sua primeira aparição pública. A indicação de Mateus quanto
a tempo é também muito indefinida (“naqueles dias”). Para uma
cronologia mais precisa veja-se Lucas 3:1, 2. Bem como Jesus (Lc.
3:23), João tinha uns trinta anos quando fez sua primeira aparição
pública. João era uns seis meses mais velho que Jesus (Lc. 1:26, 36), e o
Senhor provavelmente começou o Seu ministério mais ou menos no final
Marcos (William Hendriksen) 54
17
do ano 26 d.C. Parece que foi no verão daquele mesmo ano que João
Batista começou a pregar às multidões e a batizar.
5. Saíam a ter com ele toda a província da Judéia e todos os
habitantes de Jerusalém.
Multidões saíam para ver e ouvir João, quem não se apartava delas.
Não viviam como ermitão ou recluso. Estava disposto a que as multidões
viessem a ele para ouvi-lo. Na realidade queria servi-las. A este respeito
era diferente dos membros da comunidade de Qumran, daqueles que
ouvimos muito desde que foram descobertos os manuscritos do Mar
Morto. De maneira muito notória, estes homens viviam isolados do
mundo. Diferente deles, o Batista recebia as multidões, não só os
homens mas também as mulheres (Mt. 21:31, 32). Não tratava de ocultar
suas convicções.
Contudo, não é verdade que o relato deixa claro que havia uma
diferença entre ele e Jesus? É verdade que multidões — e na realidade
multidões ainda maiores (Jo. 3:25–30) — acudiriam a Jesus (Mc. 1:32;
2:1, 2, 13; 3:8; 4:1; 5:21; 6:33, 55, 56; 10:1). O Senhor também as
receberia com grande empatia, com coração aberto (9:36). Até chamaria
e convidaria as pessoas (Mc. 8:34; 10:13, 14, 49; cf. Mt. 11:28). Mas
muito mais, o Senhor tomaria a iniciativa e iria ao encontro do povo
(Mc. 1:38; Mt. 14:14). Acaso não tinha vindo do céu para buscar e salvar
os pecadores (Lc. 19:10)?
Quanto às multidões que saíram para ver e ouvir João, são descritas
em linguagem um pouco figurada. A expressão “a região” pode
considerar-se como uma sinédoque, uma figura mediante a qual um
objeto (neste caso, a multidão) é chamado pelo nome de outro com o
qual se acha intimamente associado (neste caso, a região). Como se diz
que a região “saía”, a outra alternativa é considerar o termo “região”
como uma personificação (cf. Sl 114:3, 4; Hc. 3:10). Ao menos uma
17
Para a evidência que apoia esta data, veja-se W. Hendriksen, Bible Survey (Grand Rapids, 1961),
pp. 59–62, 69.
Marcos (William Hendriksen) 55
coisa é clara, que “região” aponta aos habitantes (cf. Jr. 22:29), ou seja,
ao povo da Judeia. Isto harmoniza com “os habitantes de Jerusalém”.
Quanto a “toda” (“toda a região … toda o povo”), trata-se de uma
hipérbole, e como tal inteiramente legítima (cf. Jz. 7:12; 2Sm. 1:23; 1Rs.
14:23; Sl 6:6).
Mateus acrescenta, “e toda a província ao redor do Jordão”. Não
somente os habitantes da Judeia em geral, incluindo os de Jerusalém,
mas também os que viviam a ambos os lados do Jordão, acudiam a João.
Devem ter sido milhares e milhares de pessoas, uma multidão, logo
outra, ainda outra, e assim, etc. O Batista tampouco permanecia
exatamente no mesmo lugar, e sim começando dos arredores do Mar
Morto, parece ter seguido pelo vale do Jordão até chegar a “Betânia, do
outro lado do Jordão” (Jo. 1:28), e um pouco depois, a “Enom, perto de
Salim”. Isto quer dizer que cruzou o rio e chegou a um lugar do lado
ocidental que tinha sete fontes, um lugar de fácil acesso às pessoas de
quatro províncias: Galileia, Samaria, Decápolis, e Pereia (Jo. 3:23). Não
é estranho, então, que alguns dos primeiros discípulos de Cristo,
batizados evidentemente por João, vivessem na Galileia (Jo. 1:35–42).
Quanto às palavras e, confessando os seus pecados, eram batizados
por ele no rio Jordão, veja-se o comentário ao versículo 4.
Descreve-se o modo de vestir e de viver de João. Em palavras do
versículo
6. As vestes de João eram feitas de pelos de camelo; ele trazia
um cinto de couro e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre.
A vestimenta longa e solta de João, tecida com pelo de camelo,
lembra-nos o manto de Elias, embora haja certa diferença na descrição
(cf. Mt. 3:4 com 2Rs. 1:8). Esta roupa austera pôde haver-se considerado
como símbolo do ofício profético. Zacarias 13:4 (cf. 1Sam. 28:14)
parece assim indicar. De qualquer maneira, aquele traje tosco resultava
adequado para o deserto. Era durável e econômico. Jesus fez menção
especial do fato de que João não luzia roupa fina (Mt. 11:8). O cinturão
de couro grampeado à cintura, não só impedia que o vento levantasse ou
Marcos (William Hendriksen) 56
destroçasse o seu manto, mas servia para ajustá-lo e facilitar a ação. Com
relação a isto, veja-se CNT sobre Efésios 6:14.
O alimento de João era tão singelo como o era sua roupa. Mantinha-
se com gafanhotos e mel silvestre, evidentemente a comida que lhe era
possível achar no deserto. A classe de mel que encontrava de maneira
silvestre não apresenta problemas. Não servia só para adoçar (o açúcar
como nós o conhecemos era coisa raro), mas era um alimento. No
deserto era possível encontrar mel sob as rochas ou nas fendas das
rochas (Dt. 32:13). O papel que jogou o mel silvestre nas histórias de
Sansão (Jz. 14:8, 9, 18) e Jônatas (1Sm. 14:25, 26, 29) é muito
conhecido para entrar em explicações.
Mas gafanhotos! Com apenas pensar em comê-los a gente
estremece. Tirar-lhes as asas e as patas, assar ou cozer seus corpos,
acrescentar-lhe sal e …! Entretanto, é claro por Levítico 11:22 que o
Senhor permitiu — e assim estimulou — os israelitas a comer quatro
tipos de insetos que em nosso país chamaríamos “gafanhotos”. Hoje em
dia ainda há certas tribos da Arábia que os desfrutam. E por que não? A
declaração latino, De gustibus non disputandum est (“gosto não se
discute”), ainda está vigente. Os que gostam de camarões, almejas,
ostras, rãs, e caracóis não deveriam escandalizar-se se alguém gosta de
gafanhotos.
Entretanto, não é necessário pensar que o versículo 6 nos dá um
resumo completo da dieta do Batista. O ponto central que se quer
comunicar é que mediante sua forma de vida singela, evidente na
alimentação e o vestido, João tinha se constituído numa protesto vivo
contra toda forma de egocentrismo e autoindulgência. João atacava a
frivolidade, a indiferença e a falsa segurança com que muitas pessoas se
apressavam para sua destruição.
É verdade que tudo o que João podia fazer era exortar os seus
ouvintes para fazê-los sentir a urgente necessidade de conversão. Se
considerarmos o batismo como um símbolo da purificação que Deus
opera na vida da pessoa (Is. 1:16–18; Ez. 36:25), João só podia realizar o
Marcos (William Hendriksen) 57
rito exterior. Para que os batizados recebessem a essência do que o
batismo significa, requeria-se o poder e a graça de Um mais poderoso
que João. Portanto, não surpreende que Marcos prossiga:
7, 8. E pregava, dizendo: Após mim vem aquele que é mais poderoso
do que eu, do qual não sou digno de, curvando-me, desatar-lhe as correias
das sandálias. Eu vos tenho batizado com água; ele, porém, vos batizará
com o Espírito Santo.
Nestes versículos, Marcos nos informa que a dupla descrição
comparativa que João nos entrega a respeito de Jesus, indica a. que Jesus
é superior em majestade, “mais poderoso que eu” (v. 7), e b. que sua
atividade é igualmente superior (v. 8). O Batista creu necessário realçar
este contraste entre ele e seu Mestre, porque logo o povo começou a
perguntar-se se talvez não seria João o Cristo (Lc. 3:15; cf. Jo. 1:19, 20;
3:25–36). João 1:19–27 também relata que João rejeitou sem reserva tal
conceito, muito errôneo e repreensível. É verdade que Jesus nasceu
depois de João e que começou o Seu ministério público depois de João
(Lc. 1:26, 36; 3:23). Mas entre Cristo e João Batista existia uma
diferença qualitativa. A diferença entre o Infinito e o finito, entre o
Eterno e o temporal, entre a Luz original do sol e a refletida pela lua (cf.
Jo. 1:15–17).
A fim de sublinhar o contraste que havia entre ele e seu Senhor,
João usa uma ilustração tirada dos costumes de seu tempo. Quando um
amo chegava a casa esgotado de uma viagem e com suas sandálias
cheias do pó do caminho, o servo ou escravo trataria, por todos os meios
possíveis, fazê-lo sentir-se confortável. Naturalmente que este serviço
era também oferecido aos convidados de honra de seu amo. O não fazê-
lo teria levantado críticas muito justas (Lc. 8:44–46). No presente caso,
só fica em relevo o ato de desatar e tirar as poeirentas sandálias da
pessoa honrada. Com leves variações, o Novo Testamento registra em
essência a mesma figura. Quer se fale de desatar as correias das sandálias
(Lc. 3:16; Jo. 1:27), ou inclinar-se (só Marcos acrescenta este detalhe) e
desatar as correias (Mc. 1:7), desatar o calçado (At. 13:25), ou ainda tirar
Marcos (William Hendriksen) 58
as sandálias (Mt. 3:11), a ideia básica é que o subordinado se inclina a
fim de soltar as correias do calçado, levando-o logo para limpá-lo.
Quando o Batista diz que não é digno de desatar as correias das
sandálias de Jesus, está mostrando profunda e autêntica humildade. Isto
será melhor apreciado se tivermos presente que, de acordo com uma
antiga tradição judaica, a diferença entre um “discípulo” e um “servo”
(ou “escravo”) era que o discípulo estava pronto para realizar qualquer
serviço que um criado fizesse, exceto desatar as sandálias de seu mestre.
De modo que, o que aqui se implica são três etapas ascendentes de
humildade:
a. O discípulo está disposto para prestar quase qualquer serviço.
b. O escravo ou o mais humilde dos servos está disposto a prestar
qualquer serviço.
c. O Batista considera-se indigno de prestar o serviço de desatar as
correias do calçado de seu Mestre. Com relação a isto, veja-se CNT
sobre Filipenses 2:3, 5–8 e 1 Timóteo 1:15.
Além disso, João batizava com água, Jesus batizaria com o Espírito.
Jesus faria com que Seu Espírito e seus dons (At. 1:8) fossem
derramados sobre Seus seguidores (At. 2:17, 33), que caíssem sobre eles
(At. 10:44; 11:15). Agora, cada vez que se batiza alguém que foi tirado
das trevas à maravilhosa luz de Deus, o tal também é indubitavelmente
batizado com o Espírito Santo. Entretanto, segundo as palavras do
próprio Senhor Jesus Cristo (At. 1:5, 8), e lembradas pelo apóstolo Pedro
(At. 11:16), esta predição se cumpriu em sentido muito especial no
Pentecostes e na era que com esta data se iniciou. No Pentecostes, a
vinda do Espírito enriqueceu as mentes dos seguidores de Cristo com
uma iluminação sem precedentes (1Jo. 2:20). Suas vontades foram
fortalecidas como nunca antes com entusiasmo contagioso (At. 4:13, 19,
20, 33; 5:29) e seus corações foram inflamados de um afeto ardente que
não tinha precedente algum (At. 2:41–47; 3:6; 4:32).
Marcos (William Hendriksen) 59
Mc. 1:9–11 - O batismo de Jesus
Cf. Mt. 3:13–17; Lc. 3:21, 22; Jo. 1:32–34.
18
Van Leeuwen, Op. cit., p. 25, favorece a ideia de que o sujeito de “viu” é João Batista. É verdade
que João viu tudo o que sucedeu (Jo. 1:32; cf. Mt. 3:16), mas em Mc. 1:10 “viu” pode muito bem
apontar o seu antecedente mais próximo: Jesus.
Quanto às outras passagens, é difícil pensar no próprio Jesus “vendo” o objeto à maneira de pomba
descendo sobre Si e permanecendo naquela posição por algum tempo. O fato de o próprio Jesus ver a
descida da “pomba” entende-se facilmente, como também o fato de que alguém que estivesse perto —
no caso presente João Batista e provavelmente outros — visse o objeto descer e posar-se sobre a
cabeça de Cristo. Portanto, parece que a. em Mt. 3:16 o sujeito de “viu o Espírito de Deus que descia
como pomba e que se posava sobre ele” (minha tradução) é João Batista (cf. Jo. 1:32); mas que b. em
Mc. 1:10 o sujeito de “viu” é o próprio Jesus. Esta dupla conclusão é confirmada pelo fato de que no
contexto de Mateus (Mt. 3:17) o Pai Se dirige a João, não a Jesus (“Este é meu Filho …”); conquanto
no contexto de Marcos (Mc. 1:11) o Pai Se dirija a Jesus, não a João (“Tu és o meu Filho …”).
Naturalmente que a diferença é de pouca importância. Por certo, o que aqui ocorreu era importante
não só para Jesus, mas também para João e para qualquer que tivesse estado presente.
Marcos (William Hendriksen) 62
Segundo, referente ao Espírito: “Por que foi a terceira pessoa da
Trindade representada à maneira de pomba?” Resposta: Talvez com o
propósito de dar a entender a pureza, bondade, serenidade e graça
características que identificam o Espírito Santo. Tanto a opinião popular
como as Escrituras (Sl 68:13; Ct. 6:9; Mt. 10:16) associam estas
qualidades com a pomba.
Sugeria a água do Jordão a necessidade de purificação?
Simbolizado na forma de uma pomba que repousava sobre o Filho, o
Espírito Santo muito bem poderia ter indicado que em Si mesmo e por Si
mesmo, Jesus era o habitado pelo Espírito puro e santo. Mas não apenas
isso, mas também bondoso e pacífico. Os pecados pelos quais devia
morrer não eram Seus próprios, e sim os que Lhe foram imputados.
Terceiro, referente ao Pai: A quem pertencia a voz que exclamou
“Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo? Não se diz quem é
aquele que fala 19 nem tampouco é necessário, porque a própria
fraseologia (“meu Filho Amado”) identifica ao que fala como o Pai.
Além disso, Jesus é o Amado do Pai não só em sua qualidade
messiânica oficial, mas também como Filho por geração eterna, como
Aquele que compartilha plenamente a essência divina junto ao Pai e o
Espírito (Jo. 1:14; 3:16; 10:17; 17:23). Não é possível que exista um
amor mais elevado que o amor que o Pai prodigaliza ao Filho. De acordo
com o adjetivo verbal (agapetos: amado) usado aqui, trata-se de um
amor profundamente enraizado, absolutamente íntegro, tão grande como
o é o coração do próprio Deus. É também tão inteligente e organizado
como o é a mente de Deus. É tenro, vasto, infinito! 20
19
Com relação ao tema da complacência ou boa vontade de Deus, de modo algum a presente
passagem é a única onde se omite o nome de quem a exerce; veja-se, p. ex., Lc. 2:14; Fp. 2:13; e Cl.
1:19, onde o contexto deixa claro a quem se refere. O texto de Ef. 1:3, 5 deixa muito claro de quem se
fala quando se menciona a complacência: “Bendito o Deus e Pai … nos predestinou para ele …
segundo o beneplácito de sua vontade” (CI).
20
Sobre a diferença entre ἀλαπάω e φιλέω e seus respectivos derivados, veja-se CNT sobre João, nota
458.
Marcos (William Hendriksen) 63
No original, as palavras “meu Filho Amado” estão construídas de
tal modo (literalmente “meu Filho, o Amado”), que com a repetição do
artigo se sublinha igualmente o substantivo “Filho” como o adjetivo
“Amado”. Na realidade, por meio de colocar o adjetivo depois do
substantivo e com o artigo definido repetido (“meu Filho, o Amado”),
obtém-se uma espécie de clímax. 21
Além de possuir todas as qualidades que já Lhe atribuímos, este
amor também é eterno, quer dizer, não tem tempo, eleva-se muito acima
das barreiras temporais. Embora alguns não concordem, consideramos
correta a tradução “em quem tenho complacência”. 22 No sereno retiro da
eternidade, o Filho era o objeto do inesgotável deleite do Pai (cf. Pv.
8:30). E embora mediante o batismo o Filho confirmasse o seu propósito
de derramar Seu sangue em favor de um mundo perdido em pecado, este
fato não diminui em nada aquele amor. Isto é o que o Pai está dizendo ao
Filho. Diz também a João … e a todos nós.
Esta é uma passagem cheia de consolo! Aqui não apenas o Filho e
João encontram consolo, e sim cada filho de Deus. Não se trata de que só
o Filho ama tanto os Seus seguidores que está preparado para sofrer por
eles as dores do inferno, mas sim o Espírito também coopera plenamente
fortalecendo-O para essa tarefa, e o Pai, em vez de olhar com desagrado
para Aquele que toma tal tarefa, acha-se tão agradado com Ele, que abre
os próprios céus para que na terra se ouça sua voz de prazerosa
aprovação. 23 Os três se acham igualmente interessados em nossa
salvação, e os três são Um.
21
Véase Robertson, pp. 369, 370.
22
Este é um excelente exemplo do aoristo atemporal. Veja-se Robertson, p. 837; assim também em
Mt. 17:5; Mc. 1:11 e Lc. 3:22.
23
A respeito do tema do batismo de Cristo, veja-se também: A. B. Bruce, “The Baptism of Jesus”,
Exp, 5ta. serie 7 (1898), pp. 187–201; e W. E. Bundy, “The Meaning of Jesus’ Baptism”, JR, 7 (1927),
pp. 56–71.
Marcos (William Hendriksen) 64
Mc. 1:12, 13 - A tentação de Jesus no deserto
Cf. Mt. 4:1–11; Lc. 4:1–13
24
O: o enviou (para ir) ao deserto.
Marcos (William Hendriksen) 66
move de maneira repentina da plena luz às trevas, da sorriso
complacente do Pai ao engano depreciativo de Satanás.
“…o Espírito o impeliu”. Aqui outros traduzem “o empurrou” (CI,
NBE, cf. BJ), “tirou-o” (BP) ou algo similar. É verdade que o verbo que
se usa no original, com frequência significa lançar fora ou expulsar. De
fato, neste mesmo capítulo (Mc. 1), a palavra refere-se à expulsão de
demônios (Mc. 1:34, 39, 43). Jesus também lançou fora ou expulsou do
templo os mercadores (Mt. 21:12); e os lavradores maus lançaram o
herdeiro fora da vinha (Mt. 21:39). Entretanto, quando a palavra se
traduz assim, não é fácil separar dela a ideia de que se está usando uma
força externa a fim de empurrar um objeto relutante, mas esta não
poderia ser a conotação no caso do Senhor. Por conseguinte, seria
melhor traduzir: “o impeliu” (RA), encheu-o de desejo interno, moveu-o
a. Outra possibilidade é reconhecer o fato de que o mesmo verbo grego
usa-se também num sentido mais suave: libertar, enviar, levar (Jo. 10:4;
At. 16:37).
“… para o deserto”. Aqui surgiu a seguinte pergunta: Mas acaso
Jesus não estava no deserto quando foi batizado? Não era no deserto
onde João batizava (Mc. 1:4)? Sugeriu-se, então, que “o deserto” ao qual
foi levado Jesus era muito mais austero e inóspito que o mencionado no
versículo 4. Embora a presença de “feras” (v. 13) poderia dar apoio a
esta teoria, não seria mais razoável ver a solução em Lucas 4:1? Em
outras palavras, o significado poderia ser que Jesus foi levado do Jordão
para o deserto. É inútil tratar de adivinhar a localização precisa da região
desértica onde Cristo jejuou e foi tentado. Foi uma colina de pedra
calcária que há perto de Jericó? Ninguém sabe.
Há um fato que não deve ser esquecido: embora o deserto seja
espantoso, especialmente quando se permanece ali por quarenta dias sem
alimentos, ao mesmo tempo foi o lugar onde Jesus pôde desfrutar da
comunhão com Seu Pai celestial sem que nada o distraísse. Foi também
o lugar de preparação para o desempenho de sua tarefa como Mediador!
(cf. Mc. 1:35; Lc. 5:16.).
Marcos (William Hendriksen) 67
13. onde permaneceu quarenta dias …
Vem-nos à mente imediatamente a experiência de Moisés no monte
Horebe (Êx. 34:2, 28; Dt. 9:9, 18) e a de Elias no mesmo monte (1Rs.
19:8). Eles não apenas jejuaram, mas também Jesus. Somos informados
que Jesus estava sendo tentado por Satanás no deserto. O verbo que
aqui se traduz “tentado” pode ter um sentido favorável: pôr alguém à
prova, a fim de fortalecê-lo espiritualmente. Foi neste sentido que o
Senhor “tentou” Abraão (Gn. 22:1–19; Hb. 11:17; veja-se também Jo.
6:6). Mas como se acrescenta a frase “por Satanás”, fica claro que neste
caso o sentido é que o príncipe do mal fez todo o possível por seduzir
Jesus a pecar. Marcos diz, “tentado por Satanás”; Lucas, “pelo diabo”;
Mateus, “pelo diabo … o tentador”. A palavra grega diabolos significa:
diabo, caluniador, acusador (Jó 1:9; Zc. 3:1, 2; cf. Ap. 12:9, 10) e pela
influência da LXX também quer dizer: adversário (1Pe. 5:8), o que
estritamente falando é o significado de Satanás.
É evidente que Marcos cria na existência de um “príncipe do mal”
pessoal. 25 Assim creram também todos os outros escritores do Novo
Testamento: Mateus (Mat. 4:1, 3, 5, 8); Lucas (Lc. 4:2, 3, 6, 13; 8:12);
Pedro (At. 10:38; 1Pe. 5:8); Paulo (Rm. 16:20; Ef. 4:27; 6:11); o escritor
de Hebreus (Hb. 2:14); Tiago (Tg. 4:7); João (Jo 13:2, 27; 1Jo. 3:8, 10,
12; 5:18, 19; Ap. 12:9; 20:2, 7, 10); e Judas (Jd. 9). O mesmo se pode
dizer de Jesus (Mt. 6:13; 13:39; 25:41; Mc. 3:23, 26; 4:15; 8:33; Lc. 4:8;
10:18; 11:18; 13:6; 22:3, 31; Jo. 8:44). Poder-se-iam acrescentar outras
referências.
Devido ao fato de que Marcos descreve a Cristo como o Rei
vencedor, é apropriado que ele seja quem chama Satanás (=adversário) o
tentador. A batalha, então, vai ser entre o Rei e Seu adversário.
Muitos interpretam a cláusula “onde permaneceu quarenta dias,
sendo tentado por Satanás” como se queria dizer que Jesus foi tentado ao
longo de todos os quarenta dias. Inclusive se argumenta que o grego não
25
Entretanto, Marcos nunca usa o termo diabolos (=diabo), sempre usa Satanás.
Marcos (William Hendriksen) 68
permite nenhuma outra interpretação. Agora, quando se considera esta
cláusula isoladamente e sem considerar o relato de Mateus (que é muito
mais detalhado e cronológico), deve-se admitir que a linguagem que usa
o original admite que seja entendido nesse sentido. Ao mesmo tempo,
também se deve dizer que este não é o único ponto de vista possível. Às
vezes isto é reconhecido até pelos que favorecem a teoria de uma
tentação contínua de quarenta dias. 26 O argumento em defesa de uma
tentação de quarenta dias seria inexpugnável, se a cláusula lesse como
segue: “Quarenta dias esteve sendo tentado, estando no deserto”. Mas tal
como está, o original pode significar: “Quarenta dias esteve no deserto,
onde era tentado”. 27
Rejeitando a teoria dos quarenta dias de tentação e em favor da
segunda construção, pode-se argumentar que:
a. Mateus 4:2, 3, ensina claramente que a tentação por Satanás
começou no final dos quarenta dias de jejum.
b. O relato condensado de Marcos deve interpretar-se à luz do relato
amplo e cronológico que se acha em Mateus, não vice-versa.
Mas mesmo que se adotasse a teoria dos quarenta dias de tentação
contínua, deve-se tomar cuidado de não preencher este período de todo
tipo de produtos da imaginação. Deve ter-se em mente que se houve uma
série de tentações anteriores às três que conhecemos, as Escrituras não
dão nenhum detalhe a respeito.
Só Marcos entrega a seguinte descrição adicional do que sucedeu
enquanto Jesus estava no deserto: estava com as feras … O vale do
Jordão e o deserto adjacente eram conhecidos como guarida de hienas,
chacais, panteras e até leões, os que na antiguidade de maneira nenhuma
eram escassos na Palestina, 28 o que se faz evidente pelo fato de que o
26
Assim, por exemplo, A.B. Bruce afirma que Jesus foi tentado “presumivelmente o tempo todo” (Op.
cit., p. 343). O advérbio “presumivelmente” ou “provavelmente” deixa a porta aberta para uma
interpretação diferente!
27
O mesmo rege com relação a Lc. 4:1b, 2a, onde se deve preferir a tradução de NVI, RA, NBE, em
lugar da tradução que se encontra em LT, VM e CB.
28
Veja-se J.G. Wood, Story of the Bible Animals, Filadelfia, s.f., pp. 19–41.
Marcos (William Hendriksen) 69
Antigo Testamento mencionam leões em dois terços de seus livros. A
região onde Jesus jejuou e foi tentado era, portanto, um lugar
abandonado e perigoso. Um lugar diametralmente oposto ao paraíso
onde foi tentado o primeiro Adão. 29
Marcos conclui a descrição do que sucedeu a Jesus neste tempo
escrevendo: mas os anjos o serviam. A função destes “espíritos
dedicados ao serviço” (Hb. 1:14) é a de prestar serviço de diversas
maneiras (veja-se CNT sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, pp. 209, 210). Em
conexão com a história da tentação, qual foi exatamente o momento em
que os anjos prestaram este serviço a Cristo? Neste caso a resposta se
acha outra vez no relato de Mateus, que é mais detalhado e mais
ordenado cronologicamente. Mateus diz: “Com isto, o deixou o diabo, e
eis que vieram anjos e o serviram” (Mt. 4:11). Os anjos O serviram
quando o diabo tinha sido totalmente vencido. O que este serviço
implicava exatamente não se menciona. Talvez o melhor é dizer que, em
geral, o Pai enviou os anjos para prover às necessidades de Seu Filho,
quaisquer que estas tenham sido. Parece razoável inferir que isto também
incluía provisão para o corpo. 30
Marcos não diz nada a respeito do triunfo de Cristo sobre Satanás.
Quanto a isto também dependemos de Mateus 4:1–11 (cf. Lc. 4:1–13).
Mas não sugere o ministério dos anjos que Cristo venceu? Não foram
enviados pelo Pai como recompensa por Sua obediência?
29
G.C. Morgan (Op. Cit., p. 27) imagina uma experiência como a de Francisco de Assis com os
pássaros, e afirma que os animais se reuniram ao redor de Jesus como seu amigo. Mas isto não está
em harmonia com o contexto, o qual enfatiza as dificuldades e as condições terríveis que rodeavam o
Senhor (observe-se as palavras “deserto”, “tentado”, e “feras”). É verdade que μet basicamente
significa entre, na companhia de, mas tal companhia de modo algum é sempre boa e amigável (Mt.
24:51; Lc. 12:46).
30
Alguns sustentam que Marcos tira a ideia das feras e anjos do Sl 91:11–13, onde a promessa de
vitória sobre o leão e o áspide vem imediatamente depois da proteção angélica. Véase S.E. Johnson, A
Commentary on the Gospel according to St. Mark (Londres, 1960), p. 41. Mas não é verdade que esta
analogia é um tanto forçada? O relato de Marcos não fala a respeito de proteção angélica nem de
vitória sobre as feras.
Marcos (William Hendriksen) 70
Nestes dois versículos observamos: a ação do Espírito Santo, a
obediência de Cristo, a presença de feras, a tentação de Satanás, e no
final o serviço que os anjos Lhe prestaram. O fundo do relato sugere a
ausência total de toda ajuda humana e o amor e cuidado providenciais
do Pai, quem enviou os Seus anjos para servi-Lo. A ausência de seres
humanos e a presença destes sete mostram a majestade da figura central:
Jesus Cristo, o grande Rei que ao mesmo tempo era o Servo sofredor.
Tendo obtido a vitória, agora o Senhor pode começar o Seu
ministério de pregar, ensinar, curar e expulsar demônios. Tudo isto O
conduzirá ao triunfo final sobre a morte, o qual obterá ao terceiro dia
com Sua gloriosa ressurreição. Uma seção de grande significado do
Evangelho de Marcos se fecha neste ponto.
Esta primeira seção de Marcos consiste de três parágrafos, os quais
tratam de três temas:
a. O ministério de João Batista (1:1–8),
b. o batismo de Jesus (1:9–11), e
c. a tentação de Jesus no deserto (1:12, 13).
Ministério de João. Tempo: A primeira parte do ministério de João
que aqui se considera, estendeu-se desde mediados do ano 26 d.C. até o
fim desse ano (ou pouco depois). Lugar: o deserto da Judeia e o rio
Jordão. O ministério de João dava cumprimento às profecias (Ml. 3:1 e
Is. 40:3; que Mc. 1:2, 3 cita nessa ordem). O Batista insiste com o povo a
passar por uma mudança espiritual, para que seus pecados sejam
perdoados. Também batizou, porque o batismo era sinal e selo deste
perdão. À luz dos versículos 2–4, o significado do versículo 1
(“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”) pareceria ser:
“As boas novas a respeito de Jesus Cristo, Filho de Deus, começaram
com João Batista. Tal como foi predito, foi João quem preparou o
caminho para o advento de Cristo”. Sua pregação consistia em proclamar
a necessidade de uma genuína conversão e fé nAquele diante de quem
“nem sequer sou digno de me inclinar para desatar as correias de suas
sandálias”, dizia João. A fim de mostrar que ele, João Batista, era
Marcos (William Hendriksen) 71
incapaz de dar ao povo o que necessitava, acrescenta, “Eu vos batizei
com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo”. Estas palavras de
João se cumpriam cada vez que um pecador passava das trevas à luz,
mas se cumpriram especialmente durante a dispensação que começou
com o derramamento do Espírito no Pentecostes.
A resposta ao ministério de João foi assombrosa: Da Judeia,
incluindo Jerusalém, grandes multidões saíam constantemente para
escutar a João. Muitos deles confessavam seus pecados e se batizavam
no rio Jordão. João Batista levava uma forma de vida simples, vestindo
roupa feita de pelo de camelo com um cinturão de couro ao redor de sua
cintura, comendo gafanhotos e mel silvestre. Isto como também o ardor e
franqueza com que chamava as pessoas, devem ter contribuído para
conseguir um resultado favorável, com o qual se preparava o caminho
para que a mensagem de Cristo entrasse nos corações e vidas do povo.
O batismo de Jesus. Tempo: provavelmente ao redor de dezembro
do ano 26 d.C. (ou pouco depois). Lugar: o rio Jordão, o lugar exato não
se conhece. Jesus inaugurou seu ministério solicitando ser batizado por
João. Depois de ser batizado, os céus se abriram e o Espírito Santo
desceu como pomba sobre Ele. Uma voz Lhe falou: “Tu és o meu Filho
amado, em ti me comprazo”.
É verdade que a água do batismo indicava a necessidade de tirar o
pecado. É um fato também que Jesus foi e é o Imaculado. Como então
pôde ser batizado? Resposta: afinal de contas, Ele sim tinha pecado, quer
dizer, o nosso (Is. 53:6; 2 Cor. 5:21).
A tentação de Jesus. Imediatamente depois do batismo, o Espírito
tirou Jesus do Jordão a O levou para o deserto. Ali passou quarenta dias
e foi tentado por Satanás. A região onde teve lugar a tentação era
desolada e perigosa; Jesus estava em meio das feras. Não obstante,
triunfou e foi recompensado, segundo se entende pelo fato de que os
anjos, enviados pelo Pai, O serviam.
Jesus Se submeteu de maneira voluntária ao rito do batismo e
também obedeceu livremente a vontade do Pai e a direção do Espírito
Marcos (William Hendriksen) 72
quando foi tentado por Satanás. Por tudo isto, Jesus, o segundo Adão,
cumpriu a lei que o primeiro Adão transgrediu. Mediante esta obediência
estava indicando claramente que tinha tomado sobre Si o pecado de
todos nós e que estava tirando “o pecado do mundo” (cf. Jo. 1:29). Por
conseguinte, estava preparado para começar Seu ministério de ensinar,
pregar, curar, expulsar demônios e, sobretudo, sofrer e morrer por todas
as “ovelhas” perdidas que poriam sua confiança nEle (veja-se Is. 53:6,
11; Jo. 10:11, 14, 15, 27, 28).
Marcos (William Hendriksen) 73
14. Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galileia …
Começa aqui uma nova seção do Evangelho de Marcos. Por um
lado, temos o batismo e a tentação de Cristo (Mc. 1:9–13); por outro,
Sua chegada a Galileia (v. 14). Entre estes dois eventos pôde muito bem
ter passado mais ou menos um ano.31 Mas apesar da distância temporal,
o que o evangelista está prestes a narrar está ligado em sentido com o
ocorrido anteriormente. O que Marcos relata agora está estreitamente
relacionado com o que precede. A preparação e inauguração da obra que
o Pai tinha encomendado ao Filho para fazer tinha chegado ao seu termo.
O começo foi cumprido: João Batista, o arauto, tinha apresentado a
Cristo diante de Israel. Além disso, o próprio Jesus tinha pedido para ser
batizado, e Seu batismo confirmava sua decisão de tomar sobre os Seus
ombros o pecado do mundo. Por último, Jesus tinha demonstrado ser
digno, porque triunfou sobre Satanás no deserto. Isto O transformou em
representante de Seu povo, o segundo Adão que venceu onde o primeiro
Adão tinha fracassado. Portanto, agora nada podia impedi-Lo de realizar
a tarefa que lhe tinha sido atribuída e que voluntariamente assumiu.
O tempo em que Cristo partiu da Judeia para a Galileia (veja-se Jo.
4:1–3, 43) tinha certa relação com o encarceramento de João Batista. O
Mestre abandonou a Judeia e empreendeu viagem para a Galileia,
quando João foi detido (Mc. 1:14) e quando os fariseus, com quartel
31
Este cálculo se baseia no suposto de que a viagem a Galileia, com a qual Jesus começou o grande
ministério galileu que Marcos menciona aqui, é o mesmo de Jo. 4:3, 43. Em João esta viagem foi
seguida pouco depois pelo que provavelmente foi a segunda Páscoa do ministério público de Cristo
(Jo. 5:1). Em consequência, a festa da Páscoa do ano 28 d.C. foi precedida, um ano antes, pela
primeira Páscoa que se menciona em Jo. 2:13, 23. Veja-se também CNT sobre o Evangelho segundo
João, pp. 38, 39, 191, 200, 201; e meu Bible Survey, pp. 61, 62, 69.
Marcos (William Hendriksen) 75
general em Jerusalém, inteiraram-se de que Jesus ganhava e, mediante
Seus discípulos, batizava mais discípulos que João. O Senhor estava
consciente de que Sua grande popularidade nas regiões campestres da
Judeia traria tão intenso rancor da parte dos líderes religiosos dos judeus,
que no curso natural dos fatos este ódio causaria uma crise prematura.
Jesus entregaria voluntariamente Sua vida logo que chegasse o momento
assinalado para Sua morte (Jo. 10:11, 14, 15, 18; 13:1). Nesse momento,
e não antes, Ele teria que fazê-lo. Além disso, a Galileia também tinha
ovelhas perdidas que deviam ser trazidas ao redil.
Assim, Jesus veio para a Galileia pregando o evangelho de Deus,
quer dizer, apregoando ou proclamando as boas novas de salvação como
dom gratuito de Deus para os homens, uma salvação que do começo ao
fim é obra de Deus. Sem dúvida, todo verdadeiro servo de Deus dará a
conhecer o relato, mas Deus (em Cristo) ocupou-Se em prover os fatos
do relato que teria que ser contado. Foi Ele quem proveu o caminho da
salvação, fora do qual todo homem está eternamente perdido. Estas boas
novas, portanto, constituem com toda propriedade “o evangelho de
Deus”. Que melhor comentário poderíamos achar que a seguinte lista de
passagens: Jo. 3:16; Rm. 8:3, 32; 2Co. 5:20, 21; Gl 4:4, 5; Ef. 2:8–10;
Tt. 3:7?
15. dizendo: O tempo está cumprido, …” (cf. Gl 4:4; Ef. 1:10). O
tempo apropriado ou a oportunidade favorável 32 tinha chegado para o
cumprimento das promessas redentoras de Deus e para a promulgação do
evangelho. A hora para o cumprimento de Isaías 9:1, 2 33 tinha chegado.
Em consequência, Jesus diz: e o reino de Deus está próximo. Observe-
se “reino de Deus”, onde Mateus geralmente diz “reino dos céus”.
Basicamente o significado é o mesmo. Então, o que Jesus está dizendo é
32
Note-se que se diz: “καιρός está cumpridi”. Diferente de χρόνος, καιρός considera o tempo da
perspectiva da oportunidade que brinda e não simplesmente como um passo do passado ao presente e
ao futuro. Assim, καιρός não indica só duração. Veja-se R.C. Trench, Synonyms of the New Testament
(Grand Rapids, 1948), # lvii.
33
Veja-se CB, mas não se tome em conta a má tradução de Is. 9:1 que entrega Reina-valera 1909.
Marcos (William Hendriksen) 76
que o reinado de Deus começaria a fazer-se sentir nos corações e vidas
do povo de uma forma muita mais poderosa, como nunca antes. Havia
grandes bênçãos preparadas para todos aqueles que, pela soberana graça,
confessariam e abandonariam seus pecados, para começar a viver para a
glória de Deus.
Em sua conotação mais ampla, as expressões “o reino de Deus”, “o
reino dos céus” ou simplesmente “o reino” (esta última quando o
contexto deixa claro que se refere ao reino de Deus) indicam o reinado,
governo ou soberania de Deus, quando são reconhecidos-nos corações,
quando estão operações na vida do povo de Deus, quando levam a cabo a
completa salvação dos crentes, quando os converte em igreja e
finalmente num universo redimido. Passemos agora a ilustrar estes
quatro conceitos:
a. O reinado, governo ou soberania reconhecida de Deus. Este pode
ser o significado em Lucas 17:21, “O reino de Deus está dentro de vós”,
e é o significado em Mateus 6:10, “Venha o teu reino, seja feita a tua
vontade …”
b. Completa salvação, quer dizer, todas as bênçãos espirituais e
materiais para a alma e o corpo. Isto vem quando Deus é o Rei em
nossos corações, e é reconhecido e obedecido como tal. O contexto
mostra que este é o significado em Marcos 10:25, 26, “É mais fácil …
que um rico entre no reino de Deus. E … disseram, Então, quem pode
salvar-se? ”
c. A igreja: a comunidade de pessoas em cujos corações Deus é
reconhecido como Rei. Reino de Deus e igreja quando usados neste
sentido são quase equivalentes. Este é o significado em Mateus 16:18,
19, “… sobre esta rocha edificarei a minha igreja … te darei as chaves
do reino dos céus.”
d. O universo redimido: o novo céu e a nova terra com toda sua
glória; algo ainda futuro: a realização final do poder salvador de Deus.
Assim é em Mateus 25:34, “… herança o reino preparado para vós”.
Marcos (William Hendriksen) 77
Estes quatro significados de reino não estão separados nem alheios
um do outro. Todos procedem da ideia central do reino de Deus, sua
supremacia na esfera do poder salvador. O reino ou reinado (a palavra
grega tem ambos os significados) dos céus é como o desenvolvimento
gradual da semente de mostarda; portanto, presente e futuro (Mc. 4:26–
29). É presente: estude-se Mt. 5:3; 12:28; 19:14; Mc. 10:15; 12:34; Lc.
7:28; 17:20, 21; Jo. 3:3–5; 18:36. É futuro: estude-se Mt. 7:21, 22;
25:34; 26:29.
Jesus falou da obra de salvação como o reino ou reinado do céu, a
fim de indicar o caráter, origem e propósito sobrenatural de nossa
salvação. Nossa salvação começa no céu e deve redundar para a glória
do Pai que está no céu. Portanto, ao usar este termo Cristo defendeu
aquela verdade, tão preciosa para todos os crentes, que tudo está
subordinado à glória de Deus.
Em consequência, Mateus 4:14–16; 11:4, 5 e Lucas 4:18–21 seriam
um excelente comentário às palavras: “O tempo está cumprido, e o reino
de Deus está próximo”. É fácil entender por que Jesus diz “está
próximo”, porque quando estas palavras foram ditas o trabalho de Cristo
de pregar, ensinar, e curar na Galileia e seus arredores logo começava.
Jesus prossegue: arrependei-vos * e crede no evangelho. Compare-
o que disse João Batista: “Arrependei-vos, porque o reino dos céus está
próximo” (Mt. 3:2; veja-se também Mc. 1:4) com o que disse Jesus:
“arrependei-vos e crede no evangelho; arrependei-vos …”. O significado
é o mesmo. Na realidade, no Evangelho de Mateus as mesmas palavras
são atribuídas tanto a João (Mt. 3:2) como a Jesus (Mt. 4:17).
Basicamente, então, o evangelho de ambos era o mesmo. João foi fiel em
sua tarefa de preparar o caminho.
Algumas versões traduzem “arrependei-vos” (NVI, RA, RC, TB), o
que enfatiza só o aspecto negativo da mudança que se requer. Embora
esta tradução não seja a melhor, devemos reconhecer que, sem lugar a
*
Hendriksen traduz “convertei-vos,” segundo ele uma melhor tradução. – N. do Tradutor.
Marcos (William Hendriksen) 78
dúvida, também se pede arrependimento. Algumas vezes fica de relevo a
verdadeira tristeza pelo pecado e a sincera resolução de romper com a
antiga maldade (Lc. 3:13, 14). Mas a palavra usada no original 34 olhe
para frente, não só para trás. Significa “convertei-vos”, 35 submetam-se a
uma mudança radical de coração e de vida, uma volta total de vida. O
lado positivo da conversão se sublinha nas palavras que seguem “crede
no evangelho”. 36 Tal fé inclui conhecimento, assentimento, e confiança.
Em palavras do Catecismo de Heidelberg: “A verdadeira fé não é só um
conhecimento indefectível, pelo qual tenho por certo tudo o que o
Senhor nos revelou em Sua palavra, mas também uma verdadeira
confiança que o Espírito Santo infunde em meu coração pelo Evangelho,
dando-me a segurança de que não só a outros, mas também a mim
mesmo, Deus outorga a remissão de pecados, a justiça e a vida eterna, e
isso por pura graça e somente pelos méritos de Jesus Cristo”. Uma
pessoa aceita uma mensagem quando age de acordo com ela.
34
O verbo aparece na forma de μετανοεῖτε, que é o imperativo presente, 2da., pes. pl. de μετανοέω. O
verbo ocorre cinco vezes em Mateus (Mt. 3:2; 4:1–17; 11:20, 21; 12:41), duas vezes em Marcos (Mar.
1:15; 6:12), nove vezes em Lucas, cinco vezes em Atos, uma vez em 2Co. 12:21, e onze vezes no
livro de Apocalipse. O substantivo cognato é μετάνοια e também ocorre com frequência, começando
em Mt. 3:8.
35
O correto é “convertei-vos” (CB, BJ, cf. LT). Cf. “voltem-se para Deus” (VP).
36
Não aceito o raciocínio de Lenski (Op. cit., pp. 43, 44) de que porque πιστεύετε segue a μετανοεῖτε,
o último verbo refere-se só à contrição. Uma palavra não perde tão facilmente seu significado básico.
Acrescenta-se πιστεύετε para pôr de relevo o aspecto positivo de μετάνοια.
37
Quanto a razões que mostram por que Lc. 5:1–11 não pode ser considerado em sua totalidade como
um verdadeiro paralelo de Mt. 4:18–22 e Mc. 1:16–20, veja-se CNT sobre Mt. 4:18–22.
Marcos (William Hendriksen) 79
pescadores de homens. Então, eles deixaram imediatamente as redes
e o seguiram. 38
O maravilhoso evangelho do reino não era somente para os homens
que viveram no tempo do ministério terrestre de Cristo, era para toda
época. Então não deve nos surpreender que no começo de Seu
ministério, Jesus escolhesse homens que, mediante seu testemunho oral e
escrito, perpetuassem Sua obra e proclamassem Sua mensagem. Não era
nada novo que um mestre tivesse, não só um público geral, mas também
um grupo de discípulos. Não teve discípulos Sócrates? Não os teve João
Batista? Os rabinos? Os discípulos de Cristo seriam os elos entre Ele e a
igreja. Pense-se, por exemplo, na importância que homens como Mateus,
João e Pedro tiveram na formação dos Evangelhos, que são nossa
principal fonte de informação a respeito de Jesus Cristo. Em
consequência, enquanto caminhava junto ao mar da Galileia, convida
certos homens para que sejam Seus seguidores.
Devemos entender, não obstante, que o chamado que Jesus
estendeu a estes quatro homens aqui em Mc. 1:18–22 não foi o primeiro
que receberam. Um ano antes, André e outro discípulo que não se
nomeia, muito possivelmente João, tinham recebido o convite de “vinde
e vede”. Nessa oportunidade foram ver onde Jesus vivia, e assim
chegaram a ser Seus seguidores espirituais. Foi André quem trouxe a
Jesus para seu irmão Simão. João provavelmente fez o mesmo com seu
irmão Tiago. Veja-se CNT sobre Jo. 1:35–41.
Assim que agora, um ano mais tarde, segundo Marcos 1:16–20
estes mesmos quatro discípulos se convertem em companheiros do
38
A fraseologia de Mc. 1:16–18 e Mt. 4:18–20 é quase idêntica. Só se notam diferenças de uso.
Assim, Marcos diz: “Caminhando junto ao”; Mateus: “Caminhando junto ao”; Marcos: “viu Simão e
André, seu irmão”; Mateus: “viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André”. Mateus usa o
substantivo “redes” enquanto que a forma verbal de Marcos implica o substantivo. Mateus diz: “…e
eu vos farei pescadores de homens”; Marcos: “…e eu farei que sejais pescadores de homens”. No v.
20 Mateus tem οἱ δε εὐθέως, enquanto que o versículo paralelo de Marcos (v. 18) diz: καὶ εὑθύς. Uma
semelhança tão estreita, embora com ligeiras diferenças, apoia a teoria de que a. existe conexão
literária entre Marcos e Mateus; b. Contudo, cada evangelista possui seu próprio estilo.
Marcos (William Hendriksen) 80
Senhor de uma forma mais permanente e mais que nunca se dão conta
que estão sendo treinados para o apostolado, quer dizer, para ser
“pescadores de homens”.
Os homens que Jesus escolheu como companheiros íntimos
precisavam ser treinados para o apostolado. Simão, o inconstante, deve
ser transformado em Pedro a rocha. Sucedia algo similar com relação a
todos. Não só no princípio, mas também certo tempo depois, os
discípulos manifestaram uma profunda carência de penetração espiritual
(Mc. 4:10, 13; 8:4, 16–21, 32, 33; 9:10–13; 10:10, 24–27); de fervente
compreensão (Mc. 6:35, 36; 10:13, 14); de humildade (Mc. 9:33, 34); de
espírito de perdão espontâneo e alegre (Mc. 10:41); de oração
perseverante (Mc. 9:28, 29); e de coragem inquebrantável (Mc. 14:50,
66–72). Em todo caso, requeria-se deles certa valentia para ser
seguidores de Cristo, pois deviam enfrentar a oposição de muitos,
incluindo a dos líderes religiosos. Para maiores detalhes quanto aos
Doze, veja-se sobre Mc. 3:16–19a.
Em conexão com isto, há um fato que não devemos passar por alto:
decidiram estar do lado de Jesus, o que realça a grandeza do Senhor, pois
é poderoso para influir sobre as mentes e os corações dos homens, de
modo que quando os chama, eles O seguem imediatamente. A amplitude
de Sua bondade e a magnitude de Seu poder se deixam ver também aqui.
Não é maravilhoso que estivesse disposto e que tivesse a habilidade de
tomar e transformar aqueles rudes pescadores sem educação,
prevalecendo sobre todos os preconceitos e superstições que tinham? O
Senhor os transformou em instrumentos para a salvação de muitos,
converteu-os em líderes que, mediante seus testemunhos, transtornaram
ao mundo inteiro.
Os quatro que se mencionam nos versículos 16–20 são:
Pedro, o impetuoso (Mt. 14:28–33; Mc. 8:32; 14:29–31, 47; Jo.
18:10), que chega a ser o líder dos Doze e que se menciona em primeiro
lugar em todas as listas dos apóstolos (Mt. 10:2–4; Mc. 3:16–19; Lc.
6:14–16; At. 1:13).
Marcos (William Hendriksen) 81
André, irmão de Pedro, aquele que sempre está trazendo pessoas a
Jesus (Jo. 1:40–42; 6:8, 9, cf. Mt. 14:18; Jo. 12:22).
Tiago, filho de Zebedeu, o primeiro dos Doze em levar a coroa de
mártir (At. 12:1, 2).
João, seu irmão, chamado “aquele a quem ele amava” (Jo. 13:23;
19:26; etc.). Indubitavelmente, o Senhor amava a todos “os seus”
intensamente (Jo. 13:1, 2), mas o apego e compreensão que havia entre
Jesus e João era mais tenro.
Há outros detalhes interessantes sobre os versículos 16–18. Quando
Jesus ia pelas ribeiras do mar da Galileia, vê a dois homens, a Simão e a
seu irmão André, lançando as redes ao mar. Quando essa rede é lançada
acima do ombro, ao cair na água se estende formando um círculo. Logo,
por causa dos partes de chumbo que leva, submerge rapidamente,
aprisionando os peixes. Estes dois irmãos estavam ocupados em seu
trabalho diário, porque eram pescadores.
“Eram pescadores”. Esta é a classe de pessoas que o Senhor
escolheu como fundamento da igreja (Ap. 21:14, 19, 20). Segundo as
normas do mundo não eram sábios, nem poderosos, nem nobres. Deus
escolheu a insensatez do mundo, para envergonhar os sábios (1Co. 1:26,
27).
É importante observar que quando o Senhor diz “Vinde após mim”,
exerce sua soberania sobre Simão e André. Mostra que tem o direito de
demandar deles serviço para o Seu reino. Devem estar prontos para
segui-Lo imediatamente à voz de Seu chamado.
Simão e André eram de Betsaida (Jo. 1:44), mas Simão (isto é,
Pedro) mudou-se recentemente a Cafarnaum (Mt. 4:13; 8:5, 14, 15; Mc.
1:21, 29, 30; Lc. 4:31, 33, 38). Estes homens já conheciam Jesus, porque
tinha transcorrido um ano do inesquecível acontecimento registrado em
João 1:35–42. Daí que quando Jesus lhes diz, “Vinde após mim, e eu vos
farei pescadores de homens”, eles deixaram imediatamente suas redes e
O seguiram, alentados pela promessa de seu Senhor de prepará-los para
Marcos (William Hendriksen) 82
uma tarefa superior à honrosa ocupação que agora tinham. Em lugar de
pescar peixes para servir à mesa, recrutariam aos homens para o reino.
Convém-nos observar que mediante a promessa “eu vos farei
pescadores de homens”, Jesus coloca Seu selo de aprovação sobre as
palavras do escritor inspirado de Provérbios, que diz: “Quem ganha
almas é sábio” (Pv. 11:30); confirma as palavras de Daniel 12:3 - “Os
que a muitos conduzirem à justiça, [resplandecerão] como as estrelas,
sempre e eternamente”; acrescenta sua própria autoridade a notável
declaração de Paulo, “Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por
todos os modos, salvar alguns” (1Co. 9:22); e antecipa Seu próprio
convite glorioso: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt. 11:28).
Outros dois discípulos de Jesus receberam o mesmo mandamento e
a mesma promessa:
19, 20. Pouco mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu
irmão, que estavam no barco consertando as redes. E logo os chamou.
Deixando eles no barco a seu pai Zebedeu com os empregados, seguiram
após Jesus.
Diferente de Pedro e André (vv. 16–18), estes dois não estavam
pescando. Não estavam com os outros dois irmãos, mas se encontravam
a certa distância. Tiago e João se achavam com seu pai no barco. Em vez
de pescar estavam remendando suas redes, preparando-se para a próxima
saída para pescar. Quando Jesus os vê, repete o que momentos antes fez
com relação aos outros dois: imediatamente os chamou para O seguirem.
Em consequência, também lhes pede para entrar em uma mais íntima
relação com Ele. Em outros termos, chama-os para que, mediante a
presença contínua de seu Mestre, comecem sua aprendizagem para o
apostolado.
Imediatamente deixam o seu pai e começam a seguir a Jesus.
Agora, embora a ação de segui-Lo já estava preparada pelo ocorrido um
ano atrás, tal ação não pode mencionar-se de passagem. Foi realmente
muito notável. No espírito de Mt. 13:55 e Jo. 1:47; 6:42, puderam ter
Marcos (William Hendriksen) 83
dito: “Não é este o filho do (já falecido?) carpinteiro da próxima Nazaré?
Acaso não é ele também um carpinteiro? Por que temos que ser seus
aprendizes”? Além disso, é preciso levar em conta uma teoria que muitos
sustentam e que não se pode rejeitar levianamente. Parece correto
afirmar que Salomé (mãe de Tiago e de João) era irmã da mãe de Jesus
(veja-se CNT sobre Jo. 19:25). Se isto for certo, eles poderiam ter
acrescentado: “E não são seus irmãos Tiago, José, Simão, e Judas? Não é
acaso apenas nosso primo? Por que temos que segui-Lo?”. O fato de que
não hajam dito nada semelhante, mas imediatamente tenham deixado a
seu pai para unir-se a Jesus, não só fala bem deles, mas também
especialmente exibe o caráter magnético e majestoso de seu Mestre!
Poderia surgir a pergunta “Não foi precipitada a ação destes
homens? Não era uma desconsideração para com seu pai (Zebedeu), o
abandoná-lo no meio do diário afã?”. Resposta: a. Não se exclui que
nesta etapa, na qual se dava uma crescente relação entre eles e seu
Mestre, Tiago e João ajudassem o seu pai de vez em quando, enquanto
Jesus tinha seu centro de operações em Cafarnaum. b. Marcos — não
Mateus — nos informa que Tiago e João deixaram seu pai no barco
“com os trabalhadores”. De modo que, cada vez que os filhos de
Zebedeu não podiam estar com seu pai, ele podia depender dos
trabalhadores para preencher o vazio. Tudo estava bem previsto. c.
Acima de todas estas considerações está o fato de que quando Jesus
chama, deve dar-se uma pronta obediência. É Jesus quem Se encarrega
dos “mas”. Ele tem a solução.
Quanto a Zebedeu, embora Marcos volte a mencionar em seu
Evangelho (Mc. 3:17; 10:35) que era o pai de Tiago e João, não se volta
a nomeá-lo como alguém dedicado à pesca. Morreu pouco depois? Será
esta a razão de por que não se atribui a Zebedeu nenhuma participação
na história que narra o pedido de seus filhos (Mc. 10:35) e da mãe deles
(Mt. 20:20)? Tudo isto é possível, mas o Evangelho de Marcos deixa
bem claro que não temos que concentrar nossa atenção em Zebedeu, em
sua esposa Salomé, nem em seus filhos Tiago e João, e sim no Senhor,
Marcos (William Hendriksen) 84
somente nEle. Nossa atenção deve ficar na majestade, poder, e amor de
Cristo.
42
Os verbos são φιμώθητι, que é um imperativo aoristo, voz passiva, 2ª. pes. sing. de φιμόω, “cala-
te”, “silêncio”, (cf. 4:39) e ἔξελθε que é o impera. aor. 2ª. pes. sing. de ἐξέρχομαι.
Marcos (William Hendriksen) 90
Aqui a Reina-Valera (1909) diz, “E o espírito imundo, lhe fazendo
pedaços”. Mas isto, além de estar em conflito com “saiu dele sem lhe
fazer mal” (Lc. 4:35), tampouco concorda com o fato de que se usa a
mesma palavra grega (Mc. 9:26; Lc. 9:39; e cf. Mc. 9:20; Lc. 9:42) em
conexão com um epilético (veja-se Mt. 17:15), em cujo caso não se fala
de lacerações, e sim de convulsões. Portanto, Marcos 1:26 não fala de
rasgadura. Em consequência, a tradução deve ser: “… provocou
convulsões no homem”. Logo, usando pela última vez as cordas vocais
do homem, o demônio saiu (literalmente): “gritando com um grande
grito”.
27. Todos ficaram espantados e diziam uns para os outros: —
Que quer dizer isso? É um novo ensinamento dado com autoridade.
Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem.
Aqui se relata como as pessoas reagiram diante de tudo o que tinha
ocorrido na sinagoga. A emoção que se descreve (“ficaram espantados”)
é sinônima ao expresso no versículo 22 (“ficaram muito admiradas”).
Quando os presentes começaram a perguntar-se uns aos outros “Que
quer dizer isso?”, referiam-se tanto ao ensino de Cristo quanto à
expulsão do demônio. Quanto ao primeiro, deram-se conta que tanto o
conteúdo como o método (veja-se sobre v. 22) do ensino que naquele
sábado tinham ouvido na sinagoga era diferente de tudo o que ouviram
antes nesse lugar. Quanto ao segundo, a mesma autoridade e poder que
Jesus exibiu em Seu ensino, foram mostrados também nas ordens que
deu aos demônios. De modo que, tiveram que render-se, sendo
totalmente incapazes de resistir. Deve notar-se que, embora o relato em
si fala de um só demônio, as pessoas em seguida tiram a conclusão
correta de que o que foi feito a um espírito imundo podia ser feito a
todos.
Os ouvintes não sabiam o que fazer com tudo isso. Estavam
profundamente impressionados com as palavras e as obras de Jesus.
Entre eles perguntavam-se quem era ele, mas não achavam resposta.
Marcos (William Hendriksen) 91
28. E a fama de Jesus se espalhou depressa por toda a região da
Galiléia.
Os acontecimentos daquele sábado na sinagoga foram tão
surpreendentes, que sem demora alguma cada um os contou ao seu
vizinho, e este a outro, etc. As notícias não se confinavam a Cafarnaum.
“Em questão de instantes”, por assim dizer, as novas se estenderam por
toda a Galileia, ou segundo a expressão de Lucas: “Os rumores … se
divulgavam por todos os lugares da região” (Lc. 4:37).
43
De acordo com outra leitura variante: saíram … entraram.
Marcos (William Hendriksen) 92
outro olhar ao texto, notará que esta interpretação é impossível, porque
se diz que entraram na casa de Simão e André “com Tiago e João”. Entre
as soluções que se ofereceram, estas duas são as melhores:
a. Marcos foi o intérprete de Pedro, pelo que reproduz quase
literalmente o que escutou Pedro dizer num sermão ou discurso. A única
coisa que mudou foi a pessoa gramatical, da primeira à terceira pessoa.
Pedro teria dito algo assim: “E imediatamente, saímos [quer dizer, Jesus,
André e eu] da sinagoga e entramos com Tiago e João em minha casa”.
Se esta é a solução correta, os verbos devem traduzir-se: “saíram …
entraram” e se referem a Jesus, a Simão e André. 44
b. Em lugar de “saíram … entraram” a leitura variante lê “saiu …
entrou”. Esta leitura tem considerável apoio nos manuscritos 45 e é a que
se deve adotar. Neste caso os verbos apontam a Jesus. É Ele quem,
tomando consigo a Tiago e a João, entra em casa de Simão e André.
Qualquer que seja a interpretação, agora achamos a Jesus, Pedro,
André, João e Tiago em casa de Pedro e seu irmão.
30. A sogra de Simão achava-se acamada, com febre; e logo lhe
falaram a respeito dela.
Embora Mateus e Marcos dizem que a sogra de Pedro estava
“prostrada com febre” ou “estava de cama, com febre”, o médico Lucas
(cf. Cl. 4:14) diz-nos que “achava-se enferma, com febre muito alta” (Lc.
4:38) ou que “sofria um severo ataque de febre”. 46 Sem demora
informam a Jesus da situação, talvez chegando a casa ou mesmo antes.
Lucas nos diz que os discípulos — sem dúvida especialmente Pedro e
André — não só lhe falaram a respeito dela, mas também lhe pediram
que a ajudasse.
44
Esta solução é sugerida por Van Leeuwen, Op. cit., p. 33.
45
A leitura ἐξελθών ἦλθεν (“saiu … e entrou”) está apoiada pelo uncial B e, com uma ordem sintática
distinta, por D. Também a apoiam outros unciais e vários cursivos importantes. Adotam esta leitura
BP, CB, LT, BJ. Swete considera a tradução “saíram … e entraram” como “dificilmente passível”.
46
Veja-se A.T. Robertson, Luke the Historian in the Light of Research (Nova York, 1923), pp. 90–
102: “The Use of Medical Terms by Luke”. ἦν συνεχομένη πυρετῷ μεγάλῳ (Lc. 4:38).
Marcos (William Hendriksen) 93
31. Ele, aproximando-se da enferma e tomando-a pela mão, a
levantou [TB].
É muito interessante observar como os diferentes evangelistas
descrevem o que fez Jesus. Como lhe é característico, Mateus (Mt. 8:3,
15; 9:29; 17:7; 20:34) declara que Jesus “tocou” a mão dela. Que toque
mais tenro e poderoso! (veja-se CNT sobre Mt. 8:3). Tendo escutado
muitas vezes Pedro contar com emoção o que tinha sucedido, Marcos diz
de maneira muito gráfica: “tomando-a pela mão, a levantou”. O Dr.
Lucas menciona o que lhe deve haver chamado a atenção, quer dizer,
que a posição de Jesus, o grande Médico, era justamente a de um médico
típico: “Inclinando-se ele para ela para ela …” (Lc. 4:39). Não fez ele o
mesmo ao atender os seus pacientes? Lucas acrescenta: “repreendeu a
febre”. Jesus mandou a febre que a deixasse. Febre, ventos, ondas, para
Jesus não há diferença. Ele exerceu absoluto controle sobre todos eles.
De modo que aqui lhe fala com a febre como o faria com os indômitos
ventos e as tempestuosas ondas (no original usa-se o mesmo verbo em
cada caso; cf. Lc. 4:39 com Mc. 8:24).
Resultado: e a febre a deixou, passando ela a servi-los.
Jesus já a tinha levantado. Mas agora de repente “a febre a deixou”,
como o declaram os três evangelistas. Além disso, ela nem sequer disse:
“Foi-se a febre, mas me sinto totalmente esgotada”. Nada disso! Tão
somente um momento antes que Jesus a tomasse pela mão e
repreendesse a febre, suas bochechas estavam tintas, a pele quente, a
transpiração copiosa, a garganta seca (ou, segundo o tipo de febre, pôde
ter sofrido violentos calafrios). Um instante depois (veja-se Lc. 4:39, “e
logo se levantou …”) todo sintoma de febre tinha desaparecido
completamente. Não só tinha uma temperatura normal, mas também a
invadia tal impulso de energia que ela mesma insistia em levantar-se. Na
realidade, levantou-se e começou a realizar trabalhos de ativa anfitriã.
Começou a atender a todos os que se achavam presentes: a Jesus, Pedro,
André, Tiago, João, e talvez até a sua filha, se ela se achava presente; ou
Marcos (William Hendriksen) 94
talvez como hábil assistente, “mamãe” ajudava à “filha” nesta amostra
de hospitalidade.
As notícias a respeito da expulsão do demônio (vv. 23–26) e da
vitória sobre a terrível febre (vv. 29–31) estenderam-se tão rápido, que
no povoado de todos os arredores despertou a esperança de recuperação
para seus seres queridos. Resultado:
32. À tarde, ao cair do sol, trouxeram a Jesus todos os enfermos
e endemoninhados..
Mateus diz “Chegada a tarde” (Mt. 8:16), Lucas “ao pôr-se o sol”
(Lc. 4:40). Marcos usa o genitivo absoluto, literalmente “tendo chegado
a tarde”, ou “à tarde”. Também acrescenta: “ao cair do sol”.
De acordo com a forma hebraica de falar, havia duas tardes (veja-se
Êx. 12:6 no original). A primeira começava às 3 da tarde, a segunda às 6
da tarde. De modo que, quando Marcos diz “à tarde”, acrescentando
imediatamente “ao cair do sol”, o que quer dizer é que o povo esperou
que terminasse no sábado para trazer “todos os enfermos”; literalmente:
“todos os que estavam mal”. A isto se acrescenta “e endemoninhados”,
mostrando claramente que se faz uma distinção entre a. doentes que não
estavam endemoninhados, e b. indivíduos endemoninhados que puderam
ou não estar doentes fisicamente. Referente à possessão demoníaca veja-
se mais acima, sobre os versículos 23–26. O fato de que trouxeram uma
grande quantidade de pessoas a Jesus, fica claro pelo versículo:
33. Toda a cidade estava reunida à porta.
Poderia dizer-se que a casa de Pedro foi invadida. “Toda a cidade”
refere-se, naturalmente, a Cafarnaum (v. 21). Mateus (Mt. 8:16) e Lucas
(Lc. 4:40) também enfatizam o fato de que a multidão de doentes e
endemoninhados, junto com os que os traziam ou acompanhavam para
que Jesus aliviasse suas necessidades, era realmente grande.
Não terminava o poder de Cristo para curar, nem se esgotava Seu
amor e simpatia:
34. E ele curou muitos doentes de toda sorte de enfermidades;
também expeliu muitos demônios
Marcos (William Hendriksen) 95
Nesta parte Marcos é muito breve. À luz do contexto precedente,
Marcos dá a entender que Jesus curou a toda (veja-se v. 32; cf. Mt. 8:16;
Lc. 4:40) a grande quantidade (v. 34) de doentes que Lhe traziam, sem
importar a natureza de sua doença. Como é de esperar de um médico,
Lucas descreve a procissão de doentes que eram trazidos um por um a
Jesus. Por sua vez, o Senhor lhes prestava a devida atenção e
carinhosamente colocava as mãos sobre cada um para curar a todos (Lc.
4:40). Em harmonia com Mateus e Lucas, Marcos declara que Jesus
expulsava muitos demônios. Mateus acrescenta que Jesus expulsava os
demônios “com a palavra”, quer dizer, mediante uma ordem eficaz (Mt.
8:16).
Cuando Marcos agrega: não lhes permitindo que falassem,
porque sabiam quem ele era., isto não deve interpretar-se como
querendo dizer que os espíritos imundos nunca disseram nada. Lucas
explica o significado. Primeiro os demônios exclamaram, “Tu és o Filho
de Deus” (cf. mais acima sobre Mc. 1:24), mas imediatamente eram
repreendidos por Jesus, sendo assim impedidos de seguir falando mais a
respeito disto.
Agora, o que estes demônios diziam usando as cordas vocais dos
possessos era verdade. Na realidade “sabiam quem era Jesus”, vale dizer,
o Filho de Deus, o Messias esperado por tanto tempo. Do mesmo modo,
o que a menina endemoninhada de Atos 16:17 exclama era vedade; e tão
certo que suas palavras (“estes homens são servos do Deus Altíssimo, os
quais vos proclamam o caminho de salvação”) foram usadas como texto
do sermão de um serviço de ordenação, sob o título: “As palavras do
diabo!”. Entretanto, apresentam-se duas interrogantes. A primeira é: Por
que é que estes demônios proclamam com gritos esta verdade? Estavam
acaso fascinados com a irresistível personalidade de Cristo? 47 Ou , antes,
estavam motivados por um ímpio e sádico desejo de criar problemas a
Jesus? Tenhamos em conta que os demônios talvez saberiam que se a
47
Cf. H.N. Ridderbos, Zelfopenbaring en Zelfverberging (Kampen, 1946), p. 52.
Marcos (William Hendriksen) 96
multidão aceitasse prematuramente a verdade com referência à
identidade de Cristo, isto poderia terminar com o programa que Ele
traçou, levando-O à morte antes do que devia. Contudo, ainda não se deu
uma resposta indisputável. A segunda pergunta é: Por que Jesus lhes
mandava calar? Já se sugeriu uma possível resposta, mas veja-se também
sobre o versículo 44.
Enquanto Marcos e Lucas terminam seus parágrafos com esta
proibição dirigida aos demônios, Mateus (8:17) vê nas curas realizadas
pelo Mestre o cumprimento da profecia de Isaías 53:4, que diz:
“Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas
dores levou sobre si”.
Jesus não só era divino, mas também humano, assim que depois de
um dia longo e exaustivo, sentiu a necessidade de orar. Deste modo,
35. Tendo-se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar
deserto e ali orava.
Teria passado Jesus a noite em casa de Pedro, e ao levantar-se
aquele discípulo descobriu que seu mestre foi embora? Isto é possível,
mas não podemos estar seguros. O que sim sabemos é que “muito cedo
quando ainda era de noite”, isto é, quando ainda estava escuro 48 e quase
não começava a clarear a manhã (Lc. 4:42), Jesus Se levantou, saiu da
casa (a sua ou a de Pedro) e foi embora a um lugar solitário ou deserto, a
um retiro tranquilo. Ali derramou o Seu coração em oração a Seu Pai
celestial. Pôde muito bem ter sido em ação de graças pelas bênçãos já
48
Note-se πρωῒ ἔννμχα λίαν que literalmente seria “muito cedo na noite” (cf. Mar. 16:2).
Marcos (William Hendriksen) 97
recebidas e para Lhe pedir a força necessária para realizar a excursão
pela Galileia que estava prestes a começar.
Jesus atribuía grande importância à oração. Orou quando foi
batizado (Lc. 3:21); orou antes de escolher os Doze apóstolos (Lc. 6:12);
em conexão com e depois da alimentação milagrosa dos cinco mil (Mc.
6:41, 46; cf. Mt. 14:19, 23); quando estava prestes a fazer uma pergunta
importante aos Seus discípulos (Lc. 9:18); no monte onde foi
transfigurado (Lc. 9:28); justamente antes de estender o carinhoso
convite, “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados
…” (Mt. 11:25–30; Lc. 10:21); no momento antes de ensinar aos
discípulos a oração do Senhor (Lc. 11:1); na tumba de Lázaro (Jo. 11:14,
42); por Pedro, antes de O negar (Lc. 22:32); na noite da instituição da
Santa Ceia (Jo. 17; cf. 14:16); no Getsêmani (Mc. 14:32, 35, 36, 39; cf.
Mt. 26:39, 42, 44; Lc. 22:42); na cruz (Lc. 23:24; 49 Mc. 15:34; Mt.
27:46; Lc. 23:46); e depois de Sua ressurreição (Lc. 24:30). Estas
referências devem ser consideradas como exemplos de uma vida de
oração e ação de graças muita mais ampla.
Umas poucas citações escolhidas dos Evangelhos nos mostram
quão genuínas, íntimas, confiantes e desinteressadas eram as orações do
Senhor. Suas orações buscavam a glória de Deus.
“Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste
estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó
Pai, porque assim foi do teu agrado” (Mt. 11:25, 26).
“Pai, graças te dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre
me ouves, mas assim falei por causa da multidão presente, para que
creiam que tu me enviaste” (Jn. 11:41, 42).
“Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que o Filho te
glorifique a ti …”. “Pai santo, guarda-os em teu nome …”. “É por eles
que eu rogo … para que eles sejam um …” (João 17, oração sacerdotal
de Cristo, por Ele, por Seus discípulos imediatos e pela igreja universal).
49
Dando por sentado que esta passagem é autêntica.
Marcos (William Hendriksen) 98
“Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice! Todavia, não seja
como eu quero, e sim como tu queres … Meu Pai, se não é possível
passar de mim este cálice sem que eu o beba, faça-se a tua vontade” (Mt.
26:39–42 e seus paralelos em Marcos e Lucas).
“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem …” “Pai, nas tuas
mãos entrego o meu espírito!” (Lc. 23:34, 46).
Jesus também inculcou a oração aos Seus seguidores (Mc. 9:29;
13:18, 33; 14:38; cf. Mt. 7:7–11; Lc. 18:1–8), e lhes mostrou como
deviam e como não deviam orar (Mt. 6:6–8). Em conexão com isto
também lhes ensinou o que conhecemos como “O Pai Nosso” (Mt. 6:9–
15).
Visto à luz deste contexto, o versículo 35 adquire significado.
36, 37. Procuravam-no diligentemente Simão e os que com ele
estavam. Tendo-o encontrado, lhe disseram: Todos te buscam.
Se Jesus passou a noite em casa de Simão, isto explicaria por que
Simão o menciona com tanta proeminência: “Simão e os que com ele
estavam”. Mas também é provável que, dada sua personalidade, Simão
(isto é, Pedro) fosse o líder do começo. “Os que com ele estavam”, fala-
se de André, Tiago e João? Com base nos versículos 16–20 pareceria
natural, mas também pôde ter havido outros (veja-se Jo. 1:43–45).
Estes homens buscavam Jesus diligente e ansiosamente. Estavam
decididos a encontrá-Lo. 50 Observe-se a expressão sinônima em 2Tm.
1:17: “(Onesíforo) me procurou solicitamente até me encontrar.” Assim
também, a busca teve êxito no caso de Simão e seus condiscípulos.
Acharam a Jesus. Sua intenção era trazer imediatamente a Cafarnaum,
onde “todos”, quer dizer, uma grande multidão — reunida talvez
novamente diante da casa de Pedro — buscava Jesus. Muito animados,
os discípulos fazem saber isto a Jesus.
50
O prefixo κατά é perfectivo. O verbo καταδιώκω usa-se com frequência em sentido hostil:
perseguir, caçar ou seguir o rastro, mas aqui tem a acepção de buscar, com a ansiosa determinação
de encontrar a Jesus a todo transe.
Marcos (William Hendriksen) 99
O resultado, porém, foi surpreendente. Jesus não permitirá que a
multidão ou mesmo os Seus discípulos Lhe digam para onde deve ir.
Além disso, em Seu grande amor deseja distribuir Seus favores entre
muitos. Cafarnaum O verá em outra ocasião, porque por um tempo será
Seu centro de operações. Mas não deseja limitar-se àquela única cidade.
Daí que segue:
38. Jesus, porém, lhes disse: Vamos a outros lugares, às povoações
vizinhas, a fim de que eu pregue também ali, pois para isso é que eu
vim. 51
O fato de Jesus dizer “vamos” indica que deseja que Seus
discípulos vão com Ele na excursão pelos povos e aldeias da Galileia.
Não os está treinando para o apostolado?
Jesus nada diz a respeito de realizar milagres nestes lugares. De que
realmente os fez é evidente pelo versículo 39b (cf. Mt. 4:23, 24), mas
toda a ênfase é posta na “pregação das boas novas” (Lc. 4:43). Os
milagres cumpriam um propósito subordinado; serviam para confirmar
Sua mensagem e mostrar quem era. Jesus acentua a livre proclamação
do amor de Deus revelado na salvação dos pecadores e refletido em suas
vidas. Sublinha a pregação que ensina que os seres humanos são salvos
sem que estejam obrigados a obedecer todas as regulações rabínicas, e
que proclama que o ser humano entra no reino somente com base no
sangue que devia ser derramado (cf. Mt. 11:28–30; Mc. 10:45). Por meio
51
O verbo é Αγωμεν que é um presente subj. at. 1ra. pes. pl. de ἄγω, cujo significado básico é trazer,
dirigir, conduzir, guiar, transportar. Deste sentido básico se deriva a ideia de transportar-se a si
mesmo, ou seja ir (para este uso intransitivo, veja-se Mc. 14:42; Jo. 11:7, 15, 16; 14:31). O advérbio
ἀλλαχοῦ (= a outro lugar) ocorre só aqui no Novo Testamento. Compare-se πανταχοῦ (= por todas as
partes) no v. 28. A palavra ἐχομένας é um particípio pres. médio, acus. pl. fem. de ἔχω, e significa
agarrando-se a, aferrando-se a, e assim dá-se a ideia de povos próximos, vizinhos (nos papiros οἱ
ἐχόμενοι são os vizinhos). A mesma palavra pode ter também um sentido temporal: seguindo
imediatamente, próximo (em tempo). Cf. Lc. 13:33; At. 13:44; 20:15.
A κωμόπολις é literalmente a aldeia (κώμη) cidade (πόλις); e em consequência, o povoado. Mas na
passagem paralela, Lucas usa a palavra cidades (Lc. 4:43).
Finalmente, κηρύξω aoristo subj. at. 1ra. pes. sing. de κηρύσσω; em consequência, “para que
anuncie como arauto, para que pregue, proclame”.
Marcos (William Hendriksen) 100
de tal pregação, Jesus cumpria o verdadeiro propósito pelo qual deixou o
céu e veio à terra. Portanto, prossegue desta maneira: pois para isso é
que eu vim. “Eu vim” não só de Nazaré, ou de Cafarnaum, mas
certamente do céu (cf. Jo. 1:11, 12; 6:38; 8:42; 13:3; 8:37).
39. Então, foi por toda a Galiléia, pregando nas sinagogas deles
e expelindo os demônios.
A lógica é clara, o “vamos a outros lugares” vem seguido de
“Então, foi por toda a Galiléia”; e “para que também pregue ali” vem
seguido por “pregando nas sinagogas e expulsando os demônios”
(referente à possessão demoníaca e ao exorcismo, veja-se o comentário a
1:21–28, 32–34; e CNT sobre Mt. 9:32).
É muito chamativa a expressão “por toda a Galileia”. Esta era a
Galileia com sua mescla de judeus e gentios. Embora não se mencionem
curas, estas se insinuam pela expulsão de demônios, porque com
frequência ambas estavam ligadas. E com relação a tais obras de
misericórdia, bem podemos supor que as distinções nacionalistas em
todo caso não triunfaram. O espírito do Mestre deixa ver-se com clareza
em passagens tais como Mt. 8:1–13; Mc. 7:24–30; Lc. 4:25–27. O
verdadeiramente era e é, “o Salvador do mundo” (Jo. 4:42; 1Jo. 4:14).
Não obstante, quando se faz menção específica de “pregar nas
sinagogas” faz-se referência a uma instituição judaica definida. Jesus
agiu seguindo a norma do “judeu primeiro, e também o grego” (Rm.
1:16).
52
Para fotografias das ruínas das sinagogas de Cafarnaum do terceiro século, veja-se L. H.
Grollenberg, Atlas of the Bible (Nova York, etc., 1956), p. 126, lâminas 365–367.
Marcos (William Hendriksen) 102
53
margem ocidental da parte estreita do Mar Morto. É uma estrutura
retangular, cujo teto descansa sobre duas fileiras de colunas. Data do
tempo do segundo templo.
A importância da sinagoga estava em que, além de ser o lugar onde
eram celebrados os cultos regulares de adoração, servia também para
muitas outras coisas. Era o lugar onde alguém podia ir derramar seu
coração em oração e ação de graças. Era também uma escola primária,
tinha quartos que podiam ser usados para comunicar instrução à
juventude, ou tinha uma escola anexa. Com frequência era usada como
lugar de estudo do rabino. Às vezes o edifício provia alojamento para o
rabino e/ou estrangeiros que buscavam albergue.
Do ponto de vista do cristianismo, o mais importante de tudo era o
que se chamou “a liberdade da sinagoga”. O significado disto se vê no
breve resumo da ordem do culto que prevalecia. Provavelmente era
como segue:
1. Ação de graças ou “bênçãos” pronunciadas em conexão com
(antes e depois) o Shema: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o
único SENHOR. 5 Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma e de toda a tua força” (Dt. 6:4, 5).
2. Oração, à qual a congregação respondia com um “Amém”.
3. Leitura de uma passagem do Pentateuco (no hebraico, seguido
pela tradução em aramaico).
4. Leitura de uma passagem dos profetas (traduzido de igual modo).
5. Sermão ou exortação.
6. A bênção pronunciada por um sacerdote, a qual a congregação
respondia: “Amém”. Quando não havia um sacerdote presente, a bênção
era substituída por uma oração final.
Até onde é possível rastrear esta liturgia nas Escrituras, como apoio
bíblico, veja-se as seguintes passagens: Nm. 6:22–27; Dt. 6:4, 5; 1Cr.
53
Para encontrar a localização veja-se E.G. Kraeling, Rand McNally Bible Atlas (Nova York, etc.
1956), p. 251.
Marcos (William Hendriksen) 103
16:36; Ne. 5:13; 8:6; Lc. 4:16–27; At. 13:15; e 1Cor. 14:16. Algumas
passagens do Talmude e outras fontes judaicas também são de valor, mas
por terem sido escritos numa data mais tardia não se pode confiar sempre
neles quanto a mostrar exatamente a forma em que os cultos se levavam
a cabo nos dias de Jesus e os apóstolos.
A “liberdade da sinagoga” queria dizer que qualquer pessoa
presente no culto (quer dizer, qualquer u que fosse considerado apto pelo
chefe ou chefes da sinagoga), tinha o privilégio e até era alentado a
proferir o sermão (veja-se Lc. 4:16, 17; At. 13:15). É fácil compreender
como este costume fez possível que Jesus, Paulo e outros cristãos
proclamassem o evangelho à congregação reunida. O sermão pregado
por Jesus na sinagoga de Nazaré acha-se resumido em Lucas 4:21–27; e
aquele que Paulo deu na sinagoga de Antioquia da Pisídia está registrado
em Atos 13:16–41. Jesus aproveitou amplamente este privilégio
(segundo se vê claramente em Mt. 4:23; 9:35; 13:54; Mc. 1:21; 6:2; Lc.
4:44; 13:10; Jo. 6:59; 18:20), o mesmo que Paulo (além de At. 13:15,
veja-se 9:20; 13:5; 14:1; 17:1, 10, 17; 18:4, 19) e Apolo (cf. At. 18:26).
Os prosélitos eram pessoas que tinham rejeitado a idolatria e imoralidade
do paganismo e tinham adotado o judaísmo como sua religião. Visto que
não só os judeus, mas também os prosélitos do mundo gentil assistiam às
sinagogas que estavam nas regiões onde Paulo realizava suas obras
missionárias, é evidente que a sinagoga foi usada por Deus como um dos
meios mais importantes e poderosos para a extensão do evangelho tanto
entre judeus como gentios!
A fim de entender melhor o que para Jesus significava pregar nas
sinagogas da Galileia (Mc. 1:39) ou em qualquer outro lugar, devemos
acrescentar alguns outros fatos. Como o indicam claramente algumas
ruínas existentes, as sinagogas davam para Jerusalém. Isto quer dizer que
foram construídas de tal modo que, quando o pregador dirigia-se à
congregação e quando, no final do serviço, os fiéis saíam da sinagoga,
faziam-no olhando à Cidade Santa. Assim que as sinagogas da Galileia
Marcos (William Hendriksen) 104
eram orientadas rumo ao sul; as do lado leste do Jordão, rumo ao oeste;
as do sul de Jerusalém, rumo ao norte; e as do oeste, rumo ao este.
Para Jesus isto significava que quando Ele pregava em qualquer
sinagoga, enquanto falava, Ele o fazia olhando rumo ao lugar onde havia
de ser crucificado. Para Ele era impossível não pensar na cruz! 54
54
Para a disposição dos móveis, o lugar onde se sentavam os fiéis, a localização do leitor e o
pregador, etc., veja-se a ilustração em Zondervan’s Pictorial Dictionary (Grand Rapids, 1963), p. 819,
junto com o artigo de W.W. Wessel. Muito informativos são também os artigos de W. Schrage sobre
συναγωγή, etc., no TDNT, vol. 7, pp. 798–852. Veja-se também o excelente tratado de H. Mulder, De
Synagoge in de Nieuwtestamentische Tijd (Kampen, 1969).
55
Mt. 8:2 não está em conflito com este ponto de vista. Não faz referência ao tempo. Além disso, os
milagres registrados em Mt. 8:2–9:34 se acham ordenados por tema e não cronologicamente. Quanto a
um ponto de vista diferente quanto ao tempo em que ocorreu o limpamento do leproso, veja-se Lenski,
Op. cit., p. 57.
Marcos (William Hendriksen) 105
conexão com isto terei que citar ao Dr. L.S. Huizenga, quem estudou e
praticou tanto teologia como medicina. Baseado num estudo detalhado
de todo o material bíblico pertinente e em sua própria experiência com
leprosos, o Dr. Huizenga declara: “Creio que Moisés descreve uma
enfermidade definida, uma enfermidade que corresponde ao que hoje
chamamos lepra, embora os sintomas podem não ser os mesmos”
(Unclean! Unclean!, Grand Rapids, 1927, pp. 145, 146; veja-se seu
argumento completo em pp. 143–147). Há algo que deve ficar
perfeitamente claro: Jesus não menosprezou a ninguém pelo fato de ser
leproso, nem cego, surdo, etc. Veio ao mundo para ajudar, para curar e
para salvar. Alguns com severidade e sem amor julgavam que os
sofrimentos físicos provinham de algum pecado particular da pessoa
doente. Por exemplo, um leproso tinha por necessidade que ser uma
pessoa moralmente má. Cristo condenou categoricamente esta classe de
juízos (Lc. 13:1–5; Jo. 9:1–7).
Além disso, o ministério de cura de Cristo deve constituir um alento
para toda pessoa ou organização que verdadeiramente se envolve na
tarefa de prover ajuda e cuidado dos necessitados: os diáconos e as
diaconisas, operários e instituições de ajuda, missionários médicos,
enfermeiras, o voluntariado dos hospitais, etc. Disto não se deve inferir
que a responsabilidade de prestar ajuda e cuidado dos afligidos recai
somente em certos grupos e especialistas. Pelo contrário, é um dever que
corresponde a todos e, sem lugar a dúvida, a todo crente (Pv. 19:17; Mt.
10:8; 25:31–46; Mc. 9:41; 2Co. 8:8, 9; 9:7; Gl 6:10; Ef. 4:32–5:2; Fp.
4:17; 1Tm. 5 4). 56
Este leproso “aproximou-se dele [Jesus]” perto o bastante para ser
tocado pelo Mestre. Isto é surpreendente, especialmente à luz de Levítico
13:45, 46: “…habitará só; a sua habitação será fora do arraial”.
Compare-se com isto “saíram-lhe ao encontro dez leprosos, que ficaram
de longe” (Lc. 17:12). Este homem deve ter escutado bastante a respeito
56
Veja-se I. Van Dellen, The Ministry of Mercy (Grand Rapids, 1946).
Marcos (William Hendriksen) 106
das obras poderosas e misericordiosas de Cristo para compreender que
aqui havia Alguém a quem alguém podia aproximar-se com esperança.
Naturalmente que não sabia se a ajuda que desejava podia ser concedida
até a um homem “cheio de lepra” (Lc. 5:12). Mas não havia nada mau
em pedir. Ele o faz de maneira muito humilde: “de joelhos” (segundo
Marcos), logo inclina seu rosto ao solo (“prostrou-se com o rosto em
terra”, Lc. 5:12), e lhe suplica: “Se quiseres, podes purificar-me”. De
acordo com Mateus 8:2 ainda se dirige a Jesus como “Senhor”. Este
apelativo deve ter significado muito mais que “Sr.”. De outro modo, não
poderia ter feito a confissão que fez: “podes purificar-me”. Está seguro
de que Jesus tem este poder. Ao dizer “Se quiseres” não está seguro de
que haja este desejo em Jesus, mas submete-se à soberana disposição de
Cristo. Mas lhe roga e lhe implora que ele também possa ser objeto da
misericórdia e do poder curativo de Cristo.
41. Jesus, profundamente compadecido, … O único que
menciona isto é Marcos. Literalmente, a tradução deveria ser “tendo sido
comovido dentro de si” (em suas “vísceras”). Quanto a esta compaixão
ativa de Jesus, compaixão que se expressa em atos, veja-se também Mt.
9:36; 14:14; 15:32; 18:27; 20:34; Mc. 6:34; 8:2; Lc. 7:13. Entretanto,
não basta estudar somente as passagens em que aparece o mesmo verbo.
Veja-se também passagens de importância similar e que às vezes contêm
fraseologia sinônima, como por exemplo: “Ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e as nossas dores levou sobre si” (Is. 53:4; Mt. 8:17; cf.
Mc. 2:16; 5:19, 34, 36, 43; 6:31, 37; 7:37; 9:23, 36, 37, 42; 10:14–16,
21, 43–45, 49; 11:25; 12:29–31, 34, 43, 44; 14:6–9, 22–24; 16:7).
Poderiam ser citadas passagens similares de Lucas e João. Ficamos
assombrados diante do grande número de vezes em que esta compaixão
de Jesus, esta ternura ou expressão de Seu coração em palavras e atos de
bondade, é mencionada Evangelhos. Constantemente está tomando a
condição dos afligidos como uma “preocupação muito pessoal”. Jesus
vivia em meio de um povo que dava grande ênfase a assuntos legais
corriqueiros, e nisto seus líderes eram peritos. No meio desta
Marcos (William Hendriksen) 107
superficialidade, Jesus sobressai como Aquele que põe ênfase “nos
assuntos importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fé” (Mt. 23:23).
As angústias das pessoas são Suas próprias angústias. Ama tenra e
intensamente os afligidos e Se mostra solícito para ajudá-los. 57
Estendeu a mão, tocou-o e disse-lhe: Quero, fica limpo! 58
Repetidamente e com fraseologia variada, os Evangelhos falam do toque
curativo das mãos de Jesus (cf. 7:33; Mt. 8:3, 15; 9:29; 17:7; 20:34; Lc.
5:13; 7:14; 22:51). Entretanto, às vezes é o doente quem toca a Jesus
(Mc. 3:10; 5:27–31; 6:56). De qualquer modo, os doentes foram curados.
Com relação ao poder curativo por meio do contato físico, é evidente que
do Salvador emanava poder curativo e se transmitia à pessoa que o
necessitava (Mc. 5:30; Lc. 8:46). Naturalmente que não era magia! O
poder curativo não se originava em Seus dedos ou em Sua roupa. Vinha
diretamente do Jesus divino e humano, da Sua vontade todo-poderosa e
do Seu coração imensamente bondoso. O toque de Jesus tinha poder
curativo porquanto Ele Se compadecia e “pode compadecer-se [agora] de
nossas fraquezas” (Hb. 4:15). Não deve passar desapercebido ao leitor
que, de acordo com Marcos 1:41, quando Jesus estendeu Sua mão para
tocar o leproso, Ele o fez “profundamente compadecido”. A necessidade
e fé do leproso achou resposta imediata no grande desejo que Jesus tinha
de o ajudar. Esta prontidão era tal que o poder e o amor se enlaçavam
entre si.
57
Aqui em Mc. 1:41, como também na lista de passagens que começam com Mt. 9:36, o verbo é
σπλαγχνίζομαι. Na presente passagem ocorre a forma σπλαγχνισθείς que é um particípio aor. nom.
sing. masc. Os antigos tinham o mesmo direito de falar figuradamente das vísceras (coração, fígado,
pulmões) como nós o temos de falar do coração. Paulo escreve (literalmente): “E o seu entranhável
afeto cresce mais e mais para convosco” (2Co. 7:15); “Porque foram refrescadas as vísceras dos
santos por meio de ti” (Fm. 7); “Refresca minhas vísceras em Cristo” (Fm. 20). Veja-se também CNT
sobre João 1:8, nota 39.
58
O verbo é καθαρίσθητι = um imperativo aor. pas. 2ª. pes. sing. de καθαρίζω. Usa-se o aoristo, não
porque se refira a um único ato. Poderia usar-se o aoristo, mesmo se estivesse falando de cem atos. O
assunto não é o número de ações (uma ou muitas), e sim o ponto de vista: o que Jesus ordena aqui é a
realização de um simples fato ou condição. Veja-se CNT sobre João 2:20, nota 64.
Marcos (William Hendriksen) 108
Diz-se às vezes que entre as palavras do leproso e as de Jesus houve
perfeita correspondência. Isto é verdade no sentido de que as duas
expressões não estão em conflito, mas que se acham em perfeita
harmonia, revelando até certa identidade em fraseologia. Mas também se
poderia dizer que as palavras do Senhor vão além da simples
“harmonia”. Indubitavelmente que as palavras do leproso “podes
purificar-me” acham eco na resposta de Jesus “Naturalmente que posso!”
implícita em Seu ato de cura. Mas as palavras do leproso, “se quiseres”,
são substituídas por aquele veloz e esplêndido “Quero”. Aqui ao
“querer” se acrescenta o “poder”, tira-se o “se” e se adiciona o “Quero,
fica limpo!” Tudo isto transforma uma condição de enfermidade
horrenda numa de saúde robusta.
42. No mesmo instante, lhe desapareceu a lepra, e ficou limpo.
Lucas 5:13 indica que a lepra o deixou; Mt. 8:3 diz que ficou limpo;
Marcos menciona ambas as coisas. As curas realizadas por Jesus eram
completas e instantâneas. 59 A sogra de Pedro não teve que esperar até o
dia seguinte para ser curada de sua febre. O paralítico começa
imediatamente a caminhar, levando sua maca. A mão seca é restaurada
imediatamente. O endemoninhado que, momentos antes tinha agido
enlouquecido cortando-se com as pedras, é curado imediatamente e de
maneira total. O mesmo é dito com relação à mulher que tocou o manto
de Jesus. Até a filha de Jairo, que já estava morta, é imediatamente
restaurada à vida, de modo que se levanta e começa a caminhar. Que os
curandeiros de hoje imitem isto! Que curem toda enfermidade
imediatamente! Sim, que levantem mortos, porque se sua pretensão de
poder fazer o que Jesus fez e o que mandou os Seus apóstolos a fazer
está vigente hoje, deveriam ressuscitar também os mortos (Mt. 10:8).
Entretanto, mesmo aqui não tiveram êxito. 60 Na realidade, nem sequer
puderam desfazer-se da morte pela mera negação de sua existência. 61
59
É Mc. 8:23–25 uma refutação do que dizemos? Veja-se sobre essa passagem.
60
Sobre a cura pela fé, veja-se W. E. Biederwolf, Whipping Post Theology (Grand Rapids, 1934).
61
Veja-se A.A. Hoekema, The Four Major Cults (Grand Rapids, 1963), p. 188.
Marcos (William Hendriksen) 109
62
43, 44. Fazendo-lhe, então, veemente advertência, logo o despediu
44 e lhe disse: Olha, não digas nada a ninguém; mas vai, mostra-te ao
sacerdote e oferece pela tua purificação o que Moisés determinou, para
servir de testemunho ao povo.
El verbo “advertindo-o severamente (RC)” é interessante.
Começando, talvez, pela ideia do bufo de um cavalo impaciente ou,
simplesmente de maneira geral pela ideia do ruído que se faria ao estar
enfurecido, é fácil ver quão pronto isto muda a “admoestar
severamente”, como se vê aqui e em Mt. 9:30. Também pode significar:
“censurou” ou “repreendeu”. Foi assim como os discípulos repreenderam
a Maria de Betânia, ao não compreender a linguagem de amor que se
expressava em sua generosidade (Mc. 14:5). Em João 11:33, 38 o
contexto dá a entender que o verbo tem um significado muito amplo:
“estremeceu-se em espírito e se comoveu”.
Jesus não quis que o homem divulgasse como e quem lhe tinha
purificado. Não nos foi revelado a razão (ou razões) desta proibição.
Uma talvez poderia ser que o Mestre desejava ser conhecido como
“aquele que traz as boas novas” e não como o “praticante de milagres”.
Antes de mais nada é a palavra, é a mensagem o que salva, quando o
Espírito Santo a aplica ao coração (veja-se Mc. 1:38). Além disso,
também quer evitar que um entusiasmo exagerado com relação a Jesus
como praticante de milagres, O leve à uma crise prematura. O Senhor vai
morrer pelo Seu povo. Mas a “hora” decretada para isto ainda não tinha
chegado. De modo que o homem foi enviado a ir a Jerusalém para
mostrar-se ao sacerdote. Isto incluía a obrigação de levar a oferta
requerida (Lc. 14:1–7). Esta oferta consistia em duas aves vivas, limpas.
Uma devia ser sacrificada. A outra ave devia ser banhada em seu sangue
e logo solta. O homem curado devia ser também aspergido com o sangue
da ave morta; não só uma vez, mas sete vezes. Finalmente era declarado
são. Ao ouvir os sacerdotes que Jesus era quem tinha curado este homem
62
ἐμβριμησάμενος es un participio aor. nom. sing. masc. de ἐμβριμάομαι. El verbo significa resoplar
(como un caballo). Probablemente imita algún sonido (onomatopeya).
Marcos (William Hendriksen) 110
de maneira tão completa e instantânea, teriam recebido um testemunho
irrefutável do poder e amor de Jesus. Dar-se-iam conta também que,
embora Ele condene as tradições humanas que tornavam nula a santa lei
de Deus, Jesus não era desobediente à lei.
45. Mas, tendo ele saído, começou a apregoar muitas coisas e a
divulgar o que acontecera; de sorte que Jesus já não podia entrar
publicamente na cidade, mas conservava-se fora em lugares desertos.
“…começou a apregoar”. É este “começou” (26 vezes em Marcos)
um auxiliar redundante?
O omitir o constantemente, não destruiria o estilo gráfico de
Marcos? (mas cf. 6:7, nota 233).
No versículo 40 vemos o leproso comportando-se muito
corretamente. No versículo 45, vemo-lo comportando-se muito mal.
Mediante esta ação de indesculpável desobediência privou a muitas
cidades das bênçãos que lhes teriam chegado, se Jesus tivesse podido
entrar nelas (cf. Lc. 11:52b). E de todas as partes iam ter com ele. A
obra de Jesus não foi totalmente interrompida. Os homens se dividem em
dois grupos: a. Os que esperam que o mensageiro venha a eles; b. Os que
saem a buscá-lo e a escutar quem traz a mensagem. Este último grupo
vem a Jesus de todos os arredores.
Não devemos pôr nossa atenção no leproso, e sim nAquele que
outorgou o favor e que esteve disposto a derramar tão inestimável
bênção sobre um homem tão indigno.
63
διʼ ἡμερῶν = “tendo intervindo entre meio (alguns) dias” ou “(alguns) dias havendo-se interposto”;
em consequência, “uns dias depois”. Robertson, pp. 580–584, tem uma interessante discussão sobre
Marcos (William Hendriksen) 115
Jesus retornou de sua viagem pela Galileia (Mc. 1:38, 39). Acha-se
de volta à “sua própria cidade” (Mt. 9:1). Está “em casa”, ou conforme
interpretam a frase alguns, “numa casa”. Com relação a isto, alguns
supõem que se trata da casa onde Jesus, sua mãe Maria, e outros
membros da família, vivem agora. Não obstante, deve-se tomar cuidado
para não entrar em conflito com Mateus 13:54–56 (cf. Lc. 4:16). Refere-
se a frase a uma casa que Ele mesmo possuía em Cafarnaum? Esta
possibilidade não pode ser descartada, e Mateus 8:20 (“… o Filho do
homem não tem onde recostar a cabeça”; veja-se CNT sobre esta
passagem) não se opõe necessariamente a este ponto de vista. Refere-se
à casa de Pedro, uma interpretação bastante popular? 64 Mas se Marcos
estivesse pensando na casa de Pedro, não teria entregue uma referência
mais definida? (veja-se Mc. 1:29). Poderia pensar-se na possibilidade de
que alguns amigos Lhe houvessem provido uma casa enquanto realizava
Sua obra nos arredores de Cafarnaum. Seja como for, num sentido
bastante real, Jesus a considerava como “sua casa”. E “todos” se
inteiraram de que estava em casa, porque a notícia se espalhou
velozmente. 65
2. Muitos afluíram para ali, tantos que nem mesmo junto à
porta eles achavam lugar.
À vista do assombro que tinham causado as palavras e obras de
Cristo (Mc. 1:21–34; 38–45), bem podemos entender por que a casa se
διά. O significado da raiz de διά é provavelmente δύο (= dois), que termina em “de dois em dois” ou
“entre”.
64
Veja-se Vincent Taylor Op. cit., p. 193; A. B. Bruce, Op. cit., p. 350; A. Edersheim, The Life and
Times of Jesus the Messiah (Nova York, 1897), vol. 1, p. 502. Por outro lado, Lenski definidamente
opõe-se a este ponto de vista, Op. cit., p. 62.
65
Provavelmente o melhor é considerar que ἠκού (lit. “foi ouvido”; trad. “correu-se a voz”) forma a
oração principal, e que ἰσελθῶν (“quando tinha entrado”) age como oração subordinada. Quanto a ὅτι
ἐν οἴκῳ ἐστίν (lit. “que está em casa”), existem duas possibilidades: a. considerar a frase como
discurso indireto, embora em tal caso nós usaríamos o tempo passado (“que estava em casa”); b.
considerar a ὅτι como recitativa, o qual se representaria em espanhol usando as aspas do discurso
direto (informou-se: “ele está em casa”). Quanto à última possibilidade, veja-se A. Plummer, The
Gospel according to Matthew (Cambridge Greek Testament for Schools and Colleges. Cambridge,
1914), p. 80.
Marcos (William Hendriksen) 116
encheu de gente. Sem dúvida que um bom número dos amigos e
discípulos de Jesus se achavam presentes, com genuíno interesse na
verdade. Também deve ter havido muitos “olheiros” que ardiam de
curiosidade, tratando de ouvir o que Jesus diria e especialmente para ver
o que faria. Por último, os dissimulados rabinos (os fariseus e doutores
da lei, segundo Lc. 5:17) estavam cheios de inveja, intensamente
perturbados pela forma em que Jesus atraía as grandes multidões. Estas
pessoas “importantes” tinham vindo não só das aldeias da Galileia, mas
também até da Judeia e de Jerusalém! Resultado: não restava mais lugar,
nem mesmo junto à porta. Quando se entrava numa casa, o comum era
que a porta desse acesso direto à casa. Somente os mais acomodados
tinham um “portão” extra e um corredor de entrada. Nas casas mais
modestas, a “porta” dava acesso direto à rua. Mas nesta ocasião a entrada
estava obstruída. Tampouco havia polícia que abrisse caminho.
E anunciava-lhes a palavra. De maneira tão própria e única (veja-
se Mc. 1:22), Jesus trazia o evangelho aos Seus ouvintes (cf. Mc. 4:14ss.,
33; 16:20). Afinal de contas, para isto tinha vindo do céu à terra (Mc.
1:38), quer dizer, para trazer a mensagem de alegria, liberdade, salvação
plena e gratuita (cf. Lc. 4:17–22). Dos Seus lábios brotavam palavras de
graça, claras e singelas.
Mas produz-se uma interrupção, um ruído que vem de acima:
3. Alguns foram ter com ele, conduzindo um paralítico, levado
por quatro homens.
Este homem era, por certo, um desventurado. A enfermidade que
sofria caracteriza-se por uma extremada falta de energia e movimento, a
qual é causada geralmente pela incapacidade que possuem os músculos
para funcionar, devido a lesão nas áreas motoras do cérebro e/ou na
medula espinhal. Além das passagens paralelas em Mateus e Lucas,
veja-se também Mt. 4:24; 8:5–13; At. 8:7; 9:33. No presente caso,
qualquer que tenham sido as partes lesadas pela paralisia e o grau de
avanço da enfermidade, um fato fica claro: a pessoa afetada se achava
impossibilitada de mover-se por si mesma e precisava ser carregada por
Marcos (William Hendriksen) 117
outros. Quatro homens (parentes ou amigos?) ofereceram-lhe este
serviço, conforme o indica Marcos.
4. E, não podendo aproximar-se dele [Jesus], por causa da multidão,
descobriram o eirado no ponto correspondente ao em que ele estava e,
fazendo uma abertura, baixaram o leito em que jazia o doente.
Estas cinco pessoas mostravam uma coragem e engenho digno de
admiração. Mas a fé que tinham em Jesus era ainda mais admirável,
visto que dela emanava a confiança que tinham no êxito de sua
iniciativa. Se a casa onde a multidão se reuniu tinha uma escada exterior,
deve ter sido por aí que os quatro subiram ao teto com sua preciosa
carga. Se era a casa adjacente a que tinha a escada, primeiro deveriam ter
subido ao teto daquela casa, para logo cruzar de um eirado ao outro. De
uma forma ou outra, conseguiram colocar-se diretamente sobre o lugar
onde Jesus estava falando à multidão.
E agora como transpassar o teto! A cobertura exterior de uma casa
era geralmente plana. Tinha vigas com travessas recobertas com folha
seca, ramos, etc., sobre os quais se estendia uma grossa capa de barro ou
argila misturada com palha cortada e amassada a golpes. Este tipo de teto
não era difícil de “destelhar” (esta é a palavra usada no original: “eles
destelharam o teto”). 66
Depois de fazer uma abertura no teto, os quatro desceram a maca
sobre a qual estava deitado o paralítico (cf. a forma em que Paulo foi
baixado do muro em Damasco, At. 9:25; 2Co. 11:33). A “maca” era
certo tipo de leito usado pelos pobres, talvez um colchão delgado
enchido com palha. Sendo que eram quatro os homens que desceram a
maca, supomos que o fizeram amarrando cordas nos quatro cantos da
cama. Foi assim que o doente foi posto exatamente à frente de Jesus.
66
Cria-se uma dificuldade desnecessária, quando se imagina que a “telhas” (de Lucas 5:19) estavam
instaladas numa firme armação de quadros pequenos. Além disso, a abertura do teto não precisava ser
tão grande quanto a altura do homem! Mediante o manejo cuidadoso das cordas até um doente de
estatura normal pode ser baixado lentamente através de uma pequena abertura. “Tudo se consegue
quando se quer”. Referente à forma da construção de um teto, veja-se o artigo “House” na ISBE, vol.
3, p. 1437.
Marcos (William Hendriksen) 118
Baixando Sua vista, Jesus vê o paciente; e olhando para cima, observou
os quatro “amigos” que demonstraram ser “amigos de fato”.
Não se diz que do teto os quatro gritassem alguma coisa a Jesus.
Nenhum dos evangelistas nos conta tampouco que o próprio homem
doente tenha dito alguma coisa. No que concerne ao paralítico, é até
possível que a enfermidade o impedisse de falar. Mas embora nenhum
dos cinco falou, confiaram! E isto era o importante. Sua confiança
comoveu o próprio coração do Senhor; de modo que lemos:
5. Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, os teus
pecados estão perdoados.
O inferir disto que Jesus pensou que a causa de sua enfermidade
eram seus pecados, como se costuma fazer, 67 não tem base alguma,
embora seja verdade que entre os judeus era comum a crença de que “se
um indivíduo sofria uma grande aflição, devia-se a que era um grande
pecador” (Jó 4:7; 22:5–10; Lc. 13:4; Jo. 9:2). Com relação a crenças
similares entre os não judeus, veja-se At. 28:3, 4. Conforme o provam os
evangelhos, Jesus combateu este erro. Mas quanto a este paralítico, a
única coisa que efetivamente sabemos é que o Senhor teve uma grande
preocupação pelo seu pecado. Tampouco é informado se o próprio
homem cria que seu pecado era a causa desta enfermidade. Entretanto,
Jesus sabia que os pecados deste homem o afligiam intensamente. O
homem estava aflito pelas muitas formas em que suas atitudes,
pensamentos, palavras e atos tinham transgredido a vontade de Deus.
Segundo Mateus, Jesus Se dirige meigamente a este homem chamando-o
de filho. Segundo os três evangelistas, Jesus literalmente lhe diz: “os teus
67
Veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 195; e J. Schmidt, The Gospel according to Mark (The
Regensburg New Testament, tradução ao inglês, 1968, Nova York), p. 59. W. Barclay argumenta em
seu muito interessante e educativo comentário, The Gospel of Mark (The Daily Study Bible,
Philadelphia, 1956), pp. 40, 41, que a paralisia pôde ter sido causada pela própria convicção de pecado
que o homem tinha. Mas o texto não sugere isto.
Marcos (William Hendriksen) 119
68
pecados estão perdoados,” pois a ordem das palavras no original faz
com que toda a ênfase recaia no amor perdoador.
Esta declaração de perdão não só foi de inestimável bênção para o
paralítico, mas também foi motivo de felicidade para seus benfeitores.
Sem dúvida que eles se alegraram na alegria que ele sentia. Ainda mais,
foi uma lição para todos os presentes. A todos ficou claro o fato de que
este Médico estimava mais as bênçãos espirituais que as materiais, e que
reclamava possuir “autoridade”, quer dizer, o direito e o poder para curar
não só o corpo mas também a alma.
Jesus jamais considerou o pecado com leviandade. Alguma vez
disse a alguém, “Tem algum complexo de culpa? Esquece-o”. Ao
contrário, considerou o pecado como um desvio indesculpável da santa
lei de Deus (Mc. 12:29, 30), como algo que tem o poder de afogar a alma
(Mc. 4:19; cf. Jo. 8:34) e como um assunto que tem que ver com o
coração e não só com os atos externos (Mc. 7:6, 7, 15–23). Mas também
ofereceu a única solução verdadeira. Compreendia muito bem que o
conselho “Livre-se de seu complexo de culpa, pois uma pequena
crueldade, promiscuidade ou infidelidade, não é nada mau”, não
soluciona nada senão cria mais problemas. Também sabia que ao ser
humano é totalmente impossível livrar-se do sentido de culpabilidade,
pretendendo compensar seus pecados com boas obras. Sabia que esta
filosofia conduziria unicamente a um trágico fracasso e a um espantoso
desespero. Em vez disso, Jesus tinha vindo proclamar e, acima de tudo,
prover a simples e única solução para o pecado, a saber, o perdão. E Ele
mesmo pôs a base para esta por meio da expiação que fez pelo pecado
(Mc. 10:45; 14:22–24, cf. Jo. 1:29). Portanto, ao dizer ao paralítico, “os
teus pecados estão perdoados”, não só comunica a este homem as novas
do perdão de Deus (como fez Natã ao penitente Davi, cf. 2Sm. 12:13), e
sim com autoridade cancela a dívida do paralítico. O Senhor apagou seus
68
Seja que, entre as variantes, adote-se ἀφίενται (presente ind. pas.) tanto para Mc. 2:5 como para Mt.
9:2, ou se prefira ἀφέωνται (perfeito ind. pas., cf. Lc. 5:20), o significado resulta mais ou menos o
mesmo: os pecados deste homem foram nesse momento permanentemente perdoados.
Marcos (William Hendriksen) 120
pecados completamente e para sempre (cf. Sl 103:12; Is. 1:18; 55:6, 7;
Jr. 31:34; Mq. 7:19; Jo. 1:9). Além disso, tal perdão nunca vem sozinho.
É sempre “perdão e algo mais”. Em Cristo, Deus dissipa a tenebrosidade
do inválido e o abraça com os braços de Seu amor protetor e adotivo (cf.
Rm. 5:1).
6, 7. Mas alguns dos escribas estavam assentados ali e arrazoavam
em seu coração: Por que fala ele deste modo? Isto é blasfêmia! Quem
pode perdoar pecados, senão um, que é Deus?
Um poeta holandês chamou a culpa do homem “a raiz de todos os
problemas humanos”. Um psicólogo britânico chamou o sentido de
sentir-se perdoado “a força mais curativa do mundo”. E quão
frequentemente os especialistas nos informam que muitos pacientes
poderiam receber alta das instituições de enfermidades mentais, se tão só
pudessem convencer-se de que sua culpa foi apagada! Pensar-se-ia,
portanto, que todos aqueles que ouviram Jesus dizer ao paralítico, “Filho,
os teus pecados estão perdoados” unir-se-iam ao regozijo do homem
perdoado. Mas não foi assim, pois os escribas tinham vindo para ver se
podiam achar algum erro em Jesus. Em seus corações não havia lugar
para participar da alegria deste homem terrivelmente afetado, quem
nestes momentos escutava palavras de alento e alegria. De maneira
altamente depreciativa, estes inimigos dizem algo decididamente
desfavorável. Entretanto, não o dizem em voz alta, mas somente dentro
de seus corações. Mas os corações são muito importantes. Acaso não são
a fonte principal das inclinações, como também dos sentimentos e dos
pensamentos? Não é o coração do homem aquele que mostra o tipo de
pessoa que realmente é? (veja-se Mc. 3:5; 6:52; 7:14–23; 8:17; 11:23;
12:30, 33; Ef. 1:18; 3:17; Fp. 1:7; 1Tm. 1:5. Cf. Pv. 23:7).
Assim que, em seus corações os escribas dialogam, lançam
pensamentos e respondem. O que dizem é isto: “Por que fala assim este
homem? Está blasfemando!”. Adota para Si prerrogativas que só
pertencem a Deus. Isto O torna culpado de blasfêmia, quer dizer, de uma
irreverência insolente. Rouba a Deus a honra que a ninguém mais
Marcos (William Hendriksen) 121
pertence, porque: “Quem pode perdoar pecados, senão um, que é
Deus?”.
Os escribas tinham razão ao considerar a remissão de pecados uma
prerrogativa divina (Êx. 34:6, 7a; Sl 103:12; Is. 1:18; 43:25; 44:22; 55:6,
7; Jr. 31:34; Mq. 7:19). Claro que há um sentido em que nós também
perdoamos, quer dizer, quando de todo coração decidimos não tomar
vingança, e sim amar a quem nos ofendeu, promover seu bem-estar e
nunca mais trazer o assunto à memória (Mt. 6:12, 15; 18:21; Lc. 6:37;
Ef. 4:32; Cl. 3:13). Mas basicamente, segundo se descreveu, só Deus
perdoa. Só ele tem o poder de tirar a culpa e declarar que realmente foi
apagada. Mas agora o pensamento dos escribas chega à uma bifurcação
que lhes mostra dois caminhos: a. Jesus é o que por implicação pretende
ser, quer dizer, Deus; ou, b. Ele blasfema, no sentido de que sem direito
pretende para Si os atributos e prerrogativas da deidade. Os escribas
adotaram a posição b. e assim tomam a direção errada.
O contexto que segue implica que não só cometeram este trágico
erro, mas também o complementaram raciocinando mais ou menos como
segue: “É fácil dizer, ‘Teus pecados te são perdoados’, visto que
ninguém está em condições de provar o contrário. Ninguém pode olhar o
coração de seu próximo ou aproximar-se do trono do Todo-Poderoso, e
descobrir suas decisões judiciais quanto a quem recebe e quem não
recebe o perdão. Por outro lado, dizer a este homem, ‘Levanta-te e anda’
seria muito mais difícil, porque se não se produz a cura, o que é
provável, aqui estamos todos para presenciar sua vergonha”. Portanto, na
opinião deles, Jesus é um blasfemo e um impertinente.
O Mestre desfaz estas duas falsas conclusões por meio destas
palavras:
8-11. E Jesus, percebendo logo por seu espírito que eles assim
arrazoavam, disse-lhes: Por que arrazoais sobre estas coisas 69 em vosso
coração? Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus
69
Ou: abrigais tais pensamentos.
Marcos (William Hendriksen) 122
pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que
saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar
pecados — disse ao paralítico: 70 “Te digo, te levante, toma sua maca e
vete a sua casa”.
Jesus percebeu o que estes escribas pensavam. Suas deliberações
secretas não foram desconhecidas para Jesus (cf. Mt. 17:25; Jo. 1:47, 48;
2:25; 21:17). Se não tivesse sido Deus, não Lhe teria sido possível
penetrar tão profundamente em seus corações e pensamentos secretos (Sl
139; Hb. 4:13). Jesus os repreende com sua pergunta: “Por que
raciocinais assim?”. O “diálogo” deles era perverso (cf. Mt. 9:4), porque
O acusavam falsamente. Eles eram os perversos. Acaso não tinham
vindo com o propósito de buscar a forma de destruí-Lo (cf. Mc. 3:6)?
Deveriam examinar seus próprios corações!
Quanto ao que é mais fácil, dizer ao paralítico, “Estão perdoados os
teus pecados” ou “Levanta-te, toma o teu leito e anda”, não requerem
ambas as coisas a mesma medida de poder onipotente? Segundo o
raciocínio dos escribas, para que Jesus pudesse lhes provar sua
autoridade” (seu direito e poder) na esfera do espiritual, devia operar um
milagre na esfera do físico. Então, que vejam este milagre!
De modo que, diz-lhe ao paralítico: “Levanta-te, toma o teu leito e
vai para tua casa”. A obediência a esta ordem provaria que o humilde
mas glorioso “Filho do homem” tem autoridade divina aqui na terra.
Portanto, antes que a porta da graça seja fechada, tem autoridade para
perdoar pecados.
Marcos usa pela primeira vez o termo “Filho do homem”. No total,
ocorre quatorze vezes neste Evangelho: duas vezes no começo (Mc.
2:10, 28), sete vezes no meio (Mc. 8:31, 38; 9:9, 12, 31; 10:33, 45) e
cinco vezes rumo ao fim (Mc. 13:26; 14:21; 14:41; 14:61). É a forma em
70
O fato de que Mc. 2:10 e seus pares (Mt. 9:6 e Lc. 5:24) mostrem um estilo tão parecido, incluindo
até o parêntese na metade da cláusula, assinala em direção de uma dependência literária. Veja-se a
discussão do problema sinótico no CNT sobre Mateus. Quanto a Mc. 2:8 “em vosso coração”, veja-se
sobre Mc. 8:12.
Marcos (William Hendriksen) 123
que Cristo Se designa a Si mesmo, encobrindo mais que revelando algo
de Si mesmo. Encobrindo especialmente para aqueles que não se acham
inteiramente familiarizados com o Antigo Testamento. O uso desta
expressão conduziu à pergunta: “Quem é esse Filho do Homem?” (Jo.
12:34). A frase caracteriza a Jesus como Aquele que sofre, como Aquele
que seria traído e sacrificado (Mc. 9:12; 14:21, 41); tudo isto em
conformidade com o decreto divino, voluntária e vicariamente (Mc.
10:45). Seu sacrifício voluntário em lugar de Seu povo seria
recompensado (Mc. 8:31; 9:31; 10:33, 34). Depois de Sua morte levanta-
Se novamente. Tendo partido desta terra, um dia voltará em glória,
sentado à destra do Todo-Poderoso (Mc. 14:62), cumprindo a profecia de
Dn. 7:13, 14. Tão intrinsecamente glorioso é Ele, que Sua glória se
remonta para trás, através de toda Sua vida terrestre. Na realidade
sempre foi — até em Seus sofrimentos — o glorioso Filho do homem.
Estando ainda na terra, tem o direito de perdoar pecados (Mc. 2:10) e é
Senhor de tudo, incluindo até o sábado (Mc. 2:28). Para mais a respeito
de este tema, veja-se CNT sobre Mt. 8:20.
O presente relato mostra com clareza a glória do Filho do homem.
Jesus lhe tinha ordenado ao paralítico que se levantasse, etc. Resultado:
12. Então, ele se levantou e, no mesmo instante, tomando o leito,
retirou-se à vista de todos.
O homem creu que Aquele que lhe ordenava levantar-se, tomar seu
leito e ir para casa também o capacitaria a obedecer a ordem. Assim que
“à vista de” todos os que olhavam, obedeceu imediatamente a tríplice
ordem e foi embora para casa (que, talvez, estivesse aí mesmo em
Cafarnaum?). Marcos narra o efeito que a gloriosa transformação que
experimentou este homem produziu naqueles que ouviram o que Jesus
disse e que viram o que aconteceu: a ponto de se admirarem todos e
darem glória a Deus, dizendo: Jamais vimos coisa assim! Marcos nos
fala a respeito do assombro de todos. Jamais em sua vida tinham
presenciado algo semelhante. De acordo com Mateus, a multidão “se
maravilhou”. Lucas em seu relato diz que todos “estavam sobressaltados
Marcos (William Hendriksen) 124
de assombro … e cheios de temor”, levando-os a exclamar, “Hoje vimos
maravilhas”.
Os três Evangelhos observam que a multidão glorificava a Deus:
“todos” (assim Marcos e Lucas) atribuem-lhe a Deus a honra e esplendor
que Lhe é devido. Como ocorre com frequência, este “todos” é muito
geral e não significa que os escribas zombadores e críticos houvessem de
repente experimentado uma mudança genuína de coração e mente.
Marcos 2:16, 24; 3:2, 6, 22 deixa claro que homens deste tipo seguiram
hostis e se endureceram cada vez mais. Não obstante, a resposta de
glorificar a Deus foi o suficientemente geral para justificar o uso da
palavra “todos”. E não há dúvida de que entre os muitos que O exaltaram
estavam alguns em quem as palavras e obras de Cristo tinham produzido
uma impressão permanente e salvadora. Provavelmente havia outros que
em seu entusiasmo pronunciavam também palavras de louvor ao
Altíssimo (cf. Dn. 4:34; 6:26, 27), mas cujos corações continuavam sem
o novo nascimento (cf. Mc. 7:6).
71
Ou: “gente de má reputação”; e assim através dos Evangelhos. Veja-se a explicação.
72
Sobre ἁμαρτωλός, veja-se K. H. Rengstorf, TDNT, vol. 1, p. 328.
Marcos (William Hendriksen) 129
Jesus em casa de Mateus fossem “santos” (no sentido de ser gente
excepcionalmente virtuosa). Talvez o contrário estaria mais perto da
verdade. Os publicanos e pecadores não só violavam a interpretação
rabínica da lei de Deus, mas também a própria lei divina. Jesus não
justifica nem comuta sua forma de vida. Antes, os aborda como a
doentes que precisam ser curados (v. 17), como ovelhas perdidas que
devem ser achadas (Lc. 15:1–4; 19:10). Tinha vindo do céu para libertar
esta gente de seus pecados e misérias.
Mateus entende isto e honra a Jesus com um banquete. Abriga a
esperança, naturalmente, de que todos estes desprezados publicanos e
pecadores também cheguem a ser como ele, um seguidor espiritual de
Cristo.
Embora existam explicações divergentes das palavras que se acham
no final do v. 15, parece-me que se forem lidas à luz do contexto, não é
tão difícil de encontrar a explicação correta. A chave está na repetição da
palavra “muitos”. Observe-se: “…também estavam sentados à mesa com
Jesus e com seus discípulos muitos publicanos e pecadores, porque eram
muitos e o tinham seguido” [Mc. 2:15, RC]. O segundo muitos é
provavelmente uma espécie de resumo, e significa que os publicanos, e
em geral a gente que se pontuava de pecadora, eram muitos e tinham
começado a lhe seguir” (Bruce). A palavra “pois” pode ser explicada
desta forma: “Pode parecer estranho que muitos coletores de impostos e
pecadores, gente desprezada, estivessem reclinados à mesa com Jesus; e
não obstante, é a verdade: achavam-se reclinados com Ele porque tinham
começado a vê-Lo como um Amigo (cf. Mt. 11:19; Lc. 7:34), como
Alguém a quem começavam a seguir”. 73
73
A pontuação do texto — veja-se GNT — que sugere que o sujeito de καὶ ἠκολούθουν αὑτῷ está em
καὶ οἱ γραμματεῖς κτλ dá um sentido muito improvável, como se estes inimigos de Jesus estivessem
presentes no banquete, e como se tivessem começado a seguir ao Senhor! Vincent Taylor tem razão
em rejeitar esta construção, visto que se a expressão “começavam segui-lo” se interpreta
favoravelmente, está em conflito com o v. 16; e se for interpretada em sentido desfavorável,
respondemos que em vintena de casos em Marcos que se usa ἀκολευθέω, jamais usa o verbo em
sentido desfavorável.
Marcos (William Hendriksen) 130
16. Vendo os escribas dos fariseus que ele comia com os pecadores e
publicanos, perguntaram aos discípulos dele: Como é que ele come com os
publicanos e pecadores? [TB]
Assim como nem todo sacerdote era saduceu (veja-se em Jo. 1:24),
tampouco todo escriba era fariseu (cf. Lc. 5:30, “seus escribas”); porém
no presente caso somos informados definidamente que os críticos eram
escribas de profissão e que pertenciam à seita religiosa dos fariseus. 74
Estes escribas farisaicos estavam sempre preparados e desejosos de
encontrar falhas em Jesus, mas em geral não tinham a dignidade de
criticá-Lo face a face. É muito provável que estes escribas se
aproximaram dos discípulos quando o banquete tinha terminado e os
convidados saíam do lugar. Foi nesse momento que perguntaram, 75
“¿Como é que ele come com os publicanos e pecadores?” Acaso comer
com uma pessoa não implica uma amável camaradagem? (veja-se CNT
sobre Mt. 8:11). E acaso os rabinos não tinham estabelecido a regra, “Os
discípulos dos eruditos não devem reclinar-se à mesa na companhia dos
‘am hā-’āreç”? Eles usavam a expressão ‘am hā-’āreç para referir-se ao
“povo da terra”, ao “vulgo”, ao “povo que não conhece a lei” (veja-se Jo.
7:49).
Sua falta de compaixão e sua atitude santarrã (Lc. 18:9) não
permitia que estes críticos entendessem que há ocasiões quando a
camaradagem com publicanos e pecadores está perfeitamente em ordem,
e tão em ordem que seria impróprio evitar tal camaradagem. Ao
associar-se com esta gente de má reputação, Jesus saía ao encontro de
uma necessidade, tal como Ele mesmo o declara:
Por outro lado, Taylor (junto com Bolkestein, Groenewald e Van Leeuwen em seus comentários) crê
que o segundo “muitos” refere-se aos discípulos de Jesus, como se Marcos estivesse informando ao
leitor que por esse tempo Jesus já tinha outros discípulos, além dos mencionados em Mc. 1:16–20 (cf.
BP). Mas esta interpretação não faz justiça à repetição da palavra “muitos”. Em resumo, adiro-me à
estrutura e interpretação que encontramos em NVI, RA, NTT, CB, CI, BJ, LT.
74
Sobre os fariseus e os saduceus, sobre sua origem, o antagonismo que havia entre eles e sobre a
forma em que cooperaram para matar a Jesus, veja-se CNT sobre Mt. 3:7.
75
Aqui ὅτι é provavelmente uma elipse de τί ὅτι, o que significa “o que (é) isso?” e assim “por que?”.
Cf. Mt. 9:11 e Lc. 5:30 que têm διὰ τί, isto é “por causa do quê?” ou “por quê?”
Marcos (William Hendriksen) 131
17. Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os sãos não
precisam de médico, e sim os doentes.
Jesus tomou nota da crítica dos escribas. Assim que, Ele mesmo
lança neles a resposta precisa por meio do que pôde ter sido um
provérbio familiar. Quando Jesus intimava com pessoas de baixa
reputação, não o fazia acotovelando-se com eles como companheiro de
maldades. A Jesus não se podia aplicar o provérbio, “Dize-me com quem
comes e te direi quem és”. Antes, Sua intimidade era como a do médico
que, sem contaminar-se de modo nenhum com as enfermidades de seus
pacientes, aproxima-se deles a fim de lhes trazer cura! Além disso, eram
precisamente os fariseus os que deviam haver entendido isto. Não são
eles os que se consideravam sãos e que tinham os outros como doentes?
Se os publicanos e pecadores estão tão enfermo, não precisam ser
curados? Em que consiste o trabalho do médico, em curar sãos ou curar
doentes? Os doentes, naturalmente!
Jesus acrescenta: Não vim chamar justos, e sim pecadores. Isto é
o que basicamente se lê em Mateus e em Lucas. Contudo, em Mateus
estas palavras são precedidas por uma citação de Oseias 6:6 e
introduzidas pela conjunção “porque”. Em Lucas se acrescenta a frase
“(pecadores) ao arrependimento”.
A passagem deixa claro que o convite à salvação, plena e gratuita,
não se oferece aos “justos”, quer dizer, àqueles que se consideram
dignos, e sim aos que se consideram indignos e que estão em grande
necessidade. Foram os pecadores, os perdidos, os estraviados, os
mendigos, os sobrecarregados, os famintos e os sedentos a quem Jesus
veio para salvar (vejam-se também Mt. 5:6; 11:28–30; 22:9, 10; Lc.
14:21–23; cap. 15; 19:10; Jo. 7:37, 38). Isto está em harmonia com toda
a revelação especial, tanto no Antigo como no Novo Testamento (Is.
1:18; 45:22; 55:1, 6, 7; Jr. 35:15; Ez. 18:23; 33:11; Os. 6:1; 11:8; Rm.
8:23, 24; 2Co. 5:20; 1Tm. 1:15; Ap. 3:20; 22:17). É uma mensagem
cheia de alento e pertinente para todas as épocas!
Marcos (William Hendriksen) 132
Mc. 2:18–22 - A pergunta a respeito do jejum
Cf. Mt. 9:14–17; Lc. 5:33–39
78
Jejuava-se na segundas-feira e quarta-feira, de acordo com a Didaquê. VIII.1.
79
Ou: e algumas pessoas vieram.
80
Ou: Por que estão jejuando os discípulos de João e os discípulos dos fariseus, mas os teus discípulos
não estão jejuando?”.
Marcos (William Hendriksen) 134
“vieram alguns” [RA] em lugar de “e vieram”. Se pensa-se num
antecedente definido, então Marcos 2:18 poderia estar falando dos
“escribas que eram fariseus” (literalmente, “os escribas dos fariseus”) do
v. 16; e Lucas 5:33 estaria apontando aos “fariseus e seus escribas” do v.
30. Entretanto, é muito duvidoso que em qualquer dos dois casos o
contexto esteja provendo um antecedente. Por outro lado, Mateus 9:14
estabelece claramente que os que perguntaram foram “os discípulos de
João”. Sendo que nessa oportunidade não só eles, mas também os
fariseus estavam jejuando, é concebível que o grupo dos que
perguntavam incluísse também aos fariseus.
Não é um problema que os que se descrevem como jejuando sejam
“os discípulos de João”. Mesmo depois do encarceramento de João seus
discípulos continuaram como um grupo separado que se distinguia dos
seguidores de Jesus. Existia, entretanto, uma relação de camaradagem e
cooperação entre os dois grupos, segundo se evidencia em passagens
como Mateus 11:2, 3; 14:12, e provavelmente até na passagem que agora
estudamos, Marcos 2:18. Mas surge um problema com relação à frase
“os discípulos dos fariseus” (veja-se também Lc. 5:33). Considerados
como grupo “os fariseus” não eram mestres propriamente ditos e,
portanto, não tinham discípulos. Não obstante, o problema poderia ser
mais aparente que real. Quando Marcos escreve “discípulos dos
fariseus”, pôde ter querido dizer “discípulos dos escribas que eram
fariseus”, como em Mc. 2:16. O ponto principal é que os discípulos de
João e presumivelmente os discípulos destes escribas fariseus estavam
jejuando, conforme o ensino e/ou o exemplo de seus líderes. Mateus 9:14
declara que os fariseus jejuavam “muitas vezes”. Por outro lado, os
discípulos de Cristo não participavam destes jejuns. A pergunta surgiu
devido a este notável contraste.
Em favor dos que levantaram a pergunta, deve-se dizer que não
passaram por alto a Jesus, mas que se dirigiram a Ele direta e
francamente. Além disso, embora havia certa crítica na pergunta que
Marcos (William Hendriksen) 135
levantaram, não se tratava de uma acusação velada mas mordaz, porém
de uma honesta pergunta que demandava informação.
Em todo caso, a pergunta não se justificava realmente, porque se
estes homens tivessem sido melhores estudantes das Escrituras teriam
sabido a. que o único jejum que com esforço da imaginação poderia
derivar-se da lei de Deus era aquele que se levava a cabo no dia da
expiação, e b. que de acordo com o ensino de Isaías 58:6, 7 e Zacarias
7:1–10, o que Deus demandava não era um jejum no sentido literal, e
sim amor para com Deus e a humanidade.
19. Respondeu-lhes Jesus: Podem, porventura, jejuar os
convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles?
Nos três sinóticos a pergunta se expressa de tal maneira que a
resposta tem que ser “Não”. Entretanto, Marcos faz com que a resposta
seja mais clara, informando que Jesus acrescentou: Durante o tempo em
que estiver presente o noivo, não podem jejuar. Aqui Jesus compara
Sua bendita presença na terra com uma festa de bodas. Vez após vez a
Escritura compara a relação entre o Senhor e Seu povo, ou entre Cristo e
Sua igreja, com o amor que existe entre o marido e a esposa (Is. 50:1ss.;
54:1ss.; 62:5; Jr. 2:32; 31:32; Os. 2:1ss.; Mt. 25:1ss.; Jo. 3:29; 2Co. 11:2;
Ef. 5:32; Ap. 19:7; 21:9). Literalmente, o v. 19 fala dos filhos da
“câmara nupcial”, o que significa “os companheiros do noivo”. Estes
eram amigos do noivo. Permaneciam perto dele. Eram convidados à
bodas, estavam encarregados dos arranjos e deviam fazer todo o possível
para promover o êxito das festividades.
É como se Jesus dissesse: Os amigos do noivo jejuando enquanto
transcorre a festa! Que absurdo! Assim incongruente seria que os
discípulos do Senhor fizessem luto enquanto seu Mestre leva a cabo
obras de misericórdia e pronuncia belas palavras de vida. Que
incongruência!
Entretanto, Jesus acrescenta,
20. Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo; e, nesse
tempo, jejuarão.
Marcos (William Hendriksen) 136
Esta é uma das primeiras predições da morte de Cristo na cruz. A
predição que indica que o noivo, Cristo, será tirado acha-se também nas
passagens paralelas (Mt. 9:15; Lc. 5:35). Lembra-nos imediatamente
Isaías. 53:8 [TB]: “Pela opressão e pelo juízo foi ele arrebatado”. É
notável como os Evangelhos apresentam o próprio Jesus citando ou
aludindo com frequência a algum texto de Isaías. 81 No Evangelho
segundo Marcos temos os seguintes textos:
87
Não é muito acertada a forma em que aqui se fez a divisão de capítulos em Marcos (entre Mc. 2:28
e 3:1). Nem a Mateus (Mt. 12:1–14) nem a Lucas (Lc. 6:1–11) foi imposta esta estranha separação
daquilo que deveria ficar junto.
Marcos (William Hendriksen) 140
88
23. Ora, aconteceu atravessar Jesus, em dia de sábado, as
searas, e os discípulos, ao passarem, colhiam espigas.
Embora não se indique nenhuma relação cronológica entre este
parágrafo e o precedente, Marcos bem pôde ter tido em mente uma
relação lógica. Acaba de descrever a Jesus sublinhando o fato de que os
que vivem agora em Sua presença deveriam fazer festa em vez de luto,
alegrar-se em vez de lamentar-se. O evangelista passa agora a descrever
o Mestre no ato de mostrar que a alegria, não a tristeza, deveria ser a
característica da celebração do sábado.
Evidentemente o grão estava amadurecendo. Este processo variava
segundo a altura sobre o nível do mar em que estivessem os campos. O
processo ocorria durante um período que se estendia da primavera até
meados do verão. No quente vale do Jordão, na Palestina, a cevada
amadurecida no mês de abril; na Transjordânia e a região a leste do mar
da Galileia, o trigo se colhe em agosto. O texto não indica o tempo exato
em que Jesus e seus discípulos passaram pelos campos de grão em
espiga. O lugar é ainda mais indefinido que o tempo. A. T. Robertson
sugere que o evento teve lugar “provavelmente na Galileia vindo de
volta de Jerusalém”. Esta teoria pode ser tão boa como qualquer outra. 89
Mas não é mais que uma conjetura.
A tradução “campos de grão em espiga” se apoia fortemente no
contexto. Literal e etimologicamente a referência é simplesmente a “o
que foi semeado”. Entretanto, o contexto mostra que quando passavam
pelos campos, o tempo da colheita tinha chegado ou estava para chegar.
Mateus informa que os discípulos tinham fome (Mt. 12:1). Os
Sinóticos contam de forma variada o que fizeram para aliviar a fome.
Marcos declara que ao atravessar os campos, estes homens começaram a
arrancar 90 espigas de grão. Mateus acrescenta, “e comê-las”. O comer
está implícito em Mc. 2:26. Lucas é mais completo neste ponto que
88
A respeito de ἐγένετο αὑτὸν παραπορεύεσθαι, veja-se BAGD, p. 158, sob 3e.
89
Harmony of the Gospels (Nova York, 1930), p. 44.
90
O particípio τίλλοντες expressa a ideia central.
Marcos (William Hendriksen) 141
qualquer dos outros, e lê, “Seus discípulos arrancavam e comiam as
espigas de grão, esfregando-as entre as mãos”. O que faziam era
totalmente legítimo. Enquanto que o viajante não colocasse a foice nas
espigas do campo alheio, era-lhe permitido arrancar espigas (Dt. 23:25).
Não obstante, os que odiavam a Cristo e buscavam alguma desculpa
para condená-Lo, reagiram de maneira imediata e adversa, segundo se vê
pelo versículo
24. Advertiram-no os fariseus: Vê! Por que fazem o que não é
lícito aos sábados?
Aqui aparece uma partícula grega que deve ser traduzida de
maneira variada conforme o exija o contexto.91 No presente caso
desaprova fortemente a ação dos discípulos. Segundo o modo de ver dos
fariseus, essa ação demandava uma correção imediata; em consequência,
“Olhe” ou “Olhe agora”. Tanto em Marcos como em Lucas os fariseus
fazem uma pergunta: “Por que fazem o que não é lícito aos sábados?”.
Mas em Lucas a pergunta está dirigida a Jesus, “Por que fazem …?”. Em
ambos os casos a pergunta implica claramente uma acusação, uma
denúncia. O que Marcos sugere, Mateus 12:2 o diz claramente. Mateus
omite a forma de pergunta e nos informa da direta declaração dos
fariseus, “Seus discípulos fazem o que não está permitido no sábado”.
Tanto Jesus como Seus discípulos estão evidentemente implicados. Os
discípulos arrancando espigas e Jesus aprovando o que eles faziam. Por
isso, não existe aqui nenhuma discrepância real. A crítica dirigida contra
Jesus, era também contra todo o grupo
Os fariseus raciocinavam desta maneira: Acaso não está proibido
trabalhar no sábado (Êx. 20:8–11; 34:21; Dt. 5:12–15)? Não prepararam
os rabinos uma lista de trinta e nove trabalhos principais, cada um
subdividido em seis categorias menores, todas as quais estavam
proibidas no sábado? E, segundo a lista, não figurava o arrancar espigas
91
A palavra Ἴδε faz ressaltar tudo aquilo que introduz. A tradução nem sempre pode ser a mesma,
pois é o contexto o que determina seu sentido em cada caso: “Vê!” em Mc. 2:24; “Eis (ou: Eis aqui)”
em Mc. 3:34; 11:21; 16:6; “Olha!” em Mc. 13:1, 21 [TB]; “Vede” Mc. 15:35; “Vê” em Mc. 15:4.
Marcos (William Hendriksen) 142
92
de grão sob a categoria de colher? E aqui se achavam estes discípulos
ocupados nesta atividade vedada, e Jesus nada fazia a respeito!
Obviamente o que sucedia era que os inimigos de Cristo estavam
sepultando a verdadeira lei de Deus sob um sem-número de torpes
tradições feitas por homens (Mc. 7:8, 9, 12, 13; cf. Mt. 15:3, 6; 23:23,
24). A lei divina em nenhum sentido proibia o que nesse momento
faziam os discípulos.
25, 26. Mas ele lhes respondeu: Nunca lestes o que fez Davi, quando
se viu em necessidade e teve fome, ele e os seus companheiros? Como
entrou na Casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote Abiatar, e comeu os
pães da proposição, os quais não é lícito comer, senão aos sacerdotes, e
deu também aos que estavam com ele?
“Nunca lestes?”. É como se dissesse, “Vocês se orgulham de ser os
que fazem valer a lei, e seus escribas se consideram tão versados nela
para poder ensinar a outros; entretanto, vocês não conhecem o fato de
que até esta mesma lei permitiu que suas restrições cerimoniais fossem
postas de lado em caso de necessidade (observe-se que as palavras entre
aspas, “o que fez Davi, quando se viu em necessidade” só se acham em
Marcos). Alguma vez leram a respeito de Davi e os pães da
proposição?”. A alusão é ao pão consagrado, ao “pão da presença”. No
hebraico é lehem happanîm (Êx. 25:30), que Lucas 6:4 traduz literal e
corretamente. Consistia em doze pães colocados sobre uma mesa de um
metro de comprimento por 45 cm. de largura e 70 cm. de altura. A mesa
estava coberta de ouro puro, rodeada de uma moldura de ouro e equipada
com quatro anéis de ouro, um anel em cada canto. Através destes anéis
passavam varas para poder transportá-la. A descrição desta peça do
mobiliário do tabernáculo acha-se em Êx. 25:23, 24. Nos tempos antigos
esta mesa estava no Lugar Santo, não muito longe do lugar da morada de
Deus: o Lugar Santíssimo. O pão era colocado em duas filas. Os doze
pães representavam as doze tribos de Israel e simbolizavam a comunhão
92
Veja-se Sabbath 7:2, 4; SB, vol. 1, pp. 615–618; e A.T. Robertson, The Pharisees and Jesus (Nova
York, 1920), pp. 87, 88.
Marcos (William Hendriksen) 143
constante do povo com seu Deus. É como se Deus convidasse os
israelitas para Sua mesa, e os consagrasse para Ele. Mediante esta oferta
dos pães da proposição, eles reconheciam com gratidão sua dívida para
com Ele.
Todos os sábados eram trocados se os pães por pães frescos (1Sm.
21:6). Os pães que se retiravam eram comidos pelos sacerdotes. Eram
“para Arão e seus filhos”, quer dizer, para o sacerdócio. Por certo que
não eram para todo o povo (Lv. 24:9). Entretanto, diz-se que “nos dias
do Abiatar, o sumo sacerdote” (veja-se mais abaixo), o faminto Davi
entrou na “casa de Deus” (veja-se Jz. 18:31; cf. 1Rs. 1:7, 24); entrou no
(átrio do) santuário em Nobe, que era o lugar sagrado onde se guardava a
arca (1Sm. 21:1; 22:9). Quando Davi entrou, deram-lhe deste pão
consagrado. Ele o compartilhou com seus companheiros que estavam
igualmente famintos. Todos comeram, mesmo quando segundo a lei
divina o pão tinha sido designado para os sacerdotes, e nada mais que
para eles. O importante é isto: se, quando surgiu a necessidade, Davi teve
direito a passar por alto uma provisão cerimonial divinamente ordenada,
Jesus, em condições semelhantes, não tinha o direito de deixar de lado as
regulações humanas inteiramente injustificadas? Não tinha mais direito o
eminente Antítipo, quer dizer, Jesus, o Ungido de Deus num sentido
muito mais elevado que Davi? Afinal de contas, as regulações rabínicas
eram em grande medida aplicações errôneas da santa lei de Deus. Isto
era a verdade no caso presente.
Muito se tem comentado a respeito do fato de que Marcos apresenta
Jesus dizendo que o evento em conexão com Davi e seus homens teve
lugar “nos dias — ou: nos tempos — de 93 Abiatar o sumo sacerdote”.
Mas ocorre que, segundo 1 Samuel 21:1, não Abiatar, mas sim
Aimeleque quem deu a Davi o pão sagrado.
93
A preposição ἐπί tem este significado às vezes. Cf. Mt. 1:11; Lc. 3:2; 4 27; At. 11:28, etc.
Marcos (William Hendriksen) 144
Soluções propostas
98
Esta é a sugestão alternativa de Lenski, Op. cit., p. 81.
99
1Sm. 21:1 pareceria sugerir que não avançou além disso.
Marcos (William Hendriksen) 146
contêm muitos exemplos de expressões abreviadas — veja-se CNT sobre
João, p. 219 — assim como também nossa conversação diária.
Portanto, a solução sugerida (4) pode ser a correta. A certeza é
impossível neste assunto.
É gratuito supor com os críticos que Mateus e Lucas omitiram o
dito por Marcos porque se deram conta de que era um erro. O fato é que
sob a guia do Espírito, cada escritor dos Evangelhos fez sua própria
seleção de materiais. Nem sempre é claro entender exatamente por que
certo material que se acha num Evangelho não aparece em outros. O fato
de que às vezes algumas das mais preciosas palavras de Cristo
encontram-se apenas num Evangelho acha-se demonstrado pela
passagem que segue e que só Marcos registra:
27. E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do
homem, e não o homem por causa do sábado.
Deus criou primeiro o homem, não o sábado (Gn. 1:26 – 2:3). Foi
instituído para ser bênção para o homem: para mantê-lo em boa saúde,
para fazê-lo útil e feliz, para fazê-lo santo, de modo que meditasse com
tranquilidade nas obras de seu Criador, para que possa “deleitar-se no
Senhor” (Is. 58:13, 14) e esperar com prazerosa antecipação o repouso
que resta para o povo de Deus (Hb. 4:9).
Os rabinos tinham criado muitos regulamentos minuciosos e às
vezes absurdos, restrições chatas e onerosas que incluíam a que proibia
matar a fome arrancando espigas no sábado. Desta forma, os rabinos
estavam transformando o sábado num cruel tirano e o homem em
escravo desse tirano … como se o propósito de Deus tivesse sido na
realidade fazer “o homem para o sábado”, em lugar do “sábado para o
homem”.
Jesus conclui dizendo:
28. De sorte que o Filho do Homem é senhor também do
sábado.
Quando Jesus disse, “O sábado foi estabelecido por causa do
homem”, afirmava que foi Deus quem o fez como é. Foi o Senhor e
Marcos (William Hendriksen) 147
nenhum outro que instituiu os princípios para a observância do sábado.
Toda autoridade foi dada ao Filho (Mt. 11:27, 28:18), quem é um com o
Pai (Jo. 10:30), em quem o Pai acha complacência (Mc. 1:11) e a quem o
Pai enviou ao mundo (Mc. 1:38; 9:37). Tudo isto faz com que a frase
“De sorte que” — ou: “Assim que”— dê um sentido excelente quando
vem seguida pelas palavras, “Senhor é o Filho do homem do sábado”
(ordem literal segundo o original). Maior é Ele que o templo (Mt. 12:6),
que Jonas (12:41), que Salomão (12:42) e deste modo também, que o
sábado!
Quanto a um estudo detalhado do termo “Filho do homem”, veja-se
sobre Mc. 2:10 e sobre Mateus 8:20. Naturalmente que se Jesus, como o
Filho do homem, é Senhor sobre tudo, não é então Senhor até do sábado?
Observe-se a palavra “também”, que neste relato encontra-se só em
Marcos. Como Senhor soberano, Ele tem autoridade para estabelecer
princípios que rejam esse dia. Em consequência, ninguém tem direito de
censurá-Lo quando permite aos Seus discípulos satisfazer sua fome
arrancando e comendo espigas!
Resumo do Capítulo 2
Esta história acha-se nos três sinóticos (Mt. 12; Mc. 3; Lc. 6).
Todos relatam: a. que num sábado Jesus em algum lugar assistiu à
sinagoga (cf. “foi à igreja”) e viu um homem que tinha uma mão
paralisada; b. que também estavam presentes alguns fariseus com o fim
de achar motivos para acusar a Jesus; c. que o Senhor disse ao homem
que estendesse sua mão; d. que a obediência a este mandato deu como
resultado sua completa cura; e e. que os fariseus deliberaram sobre o que
se devia fazer nesta situação.
Nas distintas versões dos Evangelhos há uma variedade muito
interessante quanto a outros detalhes, mostrando que seus escritores não
eram meros copistas. Não existem contradições. Ao combinar os
diversos detalhes mencionados nas três apresentações, obtemos a
seguinte narração, vívida e dramática:
Um novo sábado começou. Jesus entra na sinagoga e começa a
ensinar (Lc. 6:6). No culto há um homem com uma mão seca ou
paralisada. Somos informados que é sua mão direita (Lc. 6:6; cf. Cl.
4:14). Os inimigos de Jesus, a saber, os fariseus — e escribas (Lc. 6:7)
— observam-no muito de perto (Mc. 3:2; Lc. 6:7), com o fim de Lhe
fazer uma acusação. Mas Jesus conhece seus pensamentos (Lc. 6:8), e
lhes induz a expressar o que estão pensando. Então perguntam: “É lícito
curar no sábado”? (Mt. 12:10). Jesus volta-se para o homem, dizendo
que se levante e que se aproxime (Mc. 3:3; Lc. 6:8). Jesus pergunta a
seus adversários, “É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal?
Salvar a vida ou tirá-la?” (Mc. 3:4a; Lc. 6:9). Como eles ficaram sem
responder, Jesus os olhe com indignação, entristecido pela dureza de
seus corações (Mc. 3:4b, 5a). E prossegue, “Qual dentre vós será o
Marcos (William Hendriksen) 153
homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado, esta cair numa cova, não
fará todo o esforço, tirando-a dali? Ora, quanto mais vale um homem que
uma ovelha? Logo, é lícito, nos sábados, fazer o bem” (Mt. 12:11, 12).100
Jesus então lhe diz ao homem, “Estende a mão”. Tão completa foi a cura
que a mão (direita) ficou “sã como a outra” (Mt. 12:13). Seus
adversários estavam furiosos (Lc. 6:11). Quando abandonaram a
sinagoga (Mt. 12:14; Mc. 3:6), não só discutiram entre si o que deviam
fazer contra Jesus (Lc. 6:11b), mas também ficaram em contato com os
herodianos (Mc. 6:6a), para urdir um complô junto com eles. O
propósito era maligno: destruir a Jesus (Mt. 12:14; Mc. 3:6b).
Voltando para relato do texto de Marcos, lemos:
1. De novo, entrou Jesus na sinagoga e estava ali um homem
que tinha ressequida uma das mãos.
Não se informa onde estava localizada esta sinagoga. Tratava-se,
talvez, da que estava em Cafarnaum? Marcos e Lucas relatam esta
história em estreita relação com a da eleição dos Doze e a subida ao
monte (Mc. 3:13–19; Lc. 6:12–49). Este “monte” ou “colina” não estava
muito longe de Cafarnaum (Lc. 7:1; cf. Mt. 8:5), e, por isso, é bem
possível que se tratasse de uma sinagoga num lugar vizinho ao que Jesus
tinha como centro de atividades. Mas não podemos estar seguros.
Um homem com uma mão aleijada entra na sinagoga nesse sábado.
O Evangelho apócrifo segundo Hebreus diz que o homem era um
pedreiro, que solicitava de Jesus que lhe curasse para não ter que passar
sua vida mendigando. Seja como for, o ponto principal é que se trata de
um sábado. Naquele tempo havia diferenças de opinião entre os
discípulos de Shammai, que tinham uma interpretação muito estrita da
observância do sábado, e os de Hillel, cujo ponto de vista era mais
indulgente. Os mais rigorosos dominavam em Jerusalém, e os mais
tolerantes na Galileia. Não obstante, ambos os grupos apoiavam sem
100
Naturalmente que a resposta afirmativa à sua própria pergunta já estava implícita na própria
pergunta.
Marcos (William Hendriksen) 154
reserva a norma de que no sábado só se permitia curar se a vida de um
homem se achasse realmente em perigo. 101 Atrever-se-ia Jesus a opor-se
a esta regra que os fariseus consideravam como um princípio básico e
bem estabelecido que não devia violar-se?
É inútil especular sobre a causa que produziu a paralisação da mão
do homem. Há aqueles que pensam que a forma da palavra original
usada aqui em Mc. 3:1 (traduzida “seca” ou “paralisada”) indica que o
defeito da mão não era congênito, mas o resultado de uma enfermidade
ou acidente. 102 Isto talvez seja entrar em muitos detalhes. Poderia ser
assim, mas não se pode provar. Muito mais importante é o que segue no
versículo
2. E estavam observando a Jesus para ver se o curaria em dia
de sábado, a fim de o acusarem.
Em seu foro íntimo, os antagonistas desejavam que Jesus pisoteasse
esta norma com relação ao sábado Quais eram estes adversários?
Segundo Mateus 12:14 e Marcos 3:6 eram os fariseus; ao que Lucas
acrescenta “os escribas”. Olham a Jesus muito de perto e O observam
escrupulosamente com um propósito ímpio (veja-se também Lc. 14:1;
20:20). 103 Queriam ver se Jesus realmente curaria este homem no
sábado. Se assim o fizesse, eles estariam em condições de acusá-Lo por
realizar uma cura desnecessária nesse dia.
Jesus, entretanto, não se retrai do propósito de mostrar Sua bondade
a este homem:
3. E disse Jesus ao homem da mão ressequida: Vem para o
meio!
O Senhor toma claramente a iniciativa. Confronta-se todas as
maquinações secretas e dissimuladas que pudessem haver, e desafia a
101
Veja-se S. BK., Vol. I, pp. 622–629.
102
Assim, por exemplo, Swete, op. cit., p. 50; Robertson, Word Pictures, Vol. I, p. 275. Mas veja-se
Vincent Taylor, op cit., p. 221. A palavra ἐξηραμμένην é o particípio perf. passivo de ξηραίνω. Mt.
12:10 e Lc. 6:6 usam o adjetivo ξηρά. Mas também Marcos em 3:3.
103
Em data mais tardia, os judeus da cidade de Damasco vigiariam as portas da cidade “de dia e de
noite”, com os mesmos propósitos sinistros de impedir que Paulo escapasse (At. 9:24).
Marcos (William Hendriksen) 155
vigilância furtiva e os planos ocultos. Além disso, talvez desejava
despertar a compaixão da concorrência em favor daquela pessoa aleijada.
Assim que diz ao homem que se levante e fique onde todos possam vê-
lo.
4. Então, lhes perguntou: É lícito nos sábados fazer o bem ou
fazer o mal? Salvar a vida ou tirá-la?
Não eram os fariseus e os escribas os mesmos que sempre estavam
afirmando que eles sabiam o que era “permissível”, “lícito” e, portanto,
“justo”? Que deem então sua sábia opinião! Naturalmente que até uma
criança tivesse sabido qual devia ser a resposta a pergunta de Cristo. Se
for lícito fazer o bem — sobre isso veja-se também Lc. 6:9, 33, 35; 1Pe.
2:14, 15, 20; 3:6, 17; 4:19; 3Jo. 11 — qualquer dia comum da semana,
não tem que ser justo fazer o bem no sábado? Além disso, não sabiam
que o Antigo Testamento demandava e sublinhava que se devia fazer o
bem com relação a Deus (amá-Lo, servi-Lo e deleitar-se nEle) e com
relação ao próximo (alimentá-lo, vesti-lo e deixar de oprimi-lo)? E não
estava tudo isto num contexto de jejum e respeito ao sábado? Que
estranho resulta que aqueles críticos não lembrassem os claros e diáfanos
ensinos de Isaías 56:6; 58:6–14! Deus tinha insistido com Israel a usar o
sábado com o mesmo propósito com que Jesus o estava usando neste
momento e sempre. Não obstante, os que se supunham que eram peritos
na lei achavam falta nEle. Entretanto, Jesus foi ainda mais fundo e pôs
de manifesto a perversidade de Seus críticos de maneira inequívoca;
porque não só perguntou se no sábado estava permitido fazer o bem ou
salvar a vida, mas acrescentou, “… fazer o mal … matar?”
Evidentemente, se é impróprio fazer o mal ou matar nos outros seis dias
da semana, não será imensamente mais impróprio dedicar-se a essas
sinistras atividades no dia especificamente apartado para honrar a Deus e
mostrar misericórdia ao próximo? Não obstante, estes inimigos se
achavam precisamente ocupados em fazer o mal e matar naquele dia
santo! Com suas intenções já estavam danificando o Messias, ao enviado
pelo Pai. Estavam ocupados em planejar como matá-Lo! (veja-se o v. 6
Marcos (William Hendriksen) 156
como evidência; e cf. Mt. 5:21, 22; 1Jo. 3:15). Tomara que se tivessem
arrependido e confessado sua maldade naquele momento! Mas eles
ficaram em silêncio. 104
5. Olhando-os ao redor, indignado e condoído com a dureza do
seu coração, disse ao homem: Estende a mão.
Marcos entrega uma descrição muito vivaz. Escreve como se
estivesse relatando as próprias palavras pronunciadas por uma
testemunha ocular, coisa que era o que, sem dúvida, estava fazendo,
visto que Pedro foi testemunha ocular. 105
Marcos declara que a forma em que Jesus olhou aos Seus críticos
foi “indignado”. Quanto a esta palavra “indignação” ou “ira” veja-se Mt.
3:7; Lc. 3:7; 21:23, Jo. 3:36; e as muitas referências à ira divina nas
epístolas e no Apocalipse. De maneira similar, mais adiante Jesus Se
indignaria ao notar que os discípulos tentavam impedir que lhe
trouxessem os pequeninos, para que Ele os tocasse (Mc. 10:14).
Não faz falta assinalar que nada mau havia em tal indignação, ou
em tão intensa aversão e desaprovação. Na realidade só se trata de uma
consequência necessária do amor. Segundo o relato de Marcos 3, os
fariseus apreciavam mais o ritualismo de fabricação humana que o
cuidado que Deus quer que tenhamos para com o ser humano. É evidente
que para eles era mais importante a rígida aderência à uma regra rabínica
que a felicidade de uma criatura humana. Por outro lado, Jesus Se
condoía desta pessoa aleijada. Daí que estivesse terrivelmente indignado
com aqueles ritualistas de tão duro coração. Mas mesmo assim, Sua
104
Note-se o tempo imperfeito ἐσιώπων.
105
A expressão usada por Marcos, καὶ περιβλεψάμενος αὑτούς, literalmente diz: “e havendo olhado
em redor a eles”. Esta expressão parece-se à que se encontra em Mc. 3:34 e 10:23 e que em ambos os
casos refere-se à forma em que Jesus olhou aos Seus discípulos. Em Mc. 5:32 a referência é ao olhar
que dirigiu à multidão ao seu redor para ver quem Lhe havia tocado; e em Mc. 11:11 descreve-se a
Jesus como olhando ao redor a tudo o que havia no templo. No monte da transfiguração, os discípulos
“havendo olhado em redor” não viram ninguém com eles senão a Jesus somente (Mc. 9:8). Com a
exceção de Mc. 5:32 (o imperfeito), Marcos sempre usa o particípio aoristo. Além do Evangelho de
Marcos, esta palavra e a vívida referência ao olhar de Cristo se acham somente em Lc. 6:10a, onde
Lucas imita Marcos, de quem provavelmente tomou tais palavras.
Marcos (William Hendriksen) 157
indignação estava temperada pela tristeza: estava profundamente triste
pelo endurecimento de seu coração, quer dizer, por sua estupidez,
insensibilidade e obstinação espiritual (cf. Rm. 11:25; Ef. 4:18). Estamos
certos ao dizer que Jesus “se compadeceu” inclusive daqueles rígidos
tradicionalistas? (cf. Lc. 23:24). Como quer que seja, é significativo que
segundo os tempos verbais usados no original, o olhar de indignação foi
momentâneo, conquanto a profunda tristeza foi contínua e duradoura. 106
Um frio silêncio se estendeu entre as filas dos críticos. Contendo a
respiração, outros também observam, perguntando-se o que sucederá
agora. O ambiente da sinagoga está carregado de nervosismo e
expectação. O homem da mão “seca” ainda está ali, de pé, à vista de toda
a concorrência. Jesus está prestes a levar a cabo o milagre que a situação
requer. Deve agir agora, não mais tarde. Porque se espera até o dia
seguinte, sua conduta se interpretará como sinal de que Ele admite que é
mau realizar atos de cura em dias de sábado (com exceção dos casos de
vida ou morte). Semelhante demora teria aumentado o erro. Isto não
devia ocorrer. Aquele era o momento preciso. Assim que, depois de
olhar fixamente ao seu redor, Jesus disse ao homem aleijado, “Estende
(ou: estira) a mão”. Ele obedece imediatamente: Estendeu-a, e a mão
lhe foi restaurada. A cura foi instantânea e completa (cf. 1Rs. 13:6).
Não fez falta alguma outro tratamento nem exames médicos. De uma
forma que resulta muito misteriosa para a compreensão de qualquer
mortal, o Salvador tinha concentrado Sua mente na situação deste pobre
homem, e mediante Seu poder e compaixão tinha desejado e realizado a
cura; e isto não se fez “em algum canto escuro” mas à vista de todos os
presentes.
Que efeito teve isto sobre os legalistas? Resposta:
106
Vários expositores creem que Mateus e Lucas omitiram a frase “com indignação” porque não
desejavam atribuir esta emoção a Jesus. Mas uma explicação mais razoável da diferença entre Marcos
e os outros dois evangelistas poderia ser a seguinte: que o relato de Marcos é o resultado da pregação
entusiasta e emotiva de Simão Pedro, o que faz com que Marcos seja em muitos casos o mais
detalhado e animado.
Marcos (William Hendriksen) 158
6. Retirando-se os fariseus, conspiravam logo com os
herodianos, contra ele, em como lhe tirariam a vida.
Os fariseus não só abandonaram a sinagoga; fizeram-no mal-
humorados. Estavam furiosos (Lc. 6:11). O fato de que um aleijado
tivesse sido libertado de seu grave impedimento não lhes afetou no
mínimo que seja. Não se alegraram por este homem, nem lhes produziu
uma atitude amistosa para com Aquele que cura. O que os incomodou foi
que eles e seu tradicionalismo tivessem sofrido uma derrota humilhante
aos olhos de toda a concorrência. Que imensa diferença entre a
indignação de Cristo, totalmente desinteressado (Mc. 3:5) e seu
ressentimento totalmente egoísta! Além disso, como indica a palavra
“imediatamente”, aqueles homens não perderam tempo para planejar a
destruição de seu adversário. Imediatamente começaram suas intrigas,
escolhendo como sequazes — incrivelmente — os muito ímpios e
mundanos partidários de Herodes Antipas e sua família. Uma estranha
aliança entre os santarrões e os sacrílegos! (veja-se também 12:13 e Mt.
22:16).
107
Mas alguns dizem “cinco”, porque incluiriam Mc. 2:18–22.
Marcos (William Hendriksen) 160
doentes, endemoninhados e aleijados tinham recebido a bênção do poder
e o amor de Cristo para curar, resgatar e restaurar (veja-se Mc. 1:29–34,
39–42; 2:1–12; 3:1–6). Tudo isto teria que continuar (veja-se vv. 10–12).
As boas novas relativas ao que estava sucedendo na Galileia
continuavam chegando a outros lugares, tanto dentro da nação como fora
dela:
8. Quando ouviram a respeito de tudo o que ele estava fazendo,
muitas pessoas procedentes da Judeia, de Jerusalém, da Idumeia, das
regiões do outro lado do Jordão e dos arredores de Tiro e de Sidom foram
atrás dele [NVI].
Os informes seguiam chegando, porque Cristo seguia fazendo Sua
obra. Assim que as pessoas vinham em grande número e de vários
lugares diferentes. Vinham da Judeia, o que incluía Jerusalém e a parte
sul. Também vinham da fronteira sul da Palestina, quer dizer, da
Idumeia, a qual tinha sido conquistada por João Hircano e cuja
população tinha sido forçada “a observar as leis dos judeus” (Josefo,
Antiguidades XIII. 257). Vinham também da região que está ao leste, do
outro lado do Jordão (chamada Transjordânia ou Pereia), a qual se
estendia de além de Macaeros ao sul, quase até Pella ao norte, região
“em sua maior parte deserta e agreste”, mas misturada com “trechos de
muito bom solo apto para todo cultivo” (Josefo, Guerra judaica III. 44–
47. Com relação a isto veja-se também 10:1; e cf. Mt. 4:15, 25; 19:1; Jo.
1:28; 3:26; 10:40). Vieram inclusive da Fenícia, a região ao redor de
Tiro e Sidom, contígua ao mediterrâneo, a noroeste da Galileia (cf. Mc.
7:24, 31; veja-se também 1Cr. 14:1; 22:4; Sl 45:12; 83:7; 87:4; Mt.
11:21, 22; At. 21:3–7). As pessoas vinham a Cristo de todos os lugares,
principalmente por causa de seus ininterruptos milagres, pois muitos
buscavam cura para eles e/ou seus familiares.
A magnitude daquela multidão e o grande desejo da gente de
aproximar-se o bastante para O tocar, causaram um problema:
9, 10. Então, recomendou a seus discípulos que sempre lhe
tivessem pronto um barquinho, por causa da multidão, a fim de não
Marcos (William Hendriksen) 161
o comprimirem. Pois curava a muitos, de modo que todos os que
padeciam de qualquer enfermidade se arrojavam a ele para o tocar.
Jesus já tinha curado a muitos. Por isso as pessoas estavam
convencidas de Seu poder e boa disposição para os libertar de seus
“açoites” ou enfermidades (cf. Mc. 5:29, 34; Lc. 7:21; e veja-se o
reconfortante Hb. 12:6). Portanto, não queriam esperar que Jesus os
tocasse, e se amontoavam (literalmente “caíam”) sobre Ele a fim de O
tocar. Quanto ao significado de um ou outro tocar veja-se em Mc. 1:41;
cf. 5:27–31; 6:56.
Portanto, como medida de segurança, Jesus disse a Seus discípulos
que tivessem um barco preparado. O texto original usa um diminutivo.
Marcos faz uso frequente dos diminutivos (veja-se nota 5). Aquele usado
aqui se traduz geralmente como “barquinho”. Não obstante, tais
diminutivos de modo algum implicam sempre pequenez quanto a
tamanho, embora no caso presente o bote era provavelmente pequeno.
Mas o “barquinho” de Mc. 3:9 pôde ter sido da mesma dimensão que o
barco de Mc. 4:1. 108 Neste caso é difícil determinar se a ênfase recai no
tamanho ou na familiaridade com o objeto indicado. Seja como for, se
Jesus o estimava conveniente, podia fazer uso de um barco ancorado a
certa distância da margem. Deste modo, não apenas protegeria a Si
mesmo, mas também poderia falar sem impedimentos às grandes
multidões que havia na praia. Jesus diz aos Seus discípulos que tal barco
“devia estar preparado”109 para Ele, a fim de que pudesse usá-lo se e
108
Bem como o grego (incluindo também o grego moderno), o alemão, o holandês, o francês e o
português têm vocábulos diminutivos simples. O idioma inglês, porém, é pobre em tais expressões.
Em muitos casos um diminutivo composto soaria estranho. Compare-a palavra grega (tanto koinê
como moderna) πλοιάριον com a francesa nacelle; a alemã Schifflein; a sul-africana schuitjie; a frísia
skipke; e as holandesas scheepje, bootje, schuitje. Embora tais diminutivos às vezes indicam pequenez
física, em outros contextos a ênfase recai na familiaridade, no afeto e no carinho. Compare o
português “filhinho” que às vezes se usa ao dirigir-se à uma pessoa de um metro e oitenta! Assim
também “garotinha” com frequência indica mais afeto íntimo que tamanho. (cf. “mãezinha”, “vovó”,
etc.).
109
προσκαρτερῇ = pres. subjuntivo, 3a. pes. sing. de προσκαρτερέω. Neste contexto o significado de
“devia estar preparada” ou “devia estar sempre à ordem” é bastante clara. Há uma grande diferença de
Marcos (William Hendriksen) 162
quando fosse necessário. Não se indica se o Senhor realmente chegou a
fazer uso do barquinho naquele caso, como o teria que fazer em Mc. 4:1.
A passagem a respeito deste “barquinho” não deve ser descartada
como se fosse algo que não tem significado prático, como se faz com
frequência. Pelo contrário, é extremamente prático. Mostra-nos que Jesus
não só era divino, mas também humano. Em seu estado de humilhação
fez um uso prudente das precauções e medidas de segurança contra
possíveis perigos. Ao fazer isto, não nos está ensinando uma lição que
todos faríamos muito bem em atender? Nem sempre se dá a importância
devida a este ensino. Pense-se, por exemplo, no estudante que se está
preparando para o ministério, mas que descuida o estudo das Escrituras
nos idiomas originais; ou no futuro e entusiasta “missionário” que prega
o evangelho em sua própria língua nativa num recanto muito transitado
de um país estrangeiro, o povo que não entende nem uma palavra do que
diz; ou num homem que não se cuida da previsão médica nem para ele
nem para sua família, porque (segundo ele) “confia totalmente em
Deus”. Por certo que não se deve sublinhar Mt. 6:19–34; Fp. 2:13; 4:6, 7,
às custas de Gn. 41:33–36; Is. 38:21; Mt. 4:7; 10:16, 23; Mc. 3:9; Lc.
14:28–32; 16:8, 9; Fp. 2:12. Quando Deus criou o corpo humano, dotou-
o de muitas defesas adicionais! No caso particular ao que se refere
Marcos 3:9, é bem possível que o mencionado barquinho não se
utilizasse. O importante é que estava ali, preparada e disponível. Aquele
barquinho nos ensina uma grande lição!
Jesus não só curou a toda aquela gente doente, mas também
expulsou demônios:
11. Também os espíritos imundos, 110 quando o viam,
prostravam-se diante dele e exclamavam: Tu és o Filho de Deus!
opinião com relação ao significado do mesmo verbo em outras passagens do Novo Testamento (At.
1:14; 2:42, 46; 6:4; 8:13; 10:7; Rm. 12:12; 13:6; Cl. 4:2), segundo se torna evidente quando se
consulta léxicos e comentários.
110
A descrição é muito gráfica. Note-se como ὅταν vem seguido pelo imperfeito ἐθεώρουν na cláusula
subordinada, indicando aqui repetição. Os verbos da cláusula principal também estão em tempo
imperfeito: “estavam (ou: seguiam) caindo” e “estavam (ou: seguiam) gritando”.
Marcos (William Hendriksen) 163
Referente à possessão demoníaca veja-se Mc. 1:23a. Estes espíritos
eram chamados “imundos” porque moral e espiritualmente são sujos,
ímpios por si só, e porque impulsionam aqueles em quem habitam a
cometer pecado. Diz-se aqui que os possessos pelos demônios caíam e
gritavam aos pés de Jesus. Não vale a pena dar resposta à opinião de que
quando os espíritos gritavam “Tu és o Filho de Deus”, usavam o termo
“Filho de Deus” no sentido de anjo (Gn. 6:2), ou Israel (Os. 11:1), ou
crente (Rm. 8:17). Evidentemente, ao gritar “Tu és o Filho de Deus”,
referiam-se a Jesus como Filho de Deus num sentido único, Filho de
Deus como ninguém jamais foi nem o será (cf. Mc. 1:24). Também se
deve rejeitar a ideia de que este ponto não é histórico, mas sim é
meramente uma expressão da teologia de Marcos.
12. Mas Jesus lhes advertia severamente que o não expusessem
à publicidade.
Mais literalmente, “Mas ele seguia lhes advertindo (ou: lhes
encarregando) 111 estritamente que não lhe dessem a conhecer”. Qual foi
exatamente a razão pela qual Jesus não permitiu aos demônios que
revelassem Sua identidade? Sugeriram-se várias respostas a respeito:
1. A pessoa e a obra do Salvador são tão santas e sublimes que não
seria próprio permitir a demônios depravados e sujos que as proclamem.
2. O título “Filho de Deus” implica ao menos que Jesus era o
Messias tão longamente esperado. Entretanto, a maioria do povo
concebia a pessoa do Messias num sentido nacionalista: Alguém que os
livraria do jugo opressor dos estrangeiros. De modo que, antes de
revelar-se publicamente como Messias ou de permitir que O
proclamassem em tal sentido, Jesus devia deixar claro primeiro a
natureza de Seu ofício Messiânico, quer dizer, o fato de que era
necessário que sofresse e morresse pelos pecados do Seu povo, etc. A
111
Note-se ἐπετίμα de ἐπιτιμάω. Aqui advertir; com μή: advertir que não; em consequência, proibir.
Frequentemente este verbo tem o significado de repreender (Mc. 1:25; 4:39; 8:32; etc.). Basicamente
o significado é adjudicar uma τιμή (pena) ἐπί (sobre). A palavra πολλά usa-se aqui como advérbio.
Veja-se também em Mc. 9:26.
Marcos (William Hendriksen) 164
hora para proclamar isto publicamente, ou para deixar que o
proclamassem, ainda não tinha chegado.
3. Os escribas diziam ao povo que Jesus e os demônios eram
aliados (Mc. 3:22). Portanto, se Jesus permitia aos demônios que O
proclamassem, não pareceria que Ele mesmo estava confirmando as
acusações destes escribas?
Qual destas explicações é a correta? Ou que combinação de
explicações? Ou talvez há outra? Simplesmente não o sabemos. As
possíveis explicações que se enumeraram mostram ao menos que não
devemos nos surpreender pela resistência de Cristo a que os demônios O
proclamassem “Filho de Deus”.
112
Assim também Lenski (“naturalmente, um monte concreto”) e esta ou outra tradução muito
semelhante em LT, BP (“montanha”), CB, CI, BJ, NC (“monte”), etc.
113
Embora não estejamos de acordo com aqueles expositores que atribuem um significado intensivo
ou enfático a αὑτός (“ele mesmo”), continua sendo verdade que os que tomaram a iniciativa não foram
os discípulos, mas sim Jesus.
Marcos (William Hendriksen) 166
É evidente que Marcos faz aqui um resumo. O conteúdo inteiro da
comissão acha-se em Mateus 10: trata-se da Comissão aos Doze, que
deve datar-se um pouco mais tarde. Estes doze discípulos, com toda
segurança deveriam estar na companhia de Cristo durante uma
temporada antes de que este os enviasse a proclamar as boas novas a
outros. Segundo o relato de Marcos, a tarefa para a qual Jesus designou
(cf. 1Rs. 12:31; At. 2:36; Hb. 3:2) a estes homens foi tríplice: associação
e educação, missão, e expulsão de demônios. Mateus acrescenta um
quarto ponto.
Associação e Educação. Designou-os, em primeiro lugar, para estar
uma temporada com seu Mestre, vendo-O e ouvindo-O, e aprendendo
tudo o que quis lhes ensinar. Para eles, tal relação significava uma
educação espiritual.
Missão. Em segundo lugar, e em estreita relação com o precedente,
a nomeação foi para ser arautos; quer dizer, para pregar. Os que recebem
devem transformar-se em doadores. Os discípulos devem converter-se
em apóstolos. Têm que promulgar a mensagem de salvação por meio de
Jesus Cristo. Num sentido foram investidos com Sua autoridade. Tão
real foi esta autoridade que Jesus chegou a dizer: “Quem vos recebe a
mim me recebe; e quem me recebe recebe aquele que me enviou” (Mt.
10:40). Cf. Mc. 6:11; Jo. 20:21–23. Primeiro foram enviados às ovelhas
perdidas da casa de Israel (Mt. 10:5, 6); logo, a todas as nações (Mt.
28:19), e a todo mundo (Mc. 16:15).
Expulsão de demônios. Em terceiro lugar, Jesus lhes designou para
114
ter autoridade (o direito e o poder) para expulsar demônios. Referente
à possessão demoníaca, veja-se Mc. 1:23.
Restabelecimento do corpo — tanto a cura como a ressurreição —
estavam incluídas, conforme vemos em Mateus 10:8.
114
Não é uma grande diferença que aqui se use o infinitivo (ἔχειν) em lugar de uma cláusula com ἵνα,
como ocorre nas duas orações precedentes.
Marcos (William Hendriksen) 167
16–19. Eis os doze que designou: Simão, a quem acrescentou o
nome de Pedro; Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, aos quais
deu o nome de Boanerges, que quer dizer: filhos do trovão; André,
Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu,
Simão, o Zelote, e Judas Iscariotes, que foi quem o traiu.
O próprio mesmo de que Jesus designasse exatamente doze
homens, nem mais nem menos, indica que tinha em mente o novo Israel,
porque o antigo Israel também tinha doze tribos e doze patriarcas. O
novo Israel ia ser formado com pessoas reunidas dentre todas as nações,
judeus e gentios (cf. Mt. 8:10–12; 16:18; 28:19 Mc. 12:9; 16:15, 16; Lc.
4:25–27; Jo. 3:16; 10:16; Ap. 21:12, 14).
A lista dos nomes dos Doze acha-se quatro vezes no Novo
Testamento (Mt. 10:2–4; Mc. 3:16–19; Lc. 6:14–16; At. 1:13, 26). Em
Atos 1:15–26 é relatada a forma em que Judas Iscariotes foi substituído
por Matias. Com esta exceção, os doze nomes indicam indubitavelmente
as mesmas pessoas em cada uma destas quatro listas.
Com relação às três listas consignadas nos Sinóticos, observe-se o
seguinte: Teoricamente, se os doze nomes forem considerados como se
em cada lista se tratasse de três grupos de quatro, os que se mencionam
são os mesmos em cada grupo. Entretanto, nem sempre estão ordenados
em idêntica sequência. Diferente de Mateus e Lucas, no primeiro grupo
de quatro, Marcos separa os nomes dos dois irmãos Simão (= Pedro) e
André. A ordem de Marcos é: Simão, Tiago, João e André. O de Mateus
e Lucas é: Simão, André, Tiago e João. No segundo grupo a ordem de
Lucas coincide com a de Marcos: Filipe, Bartolomeu, Mateus e Tomé.
Neste grupo Mateus coloca Tomé antes que seu próprio nome: Filipe,
Bartolomeu, Tomé e Mateus. No grupo final, a ordem de Mateus é a
mesma que a de Marcos: Tiago filho de Alfeu, Tadeu, Simão o zelote, e
Judas Iscariotes. Aqui Lucas, invertendo a ordem dos dois do centro,
tem: Tiago filho de Alfeu, Simão, o Zelote, Judas o (filho) de Tiago —
este Judas deve referir-se a Tadeu — e Judas Iscariotes.
Marcos (William Hendriksen) 168
Observe-se que Marcos não ordena os doze nomes em pares, como
o faz Mateus. Menciona-os todos numa lista ininterrupta. Não está muito
claro por que razão separou Marcos os nomes dos dois irmãos, Simão e
André. Sugestões: Talvez os nomes de Simão, Tiago e João mencionam-
se em imediata sucessão porque com frequência Jesus os escolheu
justamente a eles, e não o resto, para que O acompanhassem. Ou talvez
menciona a André em imediata relação com Filipe, porque entre eles
existia uma estreita relação (veja-se Jo. 12:21, 22). Ou separou os nomes
dos dois irmãos Simão e André, a fim de indicar que na família de Cristo
a relação espiritual era ainda mais importante que a física (veja-se este
mesmo capítulo, Mc. 3:31–35). Mas a verdade é que não sabemos por
que Marcos separou os nomes destes dois irmãos.
Seguindo a ordem de Marcos, digamos algo quanto a cada um dos
Doze:
Simão. Era filho de Jonas ou João. Era pescador de ofício, e com
seu irmão André viveu primeiro em Betsaida (Jo. 1:44) e depois em
Cafarnaum (Mc. 1:21, 29). Tanto Marcos como Lucas informam que foi
Jesus quem deu a Simão o novo nome de Pedro (para outros detalhes de
este fato veja-se Jo. 1:42). Este novo nome significa rocha, e não tem o
fim de descrever o que Simão era no momento em que foi chamado,
antes, fala do que pela graça devia vir a ser. No princípio e por algum
tempo, Simão foi tudo menos um modelo de estabilidade ou de
imperturbabilidade. Pelo contrário, Pedro sempre oscilava entre uma
posição e outra totalmente oposta. Mudava da confiança à dúvida (Mt.
14:28, 30); de confessar com toda segurança de que Jesus é o Cristo, a
repreender ao próprio Cristo (Mt. 16:16, 22); da veemente declaração de
lealdade, à negação abjeta (Mt. 26:33–35, 69–75; Mc. 14:29–31, 66–72;
Lc. 22:33, 54–62); de um “Não me lavarás os pés jamais”, a um “não só
meus pés, mas também as mãos e a cabeça” (Jo. 13:8, 9; veja-se também
Jo. 20:4, 6; Gl 2:11, 12). Não obstante, pela graça e o poder do Senhor,
Simão, o inconstante foi transformado num verdadeiro Pedro. Referente
ao papel de Pedro na igreja depois da ressurreição, veja-se CNT sobre
Marcos (William Hendriksen) 169
Mt. 16:13–20. Em consequência, quando nesta anterior data — porque
aqui Marcos reflete João 1:42 — Jesus deu a Simão seu novo nome, Ele
o fazia como um ato de amor, de um amor desejoso de passar por alto o
presente e inclusive o futuro próximo, e de olhar a um futuro longínquo.
Que maravilhosa e transformadora é a graça de nosso Senhor!
A tradição atribui a Pedro a autoria de dois livros do Novo
Testamento: 1 e 2 Pedro.
Como dissemos na Introdução, não em vão Marcos foi chamado “o
intérprete de Pedro”.
Tiago, filho de Zebedeu, e João, irmão de Tiago. Marcos menciona
estes dois pescadores não só aqui e em Mc. 1:19, 20 (veja-se sobre essa
passagem), mas também mais adiante (Mc. 9:2; cf. 10:35–45). Também
há várias referências a eles nos outros Evangelhos. Provavelmente,
devido à sua natureza impetuosa, Jesus chamou estes dois irmãos de
Boanerges. Esta é uma palavra aramaica que Marcos, que é o único
evangelista que a registra, a traduz para seus leitores não judeus como
“filhos do trovão”. O nome hebraico seria benē reghesh. 115 O fato de que
ambos tivessem realmente uma natureza impetuosa talvez se possa
inferir de Lucas 9:54–56 (cf. Mc. 9:38). Tiago foi o primeiro dos Doze
em cingir a coroa de mártir (At. 12:2). Conquanto ele foi o primeiro em
chegar ao céu, seu irmão João com toda probabilidade foi o último que
ficou na terra. Com relação à vida e caráter de João, considerado por
muitos (creio que corretamente) como “o discípulo a quem Jesus amava”
(Jo. 13:23; 19:26; 20:2; 21:7, 20) veja-se CNT, Evangelho de São João,
pp. 19–22. A tradição atribui a João cinco livros do Novo Testamento:
seu Evangelho, três epístolas (1, 2, 3 João), e o livro do Apocalipse.
André. Este também era pescador, e levou o seu irmão Pedro a
Jesus (veja-se CNT sobre Jo. 1:41, 42). Quanto a outras referências sobre
André veja-se mais acima em Mc. 1:16, 17, 29; estude-se também
115
Todavía no se soluciona el enigma con respecto a las vocales en Boa, como parte de la expresión
Boanerges.
Marcos (William Hendriksen) 170
Marcos 13:3; João 6:8, 9; 12:22. Veja-se também a declaração a seguir a
respeito de Filipe.
Filipe. Foi, ao menos por um tempo, concidadão de Pedro e André,
quer dizer, também era de Betsaida. Depois de responder à chamada de
Jesus, achou Natanael, e lhe disse: “Achamos aquele de quem Moisés
escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas: Jesus, o Nazareno,
filho de José” (Jo. 1:45). Quando Jesus ia alimentar os cinco mil,
perguntou a Filipe, “Onde compraremos pães para lhes dar a comer?”.
Filipe respondeu-lhe: “Não lhes bastariam duzentos denários de pão,
para receber cada um o seu pedaço” (Jn. 6:5, 7). Aparentemente, Filipe
esquecia que o poder de Jesus ultrapassava toda possibilidade de cálculo.
Extrair deste incidente a conclusão de que Filipe era uma classe de
pessoa mais fria e calculista que os outros apóstolos, seria basear muito
em muito pouco. Em geral Filipe aparece nos Evangelhos sob uma luz
favorável. Assim, quando os gregos se aproximam dele com o pedido,
“Senhor, queremos ver a Jesus” (Jo. 12:21, 22), ele foi e o disse a André,
e ambos (André e Filipe) levaram o pedido a Jesus. Deve admitir-se que
Filipe nem sempre entendeu imediatamente o significado das palavras
profundas de Cristo — os outros as entenderam? — mas a seu favor deve
dizer-se que com perfeita sinceridade manifestou sua ignorância e pediu
maior informação, o que se vê também em João 14:8, “Senhor, mostra-
nos o Pai, e isso nos basta”; ao que recebeu a bela e reconfortante
resposta: “…Quem me vê a mim vê o Pai” (Jo. 14:9).
Bartolomeu significa “filho de Tolmai”. Este é claramente o
Natanael do Evangelho de João (Jo. 1:45–49; 21:2). Foi ele quem disse a
Filipe, “De Nazaré pode vir algo bom?” Filipe lhe respondeu, “Vem e
vê”. Quando Jesus viu Natanael aproximando-se, disse, “Eis aqui um
verdadeiro israelita, em quem não há dolo”. Este discípulo-apóstolo era
uma das sete pessoas a quem o Cristo ressuscitado apareceu perto do mar
de Tiberíades. Dos outros seis só se menciona Simão Pedro, Tomé e os
filhos de Zebedeu.
Marcos (William Hendriksen) 171
Mateus. A respeito deste discípulo já comentamos de forma
detalhada (veja-se mais acima em Mc. 2:14–17).
Tomé. As referências com relação a este apóstolo se combinam para
indicar que a característica deste homem era o desânimo e a devoção.
Sempre o embargava o temor de perder o seu amado Mestre. Esperava o
mal e lhe era difícil crer nas boas notícias quando estas lhe chegavam.
Não obstante, com toda sua ternura e condescendente amor, o Salvador
apresentou-Se diante de Tomé depois da ressurreição, e foi Tomé quem
exclamou: “Senhor meu e Deus meu!” Para mais informação a respeito
de Tomé, veja-se CNT sobre João 11:16; 14:5; 20:24–28; 21:2.
Tiago, filho de Alfeu. Marcos (15:40) chama-o “Tiago, o menor”, o
que segundo a interpretação de alguns significa “Tiago, o pequeno em
estatura”. Não temos mais informação positiva a respeito dele. É
provável, entretanto, que fosse o mesmo discípulo ao que se refere Mt.
27:56; Mc. 16:1; e Lc. 24:10. Se isto é correto, o nome de sua mãe seria
Maria, uma das mulheres que acompanharam a Jesus e que se achavam
perto da cruz. (veja-se CNT sobre Jo. 19:25). Já se mostrou que o Alfeu,
que era pai de Mateus, provavelmente não deveria ser identificado com o
Alfeu, pai de Tiago, o menor (veja-se mais acima em 2:14).
Tadeu (chamado Lebeu em certos manuscritos de Mt. 10:3 e Mc.
3:18) com toda probabilidade é “Judas, não o Iscariotes” de Jo. 14:22
(veja-se sobre essa passagem; cf. At. 1:13). João 14 pareceria dizer que
seu desejo era que Jesus Se mostrasse ao mundo, significando
provavelmente: apresentar-Se em público.
Simón, Zelote. “Zelote” é um apelido aramaico que significa
fanático. Na realidade, Lucas também o chama “Simão, Zelote” (Lc.
6:15; At. 1:13). Com toda probabilidade é-lhe dado este nome aqui
porque tinha pertencido anteriormente ao partido dos zelotes, partido que
em seu ódio contra os governantes estrangeiros, que exigiam tributos,
não cessava de fomentar a rebelião contra o governo romano (veja-se
Josefo: Guerra Judaica II. 117, 118; Antiguidades XVIII. 1–10, 23. Cf.
At. 5:37).
Marcos (William Hendriksen) 172
Judas Iscariotes. Geralmente este nome se interpreta com o
significado de “Judas o homem de Queriote — ” lugar ao sul da Judeia.
(Alguns, entretanto, preferem a interpretação, “o homem da adaga”). Os
Evangelhos se referem a ele muitas vezes (Mt. 26:14, 25, 47; 27:3; Mc.
14:10, 43; Lc. 22:3, 47, 48; Jo. 6:71; 12:4; 13:2, 26, 29; 18:2–5). Às
vezes é descrito como “Judas, aquele que o traiu”, “Judas, um dos
Doze”, “o traidor”, “Judas, filho de Simão Iscariotes”, “Judas Iscariotes,
filho de Simão”, ou simplesmente “Judas”. Este homem, embora
totalmente responsável por seus próprios atos ímpios, foi instrumento do
diabo (Jo. 6:70, 71). As pessoas que não estavam de acordo com os
ensinamentos de Cristo, simplesmente se separavam do Senhor (Jo.
6:66), mas Judas permaneceu como se estivesse perfeitamente em
harmonia com Jesus. Era uma pessoa egoísta em sumo grau e não pôde
— ou, diremos melhor, não quis? — entender o gesto generoso e belo de
Maria de Betânia quando ungiu a Jesus (Jo. 12:1ss.). Era incapaz de
entender que a linguagem fundamental do amor é a generosidade.
Foi o diabo quem instigou Judas a trair a Jesus, quer dizer,
impulsionou-o a entregá-Lo em mãos do inimigo. Era ladrão; entretanto
foi a ele a quem foi confiada a bolsa do pequeno grupo, com resultado
previsível (Jo. 12:6). Pintores como Leonardo da Vinci registraram o
momento dramático da instituição da Ceia do Senhor (Mt. 26:20–25; Jo.
13:21–30) quando Jesus surpreendeu os Doze, dizendo: “Um de vós há
de me trair”. Embora Judas já tinha recebido dos principais sacerdotes as
trinta moedas de prata como recompensa pelo ato que tinha prometido
realizar (Mt. 26:14–16; Mc. 14:10, 11), teve a incrível audácia de dizer,
“Sou eu, Mestre?” Judas serviu de guia ao destacamento de soldados e à
equipe armada da polícia do templo que prenderam Jesus no jardim do
Getsêmani. Mediante um pérfido beijo dado ao seu Mestre, simulando
que ainda era um discípulo leal, este traidor apontou à polícia quem era
Jesus (Mt. 26:49, 50; Mc. 14:43–45; Lc. 22:47, 48). Quanto à forma em
que Judas se suicidou, veja-se sobre Mt. 27:3–5; e cf. At 1:18. Qual foi a
causa de que este discípulo privilegiado chegasse a ser o traidor de
Marcos (William Hendriksen) 173
Cristo? Foi acaso o orgulho ferido, a ambição frustrada, a profunda
cobiça, o temor de ser expulso da sinagoga (Jo. 9:22)? Sem dúvida
alguma, todas estas razões se achavam incluídas, mas não poderia ser a
razão fundamental o fato de que entre o coração totalmente egoísta de
Judas e o coração imensamente generoso de Jesus existia um abismo
imenso? Isto significaria que, ou Judas devia implorar ao Senhor que lhe
outorgasse a graça da regeneração e a renovação total, petição que o
traidor impiamente recusou fazer, ou devia oferecer sua cooperação para
desfazer-se de Jesus (vejam-se também Lc. 22:22; At. 2:23; 4:28). Uma
coisa é certa: A espantosa tragédia da vida de Judas é prova, não da
impotência de Cristo, mas da impenitência do traidor! Ai daquele
homem!
O que realça a grandeza de Jesus é que Ele tomou esta classe de
homens e os fundiu numa comunidade de surpreendente influência, que
não só demonstraria ser um valioso elo com o passado de Israel, mas
também o fundamento sólido do futuro da igreja. Sim, o Senhor realizou
um milagre múltiplo nestes homens, com todas suas falhas e fraquezas.
Mesmo quando prescindamos de Judas Iscariotes e nos concentremos
nos outros, impressiona-nos a majestade do Salvador, cujo magnético
poder, incomparável sabedoria, e inigualável amor eram tão
surpreendentes que foi capaz de reunir ao Seu redor, e unir numa família,
a homens de ambientes e temperamentos completamente diferentes, e às
vezes até opostos. Incluído neste pequeno grupo estava Pedro, o otimista
(Mt. 14:28; 26:33, 35), e também Tomé, o pessimista (Jo. 11:16; 20:24,
25); Simão, o ex-zelote que odiava os impostos e desejava derrocar o
governo romano, e também Mateus, que voluntariamente ofereceu seus
serviços como coletor de impostos ao próprio governo romano; Pedro,
João, e Mateus, destinados a adquirir renome através de seu escritos, e
também Tiago, o menor, que permanece nas sombras apesar de que
também ele cumpriu sua missão.
Jesus os atraiu com os laços de Sua ternura e inefável compaixão.
Amou-os ao máximo (Jo. 13:1), e na noite antes de ser traído e
Marcos (William Hendriksen) 174
crucificado encomendou-os ao Pai, dizendo: “Manifestei o teu nome aos
homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm
guardado a tua palavra … Pai santo, guarda-os em teu nome, que me
deste, para que eles sejam um, assim como nós … Não peço que os tires
do mundo, e sim que os guardes do mal. Eles não são do mundo, como
também eu não sou. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.
Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. E
a favor deles eu me santifico a mim mesmo, para que eles também sejam
santificados na verdade” (Jo. 17:6–19, em parte).
116
Marcos ha tomado algunas frases del Sermón del Monte y las ha esparcido por su evangelio:
Marcos cf. Mateo Marcos cf. Mateo
1:22 7:28, 29 9:43–47 5:29, 30
4:21 5:15 10:4 5:31
4:24 7:2 10:21 6:20
7:22 6:23 11:24 7:7
9:38 7:22 11:25 6:14
Marcos (William Hendriksen) 175
que passou antes, em Mc. 2:1–3:9. Marcos já relatou que a hostilidade
das autoridades religiosas tinha avançado até o ponto de planejar a morte
de Jesus (Mc. 3:6). Por outro lado, Jesus tinha estabelecido o
fundamento da igreja em sua manifestação neotestamentária mediante a
chamada dos Doze (cf. Mt. 16:18, 19; Ap. 21:14). Mas agora se adiciona
algo mais à aflição do Varão de dores. Já não é só que Seus inimigos (os
fariseus e escribas) incomodem-No, mas agora também Seus “amigos”
começam a Lhe causar dificuldades.
No sentido já explicado (veja-se Mc. 2:1), Jesus Se achava de novo
“em casa”, em Cafarnaum, seu quartel general. E tal como numa ocasião
anterior a multidão era tão grande que a entrada estava bloqueada (Mc.
2:4; cf. Mc. 1:33), assim também agora a multidão era tão enorme que
Jesus e Seus discípulos — observe-se “eles” — eram impedidos
inclusive de poder comer. 117
Resultado: 21. E, quando os parentes 118 de Jesus ouviram isto,
saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si. Quais eram
aquelas pessoas que pensaram que Jesus tinha perdido o juízo 119 e que,
portanto, queriam pô-Lo sob seu cuidado protetor? 120 A frase utilizada
no original para descrevê-los 121 é um tanto ambígua.
117
Literalmente: “comer pão”. Mas esta expressão foi-se desenvolvendo até tomar um significado
mais geral: “comer, comer uma comida”. Veja-se a LXX sobre Gn. 37:25; 2Sm. (= 2 Reis) 12:20; e
quanto ao Novo Testamento, cf. Mc. 7:2; Lc. 14:1.
118
Ou: os que estavam associados com ele. Veja-se o comentário.
119
O aoristo ἐξέστη pode ser considerado como atemporal.
120
κρατῆσαι aor. infin. de κρατέω. Este verbo é usado também com relação à detenção de João Batista
ordenada por Herodes (Mt. 14:3; Mc. 6:17); para o intento das autoridades religiosas de lançar mão
em Jesus (Mt. 21:46; 26:4; Mc. 12:12; 14:1); para a detenção em si de Jesus (Mt. 26:48, 50, 55, 57;
Mc. 14:44, 46, 51); para prender a Paulo (At. 24:6) e ao dragão (Ap. 20:2). Num sentido mais geral,
pode significar agarrar ou lançar mão a (uma ovelha com o fim de resgatá-la, Mt. 12:11; a um
devedor, com propósitos maus, 18:28; aos pés de Jesus, 28:9). Às vezes significa tomar da mão (num
contexto de cura, Mt. 9:25; Mc. 1:31; 9:27; ou aponta à restauração da vida. Mc. 5:41). Outros usos
gerais são: obter, sujeitar, apoiar, ter em mente, refrear, reter. Com uma variedade tão ampla de
significados a importância do contexto particular é evidente. No caso presente o significado
provavelmente é: mediante uma forte persuasão tomar a Jesus sob custódia protetora. Deve-se ter em
mente que os que desejavam fazer isto eram “amigos”, não inimigos.
121
σἱ παρ αὑτοῦ
Marcos (William Hendriksen) 176
Significa basicamente “os que estão do seu lado”. Aqueles que
favorecem a teoria de que se trata da família imediata de Jesus (quer
dizer, sua mãe Maria e seus irmãos), 122 afirmam que se deve levar em
conta as seguintes considerações:
a. A frase “os que estão do seu lado” significa “família” (pais e
outros parentes) em Provérbios 21:21 e numa passagem do escrito
apócrifo da Susana 33 (veja-se o contexto, v. 30).
b. João 7:5 diz: “Nem mesmo os seus irmãos criam nele (Jesus)”.
c. Em Marcos o contexto (os vv. 31–35), menciona “a mãe de Jesus
e seus irmãos”.
d. O ambiente de tensão no parágrafo final do capítulo é melhor
explicado supondo que foi a família imediata de Jesus a que originou —
ou ao menos deu crédito à opinião de que “está fora de si”.
Considerações como estas fazem com que em Marcos 3:21 algumas
traduções leiam “parentes” (RA, TB, BJ, NVI, CI) ou “familiares” (BP).
Por certo, a frase usada no original às vezes tem este significado, como
já se fez notar mais acima.
Embora a maioria das versões em português tenham adotado a
tradução “familiares”, ou “parentes”, algumas versões inglesas preferem
“amigos” (AV, ARV, RSV, Living Bible, R. Young). F.C. Grant 123
afirma: “A melhor tradução é provavelmente seus amigos”.
Mas qual seja a opinião que se tenha sobre a tradução “familiares”
ou “parentes”, parece que não é seguro concluir que a passagem (Mc.
3:21) tem que interpretar-se como se Maria e os irmãos de Jesus foram
os que chamaram Jesus de demente. Com relação aos argumentos usados
para apoiar esta teoria (veja-se a.-d. mais acima), observe-se o seguinte:
A respeito de a. É certo, mas também tem outros significados. Em 1
Macabeus 9:44; 11:73; 12:27; 13:52; 15:15 o significado é
122
Veja-se Vincent Taylor, op. cit., pp. 235–237; C. R. Erdman, op. cit., p. 65; H. B. Swete, op. cit., p.
63; M. H. Bolkestein, Het Evangelie naar Marcus, Nijkerk, 1966, pp. 88, 89; e muitos outros.
123
The Gospel according to St. Mark (The Interpreter’s Bible), Nova York e Nashville, 1951, Vol.
VII, p. 689.
Marcos (William Hendriksen) 177
provavelmente “seus homens”, “seus enviados”, “sua companhia”, “seus
aderentes ou seguidores”. Josefo, Antiguidades I. 193 reflete Gênesis
17:27, onde estão incluídos muitos mais que os que pertenciam à família
mais imediata de Abraão. Nos papiros, a expressão usada no original
também tem muitos significados diferentes, em concordância com o
contexto específico de cada caso individual (veja-se F. Field, Notes on
the Translation of the New Testament, Cambridge, 1899, p. 25. A
palavra pode significar vizinhos, agentes, amigos, etc.).
A respeito de b. É verdade que João 7:5 ensina que até os irmãos de
Jesus “não criam nele”, mas o contexto mostra claramente que eles não
O consideravam mentalmente desequilibrado. Teriam dito a Jesus
“Mostre-te ao mundo”, se o tivessem tido por louco? Se estes irmãos
estavam ou não incluídos em Jo. 3:21, não o sabemos. João 7:5 não é
prova de que o estavam.
A respeito de c. “Embora as palavras … ‘os seus’ podem significar
‘sua família’, é duvidoso que Marcos tivesse querido anunciar o
versículo 31 desta forma” (F. C. Grant). Não é de confiança a teoria que
afirma que os versículos 31–35 resumem a história começada no
versículo 21. Indubitavelmente que existe uma relação entre os
versículos 20–30, por um lado, e os versículos 31–35, por outro. Mas
essa relação é provavelmente de um caráter diferente. Vejam-se os vv.
31–35.
A respeito de d. Este ponto tem que ver tanto com os irmãos de
Jesus como com sua mãe. Referente aos irmãos, veja-se mais acima o
dito “a respeito de b.” Com relação a Maria: mesmo quando é verdade
que ela às vezes cometeu erros e que suas críticas e intentos de interferir-
nos planos de Cristo foram reprovados com firmeza (veja-se Lc. 2:49;
Jo. 2:4; e assim provavelmente também Mc. 3:31–35), entretanto não
temos razões para duvidar que a relação entre Maria e Jesus não fosse
sempre de ternura e respeito recíproco (Lc. 2:51; Jo. 2:5; 19:26, 27).
Deus revelou a Maria o que ocorreria com seu “filho primogênito” (veja-
se mais abaixo nos vv. 33–35), e não existe razão para crer que a fé que
Marcos (William Hendriksen) 178
Maria tinha nessa revelação desaparecesse até ao ponto de chegar a
considerar Jesus demente. São os que pensam de outro modo os que
devem provar que o assunto era de outra maneira. 124
Quais foram, então, aqueles “amigos” ou “associados” convencidos
de que Jesus tinha perdido o juízo? Simplesmente não o sabemos!
Puderam ter sido pessoas com quem Jesus foi criado em Nazaré,
incluindo possivelmente alguns parentes. Ou puderam ter sido “pessoas
com boa disposição para com Jesus, um círculo de discípulos um pouco
mais amplo”. 125 Muitas passagens mostram que houve um grupo assim e
que provavelmente incluía um grande número de pessoas (cf. Mt. 11:12;
Mc. 12:34; 14:3, 12–16, 51, 52; 15:43; Lc. 6:13, 17; 10:1; 23:50–56).
Qual pôde ter sido a razão para que estes “amigos”, “associados”,
ou “seguidores” considerassem que Jesus tinha chegado à demência? Há
muitas explicações que surgem espontaneamente.
Poderiam ter pensado: “Às vezes o Mestre age de forma muito
estranha; por exemplo, naquela vez quando todos os de Cafarnaum
desejavam que voltasse para a cidade, ele disse, ‘Vamos a outro lugar,
aos povos vizinhos’ (1:36–38). Além disso, sempre Se está opondo à
classe dirigente, representada pelos escribas e fariseus. Isto não é o que
geralmente fazem os que aspiram ser líderes. Outorga o perdão como se
Ele mesmo fosse Deus! (2:7) Por outro lado, relaciona-se muito com …
todo tipo de gente, pecadores e publicanos (2:15, 16). Que horror! Além
disso, Seu ensino, também, é estranho”. Quanto ao último, veja-se p. ex.
Mc. 2:17, 19, 27, 28. A estes textos mais adiante se acrescentariam
passagens tão desconcertantes como as que se acham em Mc. 8:34, 35;
9:43–50; 10:23, 24. Por causa destes e de outros ensinos semelhantes —
em boca de um carpinteiro! — não teria que sentir-se ofendida a gente de
Nazaré? (veja-se Mc. 6:3).
124
E. P. Groenewald, op. cit., p. 79, embora creia que os irmãos de Jesus se achavam entre os que O
consideravam mentalmente desequilibrado, não se atreve a atribuir esse mesmo sentimento a Maria!
125
Veja-se A. B. Bruce, op. cit. p. 360.
Marcos (William Hendriksen) 179
Devemos ter em mente tudo isto, e ainda mais, quando tratamos de
definir por que os amigos de Jesus O consideravam fora do normal uso
de Sua razão. Não obstante, talvez o contexto imediato nos dê a razão
principal pela qual estes amigos de Jesus chegaram a esta conclusão. O
contexto indica que a observação “está fora de si” foi causada pela boa
disposição de Cristo para ir de multidão em multidão, ensinando,
curando, expulsando demônios (Mc. 1:32–34, 2:2). No presente caso, a
Sua atividade entre uma tão grande multidão não Lhe deixava tempo
nem para comer (Mc. 3:20). Parece que o que ocasionou aquela
exclamação foi que, aos olhos de seus amigos, Jesus estava sendo
negligente com Sua própria necessidade de repouso, férias e renovação
física. Acrescente-se a este fato que quando Jesus outorgava vista aos
cegos, audição os surdos, saúde aos doentes, e liberdade aos
endemoninhados, Ele o fazia de todo coração! Ele Se compadecia como
nenhum ser humano se compadeceu jamais, antes ou depois dEle. “Em
toda angústia deles ele foi angustiado” (Is. 63:9). NEle se cumpriu a
profecia, “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as
nossas dores levou sobre si” (Is. 53:4). Acaso não é possível que tudo
isso tivesse feito Seus amigos pensar, “É exageradamente duro consigo
mesmo”, e dizer, “perdeu o equilíbrio mental; consome-lhe o fanatismo
religioso”?
Admitindo que este juízo fosse falso e injusto (não importa se fosse
bem-intencionado), não é acaso explicável a reação deles? Se inclusive
os Doze, que desfrutaram do benefício da estreita e constante comunhão
com Jesus, com frequência se confundiram (Lc. 9:45; 18:34; Jo. 12:16),
bem podemos imaginar que amigos menos íntimos de Jesus puderam
concluir que Sua conduta era estranha para as normas humanas normais.
Portanto, eles O viram como uma pessoa mentalmente extraviada.
Tempo mais tarde, os seguidores de Cristo também foram acusados de
loucura. Assim sucedeu a Paulo (At. 26:24). Francisco de Assis foi
chamado “o filho louco do Bernadone”, apesar de que sempre teve à sua
vista a vida e mandamentos de Jesus. Quando Martinho Lutero defendeu
Marcos (William Hendriksen) 180
a supremacia da Palavra de Deus acima das tradições dos homens,
inclusive alguns de seus primeiros simpatizantes o consideraram como
néscio e possuído pelo diabo (cf. 1Co. 1:18; 3:19).
Embora possamos supor que os “amigos” de Jesus buscavam o Seu
bem, os Seus inimigos, não:
22. Os escribas, que haviam descido de Jerusalém, diziam: Ele
está possesso de Belzebu. 126 E: É pelo maioral dos demônios que
expele os demônios.
Provavelmente o Sinédrio tinham enviado os escribas para espiar a
Jesus. Descendo de Jerusalém — que estava a 800 metros sobre o nível
do mar — foram até a Galileia, cujo grande lago está a 200 metros
abaixo do nível do mar. Entretanto, é possível que estes peritos da lei
considerassem sua descida em direção a Cafarnaum como uma descida
não só física, mas também ideológica, pelo fato de que Jerusalém era o
baluarte da ortodoxia judaica.
Chegaram ao lugar quando Jesus acabava de curar um
endemoninhado cego e mudo. Como consequência deste milagre
múltiplo, “Toda a multidão se admirava e dizia: É este, porventura, o
Filho de Davi?” (Mt. 12:22, 23; cf. Lc. 11:14). Marcos faz um paralelo
com Mateus 12:24–32 e Lucas 11:15–23, e continua a história deste
ponto. Em seus principais aspectos o relato é o mesmo em todos os
Sinóticos.127
126
Literalmente, “tem a Belzebu”.
127
Entretanto, Marcos acrescenta alguns poucos detalhes que não se acham (ou não se acham dessa
forma exata) nos outros Evangelhos: que os investigadores eram escribas (Mateus: fariseus); que Jesus
os convocou e lhes falou em parábolas; que lhes perguntou, “Como pode Satanás expulsar a
Satanás?”; e que lhes disse que qualquer que profira blasfêmia contra o Espírito Santo é culpado de
um pecado eterno. Além disso, a nota explicativa que se acha no final do relato de Marcos (v. 30) só
se encontra neste Evangelho. Por outro lado, Mateus e Lucas incluem detalhes que não estão em
Marcos. Ambos mostram que Jesus conhecia os pensamentos de Seus críticos; que lhes perguntou,
“Em virtude de quem expulsam vossos filhos aos demônios?” (seguido por uma cláusula que começa
com “portanto”); e que lhes disse, “Aquele que não é comigo, é contra mim …” e “Mas se pelo
Espírito” — Lucas: pelo dedo — “de Deus expulso demônios, certamente é chegado a vós o reino de
Deus”. Na realidade, através desta história há diferenças menores — veja-se especialmente Lc. 11:21,
22 — de modo que se vê muito claro que cada evangelista tem seu próprio estilo.
Marcos (William Hendriksen) 181
Os escribas não estavam dispostos a permitir que o povo
continuasse maravilhado, até o ponto de acariciar algumas ideias
messiânicas com relação a Jesus. Assim que dão uma explicação muito
conflitiva e diferente das expulsões de demônios e de outros milagres
que Jesus fazia. Está possuído por Belzebu, e expulsa demônios pelo
poder que lhe subministra o príncipe ou governante dos demônios!
Quando estes homens falam de Belzebu, em quem estavam
pensando? As opiniões diferem. No Antigo Testamento lemos a respeito
de Baal-Zebube = Beelzebub. Mas qualquer que tivesse sido a causa para
mudar o nome Beelzebub a Belzebu, 128 há um fato claro: Belzebu é
definitivamente o príncipe dos demônios. Belzebu é Satanás. Isto fica
provado se for comparado o versículo 22a com o versículo 22b e com o
versículo 23. Além disso, cf. Mt. 9:34 com 12:24; e 12:26 com 12:27.
Os escribas e fariseus lançaram uma acusação maligna contra Jesus.
Movia-os a inveja (cf. Mt. 27:18). Sentiam que começavam a perder sua
influência, e isto não o podiam suportar. Quão diferente foi a atitude de
João Batista! (Jo. 3:26, 30). O vergonhoso desta acusação faz-se também
evidente pelo fato de que considerassem Belzebu não como um espírito
imundo que exercia sua sinistra influência sobre Jesus desde fora, mas
que se afirmava que Belzebu estava dentro da alma de Jesus.
Literalmente diziam: tem um espírito imundo, quer dizer, está possuído
pelo demônio (Mc. 3:22, 30; cf. Jo. 8:48). A acusação, então, equivale a
isto: que Jesus estava possuído por Satanás, e que em aliança com
128
Em Ecrom adorava-se a Baal sob o nome de Baal-Zebube (2Rs. 1:2, 3, 6; na LXX trata-se de IV
Reis 1:2, 3, 6, βααλ μυῖαν) isto é, ao Senhor do mosquito grande, e por isso protetor contra esta peste.
O rei Acazias enviou mensageiros a consultar a Baal-Zebube sobre se ele se recuperaria dos resultados
de sua queda, mas foi-lhe dito que por causa desta deslealdade a Jeová morreria. As passagens do
Novo Testamento mudam Baal (= Beel) zebub a zebul. Agora, Beelzebu significa “senhor da
morada”. A razão desta mudança de letras não é clara. Pode ter sido nada mais que um acidente de
pronúncia popular. Outra explicação é que aqui pode haver um jogo de palavras, porque zebul
assemelha-se a zabel: esterco. Assim, os que desprezavam a Baal de Ecrom podiam, mediante uma
ligeira mudança na pronúncia, zombar dele, levando a ideia a que não era mais que um “senhor do
esterco”.
Marcos (William Hendriksen) 182
Satanás expulsava demônios por meio do poder derivado daquele
espírito imundo.
A resposta de Cristo vem nos versículos 23–30, e pode dividir-se
assim: a. refutação da acusação (vv. 23–26); b. explicação das expulsões
de demônios e outros milagres de Cristo (v. 27); c. exortação (vv. 28–
30).
Refutação, versículos:
23–26. Então, convocando-os Jesus, lhes disse, por meio de
parábolas: Como pode Satanás expelir a Satanás? Se um reino estiver
dividido contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; se uma casa estiver
dividida contra si mesma, tal casa não poderá subsistir. Se, pois, Satanás
se levantou contra si mesmo e está dividido, não pode subsistir, mas
perece. 129
Nos três relatos, a acusação dos antagonistas faz-se em terceira
pessoa. O que há em seus pensamentos se expressa às costas de Cristo.
De modo que, Jesus chama Seus caluniadores diante de sua presença,
para lhes dar a oportunidade de apresentar suas acusações diante
dAquele a quem ridicularizavam e para que escutem Sua refutação, se
assim o desejarem. É fácil entender por que não aproveitaram esta
oportunidade: não puderam responder à Sua refutação.
Jesus mostra que a acusação é ridícula, e o demonstra por meio de
parábolas. No presente contexto, o termo “parábolas” significa
“comparações ilustrativas breves”. Jesus diz que se a acusação fosse
verdade, Satanás estaria expulsando a Satanás. Como pode ser isso? Não
haviam os escribas descrito a Satanás como príncipe ou governante de
um reino? Usando os próprios termos deles e fazendo uso de
“parábolas”, Jesus lhes responde que se a acusação fosse verdadeira, o
governante estaria destruindo seu próprio reino; o príncipe seu próprio
principado. Primeiro estaria enviando a seus servidores (os demônios) a
produzir um descalabro no coração e vida dos homens, destruindo-os em
129
Literalmente: “mas tem um fim”, o que quer dizer: está condenado; seus dias estão contados.
Marcos (William Hendriksen) 183
corpo e alma, com frequência pouco a pouco. Mas depois Satanás estaria
proporcionando o poder necessário para derrotar os seus fiéis servos e
expulsá-los vergonhosamente das vidas dos homens. Isto seria um ato de
vil ingratidão para com seus demônios e uma estúpida ação suicida.
Nenhum reino pode manter-se dividido desta maneira contra si mesmo.
Sob semelhantes condições qualquer casa iria também à ruína. Se isto é
realmente o que Belzebu está fazendo, “Não pode permanecer em pé,
mas sim chegou a seu fim”, é o que Jesus diz literalmente.
Explicação. Depois de refutar a acusação dos fariseus, Jesus
apresenta a verdadeira explicação de Suas vitórias sobre os demônios e
seu senhor:
27. Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os
bens, sem primeiro amarrá-lo; e só então lhe saqueará a casa.
A pergunta retórica de Mateus 12:29 se transforma aqui numa
declaração positiva. Em ambos os casos se transluz a mesma ideia. Na
vida real o ladrão não recebe ajuda voluntária do dono da casa. Pelo
contrário, a fim de levar o que quer, o ladrão imobiliza ao dono da casa.
Depois disto a saqueia. Por meio de Seus atos e palavras, Jesus arrebata a
Satanás aqueles tesouros que este considera seus e sobre os quais esteve
exercendo seu sinistro controle (Lc. 13:16). O Senhor expulsa os servos
de Belzebu (aos demônios), e assim restaura aquilo que Satanás destruiu
nas almas e corpos dos seres humanos com sua atividade nefasta. Jesus
já começou a atar a Satanás por meio de Sua encarnação, Sua vitória
sobre a tentação do diabo no deserto, Sua autoridade diante dos
demônios e por meio de todas as Suas obras. Este é um processo de
imobilização ou limitação do poder do mal que se fortaleceu muito mais
mediante a vitória de Cristo na cruz (Cl. 2:15) e na ressurreição, a
ascensão, e a coroação (Ap. 12:5, 9–12). Jesus realizou, está realizando,
e realizará, não mediante o poder de Belzebu, naturalmente, mas pelo
poder do Espírito Santo (veja-se os vv. 28, 29). O diabo está sendo
despojando de todos os seus bens. O diabo ficará sem suas propriedades,
quer dizer, sem as almas e os corpos dos seres humanos que domina. Isto
Marcos (William Hendriksen) 184
ocorrerá não só mediante curas e expulsões de demônios, mas também
por meio de um poderoso programa missionário que primeiro alcançará
os judeus e logo às nações em geral (Jo. 12:31, 32; Rm. 1:16). Não é esta
a chave para entender Ap. 20:3? 130 Observe-se também como em Lucas
10:17, 18 a queda de Satanás como “um raio caído do céu” é relatada
com relação à volta e relatório dos setenta missionários.
Fica claro, então, que os milagres de Cristo, longe de ser prova do
domínio de Satanás, como se o maligno fosse o Grande Capacitador, são
pelo contrário uma profecia de sua inevitável destruição. Esse reino já se
está desmoronando e em seu lugar surge, de uma forma nova e
maravilhosa, o reino glorioso que existiu através dos tempos. E Belzebu,
com tudo o seu poder e atividade, nada pode fazer para impedi-lo,
porque está preso. A vinda e obra de Cristo reduziram seu poder
substancialmente.
Exortação.
28, 29. Em verdade vos digo que tudo será perdoado aos filhos
dos homens: os pecados e as blasfêmias que proferirem. Mas aquele
que blasfemar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre,
visto que é réu de pecado eterno.
A seção paralela de Lucas (11:14–23) não contém esta séria
advertência; mas veja-se Lc. 12:10. Seu paralelo em Mateus 12:31, 32 é
muito parecido. 131
Jesus introduz sua exortação com um profundo e intenso: “Em
verdade vos digo”. Este “Em verdade” aparece aqui pela primeira vez no
Evangelho de Marcos. A palavra Amém é uma palavra hebraica que se
130
Veja-se meu livro: Más que vencedores: Una interpretación del libro de Apocalipsis (Grand
Rapids: TELL, 1970), pp. 228–231.
131
Há umas poucos variações que não afetam o essencial. Marcos diz “os filhos dos homens”, onde
Mateus diz “homens”, mas a expressão “filho do homem” pode ter o significado de “homem”. Veja-se
CNT sobre Mt. 8:20. Marcos [Mc. 3:28, RC] diz “todos os pecados serão perdoados aos filhos dos
homens, e toda sorte de blasfêmias”, onde Mateus diz, “todo pecado e blasfêmia”. Mateus especifica o
que em Marcos está implícito, quer dizer, que entre os pecados que se perdoam se acham aqueles que
se cometem contra “o Filho do Homem”.
Marcos (William Hendriksen) 185
refere em geral a ideias de fato e fidelidade. A palavra acompanha a
declarações que afirmam ou confirmam uma verdade solene. No Antigo
Testamento o único Amém encontra-se em Dt. 27:15, 16–26; 1Rs. 1:36;
1Cr. 16:36; Ne. 5:13; Sl 106:48; e Jr. 28:6. O duplo Amém se acha em
Nm. 5:22; Ne. 8:6; Sl 41:13; 72:19; e 89:52. No Novo Testamento a
palavra Amém é um acusativo adverbial, que combina as ideias de
veracidade e solenidade. A tradução “Em verdade vos digo” (RA), não
está errada, mas hoje em dia se considera um pouco arcaica. Há diversas
opiniões sobre se “Eu lhes asseguro” (NVI) contribui à mesma plenitude
de significado, ou se perdeu algo da força e solenidade geralmente
associada com “Em verdade”. Cada vez que esta palavra aparece no
Novo Testamento — e o leitor pode examinar isto por si mesmo por
meio de uma Concordância — não só introduz uma declaração que
expressa uma verdade ou fato (como, p. ex., 2 + 2 = 4), mas também
aponta a um fato importante e solene, um fato que em muitos casos
difere da opinião e expectação popular, ou que ao menos causa certa
surpresa. É por esta razão que eu adotei a tradução “Solenemente vos
declaro”. 132
As palavras que seguem a esta solene introdução afirmam que
“todas as coisas”, ou seja, todos os pecados, e especificamente neste
contexto, todas as blasfêmias serão perdoadas aos filhos dos homens. A
referência é, certamente, a todos os pecados dos quais os homens se
arrependam sinceramente. Isto se aplica também a Mt. 12:31; Lc. 12:10.
Claro que em nenhuma destas passagens menciona-se a condição do
arrependimento. Entretanto, é evidente que está implícito em Mc. 1:15;
2:17; 6:12; cf. Mt. 4:17; 12:41; Lc. 5:32; 13:3, 5; 15:7; 17:34. Veja-se
também Sl 32:1, 5; Pv. 28:13; Tg. 5:16; 1 Jo. 1:9. Esta regra é válida
também no que respeita àquele pecado tão odioso, quer dizer, a
blasfêmia. Mas é preciso levar em conta que às vezes as Escrituras usam
esta palavra num sentido mais amplo do qual nós lhe conferimos. Para
132
Cf. Williams: “Solenemente digo”.
Marcos (William Hendriksen) 186
nós a “blasfêmia” poderia definir-se como “irreverência desafiadora”.
Pensamos, por exemplo, em delitos tais como amaldiçoar a Deus ou
amaldiçoar o rei que reina pela graça de Deus, ou na degradação pertinaz
das coisas que se consideram santas, rebaixando-as ao plano do secular,
ou na pretensão de dar ao secular ou puramente humano a honra que
pertence só a Deus. Em grego, não obstante, a palavra “blasfêmia”
recebe também um sentido mais geral, ou seja, o uso de uma linguagem
insolente contra Deus ou contra o ser humano, o qual inclui a difamação,
o insulto, a afronta (Ef. 4:31; Cl. 3:8; 1Tm. 6:4). Em consequência,
quando Jesus nos assegura que “todas as coisas serão perdoadas aos
filhos dos homens, todos os seus pecados e qualquer blasfêmia que
proferirem”, está usando a palavra “blasfêmia” em seu sentido mais
geral. Entretanto, quando faz a exceção — “mas qualquer que proferir
blasfêmia contra o Espírito Santo não receberá perdão jamais” — está Se
referindo a um pecado que mesmo em nosso idioma seria considerado
como “blasfêmia” (cf. Mc. 2:7; Lc. 5:21; Jo. 10:30, 33; Ap. 13:1, 5, 6;
16:9, 11; 17:3).
Não obstante, para toda irreverência obstinada, exceto uma, há
perdão. Se assim não fosse, como teria sido possível perdoar o pecado de
Pedro (Mc. 14:71) e como teria podido restabelecê-lo (Jo. 21:15–17)?
Como se teria perdoado a Saulo (= Paulo) de Tarso (1Tm. 1:12–17)? Por
outro lado, para a “blasfêmia contra o Espírito Santo” não há perdão
jamais. Tal pessoa é culpada de “um pecado eterno”; quer dizer, seu
pecado jamais será apagado.
Ainda resta uma pergunta: Como devemos entender de que a
blasfêmia contra o Espírito Santo é imperdoável? Quanto aos outros
pecados, não importa quão ofensivos ou grosseiros sejam, há perdão para
eles. Houve perdão para Davi, quem cometeu adultério, foi desonesto e
mandou assassinar um homem (2Sm. 12:13; Sl 51; cf. Sl 32); também
foram perdoados os “muitos” pecados da mulher de Lucas 7; ao filho
pródigo se perdoou a vida libertina que levou (Lc. 15:13, 21–24); houve
perdão para a tríplice negação de Pedro acompanhada de maldições (Mt.
Marcos (William Hendriksen) 187
26:74, 75; Lc. 22:31, 32; Jo. 18:15–18, 25–27; 21:15–17) e para a
perseguição sem misericórdia que Paulo desatou contra os cristãos antes
de sua conversão (At. 9:1; 22:4; 26:9–11; 1Co. 15:9; Ef. 3:8; Fp. 3:6).
Mas para aquele que “fala contra o Espírito Santo” não há perdão.
Por que não? Aqui, como sempre quando o texto em si mesmo não
é imediatamente claro, o contexto deve ser nosso guia. O contexto nos
informa que os escribas atribuíam a Satanás as obras que o Espírito
Santo realizava por meio de Cristo. Além disso, cometiam esse pecado
de uma maneira obstinada e deliberada. Apesar de todas as evidências
em contrário, seguiam afirmando que Jesus expulsava demônios pelo
poder de Belzebu. Não só isto, mas além disso, também havia uma
progressão no pecado, conforme o demonstra claramente a comparação
de Mc. 2:7; 3:6; com 3:22. Agora, ser perdoado implica que o pecador
deve ter uma atitude de sincero arrependimento. Entre os escribas
mencionados aqui, não havia nem um ápice de tristeza genuína. Em
lugar de penitência havia endurecimento, em lugar de confissão, complô.
Deste modo, por sua própria dureza criminal e totalmente
indesculpável, condenavam-se a si mesmos. Seu pecado era
imperdoável, porque resistiam percorrer a senda que conduz ao perdão.
Para o ladrão, o adúltero, o homicida há esperança. A mensagem do
evangelho pode fazê-lo exclamar, “Ó Deus, tem misericórdia de mim,
pecador”. Mas quando um homem se endureceu, de modo que está
decidido a não prestar atenção alguma aos impulsos do Espírito, nem
sequer a escutar Seus rogos e advertências, colocou-se a si mesmo no
caminho que leva à perdição. Cometeu o pecado “de morte” (1Jo. 5:16;
veja-se também Hb. 6:4–8).
Todo aquele que estiver verdadeiramente arrependido, por muito
vergonhosas que tenham sido suas transgressões, não se deve desesperar
(Sl 103:12; Is. 1:18; 44:22; 55:6; Mq. 7:18–20; 1Jo. 1:9). Por outro lado,
não existe desculpa para ser indiferente, como se o relacionado com o
pecado imperdoável não fosse preocupação alguma para o membro
regular da igreja. A blasfêmia contra o Espírito Santo é o resultado de
Marcos (William Hendriksen) 188
um progresso gradual no pecado. Se a pessoa não se arrepender de
entristecer o Espírito (Ef. 4:30), ela começará a resistir ao Espírito (At.
7:51). Se persistir nesta conduta, a pessoa apaga o Espírito (1Ts. 5:19). A
verdadeira solução acha-se no Salmo 95:7b, 8a: “Hoje, se ouvirdes a sua
voz, não endureçais o coração.” (cf. Hb. 3:7, 8a).
Marcos agrega:
30. Isto, porque diziam: Está possesso de um espírito imundo.
Esta é uma dessas declarações explicativas achadas frequentemente
no Evangelho de Marcos (cf. Mc. 4:33, 34; 7:3, 4; 7:19b; 15:16). A
palavra “eles” (implícito) refere-se aos escribas, chamando a atenção ao
que estes homens diziam, segundo se registra no versículo 22. Não se
pode aceitar a ideia de que as palavras blasfemas, “Está possesso de um
espírito imundo” poderiam sugerir que aqueles inimigos de Jesus não
consideravam Belzebu como Satanás, mas antes, como algum outro
espírito imundo. Não é este o significado, como tampouco o é que João
4:24 pudesse dar a entender que Deus é meramente um entre muitos
espíritos, como se todos estivessem no mesmo nível. A identificação de
Belzebu = Satanás já ficou demonstrada. E, naturalmente, ele também é
um “espírito imundo”, o pior de todos.
133
É claro, portanto, que a doutrina da “virgindade perpétua” de Maria não tem apoio no Novo
Testamento. Quanto a Ez. 44:2, “Esta porta estará fechada”, e Ct. 4:12, “Jardim fechado és tu, minha
irmã, noiva minha”, é muito difícil entender como podem ser usadas estas passagens do Antigo
Testamento para apoiar esta doutrina!
Marcos (William Hendriksen) 190
32. Muita gente estava assentada ao redor dele e lhe disseram:
Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua procura.
O quadro é muito vivo. Quase se pode ver e ouvir como a
mensagem vai passando da mãe e os irmãos de Jesus, a um mensageiro
determinado, e dele às pessoas sentadas mais perto do Mestre, e deles ao
próprio Jesus. De maneira muito natural e totalmente humana Jesus
recebe nesse momento a notícia de que Sua mãe e irmãos estão à Sua
procura e desejam que saia.
Jesus utiliza a interrupção para tirar um proveito dela. Sempre fez
isto com as interrupções. Interromperam-no enquanto orava (Mc. 1:35),
ao falar a uma multidão (Mc. 2:1ss.), dormindo num barco (Mc. 4:37ss.),
conversando com seus discípulos (Mc. 8:31ss.), ou viajando (Mc.
10:46ss.), e sempre soube como transformar uma interrupção num
trampolim para proclamar grandes ensinos ou para a realização de
alguma grande obra.
Assim sucedeu também aqui, segundo se vê nos versículos
33–35. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e
meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao
redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos
Embora a relação entre Jesus e Sua mãe era de uma tenra
preocupação, como já foi explicado com relação ao versículo 21, nunca
permitiu que ela O separasse de fazer o que sabia que Seu Pai celestial
desejava que fizesse, segundo já vimos (veja-se mais acima, no v. 21, em
“A respeito de d.”). Tampouco permitiu que Seus irmãos O desviassem
(veja-se Jo. 7:2ss.). Ao dizer, “Quem é minha mãe e (quem são) meus
irmãos?” ensina que o que vale para Ele vale para todos: todos devem
esforçar-se para fazer a vontade de Deus (cf. Mt. 10:37; Lc. 14:26).
Neste sentido, os laços físicos não são tão importantes como os
espirituais.
Marcos relata que enquanto Jesus respondia Sua própria pergunta,
olhava aos que estavam sentados — todos estavam provavelmente numa
casa — em círculo ao Seu redor.
Marcos (William Hendriksen) 191
Mateus acrescenta que estendeu Sua mão indicando os Seus
discípulos. Com este significativo olhar e gesto, o Mestre particularizou,
“Eis aqui minha mãe e meus irmãos”. Este “irmãos” não se deve
interpretar como se Jesus reconhecesse só os varões como membros de
Sua família espiritual. Provavelmente disse, “minha mãe e meus irmãos”
para corresponder a “tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua
procura”. É evidente que nenhuma pessoa fica excluída da família de
Cristo por causa de seu sexo, como o indicam as palavras que
imediatamente seguem: Portanto, qualquer que fizer a vontade de
Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe.
Com toda probabilidade, tanto as palavras como o gesto de bondosa
inclusão, iam dirigidos primeiro aos Doze (embora dificilmente podiam
aplicar-se a Judas Iscariotes em sentido favorável). Ao que parece eles
estavam sentados mais perto de Jesus. Com sua resposta imediata ao
chamado de Jesus, sem lhes importar os sacrifícios exigidos (Mt. 19:27–
29; Lc. 5:28; 9:58; 14:26), os apóstolos tinham demonstrado que sua
intenção fundamental era indubitavelmente levar a cabo a vontade de
Deus em sua vida. Não é de estranhar, então, que Jesus assinalasse a eles
e publicamente reconhecesse que eles estavam incluídos em Sua família
espiritual. E, visto que a palavra “qualquer” é muito ampla, é indubitável
que também estavam incluídos outros “discípulos” além dos Doze.
Quanto a Maria, embora se deva reconhecer sua solicitude afetuosa,
também tem que admitir-se que se equivocava. Em certo sentido estava
repetindo aquela interferência pecaminosa manifestada numa ocasião
anterior (Jo. 2:3). Portanto, se com relação a Marcos 3:31–35 temos
razão ao falar de um ambiente de “tensão”, entendemos que o que
realmente produziu esta tensão foi esta interferência pecaminosa, e não a
suposta opinião de Maria e os irmãos de Jesus de que Jesus estava fora
de Si. Mas assim como naquela ocasião anterior Maria viu rapidamente
seu erro e foi fortalecida na fé (veja-se Jo. 2:5) pelas palavras de ternura
e a severa repreensão que Jesus lhe dirigiu (Jo. 2:4), no presente caso a
palavra do Salvador (Mc. 3:33–35) teve nela o mesmo efeito saudável. A
Marcos (William Hendriksen) 192
fé de Maria chegou a expressões belas como as que se acham em Lc.
1:38; 1:46–55; 2:19; e 2:51. Por isso, não há nenhuma razão para duvidar
que, em virtude da graça de Deus, a fé de Maria triunfou acima de todo
reverso temporal. Segundo Atos 1:14 é evidente que saiu realmente
vitoriosa. Os irmãos de Jesus compartilharam esta vitória (veja-se essa
mesma passagem).
Cristo fez uma afirmação muito generosa (Mc. 3:33–35), visto que
era óbvio que Seus discípulos não haviam de modo algum alcançado o
pináculo da perfeição espiritual. Por exemplo, os Doze eram homens de
“pequena fé”, e assim permaneceram por longo tempo (veja-se mais
acima, nos vv. 16–19). Entretanto, não Se envergonhou de chamá-los
“irmãos” (Hb. 2:11).
Observe-se o inclusivo de seu “qualquer” (que faz a vontade de
Deus). Abrange o negro e o branco, o vermelho, o moreno, o amarelo; o
varão e a fêmea; o velho e o jovem; o rico e o pobre; o servo e o livre; o
educado e o ignorante; o judeu e o gentio. Mas observe-se também a
exclusividade: estão incluídos aqueles, e só aqueles, que fazem a vontade
de Deus. A essência do que Deus requer entende-se facilmente pelo
exame das seguintes passagens do evangelho de Marcos: Mc. 4:9, 20, 21,
24; 5:19, 34; 6:31, 37; 8:34–38; 9:23, 35–37, 41; 10:9, 14, 29–31, 42–45;
11:22–26; 12:17, 29–31, 41–44; 13:5, 10, 11, 13, 23, 28, 29, 37; 14:6–9,
22–26, 38; 16:6, 7, 15.
Deve-se sublinhar, entretanto, que ninguém é capaz de “fazer a
vontade de Deus” exceto pelo poder e a graça soberana de Deus. Esta
não é somente uma doutrina paulina (Ef. 2:8; Fp. 2:12, 13), é também o
ensino de Cristo. Como nos diz Marcos, Deus — podemos dizer também
Jesus Cristo — é o grande capacitador (Mc. 1:17). O que salva é o poder
de Deus (Mc. 10:27) e o sacrifício vicário e expiatório de seu Filho Jesus
Cristo (Mc. 10:45; 14:24). Em última instância, o homem é incapaz em
si mesmo. Depende totalmente da misericórdia e da compaixão do
Senhor (5:19; 6:34; 8:2). Não é este o fato que explica a ênfase no ensino
Marcos (William Hendriksen) 193
de Cristo, segundo se reflete em Marcos, da necessidade de fé genuína e
oração perseverante? (Mc. 1:35; 5:36; 9:23, 29; 1:22–24).
Resumo do Capítulo 3
136
Ou talvez “Eis aqui” ou “Olhai” (em lugar de “Certa vez” ou “Em certa ocasião”).
137
A primeira destas duas alternativas (“uma vez”) é a tradução proposta por Phillips e por Norlie; a
segunda (“em certa ocasião”), é a sugerida por J. A. Alexander, The Gospel According to Matthew
(Nova York, 1867), p. 353.
Marcos (William Hendriksen) 199
revela imediatamente o inadequado de tal tradução, porque não é um
agricultor aquele que semeia a palavra, e sim o Filho do Homem. 138
4. E, ao semear, uma parte caiu à beira do caminho.
Era costume semear o trigo ou a cevada à mão. Mas os resultados
poderiam ser muito diferentes, dependendo do lugar onde caia a
semente. À medida que aquele homem semeava, era inevitável que parte
da semente caísse no caminho por onde ele passava ao cruzar o campo.
Visto que o lugar onde caiu não estava arado, e muitos o tinham pisado,
o solo estava muito duro para que uma semente o “penetrasse”. Assim
que ficava sobre a superfície, com o seguinte resultado: e vieram as aves
e a comeram. As aves agiram com rapidez e avareza. Tragaram a
semente e imediatamente foi parar no sistema digestivo; assim,
literalmente “elas (as aves) engoliram-na”.
5. Outra caiu em solo rochoso, onde a terra era pouca, e logo
nasceu, visto não ser profunda a terra.
É típico da Palestina ou Israel que grande parte de seu solo
cultivável se ache sobre uma capa rochosa. Em tal situação, em seu
processo de germinação, a semente tem só um caminho a seguir, quer
dizer, para cima. De modo que em lugar de arraigar-se primeiro
firmemente, a semente “brotou para cima imediatamente”.
6. Saindo, porém, o sol, a queimou; e, porque não tinha raiz,
secou-se.
Por causa da falta de profundidade da terra, esta semente não pôde
lançar raiz; é por isso que quando o sol saiu, queimou-se segundo
Mateus e Marcos. Lucas 8:6 nos diz a causa intermediária que a levou a
secar-se: (porque não tinha raiz) esta semente “careceu de umidade”.
Razão havia para que se queimasse e morresse.
138
Além disso, o original usa duas palavras — σπείρων e σπεῖραι — derivadas da mesma raiz; na
realidade duas formas da mesma palavra. A primeira é um substantivo derivado de um gerúndio; a
segunda, um infinitivo aoristo. Por último, mas não sem importância, a transição da parábola a seu
significado real faz-se muito mais fácil mediante a tradução “semeador … a semear” que com
qualquer outra tradução.
Marcos (William Hendriksen) 200
7. Outra parte caiu entre os espinhos; e os espinhos cresceram e
a sufocaram, …
Aquela terra estava infestada de raízes de espinheiros. Pelo fato de
que geralmente o que cresce mais rápido é o indesejável, e que cada
parcela de terreno tinha só o espaço necessário para uma quantidade
determinada de vida vegetal, não é raro que a erva daninha, cujo
crescimento é mais rápido, logo começasse a afogar a vitalidade da
nobre espiga. Marcos explica o resultado como segue: e não deu fruto.
8. Outra, enfim, caiu em boa terra e deu fruto, que vingou e
cresceu, produzindo a trinta, a sessenta e a cem por um.
Observe-se a mudança que faz Marcos do singular ao plural, da
semente coletiva às sementes individuais. Seria que neste caso o
evangelista (e Jesus antes dele) desejava dar ênfase especial à
diversidade da produção? Marcos descreve esta produção em ordem
ascendente: trinta, sessenta, cem; contraste-se com Mateus 13:8 (ordem
descendente). Descreve a cena mediante o uso do imperfeito (levavam,
produziam)!
A parábola conclui com uma sincera admoestação:
9. E acrescentou: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça. Os
ouvidos têm que ser usados para ouvir, quer dizer, para escutar
atentamente e valorar o que alguém escuta. Através de todo o ensino de
Cristo, tanto na terra como do céu, seria difícil descobrir uma exortação
que Ele repetisse mais, de uma forma ou outra, que a do versículo 9
(veja-se também v. 23; cf. 8:18 tanto em Marcos como em Lucas; 13:9
tanto em Marcos como no Apocalipse; além disso Mt. 13:43; Lc. 8:8;
14:35; Ap. 2:7, 11, 17, 29; 3:6, 13, 22). Esta repetição não deve nos
surpreender. Não é acaso a falta de receptividade a que conduz
diretamente o pecado imperdoável se se persistir nela? As consequências
da falta de interesse para ouvir, ou ouvir e não obedecer, dão-se a
conhecer mediante a explicação de Jesus sobre a parábola (vv. 13–20).
Marcos (William Hendriksen) 201
Mc. 4:10–12 - O propósito das parábolas
Cf. Mt. 13:10–17, 36; Lc. 8:9, 10
139
O resumo de Marcos (cf. a tradução da LXX): “Para que vendo …, e ouvindo …”, preserva a
ênfase da subjacente construção hebraica de Is. 6:9, 10. Os plurais imperativos seguidos por
infinitivos absolutos no hebraico estão no grego de Marcos representados por particípios presentes
seguidos por subjuntivos. No hebraico toda a passagem (vv. 9, 10) consiste numa série de ordens
enfáticas, introduzidas por, “E disse: Anda e diga a este povo”. Logo segue: “Ouçam e ouçam, mas
não entendam, E vede e vede, mas não percebam [Ou: “Ouçam, por certo, mas não entendam, Vede
por certo, mas não percebam]. Engrossa o coração deste povo, e agrava seus ouvidos, e cega os seus
olhos; não seja que vejam com seus olhos, e ouçam com seus ouvidos, e entendam com seu coração,
Marcos (William Hendriksen) 204
Então, o que Jesus diz, é: “Para os de fora tudo vem em parábolas,
para que vejam e vejam, mas não percebam … não seja que se
convertam e sejam perdoados”. Mas, como pode ser isto possível? Não
resulta chocante? Pode ser verdade que o bondoso e misericordioso
Salvador, o mesmo que estendia constantemente tenros convites,
tomasse tanto trabalho para impedir que as pessoas percebessem e
entendessem a verdade? Pode-se dizer que realmente fizesse um esforço
para impedir que os homens se voltassem a Deus e fossem perdoados?
Fizeram-se várias tentativas para resolver este problema. Entre elas
estão as seguintes:
1. Afirma-se que se interpretarmos a partícula usada no grego como
querendo dizer “a fim de que” ou “de modo que”, estaríamos
interpretando mal o texto. 140 Ou se sugere que talvez o próprio Marcos
interpretou erroneamente a palavra aramaica que Jesus provavelmente
usou.
Resposta. Marcos representa a Jesus como dizendo não só “para
que” mas também “não seja que”. A combinação de que … não seja que
mostra que a partícula “para que” se interpreta melhor como indicando
propósito.
2. Esta expressão é uma versão falsa e inaceitável de uma
declaração genuína de Jesus. 141 Além disso, às vezes adiciona-se que em
vista de passagens tais como Mateus 11:28–30 e Apocalipse 3:20, Jesus
jamais pôde ter dito as palavras que se lhe atribuem em Marcos 4:11, 12.
Resposta. Não existe prova da teoria que considera esta expressão
como falsa e inaceitável. Além disso, é justo referir-se a Mateus 11:28–
30, mas esquecer o versículo 25, ou a Apocalipse 3:20 e deixar de lado o
convertam-se e sejam curados”. É evidente que Marcos abrevia, deixando fora toda referência a
“Engrossa o coração deste povo e agrava seus ouvidos …” Entretanto, retém, “… não seja que se
convertam e sejam perdoados”, uma forma legítima de dizer “… Não seja que se convertam e sejam
curados”.
140
Cf. A. T. Robertson, Word Pictures, Vol. I. p. 286. Sustenta que se a ἵνα (aqui em Mc. 4:12) de dá
o sentido causativo de ὅτι (em Mt. 13:13) o problema desaparece.
141
Véase Vincent Taylor, op. cit., p. 257
Marcos (William Hendriksen) 205
versículo 16? E por outro lado, acaso o resumo de Marcos não reflete
verdadeiramente o dito em Isaías. 6:9, 10?
3. Se as palavras de Cristo foram as que Marcos registra, devem ter
sido ditas em brincadeira. Evidentemente Jesus quis que Suas palavras
fossem tomadas exatamente em sentido oposto ao literal. Isto é claro
pelo fato de que Mateus muda diametralmente o significado da
declaração, fazendo com que Jesus diga “porque (em lugar de que)
vendo não veem …” 142
Resposta. Se aceitarmos que ao pronunciar o Mestre as palavras, “A
vós outros vos é dado conhecer o mistério do reino de Deus” falava
seriamente, declarando o que conhecia como um fato, não como uma
brincadeira, então o que segue, tão estreitamente ligado a estas palavras,
deve ser considerado também como um fato. E quanto ao pretendido
conflito entre Mateus, por um lado, e Marcos e Lucas, por outro, por que
não podem ambos estar certo?
A verdadeira explicação, na opinião deste autor, é a seguinte: as
duas partículas, porque e para que (tanto se significarem “a fim de que”
— o que eu prefiro — ou “de modo que”) são corretas. Por escolha
própria, os fariseus impenitentes e seus seguidores recusaram ver e
ouvir. Por isso, é-lhes dito agora em parábolas, como castigo por seu
rechaço, “para que vendo, vejam e não percebam, e ouvindo, ouçam e
não entendam, não seja que se convertam e sejam perdoados”. Devem
“confrontar as consequências de sua própria cegueira e dureza” (Calvino
sobre esta passagem). 143 Deus tinha dado àquelas pessoas uma excelente
oportunidade. Deus é soberano para tirar o que o homem não quer
melhorar, e entenebrecer o coração de quem se nega a escutar. Endurece
os que se endureceram. Se Deus submeter inclusive o entenebrecido
pagão à concupiscência de seu próprio coração, por deter com injustiça a
verdade (Rm. 1:18, 26), não castigará com maior severidade o
142
Veja-se E. Trueblood, The Humor of Christ (Nova York, Evanston, Londres, 1964), pp. 91, 92.
143
Veja-se também H. B. Swete, op. cit., p. 76.
Marcos (William Hendriksen) 206
impenitente diante de quem a Luz do mundo está confirmando
constantemente a fidelidade de Sua mensagem? E se abençoar os que
aceitam o misterioso, não amaldiçoará os que rejeitam o evidente? É
claro, então, que Mateus 13:13 está em harmonia com Marcos 4:12. Na
realidade, o “porque” do primeiro ajuda a explicar o “para que” do
segundo.
Quando por decisão própria, e depois de repetidas ameaças e
promessas, a pessoa rejeita o Senhor e desdenha Suas mensagens, então
Ele lhes endurece, para que os que não quiseram arrepender-se, não
possam arrepender-se e ser perdoados (veja-se também CNT sobre Mt.
13:10–15 e Jo. 12:37–41).
144
Os dois verbos empregados no original são οἶδα (aqui οἴδατε) e γινώσκω (aqui γινώσεσθε). O
primeiro indica conhecimento por intuição ou perspicácia; o segundo, reconhecimento, observação,
experiência, e/ou relações. Veja-se CNT sobre Jo. 1:10, 11, 31; 3:11; 8:28, 55; 16:30; 21:17.
Marcos (William Hendriksen) 207
145
14. O semeador semeia a palavra.
Esta é uma das passagens-chave para o entendimento desta história
ilustrativa. É preciso tê-lo sempre em conta. A presente parábola fixa
nossa atenção em dois objetos: no semeador e na semente. Não obstante,
esta parábola não identifica o semeador, porque sublinha mais a função
que cumprem os tipos de terreno que a função do semeador. Porém, na
parábola do joio somos informados de forma definitiva que o semeador é
o Filho do Homem (Mt. 13:37), a saber, é o próprio Jesus (Mt. 16:13–
15). Portanto, quanto ao semeador de Marcos 4:13–20, devemos dizer
que embora a parábola não identifique a Jesus em nenhum lugar, não há
razão para negar que se trate de Jesus, quem Se identifica a Si mesmo
como o Semeador. Mediante uma legítima prolongação da figura (veja-
se Mt. 10:40) podemos dizer que o Semeador não só é o próprio Jesus,
mas também qualquer pastor, missionário, evangelista, ou quem quer
que dê um testemunho sincero e que verdadeiramente proclame a
mensagem do Filho de Deus. Quanto à semente, já nos foi dito — e isto
se acha implícito no termo mesmo — que “o semeador” semeia a
semente (Mc. 4:3ss.). Assim que, quando Jesus agora diz, “O semeador
semeia a palavra”, a conclusão deve ser que a semente simboliza a
palavra, a mensagem que vem de Deus (veja-se também Mt. 13:19; Lc.
8:11).
Pode acrescentar-se a estes dois pontos um terceiro: a “terra” ou
“solo” sobre o qual cai a semente é claramente o coração do homem, ou,
se preferir-se, o próprio homem. Sem dúvida, isto é o que se indica em
Mateus 13:19a, “o que lhes foi semeado no coração”. Em cada um dos
quatro casos registrados na parábola, a “terra” (quer dizer o coração ou a
pessoa) é diferente. se poderia falar do coração insensível (Mc. 4:15), do
coração impulsivo (vv. 16, 17), do coração laborioso (vv. 18, 19), e do
coração bom, sensível, ou preparado (v. 20). Substitua-se a palavra
“coração” por “pessoa” e o significado fica essencialmente o mesmo. O
145
Ou: “a mensagem”; e assim por toda a parábola.
Marcos (William Hendriksen) 208
“coração” indica a “pessoa” ou o “ouvinte” tal como é no profundo de
seu ser. Portanto, o que segue é correto: “Qual é, então, a lição? O
Salvador nos deu a resposta em Sua própria interpretação da história. A
semente é a palavra de Deus, ou a palavra do reino; e o terreno são os
corações humanos. De modo que, reduzida a uma regra geral, o ensino
da parábola é que o resultado do ouvir o evangelho, sempre e em todo
lugar, depende da condição do coração daqueles a quem lhes apregoa. A
índole do ouvinte determina o efeito da palavra nele”. 146
Corações insensíveis
Jesus prossegue:
15. São estes os da beira do caminho, onde a palavra é semeada;
e, enquanto a ouvem, logo vem Satanás e tira a palavra semeada
neles.
Significado: as pessoas representadas pela semente semeada no
caminho (veja-se v. 4) são a classe de pessoas que deixam que Satanás, o
grande adversário (veja-se mais acima a respeito de 1:13), arrebate-lhes a
mensagem que foi semeado nelas. Jesus não pretende de modo algum
desculpar estas pessoas, como se só Satanás fosse o responsável pelo que
sucede com a mensagem divina que lhes foi entregue. O versículo 15 não
anula o versículo 9! Mas no versículo 15, diz-se que estes ouvintes
frívolos cooperam com o príncipe do mal, ao tratar com tanta
superficialidade a palavra de Deus.
Esta gente não faz nada com a mensagem, não a aproveitam para
seu próprio bem. Portanto, tendo ouvido a mensagem, qualquer efeito
favorável que pudesse ter produzido neles, fica “imediatamente”
aniquilado. Qual é a causa de sua reação negativa? Talvez má vontade
para com o mensageiro, ou possivelmente hostilidade a esta mensagem
em particular, ou simplesmente, que não querem ser incomodados (At.
24:25). O espírito de indiferença pode ter penetrado neles, talvez pouco a
146
W. M. Taylor, The Parables of Our Savior, Expounded and Illustrated (Nueva York, 1886), p. 22.
Marcos (William Hendriksen) 209
pouco, até chegar a ser total, chegando seu coração a ser tão duro como o
caminho sobre o qual se espalhou a semente da parábola.
O Senhor, falando com Ezequiel, deu a seguinte descrição dos que
ouviam o profeta: “Eis que tu és para eles como quem canta canções de
amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem as tuas palavras,
mas não as põem por obra” (Ez. 33:32). Cf. Mt. 7:26.
Corações impulsivos
16, 17. Semelhantemente, são estes os semeados em solo rochoso, os
quais, ouvindo a palavra, logo a recebem com alegria. Mas eles não têm
raiz em si mesmos, sendo, antes, de pouca duração; em lhes chegando a
angústia ou a perseguição por causa da palavra, logo se escandalizam.
A descrição dos ouvintes de coração insensível é seguida pela dos
impulsivos.
Observe-se que neste caso particular, tanto Marcos como Mateus
fazem uso da palavra “imediatamente” duas vezes. Referimo-nos a
pessoas que agem sem refletir. Logo aceitam a palavra, inclusive com
alegria! E então, logo se apartam. São enganados, apanhados, pela
aflição e a perseguição. Isto é o que os induz a deixar o que no começo
tinham abraçado com tanto entusiasmo. 147 Se tivessem sido crentes
autênticos não teriam sido enganados de maneira definitiva.
Por causa da mensagem do evangelho, o crente pode achar-se no
meio da aflição, quer dizer, no meio de todo tipo de pressões externas
que vêm de um ambiente não cristão, ou em meio de perseguições e de
sofrimento real causado deliberadamente pelo inimigo. Quando tudo isto
ocorre por causa da mensagem, a perseverança é a marca do cristão
verdadeiro. Naturalmente que a perseverança que aqui se exalta
implicitamente deve ser genuína, deve praticar-se não por amor a nós
147
Note-se o verbo σκανδαλίζονται, que significa literalmente: “estão apanhados, induzidos ao
pecado”; portanto, “apartaram-se”. O σκάνδαλον é basicamente a ceva de uma armadilha ou laço. É o
palito que dispara a armadilha. Significados derivados: armadilha (Rm. 11:9); sedução, tentação (Mt.
18:7); causa de ofensa, pedra de tropeço (1Co. 1:23).
Marcos (William Hendriksen) 210
mesmos, mas por amor a Cristo. Deve ser uma atitude positiva a sofrer
por amor ao Senhor, a Sua palavra, a Seu povo, e a Sua causa. Quando
falta este amor, a paciência é inútil (veja-se 1Co. 13:3b). Quando está
presente, produz alegria de coração, segurança da salvação (veja-se Mt.
5:11, 12; Jo. 16:33; At. 5:41; Rm. 8:18, 31–39; Fp. 1:27–30; 1Pe. 4:14;
Ap. 2:9, 10).
Mas as pessoas simbolizadas pela semente que caiu em solo
rochoso (veja-se sobre vv. 5, 6) careciam dessa persistência. Nunca
levaram a sério os exemplos de Rute, Jônatas, Estêvão, e Paulo. A
palavra “lealdade” não existia em seu vocabulário.
Como exemplo deste tipo de “amigos” volúveis, não é lógico supor
que entre a multidão que gritava “Hosana” (Mc. 11:9, 10 e paralelos)
houve também alguns que poucos dias mais tarde gritaram, “Crucifica-o,
crucifica-o”? Deve ter-se em mente que os seguidores de Cristo sofreram
perseguição não só depois de Sua ressurreição (At. 4:3; 5:18; 6:11, 12;
7:54–60; 8:1; etc.), mas inclusive antes (como o demonstra
definitivamente Jo. 9:22, 34, e bem pode estar incluído também em Mt.
5:10–12; 10:23, 25, 28; Lc. 6:22; 12:4). Nem todos os afetados por tal
perseguição suportaram a prova. Para alguns, as palavras de 1 João 2:19
vêm ao caso: “Saíram de nós, mas realmente jamais pertenceram a nós”.
Quanto a crentes genuínos, veja-se João 10:27-28, “As minhas ovelhas
ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a
vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão”.
Os que antes tinham sido meros aderentes externos, que nunca
foram seguidores genuínos porque sua profissão não brotava de
convicções internas (eram “sem raiz”), não entendiam que o verdadeiro
discipulado implica a entrega, a negação de si mesmo, o sacrifício, o
serviço e o sofrimento. Passavam por alto o fato de que o caminho que
leva ao céu é o caminho da cruz.
Marcos (William Hendriksen) 211
Corações apreensivos
18, 19. Os outros, os semeados entre os espinhos, são os que ouvem a
palavra, mas os cuidados do mundo, a fascinação da riqueza e as demais
ambições, concorrendo, sufocam a palavra, ficando ela infrutífera.
Esta passagem descreve o caso de pessoas cujo coração assemelha-
se ao terreno infestado de raízes e plantas espinhosas. Um campo tão
“sujo” é uma séria ameaça para o crescimento de qualquer planta útil.
Igualmente, os corações cheios dos transportes laboriosos do dia,
obscurecidos por sonhos de riquezas, e (Marcos acrescenta) o desejo de
outras coisas, desbaratam toda influência benéfica que, não sendo assim,
poderia agir na recepção da mensagem do reino. Tais corações se acham
muito ocupados. Não têm tempo para a meditação serena e sincera da
palavra e a mensagem do Senhor. Se num coração como este tentasse
entrar alguma reflexão ou pensamento sério da Palavra de Deus, seria
imediatamente afogado.
Os cuidados se referem à ansiedade constante com relação a
atividades terrestres, aos assuntos que pertencem à época em se vive.
Estes cuidados enchem a mente e o coração de negras pretensões. Se
estas pessoas forem pobres, enganam-se pensando que seriam felizes se
fossem ricos.
Mas se forem ricos, enganam-se imaginando que, se fossem mais
ricos poderiam sentir-se satisfeitos, como se as riquezas materiais
pudessem de algum modo garantir a felicidade. Na realidade, o encanto
que emana das riquezas é um encanto enganoso.
Segundo Marcos, aos dois tipos de espinheiros já mencionados,
Jesus acrescenta um terceiro: os desejos de outras [ou: das demais]
coisas. Sob este cabeçalho não há dúvida que se inclui todos os outros
desejos maus. 148 Tais desejos ou cobiças são maus, a. porque o que se
deseja é mau; por exemplo, o desejar drogas perniciosas, ou relações
íntimas com a esposa de outro homem; b. porque mesmo quando o que
148
Para encontrar um estudo etimológico do termo ἐπιθυμια (note-se o plural aqui: ἐπιθυμίαι) veja-se
CNT sobre 1 e 2 Timóteo e Tito, nota 147.
Marcos (William Hendriksen) 212
alguém deseja ter ou fazer seja perfeitamente lícito, o desejo pode ser
excessivo; por exemplo, jogar futebol ou xadrez até o ponto de
descuidar tudo o mais. Mas Jesus Se referia especialmente aos prazeres
pecaminosos, o que parece deduzir-se do breve resumo de Lucas; “afãs e
riquezas e prazeres da vida” (Lc. 8:14). Assim interpretado, vemos que a
enumeração de Lucas corre paralelamente à de Marcos.
Indubitavelmente, quando Jesus Se referiu aos espinheiros que
afogaram a semente que começava a germinar, não excluiu nada do que
corresponde a esta categoria geral. Fica incluída qualquer coisa que
esteja dentro da esfera das posses, o poder (ou prestígio) e o prazer, que
destrói o efeito da boa semente da palavra. “Porque nada do que o
mundo oferece vem do Pai, mas do mundo mesmo. E isto é o que o
mundo oferece: os maus desejos da natureza humana, o desejo de possuir
o que agrada aos olhos, e o orgulho das riquezas” (1Jo. 2:16, VP).
Nos dias de Amós, as pessoas supostamente religiosas se
perguntavam: “Quando passará o mês, e venderemos o trigo; e a semana,
e abriremos os celeiros [ou: abriremos o mercado do trigo] do pão, e
esgotaremos a medida, e subiremos o preço, e falsearemos com engano a
balança …?” (Am. 8:5). O enganoso encanto das riquezas foi o
espinheiro que afogou todo o bem que a mensagem de Deus pôde ter
realizado. Abundam outros exemplos tanto das Escrituras como da vida
diária.
As pessoas aqui referidas não podem receber ricas bênçãos nem
tampouco podem ser elas mesmas bênção para outros. A palavra, quanto
a elas se refere, não pode produzir fruto. Não há problema algum no
semeador. Tampouco há problema algum na semente. É que nesta classe
de gente todo anda mal. Deveriam pedir ao Senhor que os livre dos
trabalhos em excesso corrosivos e sonhos mundanos e ilusórios, de modo
que a mensagem do reino possa começar a ter livre curso em seu coração
e vida. Então sua mente, resgatada dos trabalhos em excesso exaustivos e
das fantasias ilusórias, estará em condições de refletir com entendimento
Marcos (William Hendriksen) 213
sobre passagens tão preciosas como Pv. 30:7–9; Is. 26:3; Mt. 6:19–34;
19:23, 24; Lc. 12:6, 7, 13–34; 1Tm. 6:6–10; e Hb. 13:5, 6.
Corações sensíveis
20. Os que foram semeados em boa terra são aqueles que ouvem a
palavra e a recebem, frutificando a trinta, a sessenta e a cem por um.
Ao chegar a esta gente, a mensagem do reino cai em boa terra, a
classe de terra que não é nem dura, nem superficial nem apreensiva, mas
é receptiva e fértil.
Esta gente ouve porque quer ouvir. Meditam no que ouvem porque
têm confiança em que fala. E assim chegam a alcançar um certo grau de
entendimento genuíno. Levam a mensagem à prática e dão fruto: a
conversão, a fé, o amor, a alegria, a paz, a paciência, etc.
Até o Antigo Testamento sublinha a importância do fruto espiritual
como sinal do verdadeiro crente: Sl 1:1–3; 92:14; 104:13. Esta linha de
pensamento continua nos Evangelhos (Mt. 3:10; 7:17–20; 12:33–35; Lc.
3:8; Jo. 15) e no resto do Novo Testamento (At. 2:38; 16:31; Rm. 7:4; Gl
5:22; Ef. 5:9; Fp. 4:17; Cl. 1:6; Hb. 12:11; 13:15; Tg. 3:17, 18).
Não obstante, nem todos os cristãos experimentam o mesmo grau
de frutificação. Nem todos são igualmente penitentes, fiéis, leais,
valorosos, humildes, etc.; daí que nem todos sejam igualmente eficazes
em conduzir outros a Cristo. No caso de alguns crentes, a semente (a
mensagem) rende trinta por um, quer dizer, trinta vezes mais do que foi
semeado; em alguns sessenta, e em outros cem. Mateus tem a ordem
oposta (100, 60, 30). Quanto à fiel reprodução da mensagem de Cristo,
cada evangelista emprega seu próprio estilo; mas não há nenhuma
diferença essencial.
Considere-se Timóteo, Tito e Paulo: três eminentes homens de
Deus, nos quais a semente do evangelho tinha brotado e produzido fruto.
Depois de sua conversão, os três tiveram em comum uma invariável
lealdade à causa do evangelho, uma disposição para realizar as tarefas
difíceis do reino, e um amor pelas almas; um amor que brotava do amor
Marcos (William Hendriksen) 214
a Deus, o próprio Deus que os amou primeiro. Não obstante, havia
diferenças entre os três. Timóteo — um excelente cristão, por certo! (Fp.
2:19–23) — precisava ser estimulado. Era de caráter tímido. Aos
coríntios foi dito que quando Timóteo chegasse, se preocupassem de que
estivesse entre eles “sem temor” (1Co. 16:10; e veja-se também 2Tm.
2:22a). Tito, por outro lado, é homem que não somente pode receber
ordens, mas também pode agir por decisão própria (2Co. 8:16, 17). É um
homem de recursos, de iniciativa pessoal para uma boa causa. Achamos
nele algo da agressividade de Paulo. Entretanto, nem Timóteo nem Tito
se comparam com Paulo. Qualquer pessoa que ler 2 Coríntios 11:23–28
se convencerá disso. Paulo escreveu as palavras de 1 Coríntios 15:10
sem exagerar, atribuindo toda a glória a Deus.
A comparação que aqui fazemos entre Timóteo, Tito e Paulo não é
para insinuar que Timóteo produziu só trinta por um, Tito exatamente
sessenta, e Paulo cem. Só tem o propósito de dar uma certa evidência em
favor da verdade fundamental de que esta parte final da parábola deixa
estabelecido: que existem diferenças mesmo entre aqueles cuja vida é
espiritualmente frutífera. Que cada um faça o melhor que puder para
produzir muito fruto (Jo. 15:5). Mas sempre é preciso lembrar que, em
última instância, todo bom pensamento, disposição, palavra, ato, e
caráter têm sua fonte em Deus e em Sua soberana graça (Rm. 11:36;
1Co. 4:7), embora a parábola também sublinha que a disposição para
ouvir corretamente o evangelho depende da condição do coração
daqueles que recebem a Palavra, estabelecendo-se assim a
responsabilidade humana. Veja-se também a explicação da parábola da
semente que cresce em segredo (Mc. 4:26–29).
149
Veja-se também NAS, Williams, Beck, Lenski. Todas são excelentes. Algumas das outras não são
tão exatas ou não tão claras sobre esta passagem. Não fazem ressaltar tão claramente como o faz o
grego, que μή (aqui μήτι) requer a resposta “Não”, e que οὑ (aqui οὑχ) antecipa um “Sim”.
Marcos (William Hendriksen) 217
150
em acender uma lâmpada e logo pô-la debaixo de um alqueire? Ou
quem a poria debaixo da “cama”, que era uma espécie de colchonete que
quando não se usava era enrolado. Fazer tal coisa com uma lâmpada
seria absurdo. Uma lâmpada acesa deve estar no castiçal! Este castiçal
era em geral um objeto muito simples. Podia ser um suporte fixado na
coluna do centro da habitação (a coluna que sustentava a grande viga
transversal do teto plano), ou simplesmente uma pedra sobressalente da
parte interior da parede, ou uma parte de metal colocado visivelmente
para esse fim.
O sentido é, naturalmente, que os crentes também devem deixar sua
lâmpada brilhar. Devem deixar que a palavra de Deus tenha pleno
controle sobre sua própria vida: seu ser interior, suas disposições,
pensamentos, palavras, ensinos, escritos, e atos. Nunca devem calar-se,
mas devem testificar (veja-se Sl 66:16; 107:2; Mt. 5:16; 2Tm. 4:2; 1Jo.
2:12–14). Deus dispôs que o mistério revelado a Seus filhos devia ser
manifestado. Está escondido só para os que persistem em rejeitar sua
chamada. Assim, conquanto o ensino de Marcos 4:11, 12 não se
contradiz, agora a ênfase recai no que deve suceder em primeiro termo: o
semeador deve semear a semente; a lâmpada deve ser posta onde possa
brilhar; o mistério deve manifestar-se, não se deve encobrir.
Mas, seja manifestado ou encoberto, qualquer coisa que se faça com
ele, não passará desapercebida:
22. Pois nada está oculto, senão para ser manifesto; e nada se
faz escondido, senão para ser revelado.
Os homens buscam encobrir as coisas, mas nisto sempre
fracassarão, porque Deus exibe tudo à luz. Um dia, tudo o que agora está
oculto será revelado (veja-se Ec. 12:14; Mt. 12:36; 13:43; 16:27; Lc.
8:17; 12:2; Rm. 2:6; Cl. 3:3, 4; Ap. 2:23; 20:12, 13).
150
Grego μόδιος do Latim modius, uma medida de capacidade = 16 sectarii, mais ou menos 8,75
litros.
Marcos (William Hendriksen) 218
Agora, esta é uma verdade que é com frequência passada por alto.
Os homens pensam que podem sair triunfantes com seus maus
pensamentos, planos, palavras e ações. Entretanto, Deus trará tudo isso à
luz. Não nos devemos surpreender de que, segundo o relato de Marcos,
Jesus prossiga dizendo:
23. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça.
Este versículo é basicamente igual ao versículo 9, embora sua
forma varie levemente (v. 9: “Quem tem”; v. 23 “Se alguém tem”).
Portanto, veja-se o comentário ao v. 9.
Logo se acrescenta outro pensamento, embora muito relacionado:
24. Então, lhes disse: Atentai no que ouvis.
Os Evangelhos sublinham três coisas a respeito da responsabilidade
que se deve ouvir, e aqui (vv. 21–25) estas três coisas se enfatizam em
relação aos seguidores de Cristo:
a. Que devem escutar ou ouvir (Mc. 4:9, 23), destacando o ouvir em
oposição a recusar-se a ouvir;
b. O que devem ouvir (v. 24); o que devem ouvir em oposição ao
que não devem ouvir; e
c. Como devem ouvir (Lc. 8:18); atentamente, judiciosamente, em
oposição a como não se deve ouvir.
Com relação a “cuidado”, ou “ponham atenção”, “estejam em
guarda”, veja-se também Mc. 13:33; Lc. 8:18. Se uma pessoa tender a
fixar sua atenção no que não deveria ouvir — por exemplo, intrigas
maliciosas — sentir-se-á inclinada a julgar e a condenar a outros
temerariamente. Medirá equivocadamente as pessoas, condenando-as.
Deve ter em mente que: Com a medida com que tiverdes medido vos
medirão também, … Se a pessoa que se preocupa em medir é amável,
seu juízo será favorável, ela se deleitará em reconhecer méritos onde os
encontrar, e se alegrará em outorgar favores (veja-se Lc. 6:38). Por outro
lado, se tiver a atitude contrária, facilmente cairá no costume de julgar
severamente, sem bondade (veja-se Mt. 7:1–5; especialmente v. 2). Seja
como for, a medida que usar será a que outros usarão com ela. Se der
Marcos (William Hendriksen) 219
generosamente, receberá com mais generosidade: e ainda se vos
acrescentará. Isto nos lembra Mateus 6:33, onde o original usa o mesmo
verbo, 151 e tal como aqui, em sentido favorável: “todas as coisas lhes
serão acrescentadas”, quer dizer, “eles serão outorgadas como um dom
extra”.
Os dons de Deus sempre são muito generosos. Continuamente está
acrescentando dom sobre dom, favor sobre favor, bênção sobre bênção.
Não apenas dá “de” Suas riquezas — como o faria um multimilionário
ao dar umas moedas à beneficência — mas sim “conforme a” Suas
riquezas, as riquezas de Sua graça (Ef. 1:7). Deus comunica “graça sobre
graça” (Jo. 1:16). Não só perdoa, mas também perdoa abundantemente
(Is. 55:7). Deleita-se na misericórdia (Mq. 7:18). “E será que, antes que
clamem, eu responderei; estando eles ainda falando, eu os ouvirei” (Is.
65:24; cf. Dn. 9:20–23). Quando ama, ama o mundo; e quando dá, dá o
Seu Filho unigênito (Jo. 3:16). Aquele Filho, além disso, não só
intercede por Seu povo, mas também está “vivendo sempre para
interceder por eles” (Hb. 7:25). Na realidade, “Ele dá, e dá, e volta a
dar”.
“Mais ainda lhes será dado”. Quando o servo de Abraão pediu de
beber a Rebeca, ela não só apagou sua sede mas também, além disso,
deu de beber aos camelos (Gn. 24:13, 14, 18–20, 42–46).
Isto é só um pálido reflexo do que Deus, em Cristo, está fazendo
constantemente:
Não só outorga a Salomão seu desejo de sabedoria, mas também
além disso, promete-lhe riquezas e longos dias (1Rs. 3:9–15).
Não só acede à petição do centurião de curar a seu servo, mas
também além disso, pronuncia uma bênção sobre ele (Mt. 8:5–13).
Não só responde à súplica de Jairo, devolvendo a vida à sua filha,
mas também além disso, preocupa-se de que a filha receba algo de comer
(Mc. 5:21–24, 43).
151
προστεθήσεται, fut. indic. pas. 3ra. pes. sing. de προστίθημι.
Marcos (William Hendriksen) 220
O Cristo ressuscitado não só cumpre Sua promessa de encontrar-se
com os discípulos na Galileia (Mt. 26:32; 28:7, 16–20), mas além disso,
sai-lhes ao encontro e os abençoa estando ainda em Jerusalém (Lc.
24:33–48).
Não só perdoa ao pecador — como um governante pudesse
outorgar perdão — mas além disso o adota como filho e lhe concede paz,
santidade, alegria, segurança, liberdade de acesso, e o torna mais que
vencedor (Rm. 5–8).
Esta interpretação da cláusula final do versículo 24 vê-se apoiada
pelo que imediatamente segue no versículo
25. Pois ao que tem se lhe dará; e, ao que não tem, até o que tem
lhe será tirado.
Nos assuntos espirituais é impossível permanecer imóvel e quieto.
Uma pessoa ganha ou perde, avança ou retrocede. Ao que tem, ser-lhe-á
dado. Os discípulos (com exceção de Judas Iscariotes) haviam “aceito a
Jesus”. Referindo-se a eles, mais adiante Jesus diria ao Pai: “guardaram
sua palavra” (Jo. 17:6) e “Não são do mundo” (Mc. 17:16). É verdade
que esta fé era acompanhada de muita fraqueza, erros, e imperfeições.
Mas o começo já foi feito. Portanto, conforme a norma do céu, foi-lhes
assegurado que seguiriam progredindo, avançando em conhecimento,
amor, santidade, alegria, etc. e em todas as bênçãos do reino do céu,
porque a salvação é uma corrente cada vez mais profunda (Ez. 47:1–5).
Toda bênção é uma garantia de maior bênção futura, “Porque de sua
plenitude tomamos” (Jo. 1:16). A teoria segundo a qual Jesus (ou
Marcos) referia-se só a um aumento de conhecimento ou talvez de
percepção, é improvável. Certamente, esse discernimento está incluído,
porém nada existe no contexto que limite rigidamente as bênçãos que
aqui se prometem.
Por outro lado, ao que não tem, ser-lhe-á tirada inclusive a
aparência do conhecimento, desse entendimento superficial dos assuntos
espirituais, que em algum momento tivesse tido. Não temos uma
analogia disto na esfera do conhecimento, por baixo do nível
Marcos (William Hendriksen) 221
estritamente espiritual? Por exemplo, se uma pessoa aprender um pouco
de música, para tocar algumas melodias singelas, mas realmente não o
bastante para poder dizer, “domino este ou aquele instrumento”, e logo
deixa totalmente a prática, logo descobrirá que a pouca destreza que num
tempo teve, desvaneceu-se. Assim também no espiritual, o homem que
recusa fazer devido uso de seu único talento, até isto perderá (Mt. 25:24–
30).
Pelos versículos 33, 34 (cf. Mt. 13:31, 34) parece que quando Jesus
pronunciou as duas parábolas consignadas em Marcos 4:26–32 (como
também a de 4:3–9), estava falando com as multidões. Quer dizer,
Marcos volta aqui para a situação existente quando Jesus falou de dentro
de um barco às pessoas (v. 1).
Entre a parábola do semeador (a que tanta proeminência dá-se nos
sinóticos e que Marcos também relata antes que as demais, cf. vv. 3–9), e
a da semente que cresce em segredo (que se acha só em Marcos) 152 há
uma estreita relação. A primeira sublinha a responsabilidade humana: a
semente não pode brotar, crescer e dar fruto se não cair em boa terra.
Significado: a palavra ou mensagem de Deus, o evangelho, produz fruto
152
Alguns creem que tanto a parábola da semente que cresce em segredo como a parábola do joio, têm
uma só fonte comum e que foram originalmente uma. Esta teoria se baseia na circunstância de que
várias palavras são utilizadas em ambas as parábolas:
Marcos 4 Mateo 13
καθεύδω v. 27 v. 25
βλαστάω,-άνω v. 27 v. 26
πρῶτον v. 28 v. 30
χόρτος v. 28 v. 26
σῖτος v. 28 v. 30
καρπός v. 29 v. 26
θερισμός v. 29 v. 30
Mas pelo fato de que as duas parábolas estão baseadas no que sucede ou pode suceder ao semear-se os
campos, é natural que exista certo grau de semelhança verbal. Além disso, as histórias em si mesmas
são diferentes, e assim também as razões para relatá-las. A teoria é, portanto, inaceitável.
Marcos (William Hendriksen) 222
só quando o coração responde favoravelmente. Este é um aspecto da
verdade que não se deve descuidar jamais. Entretanto, às vezes sucede.
Por exemplo, um pregador pergunta à sua congregação, “O que pode
fazer uma pessoa para ser salva?” e logo cria um ambiente de incerteza
guardando silêncio alguns instantes … depois do qual prossegue, “eu
lhes direi isso: não pode fazer nada absolutamente! Deus faz tudo”. Não
deveria também mostrar a outro lado da moeda? Quando o carcereiro
perguntou, “Senhores, o que devo fazer para ser salvo?”, Paulo e Silas
não disseram, “Você não pode fazer nada”. O que disseram foi, “Crê no
Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa” (At. 16:30, 31).
É verdade, não obstante, que o homem por si mesmo nada pode
fazer. Só mediante o poder que Deus comunica, o homem é capaz de
voltar-se a Ele com verdadeira fé. Não pode converter-se a menos que
em primeiro lugar seja regenerado (Jo. 3:3, 5; veja-se também Jr. 31:18;
1Co. 4:7; Ef. 2:8; Fp. 2:12, 13; 4:13). A presente parábola põe todo o
acento neste aspecto da verdade, ou seja, na soberania de Deus. Ensina
que assim como é Deus somente, e não o agricultor, quem entende
completamente e é, na realidade, o Autor do crescimento físico, assim
também só Deus, não o homem, entende perfeitamente e é o Autor do
crescimento espiritual, e do estabelecimento e progresso do reino de
Deus no coração, vida, e em outras esferas.
É por Sua vontade que a semente espiritual, a palavra ou mensagem
do evangelho, estabelece sua crescente e poderosa influência no coração
dos homens e assim também na sociedade em geral. Que consolo é este!
pois agora esperamos com paciência uma colheita cuja chegada é segura.
A vitória está assegurada: o plano de Deus deve ser, e será levado a
cabo.
Em consequência, a parábola deixa claro três ideias. Tão
estreitamente unidas estão que as três na realidade formam uma unidade.
São como segue:
1. Para o homem o crescimento é um mistério (vv. 26, 27).
2. A semente revela seu poder (v. 28).
Marcos (William Hendriksen) 223
3. A colheita significa vitória (v. 29).
Assim ocorre no reino da natureza; e assim também sucede no reino
da graça, porque o crescimento do reino é também um mistério. A
palavra do reino (cf. Mt. 13:19; 24:14) revela seu poder, que virá a ser
evidente no dia da colheita, o juízo final, que virá indubitavelmente no
tempo estabelecido.
153
No original, a disseminação ou espalhamento da semente contempla-se como se fosse um só ato:
daí que se use o aoristo subjuntivo. Mas para os verbos “dormir”, “levantar-se”, “brotar” e “crescer”,
usa-se o presente subjuntivo, visto que estas supostas ações são vistos como processos contínuos.
Marcos (William Hendriksen) 224
pouquinho de terra — diremos “morta”? — em uma célula viva, e não
em qualquer célula, mas em células precisamente semelhantes às da
planta de onde se originou a semente.
A única coisa que o agricultor pode fazer é confiar. É claro que ele
tem que enterrar a semente, arrancar a erva daninha, lavrar a terra,
fertilizá-la, e talvez fazer um canal para levar água ao seu campo. Todas
estas coisas são importantes. Mas não pode fazer com que a semente
germine e cresça. Quanto a isto, a única coisa que pode fazer é dormir
noite após noite, e levantar-se novamente cada dia. O resto tem que ficar
tudo a cargo da semente; na realidade a cargo dAquele que criou a
semente, que a entende totalmente e que a ativa. O agricultor deve
confiar e orar. Deve esperar pacientemente.
No plano espiritual isto também é válido. Com relação ao
estabelecimento e crescimento do reino de Deus, o “não posso” e o
“ignoro” são tão verdadeiros como o é com relação à germinação e
desenvolvimento da semente física. Com relação a “não posso” veja-se
1Co. 3:6, “Eu plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento”.
Quanto ao ignoro” veja-se Jo. 3:8, “O vento sopra onde quer, ouves a sua
voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é
nascido do Espírito”.
154
Ou: a cabeça.
155
Ou: o fruto.
Marcos (William Hendriksen) 225
O segredo do crescimento, por assim dizer, foi confiado à terra.
Entretanto, este termo “terra” por metonímia deve aqui significar “a
semente enterrada na terra”. A esta semente Deus confiou o segredo, de
modo que ela agora, digamos assim, “sabe” exatamente o que tem que
fazer-se, quando e como.
Quanto ao homem, se depois de alguns dias de ter semeado vai ao
campo para lançar um olhar, não verá sinal algum de vida. Mas depois
de certo tempo ao olhar novamente, ficará surpreso ao ver muito muitos
plantinhas onde antes não havia nada visível. Então exclama, “Que poder
oculto havia em coisas tão pequenas!”
Assim é também no que respeita ao reino, o reino de Deus. Um
pastor fiel espalha a semente ano após ano. Explica, descreve, convida,
exorta, consola, adverte, insiste, faz visitas pastorais. Apesar de tudo, no
princípio o esforço parece inútil. Mas de repente, as brisas do Senhor
começam a soprar sobre os campos (corações) de sua congregação (cf.
Ct. 4:16). A palavra mostra seu poder. Tinha estado ativa antes, mas os
resultados não tinham sido muito evidentes. Mas agora, homens e
mulheres, velhos e jovens, cultos e analfabetos, ricos e pobres,
confessam com júbilo sua fé e a manifestam em sua vida. O Espírito está
operando poderosamente, sempre com relação à palavra e o evangelho.
Os crentes têm paz e segurança de salvação em seus corações. Põem o
olhar no futuro rumo à herança reservada para eles no céu.
Mas isto de modo algum é tudo. Estas pessoas se sentem
agradecidas. Portanto, compreendem que em todo lugar todas as coisas
devem ser feitas se para a glória de seu maravilhoso Deus (Sl 150; Jo.
17:1–4; Rm. 11:36; 1Co. 6:20; 10:31; Jd. 24, 25; Ap. 4:11; 5:12–14;
19:1–8). Também se põem a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para
ser instrumentos nas mãos de Deus para a salvação de outros. Precioso
encargo! (Pv. 11:30; Dn. 12:3; Mt. 11:28–30; 23:37; 1Co. 9:22). Além
disso, preocupam-se com que a vontade de Deus, tal como é revelada em
Sua palavra, seja reconhecida e obedecida em toda esfera: família, igreja,
governo (a todo nível), educação, arte, ciência, literatura, comércio,
Marcos (William Hendriksen) 226
indústria, etc., etc. Assim é como o reino de Deus chega a estabelecer-se
na terra.
Observe-se o desenvolvimento indicado aqui: da folha, à espiga, até
chegar ao grão cheio na espiga. 156 No mundo vegetal esta transição de
uma etapa a outra é tão gradual que verdadeiramente pode considerar-se
imperceptível. Tratemos de precisar o momento em que a folha se
transforma em espiga, ou esta produz uma fileira de grãos. Não se pode
fazer. Não obstante, embora imperceptível, o desenvolvimento também é
inevitável. Sob condições normais ninguém pode deter o crescimento.
Quem não viu lugares onde uma planta faz aparecer sua cabeça entre as
pedras de uma calçada ou um muro e às vezes inclusive através de um
encanamento?
Algo muito parecido sucede no caso do reino dos céus. Talvez não
seja possível descrever claramente o crescimento em santidade que
ocorre de um dia para outro; não é possível descrever tal progresso do
reinado de Deus na vida das pessoas. Não obstante, a verdade é que “O
caminho de justos é como a luz da aurora, que vai aumentando até ser
dia perfeito” (Pv. 4:18). Isto não só é verdade com relação à vida do
crente individual; é-o também no que respeita à influência do evangelho.
156
No original estes três substantivos são acusativos de χόρτος, στάχυς e σῖτος. O primeiro, fácil de
associar com pasto, erva, no Novo Testamento refere-se frequentemente à erva verde do campo (Mc.
6:39; cf. Mt. 14:19; Jo. 6:10; veja-se também Ap. 8:7; 9:4). Pode, entretanto, também referir-se às
flores silvestres (Mt. 6:30; Lc. 12:28; Tg. 1:10, 11). O paralelismo em 1Rs. 1:24 faz ressaltar este
significado de maneira chamativa. Aqui em Mc. 4:28 (cf. Mt. 13:26) a palavra aponta ao grão em sua
etapa inicial, quase de erva; portanto, grão verde, folha. Nós mesmos falamos da família das
gramíneas como a mais importante entre todas as famílias de plantas e que incluem cereais tais como:
arroz, trigo, cevada, milho, centeio, e aveia.
O segundo destes três substantivos refere-se à espiga ou a cabeça do grão, quer dizer, à parte da
planta que carrega o grão (cf. Mc. 2:23; também Mt. 12:1; Lc. 6:1). A raiz stac poderia ser uma
modificação desta (cf. ἵστημι), o que a relacionaria com o inglês to stand (pôr-se ou estar de pé). Isto
descreveria as espigas ou espigas de milho de grão como direitas, sobressalentes, proeminentes. Mas
esta etimologia é muito incerta. Paulo incluiu o Estaquis de Roma entre aqueles crentes a quem enviou
saudações (Rm. 16:9).
O terceiro substantivo é trigo, e em geral refere-se aqui ao grão amadurecido em sua espiga ou vagem.
Em outra literatura grega indica também aquilo que se faz com base ao grão; portanto, o pão. A
sitología é a ciência da dietética e a nutrição.
Marcos (William Hendriksen) 227
Através dos séculos, pouco a pouco, o reino se espalha de uma nação a
outra, e de forma crescente faz com que seu poder seja sintido em todas
as esferas da vida (veja-se CNT sobre Mt. 24:14). Isto revela claramente
o poder da palavra (Is. 40:6–8; 1Pe. 1:24, 25; Hb. 4:12).
157
Ou: o tempo da ceifa chegou.
158
παραδοῖ, aor. subj. de παραδίδωμι. Este verbo não tem aqui seu significado comum de entregar ou
passar algo de alto a baixo (ou inclusive de encarregar, encomendar). Antes, neste caso significa
permitir, admitir. Algo similar, porém não idêntico é o uso que se faz deste verbo em 1Pe. 2:23
(“cedeu”, “encomendou-se”).
159
Um bom número de expositores creem que o sujeito de “mete a foice” refere-se a Cristo. Os
argumentos a favor poderiam ser: a. de acordo com a própria explicação que Jesus dá à parábola do
joio (Mt. 13:37), o semeador nessa história é o Filho do Homem. Assim que, por que não também
nesta parábola? b. Em Ap. 14:14–16, aquele que dirige a foice é também o Filho do Homem. Assim
que, por que não aqui também?
Por outro lado, deveriam considerar-se também os seguintes pontos: a. Mc. 4:26 não diz “o
semeador”, mas sim simplesmente “um homem”. b. O fato que Jesus descreva a Si mesmo como
dormindo noite após noite e levantando-se dia após dia, soa algo estranho; e que diga que Ele mesmo
não sabe como brota e cresce a semente parece, por dizer o mínimo, como se tivesse sido introuzido
nesta parábola um elemento alheio à ideia central.
Em consequência, creio que o melhor procedimento seria não atribuir a Cristo cada uma das coisas
que se diz deste “homem” nesta parábola. Isto deixa, então, lugar para crer que o Filho do Homem
descrito em Apocalipse 14:14–16 simboliza indubitavelmente a Cristo, o Juiz e Vencedor. E a ação
descrita nessa passagem é a mesma que se indica aqui em Marcos 4:29.
Marcos (William Hendriksen) 228
Ap. 14:14–16). A lição é: a vitória é segura; a colheita aproxima-se e
certamente chegará no momento exato estabelecido no plano eterno de
Deus. Então o reino de Deus será revelado em todo seu esplendor (Ap.
11:15; 17:14).
“Sede, pois, irmãos, pacientes, até à vinda do Senhor. Eis que o
lavrador aguarda com paciência o precioso fruto da terra, até receber as
primeiras e as últimas chuvas. Sede vós também pacientes e fortalecei o
vosso coração, pois a vinda do Senhor está próxima” (Tg. 5:7, 8).
Mateo 13 Marcos 4
v. 31 v. 30
Marcos (William Hendriksen) 229
Outra parábola lhes propôs, dizendo: Disse mais: A que assemelharemos
o reino de Deus? Ou com que
parábola o apresentaremos?
31
O reino dos céus é semelhante a um É como um grão de mostarda, que,
grão de mostarda, que um homem quando semeado, é a menor de
tomou e plantou no seu campo; todas as sementes sobre a terra;
v. 32 v. 32
o qual é, na verdade, a menor mas, uma vez semeada, cresce e se
de todas as sementes, torna maior do que todas as hortaliças
e, crescida, é maior do que as e deita grandes ramos, a ponto de as
as hortaliças, e se faz árvore, de aves do céu poderem aninhar-se à
modo que as aves do céu vêm sua sombra.
aninhar-se nos seus ramos.
v. 18
E dizia: A que é semelhante o reino de Deus, e a que o compararei?
v. 19
É semelhante a um grão de mostarda que um homem plantou na sua horta; e
cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu aninharam-se nos seus ramos.
160
Tem se interpretado o texto como querendo dizer que o grão de mostarda é o próprio Jesus, ou que
Jesus escolheu esta semente para ilustrar o que é o reino por causa do sabor picante que tem, ou que o
jardim onde a semente foi plantada representa Israel. Todo este tipo de interpretações estranhas devem
descartar-se por não ter base, e por ser especulações caprichosas que têm pouco ou nada que ver com
o verdadeiro significado da parábola. Com isto não queremos negar que Cristo e o reino são coisas
inseparáveis (cf. Rm. 8:31–39; Ap. 17:14).
Marcos (William Hendriksen) 231
161
O que aqui temos é uma pergunta retórica para despertar o
interesse. Observe-se a surpreendente semelhança que há, quanto a
forma, com uma dupla pergunta similar que se acha em Isaías 40:18 e
com a de Lucas 7:31.
Não foi uma pergunta que Jesus suscitasse por achar-se numa
situação difícil, como se estivesse confuso sobre qual seria sua seguinte
ilustração quanto ao reino e seu crescimento. Era um recurso usado pelos
rabinos para despertar a atenção da concorrência. De tão extrema
importância era para o Senhor o surpreendente e maravilhoso tema do
reino e seu crescimento, que desejava que todos escutassem atentamente.
Seus endurecidos inimigos seguiriam endurecidos; para falar a verdade,
endurecer-se-iam ainda mais (v. 12), mas embora a lição lhes passou de
largo, seria salvificamente aproveitada por outros.
Sob a figura simbólica de uma semente de mostarda, a parábola
descreve em primeiro lugar a pequenez do reino no começo da nova
dispensação:
31. É como um grão de mostarda, que, quando semeado, é a
menor de todas as sementes sobre a terra.
Entre as sementes que se semeiam no jardim (Lc. 13:19), a de
mostarda era geralmente a menor. Por isso, usa-se proverbialmente para
indicar tudo o que em seus começos é muito miúdo (Mt. 17:20; Lc.
17:6). De igual modo, nos dias da peregrinação de Cristo sobre a terra, o
reino de Deus esteve representado por uma pequena companhia de
verdadeiros crentes. Comparado com toda a população do império
romano, ou com todos os que habitavam a Palestina naquele então, ou
até com as grandes multidões que seguiam a Jesus por razões egoístas, o
verdadeiro “reino” de Cristo (veja-se 1:15) era realmente insignificante a
olhos humanos. Além disso, seu prestígio imediato era pequeno. Parecia
um pequeno rebanho de ovelhas indefesas: “Não temais, pequeno
rebanho …” (Lc. 12:32). Seu pastor foi “desprezado e rejeitado pelos
161
ὁμοιώσωμεν y θῶμεν são aoristos subjuntivos deliberativos.
Marcos (William Hendriksen) 232
homens” (Is. 53:3). Era como uma simples pedra (Dn. 2:34; cf. também
Lc. 17:17; Jo. 6:66; At. 28:22; 1Co. 1:26; Ap. 3:8).
Não obstante, aquele “pequeno rebanho” terá que converter-se na
multidão que ninguém pode contar que vemos em Apocalipse 7:9. A
“pedra” estava predestinada a converter-se num monte tão grande que
encheria toda a terra (Dn. 2:35).
32. Mas [a semente], uma vez semeada, cresce e se torna maior
do que todas as hortaliças e deita grandes ramos, a ponto de as aves
do céu poderem aninhar-se 162 à sua sombra.
O broto que aparece na semente de mostarda cresce cada vez mais
até chegar a ser um arbusto, que por sua vez cresce e chega a maior
altura que todas as demais plantas que brotam das sementes semeadas no
jardim. Finalmente, tem toda a aparência de uma árvore e, falando de
forma algo imprecisa, poderia dizer-se que é uma árvore. Marcos
interpreta corretamente as palavras de Cristo, dizendo que deita ramos
tão grandes que as aves do céu podem aninhar ou proteger-se à sua
sombra. Até hoje esta espécie cresce vigorosamente na Palestina.
Alcança até três metros, e às vezes até mesmo cinco. No outono, quando
os ramos ficam rígidos, os pássaros de várias espécies acham nelas
abrigo contra as tormentas, repouso para seu cansaço, e sombra contra o
calor do sol. 163
De maneira similar, o reino de Deus, uma vez estabelecido,
estende-se e segue estendendo-se. Quanto aos pássaros que acham
resguardo à sombra da árvore (cf. Ez. 17:22–24; Dn. 4:10, 21), não
indica isto que o reino chega a ser uma bênção para os homens de todo
clima, raça, e nação? Na verdade,
162
Ou: acampar, repousar, viver.
163
As aves também acham deliciosas e pequenas sementes negras que tiram da vagem, mas este
detalhe não se inclui na parábola. Quanto a uma descrição muito interessante da ação dos pássaros
com relação à semente de mostarda, veja-se A. Pormelee, All the Birds of the Bible (Nova York,
1959), p. 250.
Marcos (William Hendriksen) 233
“Em torno do trono do Deus de Abraão
Milhares de filhos agora já estão”. 164
Anne H. Shepherd (Trad. adaptada)
164
Uma ilustração chamativa acha-se em W. Barclay, op. cit., pp. 108–110.
Marcos (William Hendriksen) 234
Em tudo isto há uma importante lição implícita: Bem-aventurado
aquele que toma parte ativa em promover o crescimento do reino;
começando sempre por nossa casa (Mc. 5:19), mas sem nunca esquecer-
se de todo o mundo” (Mc. 16:15).
165
ἀπολλύμεθα. Os três evangelistas relatam o grito histérico, “perecemos”. Em Marcos, entretanto, a
expressão ocorre num contexto de recriminação.
Marcos (William Hendriksen) 236
Se omitirmos Mateus 8:26, e nos limitamos ao relato de Marcos,
temos seis parágrafos, ou seja:
Tema: Uma tempestade acalmada. Esboço: 1. embarcar ao
entardecer, 2. uma furiosa tempestade, 3. um clamor frenético, 4. um
milagre assombroso, 5. uma recriminação carinhosa, 6. um profundo
efeito.
1. Embarcar ao entardecer
35, 36. Naquele dia, sendo já tarde, 166 disse-lhes Jesus:
Passemos para a outra margem. 167 E eles, despedindo a multidão, o
levaram assim como estava, no barco; e outros barcos o seguiam.
Tinha sido um dia muito ocupado para Jesus. De um barco afastado
da praia, tinha estado falando em parábolas às multidões. Depois “em
casa” (ou: numa casa) havia comunicado ensino particular aos Seus
discípulos. Não é de surpreender-se que ao entardecer estivesse cansado
e esgotado.
De modo que volta para a praia, e diz aos Seus discípulos,
“Passemos para a outra margem”. Queria cruzar do agitado lado
ocidental (de Cafarnaum), ao lado oriental ou “país dos gadarenos”
(veja-se Mc. 5:1). Visto que não só era totalmente divino, mas também
totalmente humano, necessitava descanso. Devia afastar-se de toda
aquela gente: não somente lotavam a praia; rodeavam-nO inclusive com
outros barcos!
Marcos afirma que os discípulos levaram Jesus (com eles) no barco.
Ele tomou a iniciativa dando a ordem, “Passemos para a outra margem
…”. Mas os discípulos eram os marinheiros, os navegantes. 168 De modo
166
ὀψίας γενομένης, genitivo absoluto.
167
O verbo διέλθωμεν é um aor. subj. 1ª. pes. pl. hortativo de διέρχομαι.
168
Swete (op. cit., p. 88) opina que Mt. 8:23 e Lc. 8:22 “passaram por alto” o fato de que Jesus já se
achava a bordo (Mc. 4:1), mas esta opinião só se poderia sustentar se não for levado em conta que
segundo Mt. 13:36 (cf. Mc. 4:34b) Jesus tinha abandonado o barco e entrado na casa antes de
reembarcar.
Marcos (William Hendriksen) 237
que tomaram a Jesus “tal como estava” (cf. 2Rs. 7:7), cansado, esgotado,
necessitado de descanso e sono (veja-se v. 38, e cf. Lc. 8:23a).
169
Ou: temível borrasca, redemoinho, furiosa tempestade.
170
Note-se a aliteração em Lc. 8:23: λαῖλαψ … λίμνην. E ainda mais importante é não passar por alto
κατέβη, “precipitou-se, caiu”.
Marcos (William Hendriksen) 238
dormindo” descreve a Jesus dormindo tranquilamente. Lucas 8:23 dá a
impressão de que Jesus pôs-se a dormir logo que (ou quase logo que) o
barco abandonou a praia. Logo se achava dormindo profundamente,
mostrando que devia estar cansadísimo, e dando a entender também que
Sua confiança no Pai celestial — Seu próprio Pai — nunca falhava. Nem
o rugir dos ventos, nem o embate e fragor das ondas, nem mesmo o girar
e descer do barco, que rapidamente fazia água, foram capazes de
despertá-Lo.
Não devemos imaginar que aquele dormir era como se a cabeça de
Jesus estivesse apoiada precisamente numa travesseiro muito suave.
Observe-se: “sobre o travesseiro”, não “sobre um travesseiro”. Talvez
havia uma “almofada” pertencente ao barco, a único a bordo. Ou
também pôde ter sido um descansa cabeças de couro; talvez inclusive de
madeira (uma parte do bote), em cujo caso “travesseiro” seria melhor
tradução que “almofada”. Conforme a sua etimologia, a palavra usada no
original só significa realmente que era algo “para a cabeça”, para seu
descanso; portanto, um travesseiro.
3. Um frenético clamor
38b. Eles o despertaram e lhe disseram: Mestre, não te importa
que pereçamos?
Embora os relatos dos Evangelhos mantenham uma unidade básica,
as exclamações dos espavoridos discípulos são apresentadas de
diferentes maneiras. Mateus diz, “E vieram seus discípulos e
despertaram, dizendo: Senhor, salva-nos, que perecemos!”; Lucas,
“Mestre, Mestre, que perecemos!”; Marcos, “Mestre, 171 não te importa
171
Assim se traduz também Διδάσκαλε na VP, NBE, BJ, RV60, etc. Cf. alemão “Meister”, holandês
“Meester”. No caso presente, a atitude dos discípulos bem pôde ter sido uma combinação de terror,
reverência e recriminação. Que a reverência não estava totalmente ausente é evidente pelo uso que
Mateus faz da palavra κύριε e Lucas da palavra Επιστάτα para relatar a forma em que os discípulos se
dirigiram a Jesus. Portanto, para buscar o melhor equivalente em nosso idioma da palavra Διδάσκαλε
em Marcos, a tradução “Mestre” não se deve desprezar levianamente.
Marcos (William Hendriksen) 239
de que perecemos?”. É razoável supor que numa situação de tão terrível
desespero, os discípulos gritariam uns uma coisa, e outros outra.
É difícil atribuir qualquer outro significado à exclamação, “Mestre,
não te importa que pereçamos” exceto o de ser uma crítica adversa a
Jesus, como se tudo o que pudesse suceder aos Seus discípulos não Lhe
importasse. Honestamente, tão aguda observação não pode nem sequer
chamar-se com justiça uma recriminação “suave”. Não havia nada suave
nisto. Significava, “Temos tão pouco valor para ti? Com a morte nos
olhando de frente, como podes dormir? Não te importa que nos trague
este mar enfurecido?”.
Não obstante, antes de julgar estes homens tão duramente, devemos
ter em mente os seguintes fatos: a. Estavam totalmente atemorizados: em
semelhante situação até as pessoas que normalmente são leais e
valorosas dizem às vezes coisas que depois lamentam; e b. sua amargura
não se acha isenta de certo grau de confiança. Se isto não fosse verdade,
eles — alguns eram marinheiros de ofício — não se teriam dirigido a um
“carpinteiro” para que lhes socorresse. Sem dúvida que sua fé distava
muito de ser perfeita, mas até a “pequena fé” é fé, e tem esperança de
purificar-se e crescer.
Segundo Mateus, a chamada angustiosa dos discípulos despertou a
Jesus, quem lhes disse, “Por que sois tímidos, homens de pequena
fé?” 172 Ele não estava assustado. Ao contrário, achava-se em pleno
controle da tempestade, mesmo quando os ventos ainda rugiam e as
águas ferviam (veja-se CNT sobre Mt. 13:34, 35).
172
Alguns afirmam que Marcos e Lucas deram a verdadeira ordem dos acontecimentos, porém não
assim Mateus. Não vejo nenhuma razão para aceitar tal opinião. Nem Marcos nem Lucas estavam
presentes durante a tormenta, mas Mateus sim estava. Além disso, não é natural supor que aquela falta
de fé foi para Jesus um assunto tão importante, que considerou necessário referir-se a ela antes e
depois de realizar o milagre? E não é também verdade que os discípulos foram embargados pelo temor
duas vezes; primeiro por causa da tempestade, e segundo por causa da presença Daquele que acalmou
a tempestade? Veja-se Lc. 8:24, 25.
Marcos (William Hendriksen) 240
4. Um assombroso milagre
39. E ele, despertando, repreendeu o vento e disse ao mar:
Acalma-te, emudece! O vento se aquietou, e fez-se grande bonança.
Segundo Mateus 8:26 Jesus levantou-se e “repreendeu os ventos e o
mar”. Segundo Lucas 8:24 “repreendeu o vento e a fúria das águas”. E
conforme a Marcos 4:39, “repreendeu o vento”, e disse ao mar que se
calasse. O verbo “repreendeu” 173 é o mesmo nos três casos. Há aqueles
que sustentam que este verbo sugere um objeto animado. Dizem que esta
inferência vê-se reforçada por Marcos 4:39, que se traduz então,
“Acalma, emudece!” Mas, começando por esta última, é preciso dizer
que uma palavra nem sempre retém sua conotação básica ou primária.
“Cala! Sossega!” é a melhor tradução de Marcos 4:39. Quanto à
expressão, “repreendeu”, deve ter-se em mente que Marcos não diz,
“Jesus repreendeu o demônio”, ou “os demônios”, ou “os espíritos maus
que estavam no vento”. Simplesmente diz, “repreendeu o vento”.
Pareceria, então, que se trata simplesmente de uma forma figurativa e
poética de falar (cf. Sl 19:5; 98:8; Is. 55:12; etc.). Assim ocorre também
em Lucas 4:39, onde somos informados que Jesus “repreendeu” a febre
que afligia a sogra de Pedro. O importante da expressão “repreendeu o
vento” (e seus paralelos nos outros Evangelhos) é que Jesus faz valer
Sua autoridade sobre os elementos da natureza, de modo que houve uma
profunda (literalmente “grande”) calma.
Marcos contém um paralelismo progressivo muito impressionante.
Jesus fala separadamente ao vento e ao mar. Ao vento repreende; ao mar
diz, “Acalma-te, emudece!” O resultado é indicado também
separadamente; o vento se acalmou e o mar sossegou.
O que chama especialmente a atenção é que não só se acalmou o
vento imediatamente, mas também o mesmo fizeram as águas. É bem
sabido que, em geral, depois que os ventos diminuem visivelmente, as
173
ἐπετίμησεν aor. indic. 3a. pes. sing. de ἐπιτιμάω. Tem o sentido de recriminação em passagens tais
como Mt. 8:26; 16:22; 17:18; 19:13; Mc. 4:39; Lc. 4:39; 9:42, 55; 19:39; 23:40; mas às vezes
significa advertir, dizer às pessoas que não façam algo, proibir (Mt. 12:16; 12:20; Mc. 3:12; Lc. 9:21).
Marcos (William Hendriksen) 241
ondas seguem rolando por algum tempo, elevando-se e desabando-se
como se não queriam seguir o exemplo das já dominadas correntes de ar
que há sobre elas. Mas neste caso os ventos e as ondas se sincronizam na
sublime sinfonia de um silêncio solene. Sobre as águas se posa algo
comparável à calma de um anoitecer sob um céu estrelado.
Repentinamente, a superfície do mar se tornou lisa como um espelho.
6. Um profundo efeito
41. E eles, possuídos de grande temor, … Por causa de tudo o que
Jesus tinha revelado com relação a Si mesmo, mas provavelmente mais
por causa do poder que tinha manifestado, aqueles homens “temeram
(com) grande temor”, diz Marcos literalmente. 174 O “espanto” que aqui
se menciona era uma combinação de temor e reverência. Mateus 8:27 diz
que os homens “se maravilharam” (ou: assombraram)”. Lucas 8:25 fala
de temor e assombro. Os discípulos começam a notar: a grandeza de
174
Embora Marcos escreva para os romanos, ele mesmo é judeu, e o demonstra ao expressar-se no
estilo semítico típico (cf. 1 Macabeus 10:8; Jonas 1:10). A outra possibilidade é que esteja relatando
algo que extraiu que alguma fonte judaica, a qual lhe supriu deste detalhe da história. Marcos
conservou fielmente a fraseologia, mas traduziu o seu conteúdo ao grego. Cf. Lc. 2:9.
Marcos (William Hendriksen) 243
Jesus é muito mais sublime do que se tinham imaginado. Não só exerce
controle sobre as multidões que O escutam, as enfermidades, os
demônios, mas inclusive também sobre os ventos e as ondas: diziam uns
aos outros: 175 , 176 Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?
Grande parte do mal que existe no mundo pode ser corrigido. Há
mães que enxugam as lágrimas, técnicos que operam máquinas,
cirurgiões que eliminam tecidos doentes, conselheiros que solucionam
problemas familiares, etc. E quanto a modificar o clima? Naturalmente
que se fala muito disso, mas para agir sobre o clima é necessário o poder
divino. É Jesus quem manda sobre os elementos do clima, obtendo que
inclusive o vento e o mar Lhe obedeçam. 177
Parece-nos que, no momento ao menos, os discípulos se achavam
profundamente impressionados pelo poder, majestade e glória de seu
Mestre. “Quem é este então?” (Mc. 4:41; Lc. 8:25) perguntavam-se.
Segundo as expressões de Mateus 8:27 o significado seria: “Que classe
de pessoa é esta?” ou “Que homem é este?”
A resposta a esta pergunta não nos é dada aqui (veja-se também
Jonas 4:1; Marcos 12:37; cf. Mt. 22:45). A narração termina de forma
muito apropriada, fixando a atenção sobre a pessoa de Jesus Cristo, de
modo que todo aquele que a ler pode dar sua própria resposta, possa
professar sua própria fé, e acrescentar sua própria doxologia.
Resumo do Capítulo 4
175
Ou: começaram a dizer-se.
176
Note-se a mudança significativa do aor. ἀφοβήθησαν ao imperf. ἔλεγον.
177
Note-se o verbo no singular: ὑποκούει o vento e o mar aqui se consideram separadamente, como o
foram também no v. 39.
Marcos (William Hendriksen) 244
4:1; cf. Mt. 13:1). Nesta ocasião, a multidão que se tinha reunido ao
redor de Jesus era tão grande que Ele subiu a uma barco e se sentou nele,
afastando-Se um pouco da praia, olhando à multidão. Em Seu ensino
desde o mar, o Mestre fez uso generoso das parábolas. Na realidade, a
parte do livro que aqui se resume pode intitular-se o capítulo das
parábolas de Marcos, visto que seis de suas oito seções as relatam, ou ao
menos se referem a elas.
Em primeiro lugar, Jesus relata a parábola do semeador. “Escutai”,
diz o Mestre, e prossegue, “Em certa ocasião o semeador saiu a semear”.
A semente caiu em várias classes de terreno: duro, rochoso, infestado de
espinhos, e bom. Só o último dos quatro produziu uma colheita; a
semente produziu trinta, sessenta, e cem por um.
b. Propósito das parábolas (vv. 10–12). Depois, numa casa e a
pedido de um grupo de discípulos mais amplo que os Doze, Jesus explica
por que falava em parábolas; ou seja, para revelar a verdade aos que a
aceitam, e escondê-la dos que obstinadamente se opõem a ela, a fim de
que estes últimos “confrontem a culpa de sua própria cegueira e dureza”
(Calvino).
c. Explicação da parábola do semeador (vv. 13–20). Jesus mostra
que os quatro tipos de solo significam respectivamente: corações
insensíveis, impulsivos, apreensivos, e sensíveis. Só a última classe de
coração dá fruto. A “chave” real da parábola é o dever do homem de
responder devidamente à palavra ou mensagem do reino. A ênfase recai
definitivamente na responsabilidade humana (vejam-se 4:9, 23, 24;
8:18).
d. Diversas declarações de Jesus (vv. 21–25). Os corações férteis se
assemelham a lâmpadas que iluminam. A palavra do reino e a vida em
harmonia com ele, não devem ocultar-se, mas manifestar-se, imitando
assim a Deus que um dia revelará tudo o que os homens procuraram
esconder. Então (e em certo sentido incluso antes de então), à medida
que uma pessoa tenha usado para dar, será a medida em que vai receber;
com a exceção, entretanto, de que a obra de salvação é assunto de pura
Marcos (William Hendriksen) 245
graça: Deus sempre está outorgando um dom após outro. Por outro lado,
até aquela aparência de conhecimento, aquela superficial relação
espiritual que em outro tempo se teve, será tirada daquele que não possui
o maior dos tesouros por causa de sua própria falta de vontade para
escutar e levar a sério a mensagem.
e. A parábola da semente que cresce em segredo (vv. 26–29). Esta
parábola ressalta a soberania de Deus, que se apresenta com relação à
salvação do homem, e seu efeito em todas as esferas da vida. Jesus faz
ver que para o homem o crescimento é um mistério: a semente brota e
cresce “sem ele saber como”. Também significa que a semente manifesta
seu poder; “de si a terra produz frutos”; e que a colheita (ou: tempo da
colheita) significa vitória: “Logo que a (condição de) o grão o permita,
em seguida ele — o semeador, agora também ceifeiro — mete a foice
porque a ceifa chegou”. A verdade é que o poder para germinar e crescer
que se encerrou na semente foi outorgado por Deus. O homem nada pode
fazer depois de espalhar a semente. Só pode dormir e levantar-se, dormir
e levantar-se, mas a colheita está assegurada. O reino de Cristo, seu
majestoso reino, estender-se-á e um dia será manifestado em todo seu
esplendor.
f. A parábola da semente de mostarda (vv. 30–32). Quando o
homem se ocupa com sua salvação devido ao fato de que Deus está
operando dentro dele — vejam-se as duas parábolas precedentes —
então o crescimento abunda. Os grandes resultados vêm de pequenos
começos. Assim sucede com a mostarda, que no princípio é uma semente
muito pequena, e finalmente alcança uma grande altura e lança ramos tão
grandes que as aves do céu podem habitar à sua sombra. O mesmo
ocorre com o reinado de Deus em Cristo, que no começo só foi
reconhecido por um grupo muito pequeno, mas logo se estendeu e
continuará estendendo-se, até ser uma bênção aos homens de todas as
raças, e inclui todas as esferas da vida, para a glória de Deus.
g. O uso das parábolas (vv. 33, 34). Por meio de parábolas e
expressões parabólicas que Jesus incluía em todos os Seus discursos
Marcos (William Hendriksen) 246
públicos, alcançou a Seus ouvintes até o ponto que Suas historia
ilustrativas e figuras retóricas conseguiram atrair e fixar a atenção de
toda a concorrência. Quando Se achava em casa (ou: numa casa), só com
os Seus discípulos, costumava explicar-lhes tudo.
h. Uma tempestade acalmada (vv. 35–41). Marcos descreve
primeiro o embarque ao entardecer. Depois de um dia muito ocupado,
Jesus, a pedido Seu, sobe a bordo com Seus discípulos. O grupo dirige-se
rumo à margem (oriental) oposta. Levanta-se uma furiosa tempestade, os
ventos uivam, as ondas se estrelam e se precipitam sobre o barco, que
começa a alagar. Jesus, enquanto isso, está na popa, Sua cabeça apoiada
num travesseiro, dormindo profundamente. Ouvem-se gritos frenéticos,
“Mestre, não te importa que pereçamos?” Ocorre um assombroso
milagre: Jesus Se levanta, repreende o vento, e diz ao mar: “Acalma-te,
emudece!” O vento se apazigua. Sobrevém uma grande calma. Ao
chegar a este ponto, Marcos menciona a tenra e carinhosa recriminação
de Cristo (Mateus o faz inclusive antes): “Por que sois assim tímidos?!
Como é que não tendes fé?” Quer dizer, ainda depois de todos os
milagres que Me vistes realizar, das palavras que ouvistes de Meus
lábios, e da vida que vivi em vossa presença? Acaso toda esta
experiência não vos ensinou nada?
O Mestre nem sequer lhes repreende com dureza por se haverem
dirigido a Ele com aquela atitude de forte censura. Marcos relata o
profundo efeito do milagre com as seguintes palavras: “E eles, possuídos
de grande temor, diziam uns aos outros: Quem é este que até o vento e o
mar lhe obedecem?”
Marcos (William Hendriksen) 247
MARCOS 5
Mc. 5:1–20 - Na terra dos gerasenos: A bondade em contraste com a
crueldade
Cf. Mt. 8:28–9:1; Lc. 8:2–39
178
Veja-se o artigo de A. M. Ross, “Gadara, Gadarenes”, no Zondervan Pictorial Bible Dictionary
(Grand Rapids: Zondervan,1963), p. 293; e J. L. Hurlbut e J. H. Vincent, A Bible Atlas (Nova York,
etc., 1940), p. 101.
179
Cf. também Mt. 20:29 (“dois homens cegos”) com Mc. 10:46 e Lc. 18:35.
Marcos (William Hendriksen) 251
Jesus naquele dia. Ninguém, portanto, tem direito de falar que Mateus
contradiz o dito por Marcos e Lucas.
O endemoninhado “veio ao encontro” de Jesus no momento em que
desembarcava; quer dizer, “imediatamente”, “logo”. Acrescente-se a este
fato, que nos versículos 3b–5 Marcos descreve este homem como uma
pessoa muito violenta (cf. Mt. 8:28), e tal inferência se justifica pela
forma impetuosa em que desdobrou sua ferocidade lançando-se sobre
Jesus. Parece que saindo dos sepulcros desceu como um raio para
encontrar-se com os recém-chegados.
E para cúmulo, despido! Veja-se Lc. 8:27.
Os sepulcros constituíam o “lar” deste homem, e são novamente
mencionados nos versículos 3 e 5. Na realidade, segundo se vê no
original, os versículos 3–5 devem ser considerados juntos, e dão uma
descrição muito realista desta pessoa “feroz”:
3–5. o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém
podia prendê-lo; porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e
cadeias, as cadeias foram quebradas por ele, e os grilhões, despedaçados.
E ninguém podia subjugá-lo. Andava sempre, de noite e de dia, clamando
por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras.
Definitivamente trata-se aqui de um endemoninhado e não só de um
maníaco. O quadro que Marcos pinta é aterrador. Descreve a um homem
que é vítima da maldade demoníaca associada com a indiferença e a
impotência humanas. Mas enfim, a onipotência e bondade divinas vêm
em seu auxílio e sai triunfante. A bondade de Jesus contrasta
surpreendentemente com a insensibilidade cruel dos demônios e os
homens.
Como já se indicou, o homem que aqui se descreve tinha vivido na
cidade. Mas possuído por demônios, agora vivia entre “os sepulcros”.
Este termo refere-se provavelmente a câmaras mortuárias abandonadas,
escavadas nos lados dos escarpados. Habitualmente, de vez em quando,
durante a noite e o dia, seus gritos estridentes ressoavam pavorosamente
de caverna em caverna perto do rochoso litoral, enchendo de terror o
Marcos (William Hendriksen) 252
coração de qualquer viajante que se aventurasse a aproximar-se. A
maioria das pessoas evitava aqueles lugares (Mt. 8:28b). Além disso, em
meio de seus horríveis gritos, o endemoninhado aumentava seu mal
cortando seu corpo despido com as afiadas arestas das pedras quebradas.
Que atitude tinham para com ele os vizinhos? Parece que a única
coisa que lhes preocupava era sua própria segurança e proteção. Por esta
razão, sempre o estavam atando de pés e mãos. Mas não importa quantas
vezes recorressem a esta medida de proteção, nunca estavam tranquilos
porque ele rompia as correntes, e os correntes dos pés saltavam em
pedaços. Na realidade, ninguém absolutamente foi capaz de dominá-
lo. 180
180
Estes três versículos contêm vários pontos sobre vocabulário e gramática que merecem ser
mencionados:
O substantivo κατοίκησις (v. 3, acus. — ιν) só ocorre aqui no Novo Testamento. É o lugar onde a
gente “se instala”, é o lar ou habitação de uma pessoa. Sobre a base da palavra grega, cf. as palavras
vizinhança, paróquia.
εἰχεν ἐδύνατο, ἴσχυεν (vv. 3, 4). Estes imperfeitos mostram que Marcos está descrevendo a cena.
Descreve coisas de forma deliberada, e as concebe tal como se realmente estivessem ocorrendo. Com
relação a isto observe-se também a perífrase ἠν κράζων καὶ κατακόπτων (v. 5).
οὑδὲ … οὑδείς: doble negação, estilo popular; realmente tríplice, porque Marcos ainda acrescenta
οὑκέτι (v. 3). Em conjunto, isto nega com muita força a hipótese de que alguém fosse capaz de atar
este endemoninhado com segurança.
ἅλοσις “cadeia, grilhões” (cf. Lc. 8:29; At. 12:6, 7; 21:33; 28:30); a forma que se usa primeiro é o
dativo instrumental (sing. no v. 3; pl. no v. 4); logo no v. 4 aparece o acusativo pl. No v. 4, também
πέδη ocorre primeiro como dat. pl. instrumental, e logo como ac. pl. Para esta palavra cf. πούς, “pé”,
“pedal”.
Podemos talvez pensar num par de argolas de metal ao redor dos tornozelos cujos passadores se
amarravam com uma cadeia. Pôde ter sido qualquer tipo de “armadilha de ferro”. Mas veja-se
Robertson, Word Pictures, I, p. 295.
No começo do v. 4, διά aparece seguido de um acusativo (“efetivamente, por certo” ou “porque”), e
introduz a evidência da declaração anterior: o passado explica o presente. Procurou-se muitas vezes
atar o homem pelas mãos e pés mas sempre fracassou o intento.
Também no v. 4, δεδέσθαι (de δέω cf. Mc. 3:27 e muitas outras passagens do Novo Testamento, cf.
também “diadema”); διεσπάσθαι (de διασπάω; cf. At. 23:10; também a palavra inglesa “span”); e
συντετρίφθαι (de συντρίβω; cf. Mc. 14:13; também Mt. 12:20; Lc. 9:39; Jo. 19:36; note-se
“tribulação”) são infinitivos perfeitos. Indicam o que se fez no passado, mais o resultado: o homem
tinha sido preso, sendo deixado em condição imóvel. Do mesmo modo, as cadeias estavam quebradas
e os correntes despedaçadas, com o resultado de que os partes quebradas de cadeias e correntes, a
vista de todos, assinalavam a impossibilidade de ter ao endemoninhado dominado permanentemente.
Marcos (William Hendriksen) 253
2. Os demônios controlam este homem. Sua confrontação com
Jesus. Identificação dos demônios e sua expulsão.
6, 7. Quando, de longe, viu Jesus, correu e o adorou, exclamando
com alta voz: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo?
Às vezes se argumenta que o versículo 6 contradiz o versículo 2.
Segundo o versículo 2, quando Jesus sai do barco o endemoninhado se
acha ali mesmo, enquanto segundo o versículo 6 ainda se encontra a
bastante distância. 181 Mas sem dúvida esta argumentação equivale a criar
um conflito onde não existe nenhum. É totalmente legítimo interpretar o
relato de Marcos como significando que antes que o barco chegasse à
margem, o endemoninhado “de longe” observou atentamente o barco
que se aproximava, depois se aproximou correndo, e saiu ao encontro de
Jesus no momento em que este descia do barco. 182
Talvez algo mais difícil de compreender seja a conduta do
endemoninhado. Aparentemente é muito contraditória: primeiro o vemos
lançando-se com ânimo hostil; logo cai aos pés de Jesus e O adora; para
mudar em seguida outra vez de atitude e lançar imediatamente um
sinistro grito. Se dissermos que, afinal de contas, o que se espera de um
endemoninhado é justamente uma conduta irracional, provavelmente só
entregamos uma solução pela metade. Também se deve assinalar que
quando este homem começou a correr rumo ao grupo formado por Jesus
e os apóstolos, ainda não tinha reconhecido o seu líder. Quando este
homem — na realidade os demônios que havia nele, representados por
seu porta-voz — reconheceu-O de uma forma que vai além do
entendimento humano, sua primeira reação diante da majestade de Cristo
185
Veja-se W. Barclay, Op. cit., p. 118; Vincent Taylor, Op. cit., p. 282.
186
R. C. H. Lenski, Op. cit., p. 132.
Marcos (William Hendriksen) 256
enfrentava a um só demônio mas muitíssimos. A resposta do demônio
revelaria que eram muitos.
d. Embora não possamos estar totalmente seguros, a melhor
resposta é a que sugerem de uma forma ou outra vários expositores. 187
Em suma, é a seguinte: Jesus deseja revelar ao homem endemoninhado a
gravidade de sua situação. A fim de libertá-lo dela, deseja tranquilizá-lo
e fortalecer a consciência de seu verdadeiro eu. Deseja arrancá-lo dessa
relação estreita — quase identificação — com o demônio (ou os
demônios) que por tanto tempo o tinha dominado.
Respondeu ele: Legião é o meu nome, porque somos muitos. A
resposta indica a profundidade da miséria do endemoninhado. Está sob o
controle não de um só demônio, porta-voz dos demais, mas de toda uma
legião! 188 Não devemos tomar a palavra “Legião” de maneira literal,
como se o pobre homem tivesse estado sob o controle de não menos que
6.000 demônios. Indubitavelmente que aqui o significado é figurado: um
número muito grande. É possível também que o termo “Legião” evoque
a visão de um exército invasor, de crueldade e destruição. Não estamos
diante de uma legião de anjos protetores (cf. Mt. 26:53: “mais de doze
legiões de anjos”). Enfrentamo-nos ao exército de terror e morte de
Satanás. O fato de que mais de um demônio possa às vezes possuir e
escravizar uma pessoa é evidente por outras passagens bíblicas (veja-se
Mt. 12:45 com Lc. 11:26; e Mc. 16:9 com Lc. 8:2).
10. E rogou-lhe [a Jesus] encarecidamente 189 que os não
mandasse 190 para fora do país.
187
Veja-se A. Cole, The Gospel According to St. Mark (Grand Rapids, 1961), p. 98; A. B. Bruce, Op.
cit., p. 372; C. R. Erdman, Op. cit., p. 82; N. Geldenhuys, Commentary on the Gospel of Luke (Grand
Rapids, 1951), p. 255.
188
A palavra latina legio foi absorvida pelo grego helênico e até pelo aramaico.
189
πολλά usa-se como advérbio: fervorosamente, vez após vez; usa-se aqui em conexão com um verbo
em tempo imperfeito; em consequência, rogou-lhe vez após vez; e talvez inclusive: seguiu lhe
rogando fervorosamente.
190
ἵνα μὴ … ἀποστείλῃ (aor. subj. at.) literalmente, “que ele não enviasse”.
Marcos (William Hendriksen) 257
Veja-se sobre o versículo 7. Entretanto, ao chegar a este ponto é
necessário acrescentar outro detalhe. Os demônios não só desejam
fervorosamente permanecer longe do abismo, mas também desejam
permanecer precisamente nesta região, porque é região de sepulcros,
esqueletos, abandono, morte e destruição. Aqui se sentem
“confortáveis”. Se costumamos a associar os anjos bons com lugares
onde prevalecem a ordem, a beleza e a plenitude de vida, não parece
natural, em harmonia com as Escrituras (Mt. 12:43), relacionar os anjos
do mal com regiões onde dominam a desordem, a desolação, o abandono
e a morte?
191
Note-se no original os quatro aoristos e o imperfeito no final.
Marcos (William Hendriksen) 259
mencionam repetidamente estas qualidades. Mas não menos importante,
por certo, são a santidade e a soberania de Deus. Ele é imaculado. Mais
ainda, Deus é santo e é a fonte da santidade de todos os que depositam
nEle sua confiança (cf. Is. 6:1–5). Além disso, não nos deve explicação
alguma de Seus atos. Nós devemos viver pela fé! (Hc. 2:4; Rm. 1:17; Gl
3:11. Veja-se também Jó 21:5; 40:4.). Herman Bavinck disse:
“Observamos ao nosso redor tantos fatos que parecem irrazoáveis, tanto
sofrimento imerecido, tantas calamidades inexplicáveis, tão desigual e
inexplicável distribuição dos destinos, e tão enorme contraste entre os
extremos da alegria e a tristeza, que todo aquele que reflita sobre estas
coisas vê-se forçado a escolher entre ver este universo como se fosse
governado pela cega vontade de uma deidade maligna, como o faz o
pessimismo, ou, com base nas Escrituras e por fé, descansar na absoluta
e soberana, mas entretanto — por incompreensível que seja — a sábia e
santa vontade dAquele que um dia fará com que a plena luz do céu
amanheça sobre estes mistérios da vida … No meio da terrível realidade,
o calvinismo não sai à frente com a solução, mas oferece este consolo:
que aconteça o que acontecer, é preciso reconhecer a vontade e a mão
reitora de um Deus onipotente, que ao mesmo tempo é um Pai
misericordioso. O calvinismo não oferece a solução, mas faz com que o
homem descanse nAquele que mora na luz inacessível, cujos juízos são
inescrutáveis e cujos caminhos são insondáveis”. 192
Esta mesma resposta serve para a segunda pergunta, ou seja, “Foi
justo que Jesus permitisse que os demônios destruíssem tantos bens,
quer dizer, privar seus proprietários de tão grande quantidade de
pertences materiais?” deve acrescentar-se também à reflexão
fundamental a respeito da soberania de Deus, que Jesus autorizou esta
perda para ajudar os proprietários. Mas isto lhes serviria de ajuda só se
estivessem dispostos a aprender a lição devidamente. Aqueles
proprietários e em geral o povo daquela comunidade eram egoístas. Em
192
The Doctrine of God (Grand Rapids, 1955), pp. 396, 397.
Marcos (William Hendriksen) 260
sua escala de valores, a aquisição, retenção e multiplicação das posses
materiais ocupavam um lugar muito mais alto que a libertação e
restauração de um homem sem liberdade, sem felicidade, sem amor, e
sem ninguém que se preocupasse com ele. O endemoninhado era um
escravo, desgraçado, odiado e abandonado. Como prova disso veja-se
sobre o v. 17. Daí que para eles era necessária esta lição. 193
193
Lenski segue um raciocínio totalmente diferente, Op. cit., pp. 133, 134. Conforme ele entende, os
donos dos porcos eram judeus. Jesus Se limitava ao Seu próprio povo e fez com que os animais
morressem porque para estes proprietários judeus era ilegal possuí-los.
Resposta. Esta linha de raciocínio injeta na história um elemento completamente estranho a ela. Além
disso, nem mesmo passagens tais como Mt. 10:5; 15:24, 26 podem interpretar-se corretamente como
se significassem que os não judeus estavam absolutamente excluídos do âmbito das simpatias e
atividades de Cristo. Veja-se Mt. 4:24; 8:5–13; Mc. 7:24–30; 15:21–28; Lc. 4:25–27; 6:17–19; 7:1–
10; Jo. 1:29; 3:16, 17; 4:42; 6:51; 8:12; 9:5; 10:16, 11:52; 12:32.
194
Para a explicação do gerúndio, veja-se sobre o v. 18.
195
ἱματισμένον καὶ σωφρονοῦντα: temos aqui um ptc. pf. pas. (“tinha chegado a estar — portanto,
ainda estava — vestido”) seguido pelo ptc. presente (“em seu são juízo”).
Marcos (William Hendriksen) 261
Queriam que os proprietários e todos os outros, no povoado e seus
arredores, na pequena aldeia e nas granjas, soubessem quem era e os que
não eram os culpados.
Marcos descreve às pessoas que foi ver o que tinha ocorrido.
Provavelmente foram à manhã seguinte. O que é que veem? Veem a
Jesus. Também observam atentamente o homem que tinha estado
endemoninhado. Não havia dúvida alguma. Era o mesmo homem.
Entretanto, agora já não corria colina abaixo, mas estava sentado, ali, aos
pés mesmos de Jesus. Já não estava despido (Lc. 8:27) e sim vestido. E
já não se comportava como um louco, gritando noite e dia, e cortando-se
com as afiadas arestas das pedras, mas estava em seu são juízo (cf. 2Co.
5:13).
O poder e a majestade de Jesus, o Autor de tudo isto, fez com que o
povo se atemorizasse. Esta reação esteve longe de acalmar-se quando ali
mesmo, no lugar onde tudo tinha acontecido, as testemunhas oculares,
porqueiros e discípulos, explicaram os detalhes da história: “o que tinha
sucedido com o endemoninhado e com os porcos”.
Qual deveria ter sido o resultado? A tristeza inicial pela perda dos
porcos teria sido natural. Mas os proprietários e todos os que de algum
modo se viram afetados por esta perda, deveriam ter falado mais ou
menos assim: “Agora compreendemos que a perda de nossos bens é um
preço insignificante comparado com a lição que aprendemos. Estes
porcos, simples propriedade material, era tudo para nós. Fomos egoístas.
Jamais nos sentimos preocupados com as necessidades de nosso vizinho,
este pobre miserável. Agora vemos as coisas de outro modo. Damo-nos
conta de que os valores humanos excedem em grande medida aos valores
materiais”. Não deveriam ter felicitado àquele homem que estava
assentado ali aos pés de Jesus? Não deveriam ter levado os seus doentes
e aleijados a Jesus para que também os curasse? Não é possível que o
povo de toda aquela região não tivesse ouvido falar daquele grande
Benfeitor! (veja-se Mt. 4:25). Não deviam ter procurado convencer a
Marcos (William Hendriksen) 262
Jesus que permanecesse um pouco mais com eles, a fim de comunicar
bênçãos para o corpo e a alma? Cf. Jo. 4:40.
Na realidade, sua reação foi muito diferente. De fato foi
diametralmente oposta. Jesus devia ir embora, e quanto antes melhor:
17. E entraram a rogar-lhe que se retirasse da terra deles.
Os três evangelistas relatam isto, e isso é essencial para a
compreensão da lição que aqui se comunica.
Aqueles homens tinham medo de Jesus. Além disso estavam
ressentidos com Ele. Não lhes tinha privado de seus bens? Não estava
perturbando seu regime habitual de vida particular?
Quantas vezes, inclusive em nosso tempo e época, não se repetiu
este mesmo incidente? As pessoas estão ansiosas para escutar a história
de Jesus e de Seu amor … sempre e quando não se insistir muito nas
implicações do evangelho na vida e conduta diárias, porque isto seria
desagradável e inquietante! (Mt. 18:23–35; 25:31–46; Jo. 13:14, 15;
2Co. 8:7–9; Ef. 4:32–5:2).
196
Note-se o ptc. aoristo δαιμονισφείς. Contraste-se isto com o gerúndio δαιμο νιζόμενον no v. 15.
Quando as pessos saíam para ver este homem, ainda estava muito presente diante deles o quadro de
uma pessoa realmente possuída pelo demônio. Não obstante, até então, Marcos usa o particípio
perfeito ἐσχηκότα, para assinalar que se tinha produzido uma mudança. Ao chegar ao v. 18, a história
estava numa nova etapa. Todos sabem agora que este homem já não é um endemoninhado. Daí que o
particípio aoristo vem muito ao caso aqui. Referente a uma explicação um pouco diferente a respeito
deste ponto gramatical, veja-se Robertson, p. 1117.
Marcos (William Hendriksen) 263
19. Jesus, porém, não lho permitiu, mas ordenou-lhe: Vai para
tua casa, para os teus. Anuncia-lhes tudo o que o Senhor te fez e
como teve compaixão de ti.
Há vários pontos que merecem nossa atenção:
a. Acedendo ao rogo dos demônios, Jesus lhes permitiu entrar nos
porcos, e acedendo à petição do povo, o Senhor abandonou a região. Não
desconcerta que agora rejeite a petição de um homem que se converteu
em seu fervoroso seguidor? Disto aprendemos que quando Deus permite
ao Seu povo ter tudo o que este quer, isso não é sempre uma bênção
completa. E quando recusa dizer que “sim” ao que Seu povo Lhe pede
com ardor, não é necessariamente um sinal de desaprovação.
b. A verdadeira atividade missionária começa em casa, porém não
termina ali. Começa de fato com nossa gente (At. 1:8; cf. Mt. 10:5, 6).
Não sugere isto que um verdadeiro membro da igreja deve estar pelo
menos tão preocupado em proporcionar uma completa educação cristã a
seus filhos, como o está em enviar missionários aos pagãos?
Esta última tarefa é indubitavelmente de muita importância, mas a
primeira deve ter prioridade.
c. Aquele homem recebeu a ordem de contar aos seus as grandes
coisas que “o Senhor” fez por ele. Conforme indica o versículo 20, o
homem sabia que o nome “o Senhor” se referia a Jesus. Em Lucas 8:39
muda-se a palavra “Deus” pela “Senhor”, e este homem volta a
interpretar a palavra “Deus” como referindo-se a Jesus (Lc. 8:39b). Isto
demonstra que, segundo a apreciação dos evangelistas e do ex-
endemoninhado, Jesus é o Senhor. Ele é Deus.
d. O termo “os teus” não tem aqui um sentido muito limitado (veja-
se v. 20), e ao mesmo tempo implica que o vizinho falará com vizinho.
Poderia dizer-se que a lição principal é esta: ao mandar o homem a ir aos
seus, Jesus exibe uma grande bondade, e isto não só com o ex-
endemoninhado, mas também com toda aquela comunidade que tão
vergonhosamente O tinha rejeitado. Eles tinham pedido a Ele que fosse
embora, mas em Seu grande amor, Ele não pôde desligar-se totalmente
Marcos (William Hendriksen) 264
deles. De modo que lhes envia um missionário, na realidade o melhor
tipo de missionário, um que podia falar por experiência própria. Veja-se
Sl 34:6; 66:16; 116; Jo. 9:25; 1Co. 15:9, 10; Gl 1:15, 16; Fp. 3:7–14;
1Tm. 1:15–17; 2 P. 1:16; 1 Jo. 1:1–4.
O homem obedeceu.
20. Então, ele foi e começou a proclamar em Decápolis 197 tudo o
que Jesus lhe fizera; e todos se admiravam.
O homem curado fez exatamente o que o Senhor desejava que
fizesse. Foi embora para casa e ali relatou quão grandes coisas Jesus fez
por ele. Mas não ficou só nisso. Tão cheio se achava de alegria e
gratidão que muito logo incluiu na esfera de sua atividade missionária a
toda a cidade onde vivia (Lc. 8:39). Nem mesmo isto satisfez seu anelo
de atribuir a glória a Deus. Pouco depois pôs-se a dar testemunho da
bondade de Deus em toda Decápolis, conforme explica Marcos.
Esta “Decápolis” era uma confederação de dez cidades helênicas:
Citópolis (situada a oeste do rio Jordão); a leste do Jordão: Filadélfia,
Gerasa, Pela, Damasco, Canata, Diom, Abila, Gadara, e Hipos. Estas dez
cidades, num tempo particulares de sua liberdade pelos macabeus, foram
libertadas de seu jugo pelos romanos e lhes tinha concedido um alto grau
de governo próprio. Embora deviam pagar tributos e render serviço
militar a Roma, tinha permitido que formassem uma associação para o
bem do progresso comercial e da mútua defesa contra qualquer intrusão
da parte de judeus ou árabes. Tinham seu próprio exército, tribunais e
cunhagem de moedas. Por toda aquela região havia judeus espalhados,
mas em geral era território gentílico; como ficava de manifesto, por
exemplo, por seus numerosos anfiteatros gregos. 198
Todos estavam maravilhados. O povo que ouviu o testemunho deste
homem provavelmente seguiu maravilhada e louvando por bastante
197
As dez cidades.
198
Para material de consulta a respeito das dez cidades, veja-se especificamente Josefo, Guerra
Judaica, I. 155–58; II.466–468; III. 446; V. 341, 342, 410; Antiguidades XIV. 74.
Marcos (William Hendriksen) 265
199
tempo. Sem dúvida, alguns fizeram mais que maravilhar-se. Em
Decápolis também devia haver um “remanescente” de pessoas em cujo
coração e vida a palavra de Deus foi eficaz para a salvação, à glória de
Deus. Vejam-se Is. 55:11; Mt. 4:24, 25 e Mc. 7:31–37.
199
Note-se o imperfeito ἐθαύμαζον, estavam num estado de assombro, maravilhavam-se.
Marcos (William Hendriksen) 266
provavelmente vivia em Cafarnaum, podemos supor que tinha ouvido
falar a respeito dos milagres realizados por Jesus, e que talvez inclusive
tenha presenciado algum.
O relato que Mateus faz do duplo milagre algo muito breve, só
ocupa nove versículos; o de Lucas abrange dezessete versículos; o de
Marcos vinte e três. Para mais informação a respeito da sinagoga, veja-se
mais acima em Mc. 1:39.
Mateus omite a petição do principal da sinagoga (veja-se Marcos e
Lucas) de que Jesus curasse a menina doente. Na realidade Mateus, em
seu breve resumo, deixa fora vários detalhes mencionados por um ou os
outros dois Sinóticos. Entretanto, é o único que diz que o principal pede
a Jesus que ponha Sua mão sobre a menina morta, acrescentando “e
viverá” (Mc. 9:18). Também, é o único que menciona os que tocavam
flautas na casa do luto (Mc. 9:23).
Marcos é o único que, em seu extenso relato, apresenta a Jairo
usando o termo carinhoso de “minha filhinha” (v. 23), e descreve uma
grande multidão que se “apinhava” ao redor ou “apertava” a Jesus (v.
24). Também é Marcos o único que conta que Jesus fez caso omisso da
mensagem que enviaram a Jairo, “Tua filha já morreu …” (vv. 35, 36), e
é aquele que ressalta o pranto e a lamentação das pessoas que faziam luto
(v. 38, 39), ao mesmo tempo que registra as palavras aramaicas que
Jesus disse à menina (v. 41), e acrescenta que a menina, tendo voltado à
vida, caminhava (v. 42).
Há vários detalhes que Marcos e Lucas compartilham, e que não se
acham em Mateus. Por exemplo, somos informados que o nome do
principal era Jairo (Mc. 5:22; Lc. 8:41), que Jairo fez sua primeira
petição antes que a menina tivesse morrido (Mt 5:23; Lc. 8:42), que ela
tinha uns doze anos de idade (Mc. 5:42; Lc. 8:42), que Pedro, Tiago,
João e também os pais da menina estavam com Jesus quando realizou o
milagre (Mc. 5:37, 40; Lc. 8:51), e que Jesus não queria que a notícia
deste milagre se propagasse (Mc. 5:43; Lc. 8:56).
Marcos (William Hendriksen) 267
Lucas é o único que informa que a menina era filha única (Lc.
8:42), e que Jesus efetivamente ouviu a notícia de sua morte, mas que
não lhe prestou atenção (Lc. 8:50).
Nos três relatos, a história da volta à vida da filha de Jairo vê-se
interrompida pela da cura da mulher que tocou o manto de Jesus.
Todo este material, segundo se apresenta aqui, dá lugar ao seguinte
esboço. Sob o tema general que já se indicou (Os dois milagres, etc.)
chegamos às seguintes subdivisões ou “pontos”:
200
Existe um alto grau de apoio textual em favor de acrescentar a frase “no barco”.
Marcos (William Hendriksen) 268
está a expirar;” — literalmente: chegou à sua fase final — “suplico-te
que venhas pôr as mãos sobre ela, para que sare e viva”, foi uma
expressão de tenro afeto, intensa ansiedade e um alto grau de fé.
Tenro afeto! Jairo diz, “minha filhinha”. À idade de doze anos,
muitas crianças se sentem ofendidos se são chamados “filhinho(a)”. Mas
para seu pai a menina ainda era uma “garotinha”; com a ênfase posta,
não tanto em seus tenros anos, e sim na preciosidade que ela era aos seus
olhos.201
Intensa ansiedade! “Por favor, vem …”. Há obscuros
pressentimentos e ao mesmo tempo intenso desejo.
Um grau considerável de fé! Inclusive agora, com a morte às portas,
o homem crê na efetividade do toque das mãos de Jesus. Quanto a esse
toque, veja-se sobre Mc. 1:41. Note-se: “…para que sare e viva”. 202
Aquele principal da sinagoga deve ter visto e ouvido Jesus mais de uma
vez, ali mesmo em Cafarnaum, onde o Mestre tinha Seu centro de
operações e onde assistia à sinagoga, sempre que Lhe era possível. Jairo
bem pôde ter presenciado vários milagres. Mas surpreende que estando
sua querida e única filhinha tão perto da morte, o homem ainda abrigasse
esperança, e que até manifestasse um alto grau de fé.
Não nos surpreende ler:
24. Jesus foi com ele.
Não é Jesus, o Salvador não apenas da alma, mas também da pessoa
inteira, quer dizer, da alma e do corpo?
Entretanto, a seguir segue uma declaração muito ligada a
precedente, e que além disso introduz o que segue-nos versículos 25–34.
201
Como ocorre muitas vezes, o diminutivo é aqui predominantemente um termo de carinho. Veja-se
a Introdução IV, nota 5; também sobre 3:9, nota 108.
202
Quanto ao primeiro ἵνα do v. 23 (ἵνα ἐλθὼν ἐπιθῇς), há diversas opiniões. Talvez o melhor é
considerá-lo como uma maneira elíptica de usar um imperativo cortês; por isso, aqui seria “Por favor,
vem …” O segundo vai do mesmo versículo refere-se a um propósito: “para que” se salve e viva.
Aqui “ser salva” (assim diz literalmente), significa “ser restaurada à saúde”, portanto, “cure”.
Os verbos ἐπιθῇς (2ª. pes.); σωθῇ e ζήσῃ (ambos 3ª. pes.) são todos subj. aor. depois do primeiro ou
segundo ἵνα.
Marcos (William Hendriksen) 269
Trata-se de: e uma grande multidão, seguindo-o, o apertava. Isto não
era nada estranho (veja-se 3:9; 4:1). Mas o que dá mais significado à
situação presente é a. O próprio tamanho da multidão, junto com o fato
de que a multidão apertava a Jesus, fazendo com que o avanço à casa de
Jairo fosse dificultoso; b. A ação da mulher se explica pela presença da
multidão. Ela pensou que, por causa da enorme multidão, poderia fazer o
que se propunha e logo escapar desapercebida (cf. Lc. 8:47).
204
Cf. SB, IV, p. 277.
205
Nestes três versículos (25–27), Marcos usa não menos de sete particípios, os primeiros cinco com
função atributiva e para modificar à uma mulher”, e os dois últimos como predicativos e modificando
“tocou”. Os sete são:
οὖσα que estava (com fluxo de sangue), é ptc. presente de εἰμί. Cf. essência, parousia.
παθοῦσα tendo sofrido, aor. de πάσχω. Cf. patologia, paixão.
δαπανήσασα tendo gasto, aor. de δαπανάω.
(μηδέν) ὠφεληθεῖσα (nada) tendo aproveitado (que traduzimos: “em lugar de aliviar-se”), aor. pas. de
ὠφελέω. Cf. os mosquitos anofeles, pois não são benéficos.
ἐλθοῦσα vindo, aor. de ἔρχομαι. Cf. origem, prosélito.
ἀκούσασα tendo ouvido, aor., de ἀκούω. Cf. acústica.
ἐλθοῦσα tendo vindo (usado nos vv. 26 e 27, primeiro de maneira atributiva, logo predicativa).
206
Se há que ressaltar o tempo imperfeito do verbo grego (λέγω, aqui ἔλεγεν) — o que nem sempre é
o caso —, terei que traduzir “ela repetiu estas palavras vez após vez”. Referente ao verbo σώζω (aqui
σωθήσομαι) veja-se mais acima, nota 204.
Marcos (William Hendriksen) 274
b. fé recompensada
29. E logo se lhe estancou a hemorragia, e sentiu no corpo estar
curada do seu flagelo.
Literalmente, “e em seguida seca foi a fonte de seu sangue”. A
recuperação foi instantânea. Num instante a hemorragia cessou
completamente. A saúde e o vigor surgiam por todas as partes de seu
corpo. O “flagelo” ou a “enfermidade” que a tinha estado afligindo
desapareceu. Quanto à palavra que basicamente significa “açoite” ou
“látego” e que aqui se refere à enfermidade que a atormentava, veja-se
sobre Mc. 3:10. 207 Não só desapareceu seu problema, mas também ela
mesma notou e soube que tinha desaparecido.
O surpreendente é que, embora a fé desta mulher estivesse longe de
ser perfeita, não obstante o Senhor bondosamente a recompensou. Além
disso, a recompensa afetou não só o seu corpo, mas também a sua alma;
ou, dizendo-o de outra forma, não só foi recompensada sua fé, mas
também foi melhorada e elevada a um nível mais alto de
desenvolvimento, de modo que a fé oculta se transformou em:
c. fé manifestada
30. Jesus, reconhecendo imediatamente que dele saíra poder,
virando-se no meio da multidão, perguntou: Quem me tocou nas
vestes?
Jesus não ignorava o fato de que alguém O havia tocado, e isto não
de forma acidental mas intencionalmente, e não só com a mão, mas com
fé. Sabia que o poder que havia dentro dEle e que procedia dEle, tinha
respondido a essa fé.
O que Jesus queria agora era que se completasse o círculo, fosse
quem fosse aquele que O havia tocado. Que círculo? Aquele que se
indica em muitas passagens das Escrituras, incluindo, por exemplo, o
207
Em At. 22:24 a palavra μάστιξ usa-se no sentido mais literal de açoitar com um látego. Por um
momento pareceria que iam açoitar a Paulo, para descobrir o que crime havia supostamente encargo;
mas veja-se At. 22:25, 26, 29. Quanto ao sentido literal veja-se também Hb. 11:36.
Marcos (William Hendriksen) 275
Salmo 50:15: “Invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me
glorificarás.”
Quando as bênçãos descem do céu, os que as receberam devem
responder em forma de ações de graças. Assim se completa o círculo
(veja-se também CNT sobre Efésios 1:3). À sua maneira, esta mulher
tinha invocado a Jesus. Ele a tinha resgatado, porém ela ainda não O
havia glorificado. Até esse momento era como os nove leprosos curados
de Lucas 17:17, 18: “Não eram dez os que foram curados? Onde estão os
nove? Não houve, porventura, quem voltasse para dar glória a Deus,
senão este estrangeiro?”. Sem dúvida alguma ela tinha “crido em seu
coração”. Mas ainda não tinha “confessado com a boca” (Rm. 10:9).
Com o fim de fazer brotar esta resposta favorável, Jesus imediatamente
Se voltou para a multidão e perguntou, “Quem me tocou nas vestes?”
Ou, segundo o expressa Lucas, “Quem me tocou?” (Lc. 8:45),
significando “Quem me tocou intencionalmente?”
31. Responderam-lhe seus discípulos: Vês que a multidão te
aperta e dizes: Quem me tocou?
Os discípulos cometem novamente o muito repetido erro de
interpretar as palavras de Cristo em seu sentido literal mais rígido, como
se Jesus estivesse pensando num mero tocar físico.
Aqueles homens, e outros também, tinham o costume de aplicar a
regra da interpretação literal às palavras de Cristo, a mesma regra que em
certos setores do cristianismo ainda hoje em dia se recomenda tão
vivamente. As seguintes passagens mostram que essa regra, a menos que
seja essencialmente modificada, não é segura: Mc. 8:15, 16; Jo. 2:19–22;
3:3–5; 4:10–15; 6:52; 8:56 58; 11:11–13. Naturalmente que Jesus não
estava negando que O haviam tocado literalmente, mas Ele Se referia a
algo muito superior a isso, quer dizer, ao tocar com fé, ao toque
verdadeiramente eficaz, até o ponto em que, em resposta a isso, emanou
poder dEle.
Encabeçados por Pedro (Lc. 8:45), os discípulos respondem, “Vês
que a multidão te aperta e dizes: …”. Isto revela não só falta de
Marcos (William Hendriksen) 276
entendimento, mas também uma falta de respeito e de submissa
reverência que os discípulos deviam ter mostrado para com seu Mestre.
Quer dizer, aquela observação crítica era inconsiderada, de mau gosto,
crua e rude. Lembra-nos a de Mateus 16:22.
O Mestre mostrou sua grandeza ao não respondê-la.
32. Ele, porém, olhava ao redor para ver quem fizera isto.
Foi um olhar longa e escrutinadora. 208 Os comentaristas que se
preocuparam com esta questão diferem de maneira bastante ampla.
Há três interpretações principais. Segundo a primeira, Jesus já sabia
quem era a pessoa. Olhou em redor e repentinamente fixou os Seus olhos
sobre a mulher. 209
Agora, não se pode negar de que por Sua natureza divina Jesus era
onisciente. Tampouco se pode negar que essa natureza divina às vezes
comunicava à Sua natureza humana informação que, provavelmente, não
teria recebido sem sua assistência (veja-se Mt. 17:27; Jo. 1:47, 48). Não
obstante, isto não significa que a natureza humana de Cristo fosse
também por si só onisciente (veja-se Mt. 24:36; Mc. 11:13). Não é
Marcos 5:32 um texto similar? A expressão “Ele, porém, olhava ao redor
para ver”, certamente faz inaceitável a ideia de que Jesus já sabia quem
era a pessoa que O havia tocado. Para mais informação a respeito das
duas naturezas de Cristo no ensino de Marcos, veja-se a Introdução, III.
O original tem um particípio feminino, 210 de modo que se poderia
traduzir, “Mas ele olhava em redor para ver quem era a que fez isto”.
Sobre esta base, afirmou-se que Jesus pelo menos sabia que a pessoa que
O havia tocado era uma mulher. 211
208
Veja-se mais acima, nota 105.
209
Lenski, Op. cit., p. 142. Ele deduz esta informação do uso do tempo (“ele olhava em redor”)
seguido pelo aoristo ἰδεῖν. Embora concorde em muito do que este intérprete diz, não o posso seguir
no que agora afirma. Gramaticalmente περιεβλέπετο ἰδεῖν é uma só expressão: “ele seguiu olhando,
ou: estava olhando (para) ver. A expressão pode-se separar em dois períodos de tempo.
210
τὴν … ποιήσασαν.
211
A. B. Bruce, Op. cit., p. 375, oferece isto como uma possibilidade.
Marcos (William Hendriksen) 277
Mas não é mais razoável considerar que o particípio feminino vem
da mão de Marcos, o escritor do Evangelho, quem soube mais tarde a
respeito do caso?
Em vista de tudo o que foi dito, parece que a interpretação mais
natural seria que Jesus com Seu terno coração de Salvador, desejava
outorgar um favor adicional sobre quem quer que fosse a pessoa que O
havia tocado. “Seguiu olhando em redor para averiguar” (segundo A. T.
Robertson 212 ) quem era essa pessoa.
33. Então, a mulher, atemorizada e tremendo, cônscia do que
nela se operara, veio, prostrou-se diante dele e declarou-lhe toda a
verdade.
A mulher tinha ouvido que Jesus perguntava, “Quem me tocou nas
vestes?” Também tinha observado Seu penetrante olhar. Sabia “o que
tinha sucedido nela” em resposta ao seu ato de fé. Ela provavelmente
tinha ouvido também a resposta totalmente inadequada dos discípulos.
Sua consciência deve ter-lhe dito que era preciso responder com a
verdade à pergunta de Cristo, e que isto o devia fazer ela!
Entretanto não lhe era fácil fazer o que sentia que devia fazer.
Naquele tempo e naquele país, considerava-se impróprio que uma
mulher falasse em público. E ainda mais sobre um tema como este: a
enfermidade física concreta que a afligia. E o fato de que ela, em tal
situação, tivesse tocado deliberadamente ao Mestre, não faria com que o
que já era impróprio aos olhos dos presentes resultasse ainda mais grave?
Sim, e talvez aos olhos do próprio Jesus? Não a repreenderia talvez?
Podemos entender, então, por que confessou e também por que o
fez “temendo e tremendo” (assim literalmente; cf. 2Co. 7:15; Ef. 6:5; Fp.
2:12). Estava muito assustada, e todo o seu corpo tremia. Mas foi, e disse
toda a verdade, referindo-se provavelmente a todos os atos mencionados
nos versículos 25–29.
212
Word Pictures vol. I, p. 300. Na mesma sintonia também Taylor, Op. cit., p. 292; Schmid, Op. cit.,
p. 115; e Bolkestein, Op. cit.,p. 125. Por outro lado, A. B. Bruce, Op. cit., p. 375, e Swete, op. cit, p.
105, deixam lugar para qualquer das duas últimas interpretações.
Marcos (William Hendriksen) 278
O resultado não foi uma reprimenda, mas justamente o contrário,
segundo se vê pela primeira palavra que Jesus lhe disse, e também pelo
que segue.
34. E ele lhe disse: Filha, a tua fé te salvou; vai-te em paz e fica
livre do teu mal.
Em muito carinho Jesus a chama “filha”, embora possivelmente não
fosse mais jovem que Ele. Mas Jesus fala como um pai à sua filha. Além
disso, louva-a por sua fé, apesar de que não era uma fé perfeita; e
embora conforme o indique o versículo 27, foi Ele mesmo quem,
mediante Suas maravilhosas palavras e atos anteriores, fez brotar essa fé.
Sua fé, embora não fosse a causa fundamental de sua cura, tinha sido o
conduto por meio do qual a cura foi realizada. A fé tinha sido o
instrumento usado pelo poder e o amor de Cristo para efetuar sua
recuperação (cf. Ef. 2:8). Resulta maravilhoso que Jesus não lhe diga
nada a respeito de Seu próprio poder e amor, que são a causa básica do
bem-estar atual dela, mas que faça menção especial da fé que sem Ele,
ela não teria podido possuir, nem lhe teria sido possível exercer. Além
disso, ao dizer, “A tua fé te curou” (TB), estava sublinhando que o que a
curou foi a resposta pessoal que Ele deu à fé pessoal dela, tirando assim
de sua mente qualquer vestígio de superstição, como se as vestes de
Jesus tivessem contribuído em algum grau para a cura.
Por meio destas palavras alentadoras, Jesus também abriu o
caminho para a reintegração total da mulher à vida social e religiosa, e à
comunhão com seus familiares. Agora ela podia ir e desenvolver o resto
de sua vida “em paz”, quer dizer, com o sorriso de Deus sobre ela e a
prazerosa convicção interna deste sorriso (cf. Is. 26:3; 43:1, 2; Rm. 5:1).
Provavelmente, nessa ordem alentadora, “vai-te em paz”, há algo
mais. É preciso levar em conta as palavras que seguem imediatamente:
“Fica — Sê e permanece — curada de sua enfermidade (literalmente: teu
açoite)”. Também é preciso lembrar que Jesus falou no idioma popular
que então usavam os judeus (o aramaico). Estas duas considerações nos
permitem inferir que aqui está implícito nada menos que o sentido
Marcos (William Hendriksen) 279
completo do hebraico Shalom, quer dizer, bem-estar tanto do corpo
como da alma.
Nenhum dos evangelistas indica a reação da mulher a estas palavras
bondosas do Salvador, mas não seria correto afirmar que sua alma se
sentiu inundada de alívio e de gratidão sem limites? Acaso não se encheu
com a classe de emoção que experimentou o inspirado compositor do
Salmo 116 (veja-se especialmente os vv. 12–19)? Jesus a tinha curado.
Ele lhe havia comunicado uma dupla bênção: tinha restaurado seu
corpo, o que a impulsionou a dar testemunho, de modo que a fé oculta se
transformou em fé manifestada. Agora lhe seria possível ser, e
indubitavelmente foi, uma bênção para outros, para glória de Deus.
Uns dias depois que certo pastor pregou sobre esta passagem das
Escrituras (Mc. 5:25–34 e paralelos), recebeu o seguinte poema de uma
dama que o tinha composto depois de ouvir o sermão:
“Quem me tocou?”
A voz do Mestre chegou aos seus ouvidos,
O coração dela marcou seus batimentos do coração,
Tremendo aproxima-se, seus olhos esconde.
“Fui eu, Mestre”, humilde responde.
Mas lhe diz, “Segue sem cuidado,
Hoje em dia pela graça tua fé te salvou”.
“Tu me tocaste?”
A voz do Mestre soou em meus ouvidos,
Ó, meu coração marca os batimentos do coração.
“Minha casa com todos tenho hoje visitado,
Mas Tu vieste e não me tocaste”.
Inclino hoje meu rosto, com vergonha é …
Disse-me, “Aproxima-Te mais na próxima vez”.
Marcos (William Hendriksen) 280
3. Realização do primeiro milagre
a. palavras de alento
35. Falava ele ainda, quando chegaram alguns da casa do chefe
da sinagoga, a quem disseram: Tua filha já morreu; por que ainda
incomodas o Mestre?
Talvez os mensageiros fossem parentes de Jairo, ou talvez seus
amigos. Em todo caso, não foram muito diplomáticos ao dar as
alarmantes novas. De forma bastante inconsiderada disseram, “Tua filha
morreu”. 213 Acrescentam, “Por que ainda incomodas 214 o Mestre?”
Segundo a apreciação destes parentes e/ou amigos, não existia nem
mesmo a mais remota possibilidade de que Jesus pudesse restabelecer
uma pessoa morta. Durante algum tempo houve esperança, ou seja,
enquanto a menina estava doente (muito doente, por certo), e enquanto
Jesus estava em caminho. Mas, então, produziu-se aquela trágica
interrupção (vv. 25–34). E agora esse sopro de esperança se esfumou.
“Para aquele que vive há esperança, para o morto, nenhuma” (Teócrito
— Idílios IV. 42). Entretanto, observe-se o que acontece:
36. Mas Jesus, sem acudir a tais palavras, 215, 216 disse ao chefe
da sinagoga: Não temas, crê somente.
Embora Jesus tenha ouvido as palavras dos mensageiros (Lc. 8:50),
não lhes prestou atenção. Com majestosa calma recusou por completo
dar ouvido aos arautos da morte, aos mensageiros da desespero. E quis
que Jairo fizesse o mesmo.
213
ἀπέθανεν. Em geral, este aor. de ἀποθνήσκω traduz-se corretamente deste modo, embora em lugar
de “está morta” a tradução “morreu” (Beck) ou “morreu” (NAS) também é possível.
214
σδύλλεις. O significado original de σκύλλω é cortar, esfolar. A conotação modificada e mais fraca
que aqui se propõe, é incomodar, perturbar. Veja-se também CNT sobre Mt. 9:36.
215
Ou: desatendendo, não levando em conta.
216
Embora “alcançando para ouvir” também é possível, não obstante o significado “passando por
alto”, “não levando em conta”, “recusando levar em conta”, “não prestando atenção a”, é talvez o que
se deseja; porque:
a. Este é o significado da palavra παρακούω na LXX.
b. Também o é em Mt. 18:17, que é a única outra passagem do Novo Testamento onde aparece.
Marcos (William Hendriksen) 281
Jairo tinha medo. Não é fácil desfazer-se do temor. Há uma só
forma de fazê-lo, isto é, crendo firmemente na presença, promessas,
misericórdia, e poder de Deus em Cristo. Consiste em que o positivo
expulse o negativo (Rm. 12:21).
Através da história da redenção sempre foi assim. Quando parecia
que tudo estava perdido, os crentes depositaram sua confiança em Deus e
foram libertados (Sl 22:4; Is. 26:3, 4; 43:2). Foi assim na vida de Abraão
(Gn. 22:2; Tg. 2:22), Moisés (Êx. 14:10ss.; 32:10, 30–32), Davi (1Sm.
17:44–47; Sl 27), e Josafá (2Cr. 20:1, 2, 12), para mencionar só alguns
casos. Quanto maior foi a necessidade, tanto mais próximo o socorro.
Assim sucedeu também no caso de Jairo. As palavras de alento não
foram em vão. Tomou-as muito a sério (Mt. 9:18) e foi escutado.
b. palavras de revelação
37. Contudo, não permitiu que alguém o acompanhasse, senão
Pedro e os irmãos Tiago e João.
Ao reatar sua viagem rumo à casa de Jairo, a multidão deve ter
perguntado o que iria fazer, agora que a situação — segundo a opinião
da gente — era totalmente irremediável. Com autoridade, o Mestre se
despede de toda a multidão, incluindo os discípulos, com exceção de
Pedro, Tiago e João.
Os doze discípulos presenciaram sem nenhum impedimento quase
todos os acontecimentos relacionados com as atividades de Jesus na
terra. Entretanto, alguns desses acontecimentos sucederam na presença
de apenas três destes homens. Com relação ao por quê, só podemos fazer
conjeturas. Permitiu Jesus que só três discípulos entrassem na habitação
onde teve lugar a ressurreição da filha de Jairo, porque a presença de
todo o grupo não teria sido de acordo com o decoro necessário e poderia
ter perturbado a menina quando voltasse a abrir os olhos? Foi a agonia
do Mestre no Getsêmani tão sagrada que não podia ser presenciada por
mais de três discípulos (Mt. 26:37; Mc. 14:33), e foi por esta razão que
até então a “presenciaram” os três até um ponto limitado somente? E é
Marcos (William Hendriksen) 282
possível que a transfiguração pôde ter só três discípulos como
testemunhas oculares (Mt. 17:1; Mc. 9:2; Lc. 9:28), porque de outro
modo a proibição mencionada em Mateus 17:9 teria sido mais difícil de
cumprir? Não sabemos a ciência certa se estas eram as razões.
À vista de Mateus 16:16–19, não nos surpreende que Pedro
estivesse presente nos três eventos. É perfeitamente possível que a
afinidade espiritual de João com seu Mestre (era “o discípulo a quem
Jesus amava”, Jo. 13:23; 19:26; 20:2; 21:7, 10) fosse a razão de sua
inclusão neste círculo íntimo. Mas o que dizer de Tiago, o irmão de
João? Sem dúvida foi uma consideração especial da parte do Senhor para
com quem seria o primeiro dos Doze em selar seu testemunho com seu
sangue (At. 12:2). Foi-lhe outorgado o privilégio de ser incluído entre as
três testemunhas mais íntimas.
Estas são considerações que bem vale a pena levar em conta ao
tentar responder a pergunta, “Por que estes três?” Não obstante, deve
admitir-se francamente que o Senhor não revelou a resposta a esta
pergunta. É mais fácil entender por que era necessário que houvessem
testemunhas, ou seja, para que quando o tempo devido chegasse,
pudessem testificar à igreja com relação às coisas que tinham visto e
ouvido. Além disso, veja-se Dt. 19:15; Mt. 18:16; Jo. 8:17; 2Co. 13:1;
1Tm. 5:19.
38. Chegando à casa do chefe da sinagoga, viu Jesus o alvoroço,
os que choravam e os que pranteavam muito.
Uma cena de confusão deu as boas-vindas a Jesus e aos três
discípulos quando entraram na casa do principal da sinagoga. Mateus
9:23 menciona a ruidosa multidão; Marcos, o ruído ou alvoroço. Era uma
multidão completamente desordenada.
Segundo o costume, o sepultamento era levado a cabo pouco depois
da morte, e por isso esta era a única oportunidade da multidão; e todos,
especialmente as carpideiras profissionais (cf. Jo. 9:17, 18) punham
grande empenho em cumprir seu trabalho, e talvez mais, pelo fato de que
um principal da sinagoga era um homem de muita importância! Ali havia
Marcos (William Hendriksen) 283
pranto, lamentos, gemidos e gemidos dos mais ruidosos. Davam alaridos
sem tentar refrear-se. E de vez em quando, ultrapassando os confusos
ruídos que saíam das gargantas dos lamentadores, podiam escutar-se as
agudas notas dos flautistas (Mt. 9:23).
39. Ao entrar, lhes disse: Por que estais em alvoroço e chorais?
A criança não está morta, mas dorme.
O que os lamentadores faziam estava totalmente fora de lugar, e isto
por duas razões: a. ao menos muitos deles não eram sinceros, segundo se
vê no versículo 40; e b. não havia razão aqui para pranto senão para
alegria, não para lamentar uma morte senão para celebrar um próximo
triunfo sobre a morte.
Naturalmente, não podemos condenar esta gente por não saber que
a vida devia triunfar sobre a morte. O que andava mal, na realidade, era
a. sua falta de sinceridade, e b. sua resistência a aceitar que o que Jesus
dizia a respeito da menina (que não estava morta mas dormindo) eram
palavras de revelação que mereciam uma solene reflexão, e não a
zombaria.
Jesus não queria dar a entender que a menina se achava em estado
de coma, e isto é claro pelas seguintes razões:
a. Lucas 8:53 nos diz que a multidão sabia que a menina estava
morta.
b. Lucas 8:55 afirma que, ao mandato de Jesus, “voltou-lhe o
espírito”. É evidente, portanto, que tinha havido uma separação de
espírito e corpo.
c. Em João 11:11 temos algo parecido. Jesus diz aos Seus
discípulos “Nosso amigo Lázaro dorme”. Mas no versículo 14 afirma,
“Lázaro morreu”.
Em ambos os casos o significado é que a morte não tem a última
palavra. Não é a morte, e sim a vida que vai triunfar afinal. Assim como
ao dormir natural segue o despertar, assim também aquela menina ia
despertar, sim, ia reviver.
40a. E riam-se dele.
Marcos (William Hendriksen) 284
Esta mesma expressão acha-se em Mateus 9:24 e em Lucas 8:53.
Provavelmente refere-se aos repetidos estalos de risadas zombeteiras
com objetivo de humilhar a Jesus. Parece que aqueles lamentadores
estavam dotados do duvidoso dom de mudar num instante do lúgubre
lamento à uma descontrolada risada Não é esta mesma risada uma
confirmação do fato de que a menina tinha morrido realmente? Não é
também um testemunho da autenticidade do resgate da menina das
garras da morte?
219
διεστείλατο aor. médio de διαστέλλω. Basicamente o verbo significa dividir ou distinguir.
Entretanto, em voz medeia, como aqui, desenvolve o sentido de emitir uma ordem; e com uma
partícula negativa (seja esta explícita ou implícita): proibir, ordenar não fazer isto ou aquilo, tomar
cuidado de. Veja-se também 7:36; 8:15; 9:9; cf. Mt. 16:20; At. 15:24; Hb. 12:20.
220
A partícula ἵνα vem seguida de γνοῖ, aor. subj. ativo de γινώσκω. Para formas similares, veja-se em
4:29; 8:37; e 14:10, 11.
Marcos (William Hendriksen) 286
versículo é seguida por um mandato ou exortação na segunda parte. 221
Jesus dá-se conta de que a menina, que por causa de sua fatal
enfermidade certamente não tinha comido durante algum tempo,
necessitava-o; e que os pais, extasiadas de alegria, poderiam passar por
alto esta necessidade. Por isso deu a ordem. 222
Este é um ponto muito importante. Não se deve deixar passar sem
lhe dar seu valor (cf. Is. 57:15). Primeiro Jesus triunfa sobre a morte;
logo acalma a fome, ou antes, impede que chegue a produzir-se. Seu
poder é insondável; e Sua compaixão não se pode medir.
Este é o mesmo Salvador que se prestou a sustentar a reputação de
um que duvidava (Mt. 11:1–19), e de aceitar as presunçosas condições
de outro (Jo. 20:24–29), que defendeu as viúvas (Lc. 18:1–8; 21:1–4),
ajudando-as em suas necessidades (Lc. 7:11–17), que tomou os pequenos
em seus braços e os abençoou (Mc. 10:16), que chorou pelos obstinados
habitantes de Jerusalém (Mt. 23:37–39), e que mostrou Sua bondade
para com uma mulher que era uma pecadora pública (Lc. 7:36–50).
Durante Sua própria e mais amarga agonia procurou um lar para Sua
mãe (Jo. 9:26, 27), a entrada ao paraíso para um ladrão (Lc. 23:43), e o
perdão para os Seus torturadores (Lc. 23:34). Inclusive depois de Sua
ressurreição é o mesmo Salvador de profunda ternura. Admiremos todo
Seu proceder com o homem que tão recentemente tinha renegado dEle!
(Mc. 16:7; Jo. 21:15–17). Este é o contexto em que se deveria ler a
preciosa passagem de Marcos 5:43b.
221
A que se deve que vários comentários nada dizem a respeito desta ordem tão reveladora? Outros só
se referem ao ponto gramatical, ou seja, que aqui achamos uma construção impessoal: Jesus não diz
que os pais eram os que deviam dar à menina algo de comer — por que teria ele que dizê-lo? Não se
acha implícito? —. Por meio do uso do infinitivo aor. pas. δοθῆναι, o que Jesus diz simplesmente é
que devia dar-lhe algo. Outros acrescentam que o próprio fato de que a menina estivesse em condições
de comer é prova de que não só se achava viva, mas também em boa saúde, ou prova de que a
ressurreição era verdadeira. Pelo lado favorável, alguns comentaristas — por exemplo, Lenski,
Robertson, e Taylor — procedem de melhor forma e afirmam claramente que o evangelista acrescenta
este detalhe a fim de revelar o maravilhoso cuidado de Jesus como grande Médico, e mostrar sua tenra
preocupação e compaixão. Isto é exatamente o essencial!
222
Um dos significados de εἶπεν (usado como aor. segundo de λέγω) é mandou, ordenou.
Marcos (William Hendriksen) 287
Ele é além disso, a Esperança dos desesperançados. Isto é o que
ensinou ao homem que não podia ser sujeito (Mc. 5:21); à mulher que
não tinha podido ser curada (vv. 25–34; Lc. 8:43); e ao pai a quem lhe
disseram que já não havia esperança (vv. 21–24; 35–43).
Resumo do Capítulo 5
223
Embora os três milagres do cap. 5 se introduzam nesta ordem: endemoninhado (v. 2), Jairo (v. 22),
mulher (v. 25), terminam neste ordem: endemoninhado (v. 20), mulher (v. 34), Jairo (v. 41–43).
Marcos (William Hendriksen) 288
Não obstante Cristo, em Sua majestade, poder, e compaixão,
triunfou sobre esta falta de esperança em cada um dos três casos:
expulsou os demônios e transformou o endemoninhado em missionário;
curou a mulher e aperfeiçoou sua fé, transformando-a de uma fé oculta
numa fé manifestada; e para maravilha de todos, não só fez voltar a
menina à vida, mas também até em Sua tenra bondade Ele Se preocupou
de que recebesse algo de comer!
A importância deste capítulo estriba em que não só se revela o
poder de Cristo, mas também Sua compaixão. Seu coração compassivo
fica a descoberto.
A lição principal, portanto é: “Entrega o seu coração ao
maravilhoso Salvador”.
Uma segunda lição é a seguinte:
“Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós
também” (Jo. 13:15).
“Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados; e andai em
amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós,
como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave” (Ef. 5:1, 2).
Marcos (William Hendriksen) 289
MARCOS 6
Mc. 6:1–6a - Jesus é rejeitado em Nazaré
Cf. Mt. 13:53–58; Lc. 4:16–30 224
224
Com exceção da seção 2, dedicada a: A missão dos Doze (Mc. 6:6b–13; cf. Mt. 10:1, 5, 9–14),
Mateus 13:53–14:36 segue a mesma sequência de Marcos 6. Lucas 4:16–30 também segue de maneira
paralela às seções 2, 3, e 4 de Marcos 6. Mas as seções 5 e 6 — andando sobre as águas e as curas em
Genesaré — não se acham em Lucas.
Marcos (William Hendriksen) 290
Quanto aos resultados e acontecimentos posteriores, veja-se Mc.
6:32–56. Como Mateus se especializa nos discursos de Cristo, era de
esperar que dedicasse um capítulo inteiro à Missão dos Doze (cap. 10),
resumida em Marcos 6:6b–13 e em Lucas 9:1–6. Não existe acordo com
relação a por que o Evangelho de Lucas separa-se do que provavelmente
seja a sequência histórica. Lucas coloca a rejeição ocorrida em Nazaré na
primeira parte de seu Evangelho, quando relata o grande ministério na
Galileia, enquanto Mateus e Marcos lhe dão um lugar muito mais tardio.
Há aqueles que têm sugerido que houve duas rejeições em Nazaré. 225
Quanto ao resto, veja-se outros comentários sobre Lucas.
A continuação apresentamos as razões para crer que nos três
Evangelhos faz-se referência ao mesmo fato:
a. Os três Evangelhos têm o esboço geral da história: num sábado
Jesus entra na cidade onde fora criado. Ensina na sinagoga. Resultado:
assombro, crítica adversa, rechaço.
b. Em cada um dos três relatos a declaração pronunciado pelo
Senhor é essencialmente a mesma (Mt. 13:57; Mc. 6:4; Lc. 4:24).
c. O fundo histórico não cria dificuldades, visto que inclusive de
acordo com o relato de Lucas (veja-se Lc. 4:23), a rejeição de Cristo em
Nazaré não ocorreu no começo do ministério galileu mas muito depois.
A identificação dos fatos torna-se mais fácil porque, além do
sugerido em Lc. 4:23, não há referências cronológicas no relato de
Lucas. É evidente que, segundo Mateus 13:53, 54, a visita a Nazaré
ocorreu algum tempo depois de Jesus ter pronunciado Suas parábolas
sobre o reino, embora em nenhum lugar se indique quanto tempo depois.
Esta visita e rejeição tiveram lugar a fins de 28 d.C.? Esta possibilidade
deve ser considerada como aceitável.
Pelo que respeita a Marcos 6:1–6a (e seus paralelos em Mateus e
Lucas), estes são os detalhes que ali se registram e que não aparecem em
Mateus e Lucas: a. os discípulos de Jesus acompanham a Nazaré; b.
225
Robertson, Word Pictures I, p. 305; ao contrário: A. B. Bruce, Op cit., p. 377.
Marcos (William Hendriksen) 291
Jesus estava surpreso pela incredulidade do povo; e c. por causa desta
falta de fé não pôde realizar ali milagre algum. Com uma exceção, que
pôs suas mãos sobre uns poucos doentes e os curou.
Quanto a Mateus, além dos detalhes já indicados, seu relato
coincide em quase tudo com o de Marcos.
Lucas tem uma apresentação muita mais rica, usa 15 versículos para
relatar os fatos, enquanto Mateus só usa 6 e Marcos 5. Lucas nos
proporciona o texto e a essência do sermão de Cristo. Além de nos dizer
como O receberam, Lucas nos dá um relato muito mais completo (que
aquele que nos dão Mateus e Marcos) sobre a forma em que Jesus
respondeu às críticas, e sobre a hostil reação resultante.
1. Tendo Jesus partido dali, foi para a sua terra, e os seus
discípulos o acompanharam. 226
Algum tempo — não sabemos quanto — depois de abandonar
Cafarnaum, Jesus entrou em “sua terra”, quer dizer, o lugar onde fora
criado. A palavra que se utiliza no original e traduzida aqui por “sua
terra” significa basicamente “terra natal”, mas neste caso a explicação
“lugar onde tinha sido criado” é perfeitamente correta, segundo o prova
Lucas 4:16 (vejam-se também Mc. 6:4; Mt. 13:54, 57; Lc. 4:23, 24; Jo.
4:44. Cf. Hb. 11:14).
Embora Jesus tenha nascido em Belém (Mt. 2:5, 6; Lc. 2:4, 15; Jo.
1:45; 7:42; cf. Mt. 5:2), e durante grande parte de seu ministério público
teve seu centro de ação em Cafarnaum (Mt. 4:13), era e sempre foi
considerado como “Jesus de Nazaré” (Mt. 2:23; 21:11; 26:71; Mc. 1:24;
10:47; 14:67; 16:6; Lc. 18:37, etc.).
Resulta interessante observar que os Doze estão outra vez com seu
Mestre; contraste-se com Mc. 5:37. Há aqueles que interpretam isto no
sentido de que a visita a Nazaré não foi de natureza particular. Poderiam
ter razão.
Entretanto, embora assim tivesse sido, Marcos prossegue:
226
Ou: acompanharam.
Marcos (William Hendriksen) 292
2. Chegando o sábado, passou a ensinar na sinagoga; e muitos,
ouvindo-o, se maravilhavam, dizendo: Donde vêm a este estas
coisas? Que sabedoria é esta que lhe foi dada? E como se fazem tais
maravilhas 227 por suas mãos?
Veja-se a declaração a respeito da sinagoga com relação a Mc. 1:39,
a seção dedicada especialmente a este assunto. Veja-se também sobre
Mc. 1:21ss. e 3:1. Por Lucas 4:17ss. sabemos que o “encarregado” da
sinagoga entregou a Jesus o rolo de Isaías. O texto que selecionou foi
Isaías 61:1, 2a; ou talvez esta porção de Isaías era a “haftará” (lição dos
profetas) para esse preciso sábado. Conforme relata Lucas, Isaías
predisse que na era vindoura o Espírito repousaria sobre o Ungido de
Deus, o qual proclamaria as boas novas aos pobres, liberdade aos
cativos, recuperação da vista aos cegos, liberdade aos oprimidos, “o ano
agradável do Senhor”.
Ao chegar a este ponto, assim continua este evangelista, Jesus
enrolou o pergaminho, devolveu-o ao encarregado, e estando todos os
olhos fixos nele, disse, “Hoje se cumpriu esta Escritura diante de vós”.
Afirmou que por meio dEle e Seu ministério, a notável promessa de
Isaías se estava cumprindo.
Em harmonia com Marcos, Lucas explica que a primeira reação da
parte da concorrência foi favorável. Jesus se tinha expressado com tal
convicção interna, vigor, autoridade, e graça que os que O conheciam
ficaram mudos de assombro.
Entretanto, esta reação favorável não durou muito. O entusiasmo
começou a transformar-se em crítica adversa. Claro, as palavras eram
maravilhosas, mas vindo dEle … dEle? Como poderia ser possível? De
onde obteve este homem … (se poderia traduzir: este tipo) … estas
coisas?”. Para o povo, as palavras do pregador eram totalmente
incongruentes com o homem que as pronunciava. Naturalmente, um
227
Ou: obras de poder; assim é também no v. 5 (aí no singular: obra de poder, milagre).
Marcos (William Hendriksen) 293
indivíduo comum, sem cultura, tal como “sabiam” (?) que era Jesus, não
correspondia revelar “esta classe” 228 de sabedoria!
Além disso, o que se podia dizer dos milagres ou “obras de poder”
que todos conheciam como obras “de suas mãos”, quer dizer, das quais
Ele era autor? O povo de Nazaré mal poderia negar os fatos. A distância
entre Nazaré e Cafarnaum era somente de uns trinta e três quilômetros, e
a congregação presente na sinagoga sabia que naquela cidade e em seus
arredores, Jesus, seu concidadão, tinha realizado muitas obras de poder
— pois isto é o que significa a palavra que se usa aqui para “milagres”
(veja-se Mc. 1:21–34; 40–45; 2:1–12; 3:1–6; 5:21–43). Mas de onde
procedia tudo isto? Cf. Mt. 11:28. Não lhes passava pela mente que Deus
pudesse ser a origem das palavras e também das obras de Jesus.
Além disso, se fez tudo aquilo em Cafarnaum — e eles não
rejeitaram os informes — então por que não fazia algo similar em
Nazaré? Que comece sua atuação! (veja-se Lc. 4:23). Acaso não devia
tudo isso à Sua própria cidade de origem? O evangelista Marcos põe
especial ênfase em: a. A procedência do ensino de Cristo, e b. A
natureza da sabedoria que inclusive O capacita a realizar milagres.
A reação depreciativa segue no versículo
3. Não é este o carpinteiro, filho de Maria, irmão de Tiago, José,
Judas e Simão? E não vivem aqui entre nós suas irmãs?
Jesus o carpinteiro! Justino Mártir escreveu entre os anos 155 e 161
d.C., e em seu Diálogo com o Trifo LXXXVIII fala a respeito de Jesus
dizendo, “Ele costumava trabalhar como carpinteiro quando estava entre
os homens, fazendo arados e jugos”. A palavra “carpinteiro” usada no
original é tekton, relacionada com a nosso “técnico”. O verbo análogo
significa gerar, dar à luz, produzir. O tekton, em consequência, é
basicamente todo operário, qualquer que “produz”, “faz”, ou “cria” um
objeto. Poderia ser dito, todo “artesão” ou “construtor”, quer seja que os
materiais que usa consistam em madeira, pedra, metal, ou qualquer
228
Grego τίς = ποῖος.
Marcos (William Hendriksen) 294
outro. No caso presente devemos supor que o correto é “trabalhador da
madeira”, “carpinteiro” (veja-se a citação do Justino Mártir). Vale a pena
observar que aqui em Marcos, o próprio Jesus é chamado como “o
carpinteiro”, enquanto em Mateus 13:55 é chamado como “o filho do
carpinteiro”. Isto não deve ser considerado uma discrepância, visto que
bem pôde haver sido chamado das duas maneiras. Em tempos antigos, e
até relativamente recentes, ao escolher sua profissão, um filho seguia
com frequência os passos de seu pai.
O que os caluniadores queriam dizer era algo assim: “O que é que
um simples carpinteiro sabe a respeito de oratória e especialmente a
respeito de interpretação e cumprimento profético? Não é acaso o “filho
de Maria”? José nem sequer é mencionado, provavelmente porque por
aquele tempo já havia falecido.
Os irmãos de Jesus também são mencionados. Em primeiro lugar,
vem Tiago (cf. Mt. 13:55), um homem que depois de sua conversão
deveria ter proeminência na igreja primitiva cristã, especialmente em
Jerusalém (At. 12:17; 15:13–29; 21:18; 1Co. 15:7; Gl 1:19; 2:9, 12; Tg.
1:1; Jd. 1). Nada se sabe a respeito de José, mencionado a seguir
(chamado José também em Mt. 13:55), e que não se deve confundir com
o José de Marcos 15:40, 47. Segue-o Judas (cf. Mt. 13:55; Jd. 1); e
último de todos, Simão (cf. Mt. 13:55), tão desconhecido para nós como
José. Estes eram os irmãos de Jesus, nascidos da mesma mãe (veja-se
mais acima, sobre Mc. 3:31). No que respeita às irmãs, nunca são
mencionadas pelo nome. Supõe-se que se tinham casado e viviam então
com seus maridos em Nazaré.
“A familiaridade produziu menosprezo” quer dizer, o próprio fato
de que o povo de Nazaré conhecesse bem a família de Jesus, por ter-se
relacionado com eles por muito tempo, fez com que O olhassem de
forma depreciativa. O que se cria este carpinteiro? E escandalizavam-se
Marcos (William Hendriksen) 295
229
nele. Quer dizer, deixaram-se apanhar no pecado de O considerar uma
ofensa para eles.
4. Jesus, porém, lhes disse: Não há profeta sem honra, senão na
sua terra, entre os seus parentes e na sua casa.
Veja-se CNT sobre João 4:44, onde se acha substancialmente a
mesma expressão proverbial. Mas a palavra usada em João é patris, que
se refere ao país natal ou à “pátria” (quer dizer, Galileia), enquanto aqui
em Marcos 6:4 (e seu paralelo Mt. 13:57) usa-se uma palavra que se
refere ao povo onde foi criado, como é evidente pelo relato e por Lucas
4:16.
Poderiam ser dadas outras traduções, tais como: um profeta sempre
recebe honra exceto, etc., ou: nunca deixa de receber honra exceto, etc.,
ou: é sem honra só em, etc. Mas estas traduções não são exatas. Jesus
não disse que a um profeta é respeitado em todo lugar, exceto em seu
povo, entre os seus parentes, e em sua família. O que disse foi que onde
quer que um profeta recebe honra, certamente não será em sua própria
terra, etc.
Quanto à referência à sua família, esta deve ser interpretada à luz de
passagens como João 7:5 e Atos 1:14. Então se verá que no caso dos
irmãos de Cristo, a incredulidade se transformou mais adiante em fé,
pela graça de Deus.
Antes de deixar esta passagem deve-se assinalar que Jesus afirma
aqui implicitamente que Ele é verdadeiramente um profeta, com direito a
ser honrado como tal (cf. Dt. 18:15, 18; Mt. 21:11; Lc. 24:19; Jo. 9:17;
At. 3:22; 7:37).
O resultado do rechaço de Nazaré foi:
5. Ele não pôde fazer milagres em Nazaré, a não ser curar
alguns doentes, pondo as mãos sobre eles.
Os nazarenos tinham recebido mais luz e mais privilégios que os
gerasenos (Mc. 5:17), assim que ao rejeitar a Jesus, o povo de Nazaré
229
Para a palavra usada aqui no original, veja-se sobre Mr. 4:17, nota 147.
Marcos (William Hendriksen) 296
mostrou que neste aspecto eram piores que os gerasenos (Mc. 5:17).
Como O rejeitaram, não foram a Ele para que os curasse, nem levaram a
Ele os seus doentes. De modo que todos aqueles incrédulos e rebeldes
não receberam cura. Jesus não realizou nenhum milagre em favor deles.
Entretanto, pôs suas mãos sobre uns poucos doentes. Com relação à
expressão “doentes”, veja-se sobre o v. 13. Estes talvez foram a Ele, ou
pediram para serem levados. Dá-se por sentado que estes poucos foram
curados.
Agora, inclusive aqueles poucos podiam ter estado motivados por
considerações inferiores a uma fé autêntica, que às vezes é chamada “fé
salvadora”, ou talvez descrita melhor como “fé que pela graça de Deus
conduz à salvação”, a fé genuína a qual se faz referência em Jo. 3:16;
Rm. 5:1; Ef. 2:8, etc. Com base nas Escrituras, os teólogos falam de fé
histórica, fé temporal, fé em milagres, como também fé genuína que
conduz à salvação. 230 No caso presente bem pôde ter sido mera fé em
Jesus quanto autor de milagres. Em consequência, foi uma fé nos
milagres a que fez com que uns poucos fossem a Jesus para receber cura.
Mesmo assim, Jesus não costumava negar-se a curá-los (veja-se Lucas
17:17b). Por outro lado, se aqueles poucos eram verdadeiros crentes —
uma possibilidade que não deve descartar-se totalmente — então a
situação em Nazaré lembra a que em tempos posteriores existiu na igreja
de Sardes (veja-se Ap. 3:4. Cf. Is. 1:9; Jr. 31:7; Jl. 2:32; Lc. 12:32; Rm.
9:27; 11:5). A doutrina do “remanescente” percorre as Escrituras como
um fio de ouro. Mas qualquer pessoa que tivesse sido a situação daqueles
poucos, em seu conjunto os habitantes de Nazaré deram as costas a
Jesus. A grande maioria dos doentes ficou sem ser curado, e os
pecadores sem perdão.
Entretanto, a forma de expressar-se de Marcos difere algo da de
Mateus. Em Mateus 13:58 diz “E não fez ali muitos milagres, por causa
da incredulidade deles”. Marcos diz, “Ele não pôde fazer milagres em
230
Veja-se L. Berkhof, Teologia sistemática (Grand Rapids: TELL, 1969), pp. 600ss.
Marcos (William Hendriksen) 297
Nazaré”. Solução provável: não pôde realizar estes milagres porque, sob
tais circunstâncias de incredulidade e oposição, não os quis fazer. Em
lugar de fazer valer Seu grande poder para eliminar a oposição rebelde
do povo, respeitou a própria responsabilidade deles com relação a suas
atitudes e ações (cf. Mt. 24:37. Vejam-se também Lc. 22:22; At. 2:23).
A hostil atitude do povo a conduziu a uma ação hostil (Lc. 4:28, 29)
baseada na incredulidade. Isto suscitou na alma de Jesus o sentimento
que se descreve no versículo
6a. Admirou-se 231 da incredulidade deles.
Embora no original, o verbo assombrar-se ou admirar-se apareça
trinta vezes nos quatro Evangelhos, só em três casos usa-se com
referência a Jesus. Estes casos se referem a dois acontecimentos
distintos, um que aparece em Mt. 8:10 (cf. Lc. 7:9) e outro em Mc. 6:6.
Num caso Jesus se admira ou se assombra pela notável fé de um
centurião de origem gentílica. No caso daquele homem dificilmente
podia esperar-se tal fé, porque era muito menos privilegiado que os
judeus. Aqui em Nazaré, pelo contrário, Jesus está assombrado por causa
da falta de fé dos habitantes. Aqui se esperava que houvesse fé, porque
Nazaré era um povo da Galileia, a mesma Galileia que tinha sido tão
altamente privilegiada por meio do ministério de Jesus.
É muito difícil à mente humana entender a psicologia da alma
humana de Jesus. Por isso, antes de nos deter em detalhes relacionados
com esse tema, fixaremos nossa atenção no fato de que esta passagem
claramente revela a responsabilidade do homem por suas atitudes e
ações, com relação à luz que tenha recebido (Mt. 11:20–24; Lc. 12:47,
48; Rm. 2:12).
231
Ou: “maravilhava-se”, tempo imperfeito. Quanto ao verbo, veja-se sobre 5:20, nota 199.
Marcos (William Hendriksen) 298
Mc. 6:6b–13 - A missão encomendada aos Doze
Cf. Mt. 10:1, 5, 9–14; Lc. 9:1–6
232
Entretanto, isto não é seguro. Este poderia ser um caso de uso pleonástico de ἄρχω. Veja-se
BAGD, p. 113. Também Vincent Taylor, Op. cit., p. 48, e mais acima sobre Mc. 1:45.
233
Embora a construção δύο δύο se considerasse um hebraísmo, não só aparece também em Esquilo e
Sófocles, mas também o moderno Novo Testamento Grego (Londres, 1943), conservou-o. Portanto,
esta repetição do número cardeal pode-se considerar como uma ilustração da coincidência entre a
Marcos (William Hendriksen) 299
em mente em Mt. 10:2–4 (veja-se CNT sobre essa passagem). Se for
perguntado por que de dois em dois, vêm-nos à mente imediatamente
várias considerações práticas tais como a. para ajudar-se e alentar-se um
ao outro (cf. Ec. 4:9) e b. para ser testemunhas válidas (Nm. 35:30; Dt.
19:15; Mt. 18:16; Jo. 8:17; 2Co. 13:1; 1Tm. 5:19; Hb. 10:28). Tempo
mais tarde observamos que Pedro e João oferecem seu testemunho unido
(At. 3:1; 4:1, 13, 19); que Barnabé e Saulo são enviados juntos em sua
viagem missionária (At. 13:1–3); e que depois Paulo e Silas juntos são
“encomendados pelos irmãos à graça do Senhor” (At. 15:40); e não
esqueçamos a Barnabé e Marcos! (At. 15:39).
Aos Doze foi dada autoridade sobre os espíritos imundos; quer
dizer, Jesus lhes comunicou o direito e o poder de expulsar estes
demônios do coração e vida dos homens. Cf. v. 13a; Mt. 10:1. Quanto a
maior informação a respeito da possessão demoníaca veja-se mais acima,
sobre Mc. 1:23; também CNT sobre Mt. 9:32–34.
Embora o resumo da missão que se consigna em Marcos 6:7, nada
se diz a respeito de pregar nem de curar doentes, estas duas funções
deviam ser incluídas na missão encomendada. A ordem de pregar está
incluída no versículo 11 (“nem vos ouvirem”) e no versículo 30 (“e lhe
relataram tudo quanto haviam feito e ensinado”); o mandato de curar os
doentes está indicado no versículo 13b. Não se sabe por que o relato do
encargo da missão não menciona a pregação e a cura. Alguns respondem
que o dom maior (autoridade para expulsar demônios) encerra o menor
(pregar e curar doentes). Esta resposta me chama a atenção por ser
menos que satisfatória, por mais de uma razão. Veja-se os versículos 12,
13. Com relação à frase “espíritos imundos” veja-se Mc. 5:2.
fraseologia vernácula de idiomas distintos. Sobre este ponto veja-se A. Deissmann, Light from the
Ancient East (tradução ao inglês, Nova York, 1927), pp. 122, 123.
Marcos (William Hendriksen) 300
234
8, 9. Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, exceto
um bordão; nem pão, nem alforje, nem dinheiro; que fossem
calçados de sandálias e não usassem duas túnicas. 235
Nesta viagem não levariam nada mais que o absolutamente
necessário. Por que? Porque Deus proveria. Os discípulos, agora também
apóstolos, deviam depositar sua confiança inteiramente nEle. Sem
dúvida que esta é a razão fundamental (veja-se Mt. 6:19–34; Mc. 8:19–
21; Lc. 22:35). A isto se pode acrescentar Mt. 10:10b, “digno é o
trabalhador do seu alimento”, que significa: A responsabilidade de
prover para quem prega o evangelho, recai sobre aqueles que o ouvem.
Isto também concorda com o ensino do Antigo e do Novo Testamento:
Dt. 25:4; 1Co. 9:7, 14; e veja-se também CNT sobre 1Ts. 2:9 e 1Tm.
5:18.
A lista das coisas a levar e (principalmente) não levar, consistia nos
seguintes artigos, na ordem que se mencionam aqui nos versículos 8 e 9:
Bordão. 236 No grego não bíblico refere-se às vezes a uma vara
mágica. Outros significados são: vara de pescar, raio de luz com
aparência de vara, etc. No Salmo 23:4 (LXX 22:4) a palavra faz
referência ao cajado de um pastor. Cf. Mt. 7:14. No Novo Testamento a
vara é às vezes um instrumento de castigo (1Co. 4:21), significado que
se relaciona facilmente com “a vara de ferro” de Ap. 2:27; 12:5; 19:15.
Logo temos também o cetro real (Hb. 1:8); a vara que dá suporte, para
apoiar-se nela (Hb. 11:21); e a vara de Arão que floresceu (Hb. 9:4).
234
Ou: para a viagem.
235
Quanto à construção gramatical dos vv. 8, 9, note-se que o ἵνα não indica propósito no v. 8, mas
sim é recitativo: “mandou-lhes que não levassem nada”. Em consequência: “Mandou-lhes não levar
nada”. O v. 9 (conforme ao melhor texto) transforma o ἵνα numa construção acusativa, com
πορεύεσθαι implícito: ἀλλὰ (πορεύεσθαι) ὑποδεδεμένους σανδάλια = “e sim (viajar) calçados com
sandálias”, o que se pode simplificar dizendo “e sim calçar sandálias” (veja-se Robertson, p. 441).
Este característico não se deve considerar estranho, visto que construções gramaticais heterogêneas de
caráter similar podem ser achadas em muitos idiomas fora do grego do Novo Testamento. A
conversação diária contribui com muitos exemplos.
236
As seis palavras usadas no original são: ῥάβδος, ἄρτος, πήρα, χαλκός, σανδάλιον, χιτών.
Marcos (William Hendriksen) 301
Mas aqui em Marcos 6:8 e seus paralelos, refere-se ao bordão do
viajante.
Pão. Aqui e em Lucas 9:3 esta palavra usa-se genericamente.
Alforje. Era um tipo de mochila ou bolsa “para o caminho” ou para
“viajar”. É uma bolsa que, antes de sair, a pessoa encheria com as
provisões necessárias para a viagem. Por causa do contexto, que parece
constituir uma espécie de clímax: “Não tomem convosco pão, nem
mesmo bolsa para levá-lo, na realidade, nem sequer dinheiro para
comprá-lo”, a ideia de que se refere à “bolsa de esmoleiro” (A.
Deissmann, Op. cit., p. 109) carece de possibilidades. Além disso, como
Mateus 10:10b indica claramente, Jesus não considera os apóstolos como
mendigos!
Dinheiro. A palavra que se utiliza no original tem o sentido básico
de cobre, latão, bronze. Em segundo lugar, pode-se referir a qualquer
coisa feita de algum destes metais. Veja-se 1Co. 13:1. Em consequência
pode-se referir também a moedas, troco; assim parece ser aqui em
Marcos 6:8; cf. 12:41. Note-se a expressão “nem dinheiro no cinto”
[RC]. Ao enrolar ou cingir um cinturão, de qualquer material, ao redor
do corpo com várias voltas, suas dobras serviriam admiravelmente como
“bolsos” para levar dinheiro ou outros valores. Até hoje em dia os que
saem ao estrangeiro com frequência levam dinheiro ou cheques
viajantes, etc., num cinturão por razões de segurança.
Sandália; aqui o plural sandálias. Em Mateus 10:10 usa-se um
sinônimo, com pouca ou nenhuma diferença quanto ao significado (veja-
se também Mt. 3:11; Mc. 1:7; Lc. 3:16; 10:4; 15:22; 22:35; At. 13:25).
Consistiam em solas planas feitas de madeira ou de couro, ou inclusive
de fibras vegetais entretecidas. Para impedir que caíssem eram sujeitas
com cintas ou cordões.
Túnica; aqui no plural duas túnicas. Era uma espécie de camiseta
longa que se usava tocando a pele. Chegava quase aos pés e tinha
aberturas para os braços (Cf. Mt. 5:40; 10:10; Lc. 3:11; 6:29; 9:3). Em
Marcos 14:63, o plural refere-se a roupa em geral.
Marcos (William Hendriksen) 302
Até aqui não parece haver grande dificuldade. Mas, conforme o
indica a seguinte tábua, parece haver discrepância ou conflito com
relação a dois artigos: o bordão e as sandálias.
237
Assim, por exemplo, M. H. Bolkesteyn, Vincent Taylor, R C. Grant, H. A. W. Meyer
(enfaticamente) em seus respectivos comentários sobre Marcos 6:8, 9. Para os títulos de seus livros,
veja-se a bibliografia.
Marcos (William Hendriksen) 303
pensa num “bordão” para apoio e alívio do viajante. Calvino não explica,
entretanto, por que nos dois relatos paralelos a mesma palavra pode ter
dois significados diferentes.
A solução, segundo a este intérprete, encontra-se provavelmente em
Mateus 10:9, 10: “Não vos provereis de ouro, nem de prata, nem de
cobre nos vossos cintos; nem de alforje para o caminho, nem de duas
túnicas, nem de sandálias, nem de bordão”. O que Mateus provavelmente
quer dizer é, “Não levem um par de sandálias de sobra”. Isto parece ser
ainda mais provável à vista do fato de que em seu Evangelho, a
referência às sandálias segue imediatamente à ordem contra levar duas
túnicas. Portanto, a advertência de não levar coisas de sobra
provavelmente se estende ao seguinte artigo, sandálias, e ao seguinte,
bordão. Se isto é correto, então o que Jesus diz também aqui em Marcos
é: não se deve levar uma túnica de sobra, nem sandálias de sobra, nem
bordão de sobra.238 O bordão que têm em suas mãos tem que ser o único
bordão que levem; as sandálias que usarão serão as que agora levam.
10. E recomendou-lhes: Quando entrardes nalguma casa,
permanecei aí até vos retirardes do lugar [dessa cidade].
238
Seguem também esta linha S. Greijdanus, Het Heilig Evangelie naar de Beschrijving van Lucas
(Comentar op het Nieuwe Testament, Amsterdam, 1940), p. 403; Lenski, Op. cit., p. 152.
Os que zombam deste esforço e com frequência buscam a solução fazendo referência a supostas
fontes que continham material em conflitivo. Além de que algumas destas “fontes” ainda esperam ser
descobertas, não se pode ir a fontes desconhecidas como se isto fosse uma panaceia para a solução dos
problemas do Novo Testamento. Esta gente não se dá conta de que assim criam outros problemas. Por
exemplo, alguns argumentam que Mateus contém a declaração original. Se isto quer dizer que Jesus
tinha mandado a Seus discípulos que viajassem descalços, mas que Marcos (ao escrever a leitores de
cultura ocidental) admite sandálias para acomodar-se a eles, produz-se então o seguinte enigma:
a. A expressão “sacudir o pó dos pés” (Mt. 10:14; Mc. 6:11; Lc. 9:5, com ligeiras variações quanto a
palavras) deveria significar uma coisa em Mateus e Lucas, outra em Marcos.
b. Segundo a interpretação que eles fazem de Mateus, não se explica por que Jesus devia enviar aos
discípulos descalços, acrescentando mais problemas a seu trabalho.
c. Tampouco se explicou como a igreja primitiva permitiu que a (suposta) discrepância ficasse sem
resolver.
d. Além disso, nas Escrituras o estar descalço está associado a ideias totalmente diferentes (Êx. 3:5;
2Sm. 15:30; Is. 20:2; Ez. 24:17).
Marcos (William Hendriksen) 304
A forma em que os discípulos deviam decidir em que casa ficar é
indicado em Mateus 10:11. Era o dever dos ouvintes oferecer
hospitalidade, e com maior razão pelo fato de que os viajantes
enriqueciam as pessoas com a pérola de grande preço. E os visitantes
também deviam mostrar um espírito de cooperação. Não deviam ser tão
exigentes que, quando na casa algum detalhe não fosse de seu agrado,
saíssem imediatamente e entrassem em outra onde os confortos fossem
mais agradáveis e a comida mais saborosa. A extensão do evangelho tem
prioridade sobre os assuntos pessoais que nos agradam ou não nos
agradam. Portanto, os missionários — não só quando viajavam, mas
também provavelmente também ao alojar-se de dois em dois — deviam
permanecer no lar que foi tão bondoso ao lhes oferecer hospitalidade.
Uma lição muito prática!
11. Se nalgum lugar não vos receberem nem vos ouvirem, ao
sairdes dali, sacudi o pó 239 dos pés, 240 em testemunho contra eles.
Depois de viajar por território pagão, os judeus tinham por costume
sacudir o pó de suas sandálias e roupa antes de entrar na Terra Santa. 241
Temiam que, de não fazê-lo assim, os objetos leviticamente limpos de
sua pátria pudessem tornar-se imundos. O que Jesus diz aqui, portanto, é
que qualquer lugar, quer casa, aldeia, cidade ou casario, que recusasse
aceitar o evangelho deveria considerar-se imundo, como se fosse só
pagão. Portanto, tal foco de incredulidade devia ser tratado da mesma
forma. Paulo e Barnabé fizeram exatamente isto quando se organizou
contra eles uma perseguição no distrito judaico de Antioquia da Pisídia
(At. 13:50, 51). Sobre semelhante lugar repousa uma responsabilidade
colossal e uma pesada carga de culpa. Veja-se Mt. 10:15.
Os Evangelhos mostram certas variações ao registrar as palavras
que Cristo usa ao dar Suas instruções. Estas diferenças bastam para
239
Literalmente Mateus e Marcos falam de “sacudir fora”, Lucas, de “sacudir”. A diferença é
pequena.
240
Literalmente: “desde debaixo de seus pés”.
241
SB. I, p. 571.
Marcos (William Hendriksen) 305
mostrar que mesmo quando os escritores dos Evangelhos, com toda
probabilidade, usaram fontes escritas assim como orais, sempre se
mantêm como os escritores ou autores, e jamais meros copistas. Assim,
no original de Mateus (10:14) e Lucas (9:5) usa-se uma palavra para pó,
enquanto Marcos (6:11) usa outra, 242 mas em ambos os casos a tradução
correta é “pó”. Assim também, Mateus menciona “aquela casa ou
cidade”, Marcos “algum lugar”, Lucas “aquela cidade”, mas não há
diferença importante. Com relação a isto, Mateus nada diz a respeito de
um testemunho; mas veja-se Mt. 10:15. Marcos escreve sacudi o pó dos
pés, em testemunho contra eles”; Lucas: “em testemunho contra eles”.
Mas corretamente interpretado, o significado é o mesmo. Em cada caso a
ação simbólica, em obediência ao mandato de Cristo, é uma declaração
pública do desagrado divino que pesa sobre o lugar em que o evangelho
foi rejeitado. O testemunho dirigido “a” eles é portanto um testemunho
“contra” eles … para que se arrependam. Cf. Ap. 16:9.
É uma revelação da evidente desaprovação de Deus, porque os que
espalham as boas novas são Seus embaixadores e levam Sua palavra. De
modo que ao rejeitá-los, esta gente ímpia está rejeitando a Deus; ou, se
preferir-se, a Cristo.
12, 13. Então, saindo eles, pregavam ao povo que se
arrependesse; expeliam muitos demônios e curavam numerosos
enfermos, ungindo-os com óleo.
Observe-se o seguinte:
a. Saindo eles, pregavam. Fizeram o papel de arautos. A pregação,
se o leitor é fiel ao significado original do termo, é a proclamação
fervorosa das novas iniciadas por Deus. Não é a especulação abstrata
sobre pontos de vista inventados pelo homem (veja-se também 14, 7, 14,
38, 45; CNT sobre 2Tm. 4:2).
242
Respectivamente κονιορτός (de κόνις y ὄρνυμι; em consequência, o que é agitado do solo; p.ej.,
por obra de um brioso corcel, cf. Lc. 10:11; At. 13:51; 22:23); e χούς a terra que se adere às vestes;
em Ap. 18:19 o pó que as pessoas intensamente tristes lançavam sobre sua cabeça.
Marcos (William Hendriksen) 306
b. Pregaram “pregavam ao povo que se arrependesse”
[convertesse]. Quanto ao significado do importante verbo que se usa no
original, veja-se sobre Mc. 1:15. Sem dúvida indica arrependimento, mas
a palavra tem um significado muito mais rico.
c. Em “pregavam”, o original usa um tempo verbal, e em
“expulsavam” e “ungiam” outro.243 Isto bem pode indicar que a tarefa
principal dos discípulos era pregar. Mas de vez em quando, com relação
à pregação e como confirmação aprovada e ordenada por Deus da
veracidade de sua mensagem e do genuíno caráter de seu chamado, estes
homens realizavam milagres de cura. 244
d. Expulsavam muitos demônios. Poderia dizer-se que tinham muito
êxito nesta atividade. Os discípulos nem sempre tinham êxito na
expulsão dos espíritos imundos, como se vê claramente em Mc. 9:18.
Além do poder outorgado por Deus, eles por si só não o tinham. Isto nos
ensina também por que a oração era de primordial importância, como
uma lição que aqueles homens precisavam aprender. Veja-se no v. 7 para
o relacionado com a possessão demoníaca e a expulsão de demônios.
e. “Ungiam com óleo …” [TB]
Em tempos bíblicos usava-se óleo de um tipo ou outro (com
frequência azeite de oliva) com distintos fins: como cosmético (Êx. 25:6;
Rt. 3:3; Lc. 7:46); como alimento, em lugar de manteiga (Nm. 11:8; Dt.
7:13; Pv. 21:17); para iluminação (Êx. 25:6; 27:20; Mt. 25:3, 4, 8); como
símbolo de graça e poder divinos na consagração de uma pessoa para um
ofício (Lv. 2:1ss.; Nm. 4:9ss.; Sl 89:20); com relação às ofertas (Ez.
45:14, 24; 46:4–7, 11, 14, 15); e com relação ao enterro (Mc. 14:3–38;
Jo. 12:3–8).
É evidente por Lucas 10:34, que o óleo era usado como remédio
físico; o bom samaritano lançou óleo e vinho sobre as feridas do homem
que tinha caído em mãos de ladrões.245 É um fato que no mundo antigo o
243
Note-se o aor. ἐκήρυξαν, e cf. com os imperfeitos ἐξέβαλλον e ἤλειφον.
244
Cf. H.B. Swete, Op. cit., p.119.
245
Quanto a Tg. 5:14, vejam-se comentários sobre esse livro.
Marcos (William Hendriksen) 307
óleo é usado extensamente como remédio. Não disse Galeno, o grande
doutor grego, “O óleo é o melhor dos remédios para curar as
enfermidades do corpo”?
A pergunta, então, é, “Segundo se menciona aqui em Marcos 6:13,
usaram os discípulos o óleo como remédio?” A resposta, segundo a
opinião deste intérprete é que provavelmente não o fizeram. Era com
toda probabilidade um símbolo da presença, graça e poder do Espírito
Santo.
Zacarias 4:1–6 deixa claro que o azeite se usou às vezes como
símbolo da fortificante presença e poder do Espírito. Neste sentido,
Mateus 25:2–4 também merece ser considerado. À luz de Êxodo 25:37 e
Zacarias 4:1–6, examine-se também Isaías 11:2 e Apocalipse 1:4, 12.
Agora, se isso for verdade, então a unção dos doentes com azeite
significava: “Deve esperar-se a cura de Deus e não de nós”. Significava
que “Seu Espírito pode curar o corpo e a alma”.
Outros expositores contribuíram com valiosas explicações sobre
este uso do azeite, como segue:
“O azeite é um símbolo bíblico da presença do Espírito, e assim a
própria unção é uma parábola ‘encenada’ da cura divina”. 246
“O azeite deve considerar-se aqui como sinal visível da energia e da
graça espiritual que lhes foi comunicado (aos apóstolos).247
“As curas eram sempre milagrosas e instantâneas: o azeite de oliva
jamais age de tal maneira”. 248
“A unção era um específico frequente … em tratamentos médicos
comuns, e isto sugeriria seu uso no simbolismo da cura sobrenatural”. 249
“Jesus e Seus discípulos curavam os doentes tocando-os e pelo
poder da palavra, e não por meio da aplicação de azeite”. 250
246
R. A. Cole, Op. cit, p. 109.
247
J. A. C. Van Leuwen, Op. cit., p. 75.
248
R. C. H. Lenski, Op. cit., p. 155.
249
E. P. Gould, The Gospel according to St. Mark (The International Critical Commentary, Nova
York, 1970), p. 108.
250
E. R. Groenewald, Op. cit., p. 140.
Marcos (William Hendriksen) 308
O fato de que: a. na opinião pública o azeite já tinha relação com a
cura, e b. segundo já se tem dito, era o símbolo da presença e o poder do
Espírito Santo, fez com que seu uso fosse compreensível, especialmente
durante o começo da proclamação do evangelho. Daí que o achamos
mencionado aqui, em que provavelmente era o evangelho mais cedo, e
em Tiago 5:14 (pela razão que seja) no que bem pôde ter sido a mais
anterior das epístolas canônicas. Ao transcorrer o tempo e incrementar o
conhecimento espiritual, o azeite deixa de mencionar-se. Aparentemente
já não se considerava necessário para o ensino. O sacramento católico
romano da extrema-unção nem sequer é sugerido aqui, porque esse rito é
administrado diante da possibilidade da morte iminente, enquanto a
unção mencionada aqui em Marcos 6:13 ocorre num contexto em que ao
doente lhe dão uma nova esperança de vida.
Jesus curava muitos doentes. A palavra que se utiliza no original se
acha também em Mateus 14:14; Marcos 6:5; 16:18; e 1 Coríntios 11:30,
e contempla os doentes em seu estado de impotência. São fracos e
frágeis, mas Jesus, mediante o Espírito, pode torná-los fortes.
14, 15. Chegou isto aos ouvidos do rei Herodes, porque o nome de
Jesus já se tornara notório; e alguns 251 diziam: João Batista ressuscitou
dentre os mortos, e, por isso, nele operam forças miraculosas. Outros
diziam: É Elias; ainda outros: É profeta como um dos profetas.
Esta história é introduzida sem nenhuma referência temporal; quer
dizer, não temos informação sobre quanto tempo depois dos eventos já
relatados, chegaram a Herodes as notícias relativas aos poderes
milagrosos que tinha Jesus. Não obstante, podemos inferir das palavras
251
Há considerável apoio textual para a versão “ele (Herodes) dizia”.
Marcos (William Hendriksen) 309
“João Batista ressuscitou dentre os mortos” aqui chegamos a um período
que se estende para além da execução de João, a qual por sua vez,
ocorreu provavelmente meses depois do começo de seu encarceramento.
É provável que o assassinato do arauto de Cristo ocorresse em, ou perto
do começo do ano 29 d.C. 252
O “Herodes” ao qual se faz referência aqui e em todas as passagens
dos Evangelhos (exceto em Mateus 2:1–19 e Lucas 1:5, onde se refere a
seu pai, “Herodes, o Grande”, ou “Herodes I”) é aquele que foi
designado tetrarca sobre a Galileia e Pereia depois da morte de seu pai.
Este Herodes esteve no cargo desde ano 4 d.C. ao ano 39 d.C. Foi filho
de Herodes, o Grande e Maltace a samaritana. Embora nos Evangelhos
(e em At. 4:27; 13:1) seja chamado simplesmente “Herodes”, em outros
lugares (veja-se, por exemplo, Josefo, Guerra Judaica I. 562) é
frequentemente chamado “Antipas”. Portanto, pode-se chamá-lo
“Herodes Antipas”.
Marcos escreve: “Chegou isto aos ouvidos do rei Herodes …”. O
título de “rei” é usado aqui em sentido indefinido, muito geral ou
popular, porque tecnicamente falando este homem não era rei e jamais
chegaria a ser (veja-se o v. 28).
O que foi que Herodes ouviu? Sentimo-nos tentados a responder:
“Ouviu a respeito da missão que Cristo encomendou os Doze e da forma
em que se desenvolveram, porque este foi o tema da seção recém-
acabada”. Não obstante, como o contexto indica, a referência é mais
ampla e está centralizada no próprio Jesus, o que é evidente pelo fato de
que Marcos diz a seguir “porque o nome de Jesus já se tornara notório”.
A seção precedente do Evangelho de Marcos nos indicou que, à voz
de Cristo, inclusive os doentes sem esperança eram curados imediata e
completamente, os leprosos eram purificados, as tempestades eram
acalmadas, os demônios eram expulsos, e uma menina que tinha morrido
252
Veja-se uma análise das prováveis data em que ocorreram os diversos eventos do ministério de
Cristo no CNT, Evangelho segundo João, Introdução III, e pp. 200, 201; também mimha Bible Survey,
pp. 59–62.
Marcos (William Hendriksen) 310
voltou à vida. Por isso, não é de estranhar que o nome e a fama dAquele
que tinha realizado tudo isto se tornou bem conhecidos. O que, sim, é
algo estranho é que tivesse transcorrido tanto tempo sem que as notícias
tivessem chegado aos ouvidos de Herodes. Uma explicação possível
poderia ser que o palácio onde ele estava então, provavelmente
Macaerus, na margem oriental do mar Morto, fosse longe demais de
Cafarnaum para que as notícias lhe tivessem chegado antes.
O rei ouviu a respeito “dos poderes milagrosos” 253 de Jesus. Os
informes que lhe chegaram representavam três opiniões:
a. Algumas pessoas 254 estavam convencidas de que Jesus era João
Batista que tinha voltado à vida. Isto pode parecer estranho, visto que as
Escrituras em nenhum lugar atribuem milagres ao Batista. Mas é
provável que este grupo tivesse João em tão alta estima, que lhe
atribuíssem a capacidade de realizar milagres.
b. Outro grupo dizia, “É Elias”. Não havia predito Malaquias a volta
de Elias (Ml. 4:5) como precursor do Messias? (cf. Is. 40:3; e veja-se
mais sobre Mc. 1:1–3).
c. Mas o terceiro grupo, sem querer ser tão definido, estava
convencido de que Jesus era um dos grandes profetas do Antigo
Testamento.
Veja-se também em 8:28.
O rei — talvez depois de alguma vacilação, a que Lucas 9:7–9 faz
referência — aceitou a primeira destas três opiniões, o que é claro pelas
palavras do versículo
16. Herodes, porém, ouvindo isto, disse: É João, a quem eu
mandei decapitar, que ressurgiu.
253
Aqui o plural de δύναμις (cf. dinamite) tem um significado ligeiramente diferente ao que tem a
mesma palavra nos vv. 2 e 5. Nestes, a referência é ao milagre (ou: milagres) mesmo; aqui no v. 14 o
significado é “poderes milagrosos” ou “o poder para realizar milagres”.
254
Embora a leitura, “Ele (Herodes) dizia” tem bastante apoio, o que segue “mas outros …” … “e até
outros …”, favorece o texto em plural (ἔλεγον em lugar de ἔλεγεν) tanto para o v. 14 como também
(duas vezes) para o v. 15.
Marcos (William Hendriksen) 311
Esta foi a resposta de sua mórbida e febril imaginação, influenciada
por uma consciência culpada. Tal como Mateus mostra, isso foi o que
disse aos seus servos.
Herodes declarou: “O homem a quem eu decapitei … ressuscitou”,
e Marcos compreende que esta declaração requer explicação e
ampliação. Portanto, aqui passa a relatar a história do encarceramento e
execução de João Batista:
17, 18. Porque o mesmo Herodes, por causa de Herodias, mulher de
seu irmão Filipe (porquanto Herodes se casara com ela), mandara
prender a João e atá-lo no cárcere. Pois João lhe dizia: Não te é lícito
possuir a mulher de teu irmão.
Antes de entrar nos detalhes desta narração, viria bem ao caso uma
observação referente à contribuição de Marcos. Admiramos a brevidade
de Lucas e a reserva de Mateus. Na realidade, Lucas 9:7–9 apresenta o
que poderia ser uma etapa no marco histórico. Toca brevemente em
alguns pontos: a admissão de Herodes (“eu decapitei a João”), sua
confusão mental (“Quem, pois, é este, de quem ouço tais coisas?”), seu
anelo (“E procurava ver a Jesus”). Se compararmos Mt. 14:3–12 com o
relato de Lucas, podemos dizer que Mateus proporciona um resumo
completo dos eventos que conduzem à morte do Batista, com ênfase na
palavra completo; e se for comparado com o relato de Marcos, trata-se de
um resumo, com a ênfase na palavra resumo. Para conhecer a história de
forma mais detalhada devemos ir a Marcos (Mc. 6:17–29). Somente aqui
diz-se claramente o que em Mateus se insinua, quer dizer, que Herodes
se casou com Herodias, a esposa de seu irmão Filipe. Somente aqui se
informa sobre a ira de Herodias contra o Batista (“Herodias o odiava,
querendo matá-lo”), porque denunciou esta relação incestuosa e adúltera
em termos valentes e inconfundíveis.
Por acaso existe em todo o Novo Testamento uma só passagem que
retrate mais vivamente a raivosa tormenta na consciência de um
governante? Vejam-se os vv. 19b, 20. E quanto ao desenlace da
narração, comparem-se as cinco citações diretas (nos vv. 22b–25) com a
Marcos (William Hendriksen) 312
única citação direta de Mateus (Mt. 14:8). Indubitavelmente, cada
Evangelho tem uma beleza que lhe é própria. Todos são completamente
inspirados. Seria precipitado elogiar um Evangelho sobre outro. A
reserva de Mateus harmoniza tão bem com o propósito que o guia como
o é a afeição de Marcos pelos detalhes vivos, refletindo indubitavelmente
o ensino de uma testemunha ocular, o efervescente Pedro. Mas louvado
seja o Senhor por ter dado à igreja, em Sua sabedoria, não só Mateus,
Lucas e João, mas também o homem que como narrador de histórias
ocupa o primeiro lugar entre os quatro, ou seja, João Marcos!
“Porque, por ordem de Herodes, João tinha sido detido …”. se
poderia dizer também, “Porque, Herodes tinha ordenado — ou fez com
que João fosse detido, 255 preso, e lançado no cárcere”.
Tudo isto sucedeu “por causa de Herodias”. Quem era esta
Herodias? Era a filha de Aristóbulo, filho de Herodes o Grande e
Mariamne I. Herodias se casou com seu tio Herodes Filipe (que por sua
vez era meio-irmão do pai dela). Filipe era filho de Herodes, o Grande e
Mariamne II. Deste Herodes Filipe, Herodias teve uma filha, a qual em
Mc. 6:22 é chamada simplesmente “a filha de Herodias”, mas Josefo a
chama Salomé (Antiguidades XVIII. 136).
Agora, Herodes Antipas, numa visita que fez a Herodes Filipe,
apaixonou-se por Herodias. Para poder casar-se, os amantes ilícitos
combinaram em separar-se de seus respectivos cônjuges, Herodias se
separaria de Herodes Filipe, e Herodes Antipas da filha de Aretas, rei
dos árabes nabateus. Assim o fizeram. Quando João Batista se inteirou
255
Junto com muitas traduções, não é necessário reter a palavra “enviado”; por exemplo: “Porque
Herodes tendo enviado, prendeu João …”. Ou: “Porque este mesmo Herodes tendo enviado e detido a
João …”.
Primeiro, αὑτός aqui pode considerar-se pleonástico, meramente para voltar para o que se estava
dizendo (veja-se o v. 16). O idioma grego o usa onde usualmente nós não o usaríamos. E quanto a
“enviado”, no original os verbos com significado de enviar, quando se usam com relação a outros
verbos, com frequência indicam que uma pessoa realiza um ato por instrução de outra. Cf. Mt. 2:16,
“Tendo enviado a matar as crianças” = “Herodes fez matar as crianças”. Mt. 14:10, “Tendo enviado,
decapitou a João” = “Fez decapitar a João”. Veja-se também BAGD, p. 98.
Marcos (William Hendriksen) 313
disso, repreendeu a Herodes Antipas. Continuamente dizia a Herodes,
“Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão”. Havia boas razões para
esta repreensão, porque semelhante casamento além de incestuoso (Lv.
18:16; 20:21) não era também adúltero (Rm. 7:2, 3)?
Naturalmente que Herodias sabia muito bem que sempre que João
repreendia o Tetrarca, por implicação também estava denunciando o a
ela. De modo que para satisfazê-la, Herodes tinha detido, preso, e
lançado João no cárcere.
Mas Herodias não estava satisfeita com o encarceramento de João.
O que desejava intensamente era nada menos que o assassinato de João.
Mesmo estando na prisão, João Batista era chamado para apresentar-se
diante de seu “marido” vez após vez. Ela provavelmente temia que
Herodes sucumbisse diante do poder das palavras de João e quem sabe o
que poderia suceder se as palavras, “Não te é lícito possuir a mulher de
teu irmão” continuavam ressoando nos ouvidos do adúltero!
Entretanto, seu anelo de conseguir que seu marido terminasse com
João não teve êxito imediato:
19, 20. E Herodias o odiava, 256 querendo 257 matá-lo, e não podia.
Porque Herodes temia a João, sabendo que era homem justo e santo, e o
tinha em segurança. E, quando o ouvia, ficava perplexo, 258, 259 escutando-
o de boa mente.
Vários elementos conformavam o estado mental de Herodes,
segundo se descreve aqui:
256
Ou: guardava-lhe ressentimento.
257
O modismo grego ἐνεῖχεν αὑτῷ assemelha à nossa expressão “jurar-se o a um”.
258
De acordo com outra leitura: fez muitas coisas.
259
Embora tanto πολλὰ ἐποίει (“fazia muitas coisas”) como πολλὰ ἠπόρει (“ficava extremamente
perplexo”) têm amplo apoio textual, estou a favor de ἠπόρει, que está em harmonia mais estreita com
o contexto. O rei se achava evidentemente num apuro: sua consciência atirando de um lado; sua
esposa do outro. A psicologia da situação daria preferência a ἠπόρει sobre ἐποίει. Veja-se Vincent
Taylor, Op. cit., pp. 313, 314.
Marcos (William Hendriksen) 314
a. Desejo de estar em paz com Herodias. Por causa dela tinha
acorrentado João e o havia encerrado numa terrível, profunda, e calorosa
masmorra que formava parte do castelo-palácio em Macaerus.
b. Temor reverente na presença de João. Herodes sabia que João
não só era “inocente” de qualquer crime, mas também que era uma
pessoa muito excelente, “justa”, quer dizer, objeto da aprovação de
Deus, e “santa”, quer dizer, um homem de conduta irrepreensível,
separado e consagrado a Deus e ao Seu serviço.
c. Alegria cada vez que escutava a João. Poderia dizer-se: “O
governante admirava o seu acusador”. Esta admiração talvez se devia ao
fato de que João não era como os aduladores que usualmente se acham
na companhia dos governantes; aqui havia um homem que se atrevia a
falar o que pensava. Era a eloquência humana de João a que fazia com
que o tetrarca o escutasse com agrado? Era por isso que cuidava a
segurança de João, 260 a fim de que Herodias não pudesse danificá-lo?
d. Sentido de culpa. Herodes sabia muito bem que havia pecado
repudiando a sua própria esposa, roubando a mulher de seu irmão e
casando-se com ela, mantendo-a como sua esposa e fazendo com que o
acusador, João Batista fosse detido, preso, e posto no cárcere. Para
resumir, o homem sabia que estava sufocando a voz de sua consciência.
O resultado de tudo isto foi sua:
e. Perplexidade. Estava “extremamente perplexo”, “terrivelmente
perturbado”. Em seu muito interessante e instrutivo livro, Souls in the
Making (Nova York, 1930, p. 114), John G. Mackenzie afirma que “as
piores formas de desordem mental funcional brotam de uma consciência
reprimida”.
Também Davi, confuso após ter cometido pecados igualmente
escandalosos, incluindo o adultério, não só relata a experiência de achar-
260
Note-se a palavra συνετήρει. É o perfectivo de τηρέω, guardar. A forma composta pode significar
conservar, como em Mt. 9:17; “ambos se conservam”. Em Lc. 2:19 o significado é “entesourar” na
memória (literalmente “em seu coração”).
Marcos (William Hendriksen) 315
se em semelhante estado de sentido de horrível culpa, mas também
mostra a solução verdadeira:
Enquanto rebelde a culpa ocultava
Minha força morria por dura aflição,
Sua mão divina meu ser pressionava,
Fugia o repouso de meu coração.
Mas eu compreendendo minha grande rebelião,
Deixei de ocultar e assim de fingir,
E já confessando minha vil transgressão,
Deu-me perdão, voltou meu viver.
Tradução adaptada do Salmo 32, estrofe 5, que se encontra no
Psalter Hymnal (edição centenária) da Igreja Cristã Reformada (Grand
Rapids, 1959).
Mas Herodes Antipas recusou seguir o exemplo da humilde
confissão que fez Davi. Pelo contrário, endureceu-se e como
consequência não prosperou (Pv. 28:13). O próprio fato de que este
assassino não se arrependesse nem sequer depois de ouvir falar a respeito
de Jesus, mostra quão longe se apartou da caminho da justiça e da
verdade. Na realidade, nunca decidiu andar por aquele caminho. Negros
pressentimentos obscureciam sua mente quando com relação aos
rumores a respeito de Jesus, exclamou, “É João, a quem eu mandei
decapitar, que ressurgiu”. Quando enfim o desejo de Herodes de ver
Jesus (Lc. 9:9b) cumpriu-se, menosprezou e escarneceu Aquele que
sofreu em silêncio (Lc. 23:8–12). Quanto ao que sucedeu a Herodes
depois, veja-se sobre o v. 28.
Segundo o descrito até os versículos 17–20, Herodias tinha
fracassado em persuadir a Herodes para que matasse João Batista. Mas,
enfim, chegou o que ela deveu considerar seu “dia de sorte”:
21–23. E, chegando um dia favorável, em que Herodes no seu
aniversário natalício dera um banquete aos seus dignitários, aos oficiais
militares e aos principais da Galiléia, entrou a filha de Herodias e,
dançando, agradou a Herodes e aos seus convivas. Então, disse o rei à
Marcos (William Hendriksen) 316
jovem: Pede-me o que quiseres, e eu to darei. E jurou-lhe: Se pedires
mesmo que seja a metade do meu reino, eu ta darei. 261
O dia do aniversário de Herodes era “oportuno” ou “adequado”
porque se prestava de maneira perfeita para o propósito que Herodias
tinha em mente, ou seja, ajustar contas com João Batista e assegurar-se
de que não seria rejeitada. Esta era sua “oportunidade” de ouro.
O “jantar” que prepararam para aquele dia de celebração era,
naturalmente, de natureza festiva; portanto poderia ser chamado um
“banquete”. Segundo Marcos, os convidados eram de três classes: a. Os
“altos oficiais civis”, de forma mais literal os grandes ou magnatas; b.
Os “quiliarcas”, assim diz literalmente; seu significado básico é aquele
que está a cargo de mil homens, mas o sentido mais geral de “tribunos
militares ou comandantes” é provavelmente aquele que devemos
recolher; e c. “os principais homens da Galileia”, certamente aqueles
amigos de Herodes socialmente proeminentes mas sem posição oficial
no civil nem no militar.
Se o que sucedeu neste banquete foi similar ao descrito em Ester
1:10, 11, Salomé entrou e dançou “estando o coração do rei alegre do
vinho”, e por conseguinte rumo ao final do banquete.
Podemos imaginar a forma erótica e insinuante em que a seminua
moça dançou. E seu padrasto era um Herodes típico, segundo seu próprio
casamento — se assim pode chamar-se — com Herodias o prova. Os
261
Note-se o seguinte:
a. O original tem dois genitivos absolutos: o primeiro é temporal: γενομένης ἡμέρας εὑκαίρου,
“tendo chegado um dia oportuno”; o segundo é circunstancial: εἰσελθούσης τῆς θυγατρὸς αὑτῆς τῆς
‘Ηρωδιάδος καὶ ὀρχησαμένης, “a filha de Herodias mesma tendo entrado e dançado”.
b. O plural τοῖς γενεσίοις αὑτοῦ significa “no dia das festividades de seu aniversário”; em
consequência, “em seu aniversário”. O plural idiomático pode ser devido às muitas atividades de
semelhante dia. Cf. CNT sobre Mt. 22:2.
c. Quanto a αὑτοῦ ou αὑτῆς do v. 22, se se aceitar sem reparos a regra de que entre duas leituras que
têm apoio igualmente forte, deve-se aceitar a mais difícil, αὑτοῦ deve ser então a preferida. A moça,
de acordo com isto, é a filha de Herodes Antipas. Seu nome é Herodias. Mas, conforme assinalaram
muitos comentaristas, isto é contrário ao contexto. Portanto, junto com a maioria dos tradutores e
expositores adoto o texto αὑτῆς contra o texto adotado pelo CNT.
Marcos (William Hendriksen) 317
convidados seriam homens do mesmo tipo. Não é de estranhar que tanto
o “rei” como os convidados ficassem encantados. Olhavam-na com
deleite voluptuoso.
Terminada a dança, impulsivamente Herodes diz à moça: “Pede-me
o que quiseres, e eu to darei”. Como ela vacilou, ele rapidamente repetiu
sua promessa, desta vez sob juramento: “Se pedires mesmo que seja a
metade do meu reino, eu ta darei.”
Provavelmente não é aconselhável interpretar a frase “mesmo que
seja a metade do meu reino” de forma muito literal. A verdade é que o
tetrarca não era rei de modo algum e, portanto, não tinha reino que dar.
Mas esta frase — cf. Et. 5:3; 7:2 — provavelmente deve interpretar-se de
forma proverbial. Era um tipo de hipérbole, de modo que o que Herodes
realmente quis dizer foi algo assim, “Eu te darei qualquer coisa que me
pedires, não importa o que me custar”.
24, 25. Saindo ela, perguntou a sua mãe: Que pedirei? Esta
respondeu: A cabeça de João Batista. No mesmo instante, voltando
apressadamente para junto do rei, disse: Quero que, sem demora, me dês
num prato a cabeça de João Batista.
A intriga se desenvolve tal como se a própria Herodias não só
tivesse planejado cada detalhe, mas também inclusive como se ela
tivesse estado movendo também todos os fios. Suas esperanças mais
acariciadas quanto ao que poderia suceder se sua filha dançava, viram-se
totalmente realizadas.
Naturalmente, a mãe da moça não estava comendo com os homens;
mas rapidamente ouviu o sucedido. O relatório de Salomé à sua mãe
conclui com a pergunta, “O que lhe peço?” 262 Bruscamente sua mãe
responde, “A cabeça de João Batista”.
262
Há alguns (por exemplo Lenski, Op. cit., p. 162) que sublinham a distinção entre a. a ordem
alentadora do “rei”: aor. imper. ativo αἴτησον do v. 22 (note-se também o aor. subj. ativo no v. 23:
αἰτήσῃς e b. a pergunta da moça: aor. subj. voz média τί αἰτήσωμαι do v. 24, que então se traduz, “O
que pedirei para mim mesma?”. Embora esta distinção possa ser válida, de maneira nenhuma é certa;
veja-se Tg. 4:2, 3 onde o mesmo verbo usa-se em ambas as vozes, mas com muito pouca diferença de
Marcos (William Hendriksen) 318
Sem perder um instante, a filha, com passos impacientes, volta ao
generoso e dissoluto governador, e ultrapassa a sua mãe em insolência
descarada e imaginativa. Diz sem consideração alguma, “Quero que, sem
demora, 263 me dês num prato 264 a cabeça de João Batista”. Ela a queria
aqui (Mt. 14:8) e sem demora (Mc. 6:25). Este é o desejo da filha. É
também o desejo da mãe. Mãe e filha formam um dueto perfeito … de
crueldade! Aqui e agora deve-se cometer o assassinato, porque não deve
haver para João oportunidade de escapar, nem oportunidade tampouco
para que o “rei” escape do laço em que ele mesmo se enredou.
26–28. Entristeceu-se profundamente o rei; mas, por causa do
juramento e dos que estavam com ele à mesa, não lha quis negar. E,
enviando logo o executor, mandou que lhe trouxessem a cabeça de João.
Ele foi, e o decapitou no cárcere, e, trazendo a cabeça num prato, a
entregou à jovem, e esta, por sua vez, a sua mãe.
O rei estava “angustiado”, diz Mateus (Mt. 14:9); “entristeceu-se
profundamente” ou “profundamente triste” diz Marcos. Poderia
perguntar-se: “Quais eram as razões destes tormentos emocionais?”. Para
responder, os seguintes pontos merecem uma consideração:
a. Herodes sempre tinha estimado a João, e muito o inquietava a
ideia de matá-lo. Sua consciência lhe dizia (veja-se v. 20) que assassinar
a João, que não só era inocente, mas também justo e santo, era um crime
terrível. 265
significado, se é que existe alguma. ᾐτήσατο aquí en 15:43 es aor. ind. voz media, 3a. pers. sing. del
verbo αἰτεω.
263
ἐξαυιῆς = ἐξαυτῆς τ. ὥρας, nesta mesmíssima hora (ou: momento), quer dizer, o mais breve
possível.
264
“numa bandeja” também em Mt. 14:8. O substantivo πίναξ pode-se traduzir também “prato”; cf.
“tábua de pinheiro”. Em grego πίναξ significa um tabuleiro ou mesa.
265
Calvino aborda o problema da aparente contradição entre Mateus 14:5 (“E, querendo matá-lo,
temia o povo …”) e Marcos 6:19, 20 (“E Herodias o odiava, querendo matá-lo, e não podia. Porque
Herodes temia a João, sabendo que era homem justo e santo, e o tinha em segurança”) da seguinte
maneira: “A primeira passagem diz que Herodes estava desejoso de perpetrar o horrível assassinato,
mas se refreava devido ao seu temor ao povo; enquanto que a segunda passagem culpa só a Herodias
desta crueldade”. Sua solução: Embora desde o começo a própria Herodias desejava que João fosse
assassinado, Herodes sentia-se refreado por sua consciência (quer dizer, por “seus escrúpulos
Marcos (William Hendriksen) 319
b. Estava consciente de que o povo em geral tinha João por profeta.
Portanto, devia perguntar-se, “O que pensará o povo de mim, se
conceder a Salomé seu grande desejo?” (veja-se Mt. 14:5).
c. Também devia notar que sua esposa o havia apanhado com
astúcia naquela situação difícil e que ela, afinal de contas, sair-se-ia bem
dessa situação.
Poderia aduzir-se que a forma de sair desta complicação teria sido
dizer a Salomé, “Eu prometi te favorecer com um presente; não prometi
cometer um crime”. Ou talvez, “Eu te fiz a promessa de um presente a ti,
não à tua mãe”. A melhor forma de escapar é a de Lv. 5:4–6.
Mas o obstinado orgulho de Herodes, seu temor de ficar mal diante
de seus camaradas, os convidados que tinham ouvido sua promessa
respaldada com juramento, impediu-o de dizer: “Como, pois, faria eu
este grande mal e pecaria contra Deus?” (Gn. 39:9). O orgulho conseguiu
vencer qualquer outra consideração, incluindo a voz da consciência. De
modo que ordenou a um de seus guardas, a um verdugo, 266 que lhe
trouxesse a cabeça de João. Como a prisão onde João estava era com
toda probabilidade parte do palácio de Macaerus (assim também segundo
Josefo, Antiguidades XVIII. 119), o verdugo não teve que ir muito longe.
Decapitou João e, conforme o pedido, levou à jovem a cabeça de João
numa bandeja, e ela a deu à sua mãe.
Quanto aos resultados dos perversos atos de Herodes (rejeitando a
sua própria esposa, casando-se com Herodias e assassinando a João),
note-se o seguinte:
religiosos”) “de cometer esta atrocidade tão cruel contra um profeta de Deus”. Entretanto, depois,
“desfez-se deste temor de Deus, como resultado da insistente pressão de Herodias”. Mas inclusive
mais tarde, “conteve-se por uma nova razão, quer dizer, temeu que se produzisse uma revolta popular
em seu próprio prejuízo”. Veja-se João Calvino, Commentary on a Harmony of the Evangelists,
Matthew, Mark, and Luke, (trad. de Commentarius in Harmoniam Evangelicam, Opera Omnia, Grand
Rapids, 1949ss.), Vol. II, pp. 222, 223. daqui em adiante se fará referência a este comentário como,
Harmony de Calvino.
266
O original serve-se de uma palavra latina: “speculator” (cf. speculor: vigiar, espiar), basicamente
um espião ou explorador, mas às vezes significa verdugo — veja-se Sêneca, On Benefits III, 25.
Quanto a ἀποστείλας (v. 27) veja-se sobre o v. 17, nota 257.
Marcos (William Hendriksen) 320
a. O crescente descontentamento de muitos judeus.
b. A ira do rei Aretas, pai da esposa rejeitada por Herodes.
Aretas se sentiu profundamente ofendido pelo que Herodes fez à
sua filha. Portanto, declarou-lhe a guerra e “na batalha que se livrou todo
o exército de Herodes foi destruído” (Josefo, Antiguidades XVIII, 114,
116, 119, para os pontos a. e b.).
c. Desterro.
Mais tarde, Herodes Antipas deixou persuadir-se por Herodias para
ir a Roma a fim de ser elevado à posição de rei, a mesma posição que se
tinha concedido ao seu irmão Herodes Agripa I. Entretanto, quando este
último informou ao imperador Calígula a respeito do complô que o
aspirante tramava contra ele, a consequência para o conspirador foi o
desterro perpétuo a Lyon, na Gália.
A história de João Batista conclui da seguinte maneira:
2. Necessidade de repouso
31, 32. E ele lhes disse: Vinde repousar um pouco, à parte, num
lugar deserto; porque eles não tinham tempo nem para comer, visto
serem numerosos os que iam e vinham. Então, foram sós no barco 267 para
um lugar solitário.
Jamais dará resultado trabalhar sem descanso. Não funciona estar
ocupado sem nunca tirar férias, realizando todas as árduas tarefas do
ministério ou a obra missionária, e sem deter-se para repousar, para
analisar com calma, para orar e meditar. Também Jesus, por causa de
Sua natureza humana e do grande peso que tinha tomado sobre seus
ombros, necessitava períodos de retiro (Mc. 1:35). E estando inteiramente
consciente das necessidades de Seus discípulos, convidou-os a ir com
Ele a um lugar afastado, isolado, onde pudessem “descansar”. 268
267
Ou: de navio.
268
ἀναπαύσασθε aor. imper. med. 2ª. pes. plur. de ἀναπαύω. Cf. um significado algo similar deste
verbo em Mt. 11:28; 26:45; Mc. 14:41; Lc. 12:19; 1Co. 16:18; 2Co. 7:13; e Fm. 7.
Marcos (William Hendriksen) 325
O que fazia com que esta fosse uma necessidade muito urgente, era
que havia pessoas que constantemente iam e vinham, e que esta multidão
turbulenta e exigente tornava impossível inclusive encontrar tempo para
comer. Resultado: “sozinhos”, quer dizer, Jesus, os Doze, e ninguém
mais, partiram para um lugar nos arredores de Betsaida Júlias (veja-se
Lc. 9:10 e CNT sobre Jo. 6:1). Cruzaram a parte nordeste do mar “no
barco”. Era este o barco mencionado em Mc. 3:9; 4:1; 5:2? Ou é este um
caso onde o artigo grego não deve ser traduzido, de modo que a tradução
correta seja “em barco”, em lugar de “no barco”? A passagem paralela
de Mateus 14:13 pareceria favorecer o último ponto de vista, mas os dois
casos são possíveis e podem ser citadas excelentes traduções com ambas
as opiniões.
3. Interrupção do repouso
33. Muitos, porém, os viram partir e, reconhecendo-os, correram
para lá, a pé, de todas as cidades, e chegaram antes deles 269 .
Muitas pessoas da região de Cafarnaum não só viram o barco, mas
também, além disso, reconheceram os seus ocupantes. Chegaram à
conclusão correta, quer dizer, que Jesus Se afastava deles. Isto não era o
que desejavam, de modo algum. O que fazer em tal situação? Segui-los
em outros barcos — os quais se mencionam em Mc. 4:36; cf. Jo. 6:23,
24? Por alguma razão, naquele momento concreto os outros barcos não
estavam disponíveis.
De modo que em vez de esperar até que estivessem à disposição,
em seu afã para ver Jesus, aquela gente começou a correr pela margem
norte do lago. Para eles a distância total era de uns dezesseis
quilômetros. A trajetória reta em barco era uma distância de uns seis
quilômetros. Quem atracou primeiro ao porto que estava a pouca
distância do ponto onde o rio Jordão, que vem do norte, desemboca no
mar da Galileia? O pequeno grupo (Jesus e os Doze) ou a multidão?
269
Ou: deixaram-nos atrás, avantajaram-nos; ou: lhes adiantaram.
Marcos (William Hendriksen) 326
Segundo a maioria das traduções, a multidão foi a primeira em
chegar. Com ligeiras variações quanto às palavras, o versículo 33b em
geral se traduz: “Eles correram a pé de todas as cidades e chegaram ali
antes que eles (quer dizer, antes que Jesus e os Doze)”. Cf. VP, CI, NVI,
RA.
Por certo que nem todos os tradutores e expositores estão satisfeitos
com esta tradução.
Os seguintes fatos merecem ser considerados:
a. Embora a maioria dos tradutores baseiam sua versão 270 num texto
que é provavelmente o correto, existe certo grau de dúvida.
b. Mesmo quando aceitemos tal texto (como provavelmente
deveríamos fazê-lo), Marcos 6:33 seria a única passagem do Novo
Testamento em que o verbo em questão significa “chegou primeiro (ou:
antes)”. O verbo aparece com diversos significados em outras passagens:
Mt. 26:39; Mc. 14:35; Lc. 1:17; 22:47; At. 12:10, 13; 20:5, 13; 2Co. 9:5.
c. Com um ponto de partida e de chegada igual para ambos, e
considerando que o trajeto para o barco era de uns seis quilômetros em
linha reta, conquanto para os que iam a pé era um arco de uns dezesseis
quilômetros, o barco naturalmente chegaria primeiro. Isto é válido
especialmente no caso presente por causa de certas limitações adicionais
para os que viajavam a pé: (1) deviam cruzar o Jordão e o difícil terreno
contíguo, e (2) havia também mulheres e crianças (Mt. 14:21).
Naturalmente, é possível que os navegantes tivessem que fazer frente a
condições climatológicas desfavoráveis, mas nada disto diz o texto.
d. Se Marcos tivesse querido dizer que a multidão tinha chegado
primeiro, não teria usado uma linguagem mais clara para expressar este
pensamento? Veja-se p. ex., Jo. 20:4, “Mas o outro discípulo correu mais
depressa que Pedro, e chegou … primeiro.”
270
καὶ προῆλθον αὑτούς.
Marcos (William Hendriksen) 327
b. Mesmo quando aceitemos tal texto (como provavelmente
deveríamos fazê-lo), Marcos 6:33 seria a única passagem do Novo
Testamento em que o verbo em questão significa “chegou primeiro (ou:
antes)”. O verbo aparece com diversos significados em outras passagens:
Mt. 26:39; Mc. 14:35; Lc. 1:17; 22:47; At. 12:10, 13; 20:5, 13; 2Co. 9:5.
c. Com um ponto de partida e de chegada igual para ambos, e
considerando que o trajeto para o barco era de uns seis quilômetros em
linha reta, conquanto para os que iam a pé era um arco de uns dezesseis
quilômetros, o barco naturalmente chegaria primeiro. Isto é válido
especialmente no caso presente por causa de certas limitações adicionais
para os que viajavam a pé: (1) deviam cruzar o Jordão e o difícil terreno
contíguo, e (2) havia também mulheres e crianças (Mt. 14:21).
Naturalmente, é possível que os navegantes tivessem que fazer frente a
condições climatológicas desfavoráveis, mas nada disto diz o texto.
d. Se Marcos tivesse querido dizer que a multidão tinha chegado
primeiro, não teria usado uma linguagem mais clara para expressar este
pensamento? Veja-se p. ex., Jo. 20:4, “Mas o outro discípulo correu mais
depressa que Pedro, e chegou … primeiro.”
Se for adotada a tradução “e (as pessoas) chegaram ali antes deles”
ou “chegaram primeiro”, é difícil ver como se pode evitar a conclusão de
que Marcos 6:33 contradiz a Mateus 14:13, 14; Lucas 9:11; e João 6:3,
5. Mateus, Lucas e João, os três, descrevem a Jesus desembarcando antes
da chegada da grande multidão. Esta O segue depois. Ele chega ali e
sobe à colina, permanece sozinho com Seus discípulos por um curto
tempo, e logo vê a uma multidão na margem e sai ao seu encontro.
Não é de estranhar, portanto, que se tenham sugerido outras
traduções: “e (os caminhantes) se adiantaram” (NBE). Assim traduzido,
não existe problema. O que Marcos diz deve receber inteira justificação.
É, além disso, muito compreensível. Por causa de seu anelo por estar
Marcos (William Hendriksen) 328
271
com Jesus, a multidão começa a correr para lugar, tão rápido, que por
um momento realmente ultrapassa o barco em velocidade, e talvez vai
mais adiantada que ele. Mas isto não significa necessariamente que a
multidão chegasse ali antes que Jesus e os Doze.
Um fato digno de especial atenção é o seguinte: Em grande parte o
Mestre e Seus discípulos não obtêm o repouso ou descanso que
buscavam. Descansaram um pouco, porque Jesus e os Doze parecem ter
estado juntos por um curto tempo, embora esta trégua viu-se muito
diminuída.
Como reage Jesus diante da interrupção de Seu descanso? A
resposta se acha em:
4. Manifestação de compaixão
34. Ao desembarcar, viu Jesus uma grande multidão e
compadeceu-se deles, 272 porque eram como ovelhas que não têm
pastor. E passou a ensinar-lhes muitas coisas.
Os que no versículo 33 traduz “chegaram antes que eles” tem o
mérito de ser consistentes, visto que no versículo 34 traduzem, “Ao
desembarcar”, ou “E saindo do barco”. O particípio usado no original 273
deriva-se de um verbo que basicamente significa “sair” ou “vir”. Usa-se
numa grande variedade de contextos: saindo da casa (Mt. 9:31ss.; cf. Jo.
11:31), da sinagoga (12:14), da presença do rei (18:28), do palácio do
sumo sacerdote (26:75), de uma pessoa (Mc. 5: 8), da tumba (Jo. 11:44),
para mencionar só uns poucos. Em Marcos 5:2 e 6:54 usa-se em conexão
com saindo do barco, desembarcando. Entretanto, nas passagens recém
mencionadas, menciona-se o barco claramente na mesma cláusula. A
presente situação é diferente: nem em todo o versículo 34, nem mesmo
no versículo precedente fala-se de um barco. Entretanto, no versículo 32
271
ἐκαῖ, quer dizer, “lá” no sentido de “com aquele lugar”. A palavra modifica a συνέδ ραμον; no a
προῆλθον, como em várias traduções.
272
Ou: comoveu-se em suas vísceras por eles.
273
ἐξελθών, ptc. aor. nom. s. masc. de ἐξέρχομαι.
Marcos (William Hendriksen) 329
faz-se referência a um barco. Isto pode dar apoio àqueles que no
versículo 34 favorecem a tradução “E saindo do barco”.
Um método mais seguro para chegar à interpretação correta de
“tendo saído” conforme se usa aqui, seria descobrir o que significa o
mesmo verbo na passagem paralela, Mateus 14:14. Ali, conforme
demonstra o contexto imediato, significa que Jesus saiu de seu lugar de
retiro na ladeira de uma colina. 274 Outra passagem que arroja luz é João
6:3–5, “Então Jesus subiu a um monte, e se sentou ali com seus
discípulos … Quando elevou Jesus os olhos, e viu que vinha a ele uma
grande multidão, ele …”
Portanto, fica claro que foi daquele repouso tranquilo de onde Jesus
saiu quando viu que a grande multidão que tinha chegado à praia
começava a dirigir-se até Ele. Com que fim saiu? Para repreender àquela
gente? Saiu para lhes dizer, “viemos aqui para descansar, aliviar nossas
tensões, recuperar as forças; assim que por favor vão para casa, porque
estamos cansados; visitem-nos outro dia”? Ao contrário, saiu para os
receber, porque Se compadeceu deles. Veja-se o que se diz a respeito de
esta expressão em Mc. 1:41. 275
Mentalmente sonda suas tristezas. Ele os compreende. Em seu
coração leva suas cargas. Ama-os. Com Sua vontade lhes tira as aflições.
Cura-os. Para Ele a compaixão não é só uma emoção, é um tenro
sentimento que se transforma em ação efetiva. Não é uma mera emoção
mas uma ação; melhor ainda, toda uma série de ações. Ensina-lhes, cura-
os, alimenta-os.
Vê estas pessoas como ovelhas sem pastor. Para entender o que isto
significa deveria ler-se 1 Reis 22:17; logo o Salmo 23; depois Mateus
9:36; e depois João 10. Veja-se também CNT sobre estas passagens.
274
Assim também F.J.A. Hort e B. F. Westcott, The New Testament in the Original Greek (Cambridge
e Londres, 1882), p. 99; cf. Lenski, Op. cit., p. 166.
275
Aqui em Mc. 6:34, a forma é ἐσπλαγχνίσθη, aor. ind. pas. 3ª. pes. sing. de σπλαγχνίζομαι. Veja-se
também CNT sobre Filipenses, nota 39.
Marcos (William Hendriksen) 330
Nenhum animal é tão dependente como uma ovelha. Sem alguém
que a guie, a ovelha começa a vagar, perde-se, converte-se em comida
para lobos, etc. Sem alguém que a apascente, passa fome. Jesus sabia
que com o povo ocorria o mesmo: seus dirigentes não lhes ofereciam
uma direção segura. Não lhes davam comida para alimentar suas almas.
A mente dos supostos dirigentes estava muito ocupada com sutilezas
legalistas a respeito de restrições sabáticas, jejuns, filactérios, borlas,
etc., para preocupar-se com as almas.
Assim que Jesus começa a lhes ensinar muitas coisas. Belas
palavras de vida saem de Seus lábios. Fala-lhes a respeito do
maravilhoso reino de Deus (Lc. 9:11), de um reino no qual a confiança,
como a de uma criança, no soberano cuidado de Deus traz paz (Mt.
6:24–34), o amor é a lei (Mt. 6:43–48), e a verdade está no trono (Jo.
14:6; 18:37).
5. Previsão da fome
35, 36. Em declinando a tarde, 276 vieram os discípulos a Jesus e lhe
disseram: É deserto este lugar, e já avançada a hora; despede-os para
que, passando pelos campos ao redor e pelas aldeias, 277 comprem para si
o que comer.
Jesus não só curava os doentes (Mt. 14:14), mas também Se
dedicou a ensinar às pessoas. Toda esta atividade deve ter ocupado uma
quantidade de tempo considerável. Pouco depois de sair Jesus do lugar
em que estava, perguntou a Filipe, para o provar: “Onde compraremos
pães para lhes dar a comer?”. Filipe respondeu: “Não lhes bastariam
duzentos denários de pão, para receber cada um o seu pedaço”. Assim
que Filipe teve que confrontar o problema, e André também. Jesus sabia
exatamente em todo momento o que ia fazer (Jo. 6:5–9). Mas os
discípulos estavam confusos com relação à solução, e isto apesar de
276
Ou: visto que já estava muito avançado o dia. Assim também em 35b.
277
Ou: aos campos e povoados aldeãos.
Marcos (William Hendriksen) 331
todos os milagres que já tinham presenciado. E agora, embora o sol
ainda não se punha, o dia estava muito avançado, quer dizer, “o dia
chegava a seu fim”. 278 Por meio destes milagres e ensinos, o Senhor
cativava intensamente as vastas multidões que nem sequer àquela hora
tinham intenções de ir embora. Para que fossem era preciso despedi-los.
É assim como os discípulos fazem notar ao seu Mestre que o lugar era
deserto solitária e a hora avançada.
“É deserto este lugar,”, dizem-lhe. Quer dizer, isto não é uma
cidade com lugares próximos onde se possa comprar alimento; é uma
região desolada. Para ir a qualquer das aldeias circundantes em busca de
pão é preciso tempo. Além disso, “o dia chega ao seu fim”. Em
consequência, aconselham a Jesus que despeça imediatamente as pessoas
para que possam ir às granjas e aldeias para comprar alimento.
6. As instruções
A resposta de Cristo foi impressionante:
37a. Porém ele lhes respondeu: Dai-lhes vós mesmos de comer.
O que queria dizer Jesus ao mandar, “Dai-lhes vós mesmos de
comer”? Talvez é impossível dar uma resposta totalmente satisfatória a
esta interrogante. Entretanto, podem-se assinalar alguns pontos:
a. Jesus quer dizer que os discípulos não deveriam desentender-se
das responsabilidades tão rapidamente. Com frequência sentiam-se
inclinados a fazer isto mesmo e dizer simplesmente, “despede-os” (aqui
no v. 36), “Despede-a” (à mulher siro-fenícia, Mt. 15:23). Inclusive
“repreenderam” os que traziam as crianças pequenas a Jesus para que as
tocasse (Mc. 10:13; veja-se também Lc. 9:49, 50). Seu lema com muita
frequência era: “Não incomodem o Mestre e não nos incomodem”. À luz
destes textos pode-se dizer confiantemente que Jesus queria lembrar aos
seus discípulos que a solução não consiste em tratar de livrar-se das
278
Literalmente (gen. absoluto) “grande parte das horas do dia já transcorridas”. As palavras se
repetem no v. 35b.
Marcos (William Hendriksen) 332
pessoas necessitadas. Certamente, não é esta a forma que Deus faz as
coisas (Mt. 5:43–48; 11:25–30; Lc. 6:27–38; Jo. 3:16).
b. Jesus quer que peçam, busquem e chamem (Mt. 7:7, 8); em
outras palavras, que reclamem a promessa que Deus lhes tem feito, e se
dirijam a Ele, porque Ele pode remediar toda necessidade. Aquele que
proveu o vinho quando acabou (Jo. 2:1–11), não pode acaso prover
também o pão?
c. Tendo em conta que “pão”, segundo o uso do termo neste relato
(vejam-se os vv. 38, 41), ao mesmo tempo que se refere àquilo que
remedeia a necessidade física, é também símbolo de Jesus como o Pão
da vida (Jo. 6:35–48), não está também dizendo a estes “pescadores de
homens” que eles devem ser o meio nas mãos de Deus para remediar as
necessidades espirituais das pessoas?
Continua:
37b. Disseram-lhe: Iremos comprar duzentos denários de pão
para lhes dar de comer?
Segundo João 6:7, foi a Filipe, um dos Doze, quem primeiro teve
esta ideia. Entretanto, depois de tê-la considerado e depois de inclusive
tê-la mencionado aos outros discípulos, ele também a desprezou
imediatamente por ser pouco prática. Isto se vê claro porque diz a Jesus:
“Não lhes bastariam duzentos denários de pão, para receber cada um o
seu pedaço”. Não obstante, quanto ao grupo, aqueles homens não
queriam desprezar totalmente a ideia. De modo que perguntaram a Jesus,
“Iremos comprar duzentos denários de pão para lhes dar de comer?”.
O denário de prata era, talvez, a moeda romana mais usada no
tempo do Novo Testamento.
Literalmente, o nome denário significa “que contém dez”. Foi
chamado assim com relação ao asse, uma moeda de bronze cujo valor
era 1/10 de um denário. Entretanto, não é correto dizer, como se observa
em muitos comentários, que o denário equivale a 16, 17 ou inclusive 20
centavos de dólar (EUA), e que os discípulos, ao mencionar duzentos
denários, pensavam numa soma total equivalente a 32, 34, ou 40 dólares.
Marcos (William Hendriksen) 333
O valor do dólar e do humilde centavo flutua constantemente. É melhor,
portanto, assinalar com base na Escritura (Mt. 20:2, 9, 13), que um
denário representava o salário que se pagava a um operário pelo trabalho
de um dia; em consequência, duzentos denários equivalem à
remuneração que um homem recebia por duzentos dias de trabalho. O
que os discípulos perguntam 279 a Jesus, então, é se àquela hora tão
avançada do dia deviam sair e tentar comprar a enorme quantidade de
pão necessária para aquela grande multidão. Supondo que fosse possível
obtê-lo e carregá-lo de volta para alimentar aquelas bocas famintas,
tinham acaso nesse momento uma soma tão grande de dinheiro? Mas de
que outro modo poderiam cumprir a ordem do Mestre, “Dai-lhes vós de
comer”?
Jesus não os repreende nesse momento por sua falta de fé, nem
responde à sua pergunta concreta.
38. E ele lhes disse: Quantos pães tendes? Ide ver! E, sabendo-o
eles, responderam: Cinco pães e dois peixes.
A resposta dos discípulos não foi de fé, e sim quase de desespero.
Isto se deixa ver especialmente na fraseologia da resposta registrada em
Mateus: “Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes” (Mt. 14:17).
Evidentemente, estes homens não tinham captado o significado da
exortação, “Dai-lhes vós de comer”.
João 6:8, 9 dá mais detalhes: “Um de seus discípulos, chamado
André, irmão de Simão Pedro, informou a Jesus: Está aí um rapaz que
tem cinco pães de cevada e dois peixinhos; mas isto que é para tanta
gente?”.
O Senhor ia fortalecer sua fé mediante um milagre inesquecível. À
modo de preparação dirige-se à multidão:
279
Note-se ἀγωράσωμεν, um aor. subj. deliberativo ativo: “Compraremos?” Também o subj. δώσωμεν
seria mais comum que o fut. indic. δώσομεν, embora a evidência externa se divide quase em partes
iguais e há uma estreita afinidade entre o subj. e o fut. indicativo. Note-se também δηναρίων
διακοσίων, gen. de preço.
Marcos (William Hendriksen) 334
39, 40. Então, Jesus lhes ordenou que todos se assentassem, em
grupos, sobre a relva verde. E o fizeram, repartindo-se em grupos de
cem em cem e de cinquenta em cinquenta.
Jesus ordenou a toda a multidão que se reclinasse na ladeira da
colina, coberta de erva, “em grupos”; literalmente, “symposium
symposium” … 280 Um “symposium”, como a própria palavra sugere, foi
originalmente um “beber juntos”, ou “festa para beber” (cf. poção). A
palavra derivou a um sentido secundário: festa de qualquer tipo. Com
frequência, porém não necessariamente, tal festa caracterizava-se Pelo
ato de comer e beber juntos, música e canções. Até hoje temos nossos
“simpósios” onde alguns oradores expressam seus pontos de vista a
respeito de vários aspectos de um tema determinado de antemão. A
antologia de tais pontos de vista pode também chamar um “simposium”.
Entretanto em Marcos 6:39, o significado é simplesmente uma festa
social, companhia; daí que se traduza “em grupos”.
A ordem era fácil de obedecer, visto que por aquela época do ano as
ladeiras da colina deviam estar cobertas de erva. Marcos diz que a
multidão reclinou-se “em grupos”, ou possivelmente também “prado por
prado”, se é que ainda tem algo de força o sentido básico da frase usada
no original, 281 o que não é muito provável. Entretanto, seja como for, ali
estava aquela colorida multidão de pessoas, vestidas com suas
chamativas vestimentas de vivas e alegres cores, reclinadas sob a
abóbada azul do céu, sobre a erva, com o mar da Galileia a pouca
distância.
Ao falar (literalmente) de “montão a montão”, ou de “por montões
de cem e de cinquenta” está-se querendo dizer, em cem filas de
cinquenta cada uma? Sendo assim, estaria em concordância com o
versículo 44 (“eram cinco mil homens”). Em ambos os casos (v. 40 e v.
44) não se contam as “mulheres e crianças” (Mt. 12:41). Ou talvez quer
280
Embora não necessariamente um semitismo, este tipo de construção (distribuição expressa por
repetição) é de uso semítico. Veja-se também sobre o v. 7 mais acima: “de dois em dois”.
281
πρασιαὶ πρασιαί.
Marcos (William Hendriksen) 335
dizer que alguns grupos eram de cem pessoas, e outros de cinquenta? Em
todo caso, o agrupamento era muito prático. Fez com que a distribuição
do pão e dos peixes, e a recontagem das pessoas fossem mais fáceis.
7. Realização do milagre
41. Tomando ele os cinco pães e os dois peixes, erguendo os olhos ao
céu, os abençoou; e, partindo os pães, deu-os aos discípulos para que os
distribuíssem; e por todos repartiu também os dois peixes.
Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes. Olhou ao céu.
Quanto a este ato de levantar os olhos ao céu em oração, vejam-se
também Sl 25:15; 121:1; 123:1, 2; 141:8; 145:15; Jo. 11:41; 17:1; 1Tm.
2:8. 282 Olhando ao céu, Jesus “abençoou”; assim diz literalmente. O
mesmo verbo se acha também nos paralelos sinóticos (Mt. 14:19; Lc.
9:16). João, por outro lado, diz “tendo dado graças” (Jo. 6:11). Solução:
“abençoou” neste caso significa “deu graças”, e pode traduzir-se assim.
Quando uma pessoa abençoa ou louva a Deus não está acaso dando-
lhe graças? 283 Era costume dos judeus dar graças a Deus antes de
começar uma comida. Entretanto, como é evidente pelos Evangelhos que
nosso Senhor nunca falou como os escribas, mas Suas palavras se
caracterizaram sempre por seu frescor e originalidade (cf. Mt. 7:29), bem
podemos crer que Sua oração foi também assim nesta ocasião.
Então Jesus começou a partir os pães em pedaços de tamanho
adequado para comer. Literalmente diz, “mantinha-se dando-os” 284 aos
Seus discípulos, os quais os levaram (em canastras reunidas aqui e ali
dentre a multidão?) à multidão. O procedimento usado com os peixes foi
algo parecido. Marcos diz, “e por todos repartiu ... os dois peixes”.
A impressionante beleza do relato vê-se realçada pelo fato de que só
se usam umas poucas e singelas palavras para relatar o milagre da
282
A questão das posturas para orar é tratada com mais detalhe no CNT sobre 1 e 2 Timóteo e Tito,
pp. 107–109.
283
Em tempo presente, ind. 1ª. pes. sing. Os dois verbos são εὑλογέω y εὑχαριοτέω.
284
Pretérito impf. ἐδίδου aqui e também em Lc. 9:16. Contraste-se Mt. 14:19 “deu”.
Marcos (William Hendriksen) 336
multiplicação dos fragmentos. Poderia dizer-se que o milagre está
implícito mais que expresso explicitamente.
42. Todos comeram e se fartaram. Em que momento exatamente
foram o pão e os peixes multiplicados? “Em suas mãos?”.
Provavelmente, mas nem mesmo isto se afirma. A única coisa que
realmente sabemos é que houve abundância de pão e peixes — na
realidade, bastante e muito mais — para todos. Em algum momento
entre o partir (ou divisão) e a recepção dos pedaços da parte do povo,
deve ter ocorrido o milagre. Todos comeram e se “fartaram”, quer dizer,
“receberam quanto quiseram”, “ficaram totalmente satisfeitos”. 285
286
Note-se ?ως seguido presentemente indic. = “enquanto” (com aor. subj. = “até”). Veja-se E. D.
Burton, Syntax of the Moods and Tenses in New Testament Greek (Chicago, 1900), pp. 126–128,
especialmente os parágrafos 321, 325, e 328. Mas esta regra é flexível, veja-se a nota 723 do presente
comentário.
Marcos (William Hendriksen) 340
d. Jesus desejava reservar algo de tempo para ter comunhão pessoal
com Seu Pai celestial.
Quanto à pergunta de por que Jesus Se despediu de Seus discípulos,
a explicação adequada seria o ponto d., quer dizer, a necessidade de
comunhão particular. Além disso, com relação ao ponto c., Jesus sabia
que Seus discípulos não estavam livres de esperanças messiânicas
errôneas (cf. At. 1:6).
Podemos supor, portanto, que para Ele estava claro que não
convinha que Seus discípulos fossem influenciados pelo clamor da
multidão.
Marcos faz referência a Betsaida, a qual evidentemente estava no
lado ocidental do lago, igual à planície de Genesaré ao sul de Cafarnaum
(cf. Mc. 6:53; Jo. 6:17). Para mais detalhes a respeito das duas Betsaidas,
veja-se CNT sobre Jo. 6:1, 16–21.
46. E, tendo-os despedido, subiu ao monte para orar.
Um livro muito agradável e ao mesmo tempo proveitoso é o de R.
E. Speer, The Principles of Jesus Applied to Some Questions of Today
(Nova York, Chicago, Toronto, 1902). Neste livro o escritor assinala que
o propósito que Cristo teve ao vir a este mundo foi, em parte, “para
deslocar o legalismo pelo espírito de uma vida verdadeira; substituir
regulamentos por princípios” (p. 10). Agora, a oração pertence à própria
essência desta “vida verdadeira”. Em uma das passagens de seu livro,
Speer nos ajuda a entender melhor Marcos 6:46, quando assinala que a
oração era o verdadeiro hálito de Cristo, quer dizer, “oração livre de
egoísmo (Lc. 22:32), oração de perdão (Lc. 23:34), oração fervente (Lc.
22:44), e oração submissa (Mt. 11:26; 26:39, 54)” (p. 20).
A cena de Jesus orando no monte por Si mesmo e também por
outros, incluindo Seus discípulos, segundo Seu costume (cf. Jo. 17), não
deve separar-se da cena dos discípulos no tempestuoso mar.
47. Ao cair da tarde, estava o barco no meio do mar, e ele,
sozinho em terra.
Marcos (William Hendriksen) 341
“No meio do mar.” O Evangelho de João nos informa que o barco
tinha avançado vinte e cinco ou trinta estádios, isto é, uns cinco ou seis
quilômetros. Agora, se a distância entre Betsaida Júlia (ponto onde os
discípulos iniciaram sua viagem de volta, Lc. 9:10) e Betsaida da
Galileia (lugar de desembarque, Mc. 6:45; cf. 12:21) era de uns oito
quilômetros, aqueles homens se achavam seriamente “no meio do mar”.
Então, ao chegar a noite, levantou-se uma tempestade. João diz, “E
o mar começava a empolar-se, agitado por vento rijo que soprava”.
Mateus acrescenta, “Entretanto, o barco já estava longe, a muitos
estádios da terra, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário”.
Mais que descrever a tormenta, Marcos a pressupõe (v. 48). Mas assim
como os outros, sublinha a hora em que ocorre o episódio: de noite, na
escuridão; e sublinha o lugar, no meio do mar, e a ausência de Jesus;
“Ele estava sozinho em terra”, mas em terra ocupado em orar (v. 46).
Comparemos as duas cenas: a. A oração de Cristo que incluía uma
intercessão, e b. a situação perigosa (humanamente falando) dos
discípulos! Resultado: a situação não era absolutamente perigosa, porque
lá no monte, a oração de Cristo supunha a petição de que a vida de Seus
discípulos fosse preservada a fim de que pudessem cumprir sua missão.
Não tem este quadro combinado muitas aplicações consoladoras para
toda circunstância difícil e angustiosa, e inclusive para toda “crise”? E
por acaso existiu jamais um período da história da igreja em que não
tenha havido alguma crise?
287
Contraste-se Lenski, Op. cit., 172.
Marcos (William Hendriksen) 343
A forma surpreendente em que aqui se desdobram os atributos de
nosso Senhor merece um estudo especial. Temos em primeiro lugar Seu
conhecimento. O contexto precedente (veja-se os vv. 46, 47) dá a
impressão de que, enquanto Jesus ainda Se achava “em terra” viu estes
discípulos através da escuridão ou apesar dela! Veja-se mais detalhes a
respeito da estreita relação existente entre a natureza humana e divina de
Cristo, entre Seu conhecimento e Sua onisciência, mais acima em
Marcos 5:32; também Introdução III. E estudem-se passagens tais como
Mt. 17:27; 21:19; 24:36; Mc. 2:8; 5:30; 11:13; Jo. 1:47, 48; 2:23–25.
Em segundo lugar, considere-se seu poder. Marcos já relatou vários
acontecimentos com relação à forma tão notória em que este poder
manifestou-se (Mc. 1:25–27, 31–34, 39–42; 2:8–12; 3:5, 10, 11, 4:39;
5:9–13, 34, 41, 42). Agora, aqui em Mc. 6:48, Aquele que acalmou as
ondas (Mc. 4:39) demonstra que também é capaz de fazer com que lhe
sirvam de caminho para seus pés. Veja-se Jó 9:8.
Fizeram-se intentos de evitar esta conclusão e de mudar a expressão
“andando sobre o mar” por “andando junto ao mar”. No contexto
presente, isto não se ajusta. Se a expressão exatamente igual do versículo
precedente (Mc. 6:47) significa que Jesus estava sozinho “em terra”, no
versículo 48 deve significar que realmente andou “sobre o mar”.
Não seria correto nos referir ao conhecimento e ao poder do Mestre
e esquecer do seu amor, segundo se revela aqui. Aqueles homens
angustiados de modo nenhum eram perfeitos, e isso se observa nos
versículos 49 (eram supersticiosos) e 52 (em certo sentido seu coração
estava endurecido). Não obstante, a compaixão de Jesus é tão tenra, seu
afeto tão paternal, que não existe nem escuridão nem tempestade nem
ondas que possam mantê-Lo afastado daqueles que Lhe são muito, sim,
muito queridos. Quando necessitam dEle, Ele deseja estar com eles. 288
288
A palavra βασανιζομένους (cf. 5:7; Lc. 8:28) é um ptc. pres. pl. ac. (depois de ἰδών) de βασανίζω.
Veja-se a forma afim em Mt. 14:24 (ptc. pas. pres. nom. sing.). Mateus usa também este verbo com
referência ao “servo” do centurião que estava “gravemente atormentado” (8:6); e cf. “vieste aqui para
nos atormentar antes de tempo?” (8:29). A palavra usa-se igualmente com relação a Ló, o qual era
Marcos (William Hendriksen) 344
49, 50a. Pois todos ficaram aterrados à vista dele. Mas logo lhes
falou e disse: Tende bom ânimo! Sou eu. Não temais! E subiu para o
barco para estar com eles, e o vento cessou. Ficaram entre si
atônitos.
Com o barco em direção a sudoeste, os remadores deviam estar
olhando rumo ao nordeste. Talvez da lua precedente à Páscoa, que
aparecia intermitentemente por entre as negras nuvens, deu-lhes algo de
luz para ver não muito longe o que pareceria um homem que vinha até
eles da parte de Betsaida Júlia. Pensaram que aquela figura misteriosa
não podia ser um homem verdadeiro, porque um ser humano não pode
caminhar sobre a água! Disto os navegantes estavam seguros. Não se
davam conta de quão errados estavam. Assim que, sobressaltados de
pavor, pensaram que o que viam era um fantasma. 289
Herodes Antipas não era de modo algum a única pessoa
supersticiosa que se menciona no Novo Testamento (Mc. 6:14). Os
discípulos também estavam ainda sob a influência de crenças irracionais
fortemente arraigadas. Cf. At. 13:15.
Também hoje em dia há pessoas, incluindo membros de igrejas, que
consultam os médium para averiguar o que sucederá no mercado de
valores; e aqueles que, se num dia 13 um gato negro cruza o seu
caminho, encolhem-se de horror; e se espantam se devem passar logo
sob uma escada para chegar à habitação Nº. 13 — supondo que ainda
exista tal habitação! — e ao chegar ali se derrama uma boa quantidade
de sal. E de modo algum fariam nada disso se o seu horóscopo lhes
indicasse que esse dia para eles é dia de “má sorte”!
“aflito” ou “vexado” pelas ações licenciosas de seus vizinhos ímpios (2Pe 2:8); ao qual pode-se
acrescentar os casos de seu uso no Ap. 9:5; 11:10; 12:2; 14:10; 20:10. Jesus veio para curar aos
afligidos por “tormentos” (Mt. 4:24; cf. Lc. 16:23, 28). O substantivo βάσανος (cf. a palavra
“basanita”) indica: a. basicamente, uma pedra de toque para provar ouro e outros metais; b. o
instrumento de tortura pelo qual eram provados os escravos, quer dizer, forçados a revelar a verdade;
e c. tormento ou dor aguda.
289
Como exceção, note-se aqui que é Mateus quem usa o estilo direto, “É um espírito”, enquanto que
Marcos se expressa de forma indireta. Veja-se Introdução IV, nota 5 g.
Marcos (William Hendriksen) 345
Quão pequena era a fé dos Doze! Estavam olhando o Seu Senhor e
Salvador, mas creram que o que estava à sua vista era um infernal
espectro que andava rondando, que era um “fantasma” ou um “espírito”.
Que cada um faça sua própria aplicação!
Assim que clamaram (literalmente “chiaram”). Todos estavam
“mortos de medo”, usando uma expressão popular. Marcos informa que
todos eles O viram e “tremiam”, estavam “aterrorizados”.
Em todo o grupo não havia um só discípulo, nem sequer Pedro, com
a valentia necessária para comunicar coragem aos seus companheiros.
Veja-se também a passagem paralela de Mt. 14:26.
O verbo que se usa no original para indicar esta condição de pânico
e alarme 290 é muito descritivo. Em Mateus 2:3 usa-se para descrever o
espanto que sentiu Herodes, o Grande quando ouviu a respeito do
nascimento de um “rei dos judeus”. Em voz ativa significa agitar,
revolver, turvar, inquietar como quando se fala do rei do Egito,
semelhante a um monstro marinheiro que move as águas com seus pés e
as suja (LXX Ez. 32:2). Figurativamente refere-se, em voz ativa, a
transtornar o coração e a mente lançando-os a confusão e alarme; e em
voz passiva a estar aterrorizado e atemorizado.291 Aqui em Mc. 6:50a e
Mt. 14:26 há um quadro de homens fortemente em comoção que no meio
da escuridão e a tormenta lançam um forte e frenético grito de terror e
medo, porque um espectro tenta persegui-los com fins maléficos.
O que se deve fazer com semelhantes temores? Tempo depois,
durante a noite memorável da instituição da Santa Ceia, Jesus, falando
com Seus discípulos no cenáculo, deu a resposta. Usando o mesmo verbo
— “ser turbado” — disse em frases que têm uma cadência rítmica, uma
ternura calmante e consoladora: “Não se turbe o vosso coração; credes
em Deus, crede também em mim” (Jo. 14:1).
290
ἐταράχθησαν aor. ind. pas. 3ª. pes. plur. de ταράσσω.
291
Em Marcos o verbo ocorre nesta passagem unicamente. Além de Mt. 2:3; 14:26, acha-se também
em Lc. 1:12; 24:38; várias vezes em João (Jo. 11:33; 12:27; 13:21; 14:1, 27); em At. 15:24; 17:8, 13;
Gl 1:7; 5:10; e em 1Rs. 3:14.
Marcos (William Hendriksen) 346
3. Os discípulos com Jesus, a quem agora reconhecem, porque lhes
fala.
50b. Mas logo lhes falou e disse: Tende bom ânimo! Sou eu. Não
temais! [ou: deixai de ter medo].
A resposta de Jesus é imediata. De forma amigável e afetuosa
começa a falar “com” eles. Diz-lhes exatamente o que necessitam para
apagar esse medo nascido da superstição. Segundo a informação que
temos no Novo Testamento, com uma só exceção, a única coisa que diz
“Tende bom ânimo” ou “Tende coragem” é Jesus. Além de Mc. 6:50,
veja-se também Mc. 10:49 (a única exceção); 292 Mt. 9:2, 22; 14:27; Jo.
16:33; e At. 23:11. “Sou eu”, diz Jesus; querendo dizer, o Mestre em
pessoa, o mesmo que os escolheu para ser Seus discípulos, que os guiou
passo a passo, e que já lhes deu tantas provas de Seu poder e amor. Em
consequência acrescenta, “Não temam”. Os discípulos devem deixar sua
atitude pacata; antes, devem cobrar ânimo e encher-se de alegria.
Quando Jesus pronunciou as palavras, “Tende bom ânimo! Sou eu.
Não temais!”, talvez deixou momentaneamente aturdidos os Seus
discípulos. Mas o atordoamento inicial deu passo à uma surpresa muito
jubiloso. Para outras surpresas semelhantes veja-se Gn. 13:14–18; 15:1ss.;
17:1–21; 18:1–8; 22:10b–19; 26:23–25; 28:10–22; 45:1ss.; Êx. 3:1–12; 14:15;
33:14; 34:6, 7; 40:34, 35; Js. 5:13ss.; 10:12–14; 1Rs. 18:38–40; Is. 37:36; Jr.
39:16–18 (cf. 38:7–13; Mt. 28:1–10; Mc. 16:1–8; Lc. 24:30–32; Jo. 20:21; At.
2:1; 4:31; 12:7ss. E veja-se especialmente 1Co. 2:9 (cf. 1Rs. 10:6, 7).
51. E subiu para o barco para estar com eles, e o vento cessou.
Ficaram entre si atônitos.
O episódio relacionado com Pedro (Mt. 14:28–31) teve lugar
provavelmente perto deste momento. Ao subir Jesus ao barco para estar
292
E mesmo esta não deve ser considerada necessariamente como uma exceção, porque é a reação dos
amigos à ordem de Cristo de que o cego seja chamado. É quase como se Jesus, por boca destes
amigos, estivesse dizendo ao cego, “Tenha ânimo”. As palavras de Paulo em At. 27:22, 25 se
aproximam às que com tanta frequência disse o Senhor; mas a. no original o apóstolo usa um verbo
diferente; e b. faz-se eco, embora de todo coração, das palavras do céu ditas por um anjo.
Marcos (William Hendriksen) 347
com Seus discípulos, Sua presença consoladora apagou os vestígios de
seu pânico supersticioso inicial. E quando amainou a tormenta nos
corações, o mesmo sucedeu com a tormenta física: “o vento se
apaziguou”, como tinha sucedido também numa ocasião anterior (4:39).
Resultado: os discípulos ficaram grandemente assombrados. Qual
tinha sido a causa de sua inquietação histérica fazia uns instantes, e qual
a causa de seu confusão assombro agora? Resposta:
52. porque não haviam compreendido o milagre dos pães; antes,
o seu coração estava endurecido.
Se tivessem compreendido plenamente o significado da alimentação
milagrosa (Mc. 6:35–44), teriam entendido que isso significava o poder
de Cristo para dobrar o universo material à sua vontade, incluindo não só
o produto da terra (pão), mas também as ondas do mar e os ventos
impetuosos. O problema estava em seus corações: Na realidade, seus
corações estavam endurecidos.
Na Escritura, o coração é a sede dos sentimentos e da fé, como
também a fonte das palavras e das ações (Mt. 12:34; 15:19; 22:37; Jo.
14:1; Rm. 10:10; Ef. 1:18). É a raiz da vida intelectual, emocional e
volitiva do homem, é o núcleo e centro da existência humana, seu ser
mais íntimo. “Dele emana a vida” (Pv. 4:23). “O homem olhe o que está
diante de seus olhos, mas o Senhor olha para o coração” (1Sm. 16:7).
Quando Marcos diz que o coração destes discípulos estava “endurecido”,
significa provavelmente que a estupidez dos Doze, sua incapacidade para
deduzir as conclusões necessárias dos milagres de Jesus, era o resultado
de sua negligência pecaminosa, por não refletir e meditar naquelas
maravilhosas obras e no Autor delas. O assombro não os impediu de cair
imersos numa espécie de torpor ou preguiça espiritual, apesar de que, em
seu regozijo, estes discípulos chegassem inclusive a reconhecer a
deidade de seu Mestre, como sucedeu também nesta mesma ocasião (Mt.
14:33); em outras palavras, não imaginaram perguntar-se o que daquele
Ser divino poderia esperar-se. Vez após vez foi necessário despertar de
sua letargia espiritual. Por outro lado, esta dureza de coração não deve
Marcos (William Hendriksen) 348
confundir-se com a insensibilidade e indiferença dos escribas e fariseus.
Tal atitude era o resultado da incredulidade e do ódio. Pelo contrário, os
discípulos (menos Judas), eram homens de fé … embora de pequena fé.
A lição que a Escritura ensina é que a fé deveria ser desperta o
bastante para deduzir conclusões corretas de premissas solidamente
estabelecidas (Mt. 6:26–30; Lc. 11:13; Rm. 8:31, 32), embora isto nem
sempre é tomado a sério.
293
Note-se προσωρμίσθησαν aor. ind. pas. 3ª. pes. plur. de προσορμίζω; de _ρμος = ancoradouro ou
fundeadouro. Era un lugar donde se encontraban el mar y la tierra; cf. “horizonte” donde el cielo y el
mar — o tierra — parecen encontrarse.
Marcos (William Hendriksen) 349
Desde aquele embarcadouro, Jesus devia prosseguir até a próxima
Cafarnaum (Jo. 6:17, 24, 25), mas não sem antes haver abençoado as
pessoas daquela região com Sua bondosa presença, segundo se mostra
nos seguintes versículos:
54, 55. Saindo eles do barco, logo o povo reconheceu Jesus; e,
percorrendo toda aquela região, traziam em leitos os enfermos, para onde
ouviam que ele estava.
É claro que nos versículos 54–56, Marcos é muito mais vivo e
detalhado que Mateus em 14:35, 36. Nem bem Jesus desembarca, e a
multidão O reconhece imediatamente. A estas alturas já era conhecido
bem como Aquele que cura. Tinha havido curas individuais
sobressalentes (Mc. 1:23–31, 40–45; 2:1–12; 3:1–5; cap. 5) e também
curas em massa (Mc. 1:32–34; 3:7–12). Assim que, não estranha que as
notícias de sua chegada se difundiram rapidamente. As pessoas corriam
para propagar as boas notícias. Resultado: de todas as partes dos
arredores as pessoas levavam os doentes a Jesus.
Levavam-nos em macas, provavelmente eram colchonetes cheios de
palha (veja-se sobre 2:4). A qualquer lugar onde se dizia que Jesus
estava, levavam-lhe doentes de todo tipo. 294 Vinham de todas as partes, e
iam a qualquer lugar onde Jesus estivesse.
56. Onde quer que ele entrasse nas aldeias, cidades ou campos,
punham os enfermos nas praças, rogando-lhe que os deixasse tocar ao
menos na orla 295 da sua veste; e quantos a tocavam 296 saíam curados. 297
294
Note-se το_ς κακ_ς _χοντας: “todos os que tinham mal” = todos os que estavam doentes (cf. 1:32,
34; 2:17); _που _κουον, imper. iterativo: “onde ouviriam”; _τι _στίν: “que ele está”, onde diríamos
“que ele estava”. Depois de tempos secundários o grego geralmente retém o tempo do discurso. Veja-
se Robertson, p. 1029.
295
Ou: franja.
296
Ou: tocá-la.
297
Notem-se os seguintes pontos, principalmente de caráter gramatical:
a. _που _ν _ισεπορεύετο: No Novo Testamento, este tipo de orações com o optativo se substitui pelo
indicativo com _ν. Veja-se E. D. Burton, Op. cit., pp. 124, 125, parágr. 315.
b. Os verbos que indicam entravam … punham … rogavam … eram curados, estão todos em
imperfeito iterativo. Talvez se poderiam traduzir: “entrariam … poriam … rogariam … seriam
curados”. Entretanto, não é sempre necessário nem recomendável traduzir cada expressão desta
Marcos (William Hendriksen) 350
Que ministério tão enriquecedor foi este! Talvez houve também
ensino, mas no caso de ser assim, nada se diz a respeito. O que se
sublinha são as curas. Isto sucedeu nas aldeias, povos e campos (cf. 5:14;
6:6). Sucedia que muitos que tinham seres queridos doentes os levavam
à praça do mercado, com a esperança de que Jesus possivelmente
passasse por aqueles lugares. A palavra praça de mercado pode,
entretanto, referir-se também a uma praça ou espaço aberto em alguma
aldeia muito pequena para ter uma praça de mercado oficial.
forma. P. ex., “seriam curados” poderia ser interpretado erroneamente como “iam a ser curados”. Mas
o escritor queria dizer que eram curados de forma definitiva ali mesmo. Daí que neste caso a tradução
“e quantos lhe tocavam eram curados” é provavelmente a melhor, especialmente ao considerar que
_που _ν ε_σεπορεύετο (= onde quer que entrava) é indefinido, conquanto _σοι _ν _χαντο (aor., =
quantos lhe tocavam) é definido. Em cada caso particular o toque momentâneo foi seguido de cura, e
estas curas aconteceram vez após vez.
c. κ_ν significa “se tão somente”.
d. Os verbos de tocar tomam o genitivo como complemento; daí κρασπέδου (= franja, borla).
Marcos (William Hendriksen) 351
Vem, Senhor, hoje de perto abençoar,
Como antigamente mostravas Teu poder,
Onde quer que seja, e junto ao leito de dor
Como nas praias de Genesaré.
(Tradução livre)
Resumo do capítulo 6
298
Ou: cerimonialmente imundo.
299
Vincent Taylor, Op. cit., p. 334, adota a alternativa b.
Marcos (William Hendriksen) 356
publicanos e pecadores; d. Ele exercia o que eles consideravam uma
perniciosa influência sobre o povo; e e. Ele era o oposto deles.
Este último ponto necessita uma maior ênfase. Os inimigos de
Cristo certamente percebiam em seus corações que Jesus era
imensamente mais nobre que eles. Sua humildade (Lc. 22:27)
contrastava notavelmente com a pomposidade deles (Mt. 23:5–7); sua
sinceridade (Jo. 8:46), com a hipocrisia deles (Mc. 7:6); sua compaixão
(Mc. 6:34), com a crueldade deles (Mt. 23:14). Em grande medida, a
“religião” deles era uma atividade em interesse próprio (Mt. 6:2, 5, 16);
o ministério de Jesus era um sacrifício para o bem dos demais (Mc.
10:45) e para a glória do Pai (Jo. 17:1–14). Estavam conscientes alguns
destes inimigos de que Jesus conhecia seu verdadeiro caráter, e que os
tinha “fichados”?
O que quer que seja, aqui estão, chegados de Jerusalém, o centro da
“ortodoxia judaica. Sem dúvida, tinham ido ali por mandato do Sinédrio.
Seu propósito era certamente achar uma base para apresentar acusações
contra Jesus, a fim de matá-Lo (veja-se Mc. 3:6; 11:18). Indica
possivelmente a referência a “alguns escribas” que estes escribas em
particular tinham sido escolhidos por ser doutores em assuntos que
pudessem ser causa de controvérsia com Jesus? Isto é bem possível
embora não absolutamente certo.
O comitê de espiões logo se viu recompensado. Observemos que
alguns — somente alguns, nem sequer todos — dos Doze comiam 300
com mãos “contaminadas”, quer dizer, com mãos que não se tinham
lavado conforme o ritual e, portanto, não estavam “cerimonialmente
limpas”. É possível que se os espiões tivessem esperado um pouco mais
teriam notado que não só alguns deles, mas também todo o grupo dos
Doze tinha este costume, e na realidade também Jesus (veja-se Lc.
11:38). 301
300
Veja-se mais acima, sobre 3:20, nota 120.
301
R. C. Trench, Op. cit., parágrafo xlv, demonstrou que conquanto πλύνω refere-se ao lavamento de
coisas inanimadas — redes (Lc. 5:2), vestimentas (Ap. 7:14)—, e λούω aponta para banhar todo o
Marcos (William Hendriksen) 357
A nota explicativa “com as mãos impuras, isto é, por lavar” foi
acrescentada para permitir que os leitores não judeus, a quem foi dirigido
este Evangelho principalmente, entendessem do que se falava. O mesmo
pode ser dito com certeza em relação com a passagem entre parêntese:
versículos
3, 4. (Os fariseus e todos os judeus não comem sem lavar as mãos
cerimonialmente, 302 apegando-se, assim, à tradição dos líderes religiosos.
Quando chegam da rua, não comem sem antes se lavarem. 303 E observam
muitas outras tradições, 304 tais como o lavar 305 de copos, jarros e vasilhas
de metal. 306 ) [NVI]
Deve notar-se os seguintes pontos:
a. “Os fariseus e todos os judeus”. Aqui, a palavra “todos”, como
sucede com frequência nas Escrituras e até na conversação diária de hoje
em dia, usa-se de maneira livre; veja-se sobre Mc. 1:5 (“Saíam a ter com
ele toda a província da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém”). O
significado é “muitíssimos”, “o povo em geral”.
b. “… sem lavar as mãos ceremonialmente” (NVI; RA:
“cuidadosamente”). As leituras variam entre “com o punho”; “com
frequência”; e a ausência total de um advérbio.307 Muitos consideram
corpo (At. 9:27; 2Pe. 2:22; Ap. 1:5), νίπτω geralmente faz referência ao limpamento de uma parte do
corpo: mãos (Mc. 7:3), pés (Jo. 13:5), cara (Mt. 6:17), olhos (Jo. 9:7). Além disso, Trench cita Lv.
15:11 (na lXX) como um exemplo que nos mostra as três palavras juntas, cada uma com o significado
que corretamente lhe corresponde. Agora, aqui em Mc. 7:2 usa-se um derivado de νίπτω, refiro-me ao
adjetivo _νίπτοις (dat. pl.), e no v. 3 aparece a forma verbal νίψωνται (aor. subj. med. 3a. pers. pl.).
Estou de acordo. Mas ao examinar o hebraico encontramos que em Lv. 15:11, Brown-Driver-Briggs
traduzem shataf como enxaguar ou lavar. As versões VP, BP, CI, CB, BJ, NBE, RV60 traduzem
lavar. A versão inglesa AV traduz como segue: “E todo aquele a quem tocar aquele que tem fluxo, e
não enxaguar com água suas mãas”. O texto refere-se a um “enxágue” ou “lavagem cerimonial”, e
não à lavagem das mãos numa bacia. Este é sem dúvida também o significado aqui em Mc. 7:2. Para
maiores detalhes a respeito disto, veja-se CNT sobre Mt. 15:1, 2.
302
“cuidadosamente” [RA] é incerto; o termo grego é um tanto obscuro.
303
Literalmente: se não se batizarem.
304
E não tão somente, “Há muitas outras tradições que guardam”.
305
Literalmente: batismos.
306
Outra leitura [RA] acrescenta “camas”.
307
Alguns manuscritos leem πυγμ_, outros πυγνά e outros omitem ambas as leituras.
Marcos (William Hendriksen) 358
que a primeira destas alternativas é a correta. Se for assim, a
interpretação não é totalmente certa. Significaria isto “girando o punho
na palma da outra mão?”. Uma citação de um opúsculo talmúdico 308 nos
puede ser útil: “as mãos se tornam imundas e se limpam até a altura da
pulso. Como? Se a água foi entornada sobre as mãos até chegar aos
pulsos e se torna a lançar água nas mãos mais acima da pulso e a água é
novamente jogada nas mãos, estas não obstante ficam limpas”. Em todo
caso, parece justificada a conclusão de que aqui se está falando de uma
cuidadosa ablução ou lavamento.
c. “… apegando-se — ou: sujeitando-se 309 — à tradição dos
anciãos” [RA[.Os escribas e seus numerosos seguidores defendiam com
denodo o cumprimento estrito das regras estabelecidas pelos
proeminentes rabinos de antigamente. Aquelas regras tinham sido
“transmitidas” — a palavra mesma “tradição” significa “o que foi
irradiado” — de uma geração a outra, e agora os escribas as estavam
transmitindo de novo à sua própria geração. Na realidade, muitas e
minuciosas estipulações cerimoniais, com relação a centenas de
assuntos, transmitiam-se como se a própria salvação dependesse da
obediência total a elas. Assim também estes judeus estritos negavam-se a
comer a menos que primeiro tivessem submetido suas mãos ao já
indicado minucioso lavamento ritual.
d. “…e, quando voltam do mercado …” [RC]. O mercado era o
centro de reunião para muitas pessoas e naturalmente era considerado
como um lugar especialmente poluente. Um judeu podia roçar um
gentio! Portanto, ao voltar de semelhante lugar, os judeus não se
atreviam a comer a menos que primeiro se submetessem a tudo o que a
tradição exigia com relação ao lavamento das mãos.
e. “não comem sem lavar as mãos cerimonialmente”. Aqui, como
em b. mais acima, há uma variedade de leituras. Qual era o texto
308
The Babylonian Talmud: Seder Tohoroth (Londres, 1948), p. 552.
309
Para o verbo usado no original, veja-se mais acima sobre Mc. 3:31, nota 122.
Marcos (William Hendriksen) 359
autêntico: “sem lavar as mãos cerimonialmente” ou “a menos que se
asperjam cerimonialmente”? 310 Com toda probabilidade o primeiro é o
correto: “sem lavar …” Literalmente diz: “a menos que se batizem”, ou
simplesmente: “se não se batizarem”. Certamente que o mero
aspergimento das mãos não teria deixado satisfeitos os rabinos. O que se
exigia parecia ser nada menos que um minucioso lavamento ou limpeza
cerimonial. 311
O “batismo” ao qual se faz referência nesta passagem não deve
interpretar-se como uma imersão de todo o corpo, e isso é evidente pela
passagem de Lucas 11:38 [TB], onde se usa uma forma do mesmo verbo,
batizar: “Vendo isto o fariseu, estranhou não se ter ele [Jesus] lavado
(lit. batizado) antes de almoçar”. É muito difícil imaginar que o fariseu
pretendesse que Jesus se submetesse a um banho completo que incluísse
sua imersão total! A referência é, naturalmente, à limpeza ritual das
mãos antes da refeição. Assim também aqui em Marcos 7:4. O texto
precedente proporciona a chave para a interpretação: o batismo
cerimonial ou lavamento do versículo 4 refere-se ao lavamento das mãos
do versículo 3.
f. Marcos acrescenta que os judeus tinham sido ensinados a
observar muitas outras tradições; tais como “batismos” ou lavamentos
cerimoniais de copos, jarros, 312 e panelas (ou: utensílios de bronze).
5. Interpelaram-no os fariseus e os escribas: Por que não andam
os teus discípulos de conformidade com a tradição dos anciãos, mas
comem com as mãos por lavar?
Tanto fariseus como escribas fazem a pergunta de maneira formal.
Bem como em Mc. 2:23, 24, responsabilizavam a Jesus pelo que os
discípulos faziam. Afinal de contas, seu propósito era matar a Ele.
310
Os verbos gregos (aor. subj. med. 3ª. pes. pl.) são respectivamente βαπτίσωνται e _αντίσωνται.
311
Sobre a opinião contrária, veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 336.
312
A palavra ξέστης é considerada por muitos como uma palavra tirada do Latim, uma deformação de
sextario. O sextario é basicamente uma vasilha para líquidos que contém meio litro; em sentido
secundário, um jarro de qualquer tamanho.
Marcos (William Hendriksen) 360
O problema daqueles homens era que constantemente insistiam nas
normas estabelecidas por homens. Pior ainda, faziam-no às custas da
honra que deviam à lei divina. Eram devotos do ritualismo vazio, como
se este os pudesse salvar!
6, 7. Respondeu-lhes: Bem profetizou Isaías a respeito de vós,
hipócritas, como está escrito: Este povo honra-me com os lábios, mas o
seu coração está longe de mim. E em vão me adoram, ensinando doutrinas
que são preceitos de homens. 313
Em Sua resposta Jesus Se refere especialmente a duas passagens do
Antigo Testamento: a. Isaías 29:13, e b. Êxodo 20:12 (e textos
similares). Mateus (Mt. 15:4–9) cita Êxodo 20:12 primeiro, seguido por
uma referência à passagem de Isaías. Marcos inverte esta ordem. A
vantagem desta variedade de apresentação é que assim é dada igual
importância a ambas as passagens; poderia dizer-se: à lei e aos profetas,
aos profetas e à lei. Basicamente, a resposta é a mesma em ambos os
Evangelhos.
É claro que Marcos — na realidade o próprio Jesus citado por
Marcos — não quis dizer necessariamente que Isaías 314 estava pensando
especificamente nos fariseus e escribas dos dias de Jesus. O que
provavelmente quis dizer é que o que o profeta escreveu quanto às
pessoas de seus próprios dias, estava ainda vigente, porque as pessoas a
quem se acusa, tanto dos tempos de Isaías como de Jesus, honravam a
Deus de lábios, conquanto seu coração estava longe dEle. A história
volta a repetir-se.
313
Esta passagem apoia a ideia de que o texto grego de Mateus não é simplesmente a tradução de
algum original aramaico. Este ponto de vista é discutido no CNT sobre Mateus, pp. 99, 100.
314
Tal como se encontra em Mateus e Marcos, a citação assemelha-se muita mais à tradução de Isaías
29:13 que aparece na Septuaginta, que ao original hebraico. O hebraico original diz: “Porquanto este
povo aproxima-se de mim com sua boca, e com seus lábios me honra, mas afastou seu coração de
mim, e seu temor para comigo (não é mais que) um preceito adquirido dos homens, portanto …”. Pelo
contrário, a Septuaginta diz: “Este povo aproxima-se de mim (e) com os seus lábios me honra, mas
seu coração está longe de mim. Mas em vão me honram, ensinando preceitos de homens e (suas)
doutrinas”. A ideia central é a mesma em ambos.
Marcos (William Hendriksen) 361
Jesus chama estes homens de “hipócritas”. Em Marcos este termo
aparece unicamente nesta passagem (mas veja-se também Mc. 12:15),
embora se ache três vezes em Lucas e frequentemente em Mateus,
especialmente em dois dos discursos de Cristo (o Sermão da Montanha,
caps. 5–7; e os Sete Ais, cap. 23). A palavra hipócritas não aparece no
Antigo Testamento. A NTLH a registra em uma passagem (Sl 26:4), mas
não é a tradução correta. Contudo, a ideia como tal, sim se encontra (Sl
10:7; Pv. 26:24, 26).
O hipócrita é uma pessoa que esconde ou tenta esconder suas
verdadeiras intenções sob (hypo) uma máscara de pretensa virtude.
Segundo a passagem que estamos estudando, honram a Deus com os
lábios mas o seu coração (veja-se sobre Mc. 6:52) está longe dEle. As
duas últimas linhas do versículo 7 afirmam, além disso, que com o
pretexto de ensinar doutrinas de origem divina, está realmente ensinando
“preceitos de homens”. Ensinam regras e normas escrupulosas e
caprichosas dispostas por antigos rabinos legalistas — meros homens! —
que fiavam muito fino, e que as transmitiam de uma geração a outra
(veja-se Mt. 6:2, 5, 16; 23:23–28).
Assim também nesta ocasião, estes “piedosos” (?) críticos
pretendiam estar muito preocupados com algo que diziam ser a infração
de um estatuto divino (?) que lhes tinha sido irradiado. O que realmente
queriam era aniquilar o Filho do próprio Deus. Um hipócrita, então, é
enganoso, fraudulento, falso, uma serpente escondida entre matagais, um
lobo vestido de ovelha. Pretende ser o que não é.
Naturalmente que sua “adoração” a Deus é vã, totalmente inútil; e
isto por duas razões: a. porque sua ênfase é errônea; e b. porque a atitude
de seu coração é falsa, conforme o indica Jesus ao dizer:
8. Negligenciando o mandamento de Deus, guardais a tradição
dos homens.
Os fariseus e escribas eram culpados de colocar simples tradições
humanas acima da revelação divina, as regras humanas acima dos
mandamentos dados por Deus. Os rabinos tinham dividido a lei mosaica
Marcos (William Hendriksen) 362
(ou: Torah) em 613 decretos, 365 dos quais eram considerados
proibições e 248 instruções positivas. Logo, com relação a cada decreto,
fazendo distinções arbitrárias entre o que consideravam “permitido” e
“não permitido”, tinham tentado regular cada detalhe da conduta dos
judeus: seus sábados, viagens, comidas, jejuns, abluções, comércio,
relações com os de fora, etc., etc. Mateus 23:16–18 entrega um exemplo
de seus muito minuciosos raciocínios casuísticos. Há muitas outras
interessantes ilustrações em A. T. Robertson, The Pharisees and Jesus,
especialmente nas pp. 44, 45, 93ss. Assim, preocupando-se só por
múltiplos decretos e pelo número interminável de aplicações para as
situações específicas da vida diária, tinham amontoado preceito sobre
preceito (cf. Is. 28:10, 13) até que enfim muitos dos escribas e fariseus
terminaram eclipsando totalmente a unidade e o propósito da santa lei de
Deus (veja-se Dt. 6:4; logo Lv. 19:18; Mq. 6:8; cf. Mc. 12:28–34).
Em consequência, Jesus acusa os Seus oponentes de ter abandonado
o mandamento de Deus para aferrar-se às tradições dos homens. Se além
de Jesus, alguém tivesse expresso esta ferino crítica contra os dirigentes
religiosos daqueles dias, talvez nos tivéssemos sentido inclinados a
pensar que a afirmação era um tanto exagerada. Teríamos dito: Não pode
ser que estes fariseus e escribas realmente tivessem sua lei oral em mais
alta estima que a lei escrita do Antigo Testamento. Não parece este um
juízo muito duro? A resposta é: de maneira nenhuma. Na realidade,
existe evidência em apoio da asseveração de que os próprios rabinos
defendiam este critério. Diziam, “O opor-se à palavra dos escribas é
digno de maior castigo que opor-se à palavra da Bíblia” (veja-se a obra
de Robertson, p. 130, a que se tem feito referência no parágrafo
precedente). Provavelmente raciocinavam assim: historicamente a lei
oral precedeu à escrita; portanto a lei oral tem precedência. É claro,
então, que os oponentes não estavam em posição de provar que o que
Jesus dizia não era verdade.
Como se deve explicar que Jesus discrepasse do critério de
subordinar o mandamento escrito de Deus à tradição oral? Por um lado, é
Marcos (William Hendriksen) 363
óbvio que a palavra oral é menos duradoura que a palavra escrita, pois
está mais sujeita a mudanças ao passar de uma geração a outra. Por
outro, o mandamento veio do Deus Santo, em consequência, é infalível,
mas a tradição, sendo uma tradição de interpretação originada por
homens pecadores é, portanto, falível. No presente caso, segundo já se
explicou, era geralmente perversa, extraviada e corrompida.
Seria totalmente errôneo tirar a conclusão de que Jesus se opunha à
tradição, que desejava rejeitar todo o antigo constituindo-se assim num
revolucionário. Passagens tais como Mateus 5:17, 18; 23:1–3; Marcos
10:5–9 provam que não era assim. Antes, estava contra qualquer ensino
humano que estivesse em conflito com a lei divina. Era “um antiquado”
no bom sentido da palavra, porque retrocedeu para além da imperfeita e
desviadora tradição até que achou a revelação e mandamento original de
Seu Pai.
Nesta passagem Jesus Se refere ao mandamento de Deus. Talvez
usou o singular porque se referia ao preceito que estava prestes a citar (v.
10). Entretanto, o singular pode ser genérico, um só mandamento
representando a toda a categoria. 315
9. E disse-lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o preceito de Deus para
guardardes 316 a vossa própria tradição.
Num sentido, Jesus repete o versículo 8. Entretanto, a pontada é
ainda mais ardente, o desmascaramento mais assustador. “Que bonita a
315
Nos Sinóticos, um _ντολή refere-se às vezes a um mandamento do Decálogo (veja-se Mc. 7:9, 10;
cf. Mt. 15:3, 4). Mas em Lc. 23:56, a palavra pode ter uma referência mais ampla. Não só veja-se Êx.
20:10 mas também 12:16 (cf. Mt. 19:17; Mc. 10:19; Lc. 18:20). Em Mc. 10:5, o termo usado no
original refere-se a uma ata de divórcio. No contexto presente (Mc. 7:10), o quinto mandamento vem
seguido imediatamente por uma proibição mosaica relacionada, que não é parte dos Dez
Mandamentos. E em Mc. 12:28–31, o escriba poderia estar usando _ντολή para referir-se inicialmente
a qualquer mandamento da lei mosaica. Em tal passagem, Jesus lhe responde ao escriba usando
_ντολή para resumir cada uma das tábuas da lei. Quanto ao uso do termo _ντολή no Evangelho de
João, veja-se CNT sobre João. 13:34. Para um excelente artigo a respeito de esta palavra e seus
cognatos, veja-se G. Schrenk, TDNT, vol. II, pp. 544–556.
316
Segundo outra versão, que tem muito apoio: para poder observar (ou: guardar, vigiar, preservar,
reter).
Marcos (William Hendriksen) 364
forma!” é uma ironia. Equivale a dizer: “Têm uma boa maneira para
deixar de lado …”. Note-se “vossa tradição” (cf. o v. 8). Estes homens
querem fazer-se deuses. Deixam a Deus de lado para estabelecer-se eles
mesmos. Estão anulando um mandamento infalível a fim de confirmar
sua própria tradição, fraca e miserável. 317 Que perversidade!
Sim, que perversidade! Mas também que estultícia! Imaginemos um
homem que em meio de uma violenta tempestade encontrou um lugar de
refúgio no topo de uma rocha alta (cf. Sl 18:2; 27:5; 92:15; 119:114,
117, 165), onde está inteiramente a salvo, mas que de repente salta,
buscando proteção, para agarrar-se de um cano que vê deslizar-se sobre a
água. Que grande insensatez! Cf. Jr. 2:13.
Com o fim de ilustrar e provar este ponto, Jesus prossegue:
10. Pois Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem
maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte.
“Moisés disse”. Segundo o versículo 13, é evidente que Jesus
considera o dito por Moisés como a própria palavra de Deus. Em
consequência, não existe diferença real entre Mateus 15:4 (“Porque Deus
disse”) e Marcos 7:10 (“Porque Moisés disse”).
Quanto ao mandamento de dar honra ao pai e à mãe, veja-se Êx.
20:12; Dt. 5:16; Pv. 1:8; 6:20–22; cf. Ml. 1:6; Mt. 19:19; Mc. 7:10–13;
10:19; Ef. 6:1; Cl. 3:20. Honrar ao pai e à mãe é muito mais que lhes
obedecer, especialmente se esta obediência se interpreta meramente em
sentido externo. O que está em primeiro plano no requerimento de os
honrar é a atitude interna do filho para com seus pais. Toda obediência
egoísta, obediência forçada ou sob terror fica imediatamente eliminada.
Honrar implica amar, ter um alto conceito, mostrar um espírito de
respeito e consideração. Esta honra deve-se outorgar a ambos os pais,
porque no que respeita ao filho os dois têm igual autoridade.
317
Ainda se se substitui τηρήσητε por στήσητε, o resultado é quase o mesmo: rejeitam o um para
obedecer o outro.
Marcos (William Hendriksen) 365
Em Êxodo 21:27; Levítico 20:9 pronuncia-se a pena de morte para
aqueles que amaldiçoam ao pai ou à mãe, mas vejam-se também Êx.
21:15; Dt. 21:18–21 e Pv. 30:17.
O que fizeram estes fariseus e escribas com este claro e explícito
ensino da Palavra de Deus? A resposta é dada nos versículos
11, 12. Vós, porém, dizeis: Se um homem disser a seu pai ou a sua
mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta para o
Senhor, então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai ou
de sua mãe. 318
Os críticos de Cristo, embora altamente estimados pelo povo em
geral, eram culpados de fazer confusões deliberadas e truques
detestáveis. Fizeram da santa lei de Deus uma zombaria. O mandamento
com relação ao dever dos filhos para com seus pais era muito claro. Mas
os fariseus e escribas ensinavam os filhos que existia uma forma de
evitar a pesada carga de ter que honrar os seus pais provendo-os de
sustento. Se um filho tinha algo que seus pais necessitavam, o filho
somente devia dizer, “é Corbã!”. Para seus leitores não judeus, Marcos
acrescenta o equivalente grego doron, dom ou oferta; quer dizer, um
dom ou oferta sagrada, algo separado para Deus, isto é, para usos
sagrados. O ensino farisaico baseado na tradição 319 afirmava que se um
318
Mateus e Marcos diferem levemente na forma em que apresentam esta declaração do Senhor. Note-
se o seguinte:
Mt. 15:5, 6a - “Qualquer que diga (é) um dom … certamente não tem que honrar o seu pai.”
Mc. 7:11, 12 - “Se qualquer um disser a seu pai ou a sua mãe, (é) Corbã, quer dizer, (é) um dom …,
então vós já não lhe é permitido fazer coisa alguma por seu pai ou mãe.”
A frase de Marcos (“Mas vós dizeis … então vós já não”) é um claro exemplo de anacoluto. A RA e
outras versões retêm o anacoluto. Para maior clareza, outros o evitam modificando o texto. Por
exemplo, a NVI lê: “Vocês, pelo contrário, ensinam que um filho pode dizer ao seu pai … Nesse caso,
o tal filho já não está obrigado …”. Não posso aceitar aqui o raciocínio de Lenski (Op. cit., pp. 183–
185). Acaso não prova sua própria tradução (p. 183), que há uma mudança na construção gramatical?
Uma forma de explicar este anacoluto é ter em mente que se acha em harmonia com o estilo popular
de Marcos. Além disso, é possível que Marcos não tenha relatado tudo o que disse Jesus. Um fiel
relatório não implica necessariamente sempre um relato completo (cf. Mt. 15:19 com Mc. 7:21, 22.
Veja-se Jo. 21:25).
319
Véase SB, vol. 1, pp. 71ss.
Marcos (William Hendriksen) 366
filho fizesse esta declaração e lhe desse uma aplicação ampla (“qualquer
em favor de …”), ficava livre da obrigação de honrar os seus pais. Na
realidade, segundo o expressa Marcos, é dispensado da permissão para
ajudar os pais.
É inclusive possível que também seja correta uma interpretação
mais ampla. Se assim fosse, o filho estaria dizendo: “Qualquer coisa com
que eu possa te beneficiar, seja agora ou no futuro, eu, aqui e nesta hora,
declaro que deve ser considerado como oferta”. A forma em que Marcos
conclui, “então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai
ou de sua mãe”, poderia apoiar esta interpretação.
Seja qual for a interpretação adequada, tratava-se de um exemplo da
irresponsável sofisma dos fariseus, da ímpia maquinação para despojar
os pais da honra e sustento devido a eles. Além disso, o que se tirava dos
pais por este procedimento não era absolutamente necessário que se
oferecesse a Deus. Aquele que exclamava, “é Corbã!” podia
simplesmente guardá-lo para si.
Não é estranho que Jesus repita de maneira enfática o que havia
dito anteriormente (cf. vv. 8, 9):
13. invalidando a palavra de Deus pela vossa própria
tradição 320 que vós mesmos transmitistes.
Estes “hipócritas” não só (v. 6) passavam por alto a palavra de
Deus, mas a invalidavam. Tiravam do quinto mandamento sua obrigada
autoridade, como implica o original. 321 Por outro lado, estavam
transmitindo sua perversa tradição! Além disso, era assim não só com o
presente caso, como se os fariseus e escribas estivessem anulando
somente este único mandamento. Não, Jesus acrescenta imediatamente: e
fazeis muitas outras coisas semelhantes. O que disse a respeito da
320
Note-se _ “por meio de” (ou inclusive talvez “em favor de”). O que devia ser um acusativo é
atraído ao caso do seu antecedente, o dativo τ_ παραδόσει.
321
_κυρο_ντες ptc. pres. nom. pl. masc. de _κυρόω, “privar de autoridade, fazer nulo, anular, ab-
rogar”. No Novo Testamento usa-se só em Mc. 7:13 (paralelo, Mt. 15:6); e Gl 3:17 (“a lei não o ab-
roga”). Cf. κύριος, “alguém com autoridade, senhor, amo, dono”; κυρόω “comunicar autoridade”, ou:
“dar validez”.
Marcos (William Hendriksen) 367
forma em que os fariseus tratavam o quinto mandamento era só uma
ilustração. Era uma amostra do que sucedia constantemente.
Entronizavam a tradição de forma regular; destronavam a Palavra de
Deus!
Indubitavelmente trata-se de um tema muito prático, digno de ser
aplicado em toda época. Não é o princípio objetivo do protestantismo “A
Bíblia é a única regra infalível de fé e prática”? E não está isso em
oposição à forma em que a igreja romana coordena a Escritura e a
tradição eclesiástica como se fossem as regras conjuntas de fé? Não é
verdade que esta última posição com frequência degenera no fato de
colocar a tradição acima da Escritura? E ainda hoje, não é necessário
fazer o maior esforço possível para evitar que as decisões e
interpretações subjetivas comecem a interferir com a exegese imparcial
da Palavra de Deus?
Existe uma surpreendente semelhança entre Marcos 7:14–23 e sua
passagem paralela de Mateus 15:10–20. as diferenças principais são as
seguintes:
a. Marcos não registra a pergunta dos discípulos (“Sabes que os
fariseus, ouvindo a tua palavra, se escandalizaram?”) e a resposta de
Jesus que se acham em Mateus 15:12–14.
b. Segundo Mateus 15:15 foi Pedro quem pediu a Jesus que
explicasse “a parábola”. Marcos simplesmente diz “os discípulos”.
Entretanto, Marcos informa que a pergunta foi feita depois de Jesus ter
deixado as pessoas e entrado na casa, coisa que Mateus omite.
c. A informação de Marcos (Mc. 7:19b), “E, assim, considerou ele
puros todos os alimentos”, não se acha em Mateus.
d. Conquanto Mateus (depois de um termo introdutório) apresenta
uma lista de 6 coisas más que procedem de dentro e que contaminam o
homem (15:19), Marcos (Mc. 7:21, 22) menciona 12. No caso de que
“enganos”, em Marcos, equivalha a “falsos testemunhos”, em Mateus,
então os 6 pecados que Mateus menciona aparecem na lista de Marcos só
com leves mudanças verbais. Estas coisas são as números 5, 6, 8, 9, 11, e
Marcos (William Hendriksen) 368
12 da lista de Marcos, que aparecem portanto de perto da metade até o
final da enumeração do evangelista (veja-se o gráfico mais adiante). Em
consequência, não parece ser ilógica a inferência de que Mateus, com a
lista de Marcos diante de si, estava abreviando.
14, 15. Convocando ele, de novo, a multidão, disse-lhes: Ouvi-me,
todos, e entendei. Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa
contaminar; mas o que sai do homem é o que o contamina. 322
Pareceria que justamente antes da chegada do comitê formado por
fariseus e escribas, Jesus tinha estado falando às pessoas. Então,
provavelmente por respeito à delegação que tinha vindo para interrogar a
Jesus, as pessoas se retiraram a certa distância. Mas agora, depois que os
críticos se retiraram ou foram despedidos, o Senhor convida as pessoas a
aproximar-se dEle novamente. Quem não detecta o som solene do
Antigo Testamento nas palavras, “Ouvi-me, todos vós, e entendei” (cf.
Sl 49:1; 50:7; 81:8)? Jesus, no começo do reatamento de Sua mensagem,
sublinha que o que vai dizer é algo muito importante. Vez após vez os
Evangelhos O descrevem como o Salvador compassivo, como Aquele
que Se sente profundamente doído porque os dirigentes estão desviando
o povo simples (vejam-se Mt. 9:36; 11:28–30; Mc. 6:34).
O que Jesus deseja imprimir na multidão tem que ver com a
depreciativa pergunta dos fariseus e escribas (veja-se o v. 5): “Por que
não andam os teus discípulos de conformidade com a tradição dos
anciãos, mas comem com as mãos por lavar?”. A hipótese destas críticas
era: as mãos sem lavar contaminam o alimento e, portanto, também ao
que come. Segundo a opinião deles, a contaminação agia de fora para
dentro. Jesus faz ver que o contrário é o certo. Não é o que entra no
homem, e sim o que sai dele, é o que tem poder para contaminá-lo. Note-
se o uso que Marcos faz do plural. Segundo seu relato, Jesus fala a
respeito das coisas que “saem do homem” como as coisas que o
“contaminam”. Agora, é verdade que em grego o plural pode com
322
Não há suficiente evidência textual para lhe acrescentar ao v. 16 a seguinte oração, “Se alguém tem
ouvidos para ouvir, ouça”.
Marcos (William Hendriksen) 369
frequência ser traduzido corretamente pelo singular em nosso idioma.
Entretanto, no caso presente, à vista da extensa lista de coisas que
contaminam (vejam-se os vv. 21, 22), provavelmente é melhor reter o
plural inclusive na tradução. O que Jesus diz, portanto, é que a
contaminação real não é a física, mas sim a moral e espiritual. A
contaminação, em outras palavras, origina-se no coração. Em nossos
dias, em que tanto se fala e até também algo está-se fazendo a respeito
dos vários tipos de contaminação física, quer dizer, contaminação que
age de fora para dentro, a advertência de Cristo contra a contaminação de
dentro é, sem dúvida, muito necessária.
17. Quando entrou em casa, 323 deixando a multidão, os seus
discípulos o interrogaram acerca da parábola.
Finalmente Jesus está sozinho com Seus discípulos. Entrou em Sua
casa. É verdade que em lugar de “fui para casa” são possíveis também as
traduções “e entrou numa casa”, ou “entrou”. Não é possível estar
completamente seguros a respeito do significado desta frase no original.
Entretanto, segundo se mostrou, as referências de Mc. 2:1 e 3:20 são
provavelmente à casa de Jesus em Cafarnaum. Veja-se o comentário
sobre estas passagens. Podemos supor então, que os eventos relatados
em Mc. 7:1–23 ocorreram em alguma parte de Cafarnaum ou perto de
onde Jesus teve Seu centro de ação durante Seu grande ministério
galileu.
Aqui, então, em casa de Jesus em Cafarnaum, Seus discípulos, com
(segundo informa Mateus) Pedro como porta-voz, pedem a seu Mestre
uma explicação desta “parábola”. É evidente que o termo “parábola”
usa-se aqui no sentido de um tal conciso, um mashal ou provérbio.
Refere-se ao aforismo do versículo 15.
18, 19a. Então, lhes disse: Assim vós também não entendeis? Não
compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode
323
Ou: tinha entrado (em casa).
Marcos (William Hendriksen) 370
contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no ventre, e sai para
lugar escuso?
Parece que Jesus dissesse, “Que outros — como os fariseus e
escribas e o povo em geral — não captem Meu ensino não Me estranha,
mas que vós, que estivestes comigo por tanto tempo e em tão estreita
relação, sejam tão fechados, parece-me indesculpável” (cf. Jo. 14:9). Os
Doze não se davam conta de que tudo o que entra no homem de fora é,
por fim, eliminado do corpo? E, sendo que em sua trajetória pelo corpo
entra no estômago, mas jamais em seu coração, que é o núcleo e centro
de todo seu ser (veja-se em 6:52), como pode tornar o homem poluído,
impuro ou corrupto?
19b. Às palavras de Jesus, Marcos acrescenta sua própria
observação. É a interpretação que o inspirado evangelista dá à expressão
de Jesus quanto à contaminação cerimonial versus a contaminação
verdadeira. E, assim, considerou ele puros todos os alimentos.
Na realidade o original não diz mais que: “declarando (ou: fazendo,
pronunciando) limpos todos os alimentos”. 324 Isto levantou a pergunta
sobre quem ou o que é que torna “limpos” os alimentos. Conforme o
veem alguns, é a latrina ou “lugar escuso” o que faz isto. 325 Com a
maioria dos expositores, parece-me que o que Marcos quer dizer é que
Jesus declarou todos os alimentos limpos mediante o princípio que
estabeleceu no versículo 15. As razões são como seguem:
a. É muito difícil compreender como uma latrina pode fazer ou
declarar todos os alimentos limpos.
b. A última vez que Marcos mencionou a Jesus pelo nome foi em
Mc. 6:30, mas por meio de um pronome (independente ou implícito de
alguma maneira verbal), fez referência a Jesus vez após vez (Mc. 6:31,
324
Com βρ_ματα cf. ambrosia: o alimento imaginário dos deuses gregos e romanos; também
ambrosial, “delicioso”.
325
Veja-se Lenski, Op. cit., pp. 188, 189. Mas Swete, Op. cit., p. 152, assinala com razão que tal
ponto de vista quase não merece consideração.
Marcos (William Hendriksen) 371
34, 35, 37, etc., e assim também em Mc. 7:1, 5, 6, 9, 14, 17, 18). Não é
natural supor que a referência do v. 19b é também a Jesus?
c. Se a opinião, amplamente apoiada, de que Marcos foi “intérprete
de Pedro” (veja-se Introdução, I) é correta, podemos supor então que a
própria experiência de Pedro registrada em Atos 10:9–16 e 11:1–18 (a
visão do lençol que descia com todo tipo de animais imundos) foi
incluída em sua pregação e relacionada com a expressão de Jesus que se
ordena em Marcos 7:15. Bem podemos crer que Marcos lembrou e
adotou a conclusão de Pedro como convicção própria, segundo nos é dito
em Marcos 7:19b. Não achamos acaso um eco de “assim (Jesus)
declarou limpos todos os alimentos” em Atos 10:15 (cf. 11:9), “O que
Deus limpou, não o chames comum (ou: imundo)”?
d. Se for Jesus quem declarou limpos todos os alimentos, então a
lógica é clara, porque em Marcos 7:15 é Ele quem declara que tudo o
que entra de fora no homem não pode contaminá-lo. Portanto, todos os
alimentos, incluindo a carne dos animais cerimonialmente “imundos”,
são em princípio não poluentes. Os intérpretes podem diferir quanto ao
momento exato em que, conforme à vontade de Deus, efetuou-se a
abolição das leis cerimoniais referentes ao limpo e ao impuro. Teve lugar
justamente agora, no momento em que Jesus pronunciou estas palavras?
Foi na crucificação de Jesus? (veja-se Cl. 2:14). Ou no dia do
Pentecostes? Qualquer que seja a resposta, a verdade é que, em
princípio, todos os alimentos foram declarados limpos nesta ocasião.
Depois de deixar claro o que não contamina, Jesus passa a afirmar
então (cf. v. 15b mais acima) o que realmente contamina uma pessoa.
Somente que desta vez combina todas as coisas poluentes dos versículos
15b, 21–23 num só pacote,
20. E dizia: O que sai do homem, isso é o que o contamina.
E o amplia acrescentando:
21, 22. Porque de dentro, do coração dos homens, é que
procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios,
Marcos (William Hendriksen) 372
326
os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a
blasfêmia, a soberba, a loucura.
Depois do dito a respeito do coração em Mc. 6:52, não é estranho
que Jesus o descreva aqui como a fonte dos sentimentos, aspirações,
pensamentos e ações humanas; no caso presente, de toda sua verdadeira
corrupção moral e espiritual.
Os termos 327 que Jesus usou desta vez para descrever os corruptivos
vícios que contaminam o homem, no Novo Testamento são distribuídos
como se vê no gráfico que damos mais abaixo.
É impossível detectar um agrupamento detalhado ponto por ponto.
Neste sentido, a passagem paralela do Mateus 15:19 É diferente. Ali,
depois da designação introdutória “más intenções”, e começando com
“homicídios”, a distribuição segue mais ou menos a sequência da
segunda tábua do Decálogo. Mas aqui em Marcos (Mc. 7:21, 22) tudo o
que com segurança podemos dizer é que primeiro ocorre o que se pode
considerar um cabeçalho: “as más intenções” 328 (ou: “sistemas”,
“maquinações”). Depois os primeiros 6 pecados estão no plural, e os
326
Literalmente: olho maligno.
327
Indo a palavras cognatas do idioma espanhol, pode-se descobrir imediatamente a maioria dos
significados gregos originais. Entretanto, para poder descobrir o significado exato de cada termo, é
necessário uma cuidadosa exegese — incluindo em cada caso o estudo do contexto e das passagens
paralelos. O estudo de cognatos e da derivação das palavras é muito útil. Entretanto, não é o mais
importante. Por exemplo, βλασφημία sugere “blasfêmia”; mas há muitos casos em que “blasfêmia”
não seria a tradução correta da palavra grega. Tendo presente esta advertência note-se o seguinte:
διαλογισμός diálogo
κακός cacofonia (som áspero, desagradável)
πορνεία pornografia (fotos que despertam desejos sexuais)
κλοπή cleptomaníaco (ladrão habitual)
φόνος pernicioso (mortífero, sanguinário)
πονηρία ações que revelam maldade moral e espiritual
_φθαλμός oftalmologista (médico de olhos)
βλασφημία blasfêmia
_φροσύνη carece dos órgãos próximos ao diafragma; em consequência, sem coração (e mente),
néscio.
Há outras palavras que também são fáceis de analisar; p. ex., πλεονεξία é o desejo pecaminoso de
sempre possuir cada vez mais; _περηφανία é pretender colocar-se sobre (_πέρ) outros.
328
Ο_ διαλογισμο_ ο_ κακοί = “as (ou: aquelas) maquinações, os perversos (ou: maus) planos”.
Marcos (William Hendriksen) 373
últimos 6 se conservam no singular. Os primeiros 6 descrevem ações
perversas; os 6 últimos os perversos impulsos e palavras que estão
relacionadas com tais ações afins.
Outras listas de vícios podem ser achadas em Rm. 1:18–32; 13:13;
1Co. 5:9–11; 6:9, 10; 2Co. 12:20; Gl 5:19–21; Ef. 4:19; 5:3–5; Cl. 3:5–9;
1Ts. 2:3; 4:3–7; 1Tm. 1:9, 10; 6:4, 5; 2Tim. 3:2–5; Tt. 3:3, 9, 10; 1Pe.
4:3; Ap. 21:8; 22:15.
Dizer que a lista de Marcos é paulina porque 8 dos 12 pontos se
acham também nas epístolas de Paulo (veja-se gráfico) é ir longe demais.
Não seria, antes, algo muito estranho se em mais de doze listas de vícios
que menciona Paulo não estivesse incluída a maioria de vícios
mencionados aqui em Marcos 7:21, 22? Além disso, naqueles dias, e
mesmo antes, tais listas de vícios eram populares. O livro apócrifo A
Sabedoria de Salomão 14:25ss. inclui os vícios 2, 3, 4, 7, e 8 da lista que
se acha em Marcos 7:21, 22. Os rolos do Mar Morto contêm também
listas semelhantes. 329 E a lista dos 12 vícios atribuída a Cristo aqui não
se parece muito com nenhuma lista dos escritos de Paulo (ou de Pedro,
etc.). Deve ter sido a própria lista de Cristo, reproduzida por Marcos e
abreviada por Mateus.
329
Veja-se M. Burrows, The Dead Sea Scrolls (Nova York, 1956), pp. 375, 386, 387.
330
A respeito de João 8:3 (μοιχεία), veja-se CNT sobre João.
Marcos (William Hendriksen) 374
5. Πλεονεξία (= cobiças): Mc. 7:22; Mt. 15:19; Lc. 12:15; Rm. 1:29; 2Co 9:5;
Ef. 4:19; 5:3; Cl. 3:5; 1Ts. 2:5; 2Pe. 2:3, 14.
6. πονηρίαι (= atos iníquos): Mc; 7:22; Mt. 22:18; Lc. 11:39; At. 3:26; Rm.
1:29; 1Co. 5:8; Ef. 6:12.
7. δόλος (= engano): Mc. 7:22; 14:1; Mt. 26:4; Jo. 1:47; At. 13:10; Rm. 1:29;
2Co. 12:16; 1Ts. 2:3; 1Pe. 2:1, 22; 3:10.
8. ἀσέλγεια (=luxúria): Mc. 7:22; Rm. 13:13; 2Co. 12:12; Gl 5:19; Ef. 4:19;
1Pe. 4:3; 2Pe. 2:2, 7, 18; Jd. 4.
9. ὀφθαλμὸς πονηρός (= inveja; literalmente: olho sinistro): Mc. 7:22; Mt.
20:15;
10. βλασφημία (= fala abusiva ou calúnia): Mc. 3:28; 7:22; 14:64; Mt.
12:31(2); 15:19; 26:65; Lc. 5:21; Jo. 10:33; Ef. 4:31; Cl. 3:8; 1Tm. 6:4; Jd.
9. Ap. 2:9; 13:1, 5; 17:3.
11. ὑπερηφανία (= arrogância): Mc. 7:22.
12. ἀφροσύνη (= insensatez): Mc. 7:22; 2Co. 11:1, 17, 21.
331
Ou: deixou aquele lugar e foi embora, etc.
332
O fato que _ναστάς poderia ser neste caso um particípio redundante dá apoio a esta alternativa.
Veja-se Vincent Taylor, Op. cit., p. 183, 348. Segundo seu parecer, 1:35 e 2:14 pertencem à mesma
classe. Isto é discutível, porque nestes dois casos a pessoa assinalada pelo particípio tinha estado
deitada (1:35) ou sentada (2:14), de modo que teria sido natural que se levantasse. Em 7:24 isto pode
ser também verdade. Jesus pôde ter estado sentado ensinando, o que à vista do v. 17 é uma boa
possibilidade, especialmente se há uma estreita relação cronológica entre o parágrafo precedente e
7:24ss. Mas visto que este ponto não pode demonstrar-se, talvez é melhor deixar lugar aqui para
qualquer das duas traduções.
Marcos (William Hendriksen) 385
ouvir Jesus e ser curados de suas doenças (Mt. 4:24, 25; Lc. 6:17). Nesta
ocasião é Jesus quem vai a eles.
Tendo entrado numa casa, queria que ninguém o soubesse.
Tinha a visita de Jesus um propósito missionário? Os expositores
diferem em suas conclusões:
a. Jesus não pensava em realizar um trabalho missionário naquele
lugar. Herodes Antipas tinha más intenções contra Jesus (Mc. 6:14, 16;
cf. Lc. 13:31). Os dirigentes judeus tramavam Sua morte. Muitas pessoas
O tinham deixado. Os Doze necessitavam instrução. O que fazia falta era
descanso e tranquilidade. De modo que entra numa casa. De algum
amigo? Não, ao que parece, de um estranho, com a esperança de obter
algum repouso sem interrupções, a fim de ter conversações confidenciais
com os Doze. 333
b. Jesus foi na direção noroeste aos limites da Fenícia em busca de
“um campo missionário mais frutífero”. 334
c. É inútil especular. 335
d. O desejo de Jesus era permanecer oculto por algum tempo. 336
Pode ser que haja algo de fato em todas estas respostas. Quanto à
resposta a., já se mostrou que ao menos um dos propósitos do Ministério
do Retiro era indubitavelmente instruir os Doze, prepará-los para o que
viria: Sua morte na cruz, Sua ressurreição. Quanto a b., é-nos difícil
imaginar o Cristo compassivo viajando toda essa distancia até a Fenícia
sem incluir em Seus planos outorgar uma bênção a seus habitantes.
Referente a c., é sem dúvida verdade que não se deu uma completa
e definitiva resposta a respeito. E para d., talvez Calvino tenha algo de
razão. É provável que Jesus desejasse estar a sós com Seus discípulos só
“no momento”, para seguir depois — veja-se b. — com a atividade
missionária (vejam-se vv. 34–38).
333
Veja-se A. B. Bruce, Op. cit., p. 390.
334
J. W. Russel, ed. Teacher’s New Testament with Notes and Helps (Grand Rapids, 1959), p. 102.
335
M. H. Bolkestein, Op. cit., p. 158.
336
João Calvino, Harmony, vol. II, p. 262.
Marcos (William Hendriksen) 386
“Mas não pôde esconder-se”. Sobre esta passagem têm sido
pregados muitos sermões. Por exemplo, usou-se o texto para dizer que
quando Cristo entra no coração de uma pessoa, logo se fará manifesto
por meio de palavras, ações e atitudes. Ou tem-se dito que toda tentativa
por relegar a Cristo a segundo plano vai rumo ao fracasso. Uma geração
poderá esquecer-se totalmente dEle, mas a seguinte O redescobrirá, etc.
Embora tudo isto seja de valor, tais pensamentos têm muito pouca
relação com a passagem em seu presente contexto. No momento, só é
necessário assinalar que devido ao fato de que alguns — talvez muitos
— fenícios tinham feito já contato com Jesus e/ou tinham ouvido a
respeito de Jesus, era-lhe impossível permanecer oculto por muito
tempo. É por isso que não durou muito este período de repouso ou retiro.
Ele mesmo, por causa de Seu grande amor pelos pecadores, permitiu que
conseguissem “descobri-Lo”. Aqui se repete o de Mc. 6:34.
25, 26. Porque uma mulher, cuja filhinha estava possessa de
espírito imundo, tendo ouvido a respeito dele, veio e prostrou-se-lhe
aos pés. Esta mulher era grega, de origem siro-fenícia, e rogava-lhe
que expelisse de sua filha o demônio.
Aparece em cena uma mulher. Não se diz uma palavra a respeito de
seu marido. Talvez era viúva, o que nos lembra um milagre realizado
séculos atrás nesta mesma região, milagre que alegrou o coração de outra
viúva (1Rs. 17). O que quer que seja, o fato é que uma das qualidades
que sobressai vez após vez nos Evangelhos, é a bondade de Cristo para
com as mulheres, incluindo por certo também as viúvas (Mc. 12:4–44;
cf. Lc. 21:1–4; veja-se também Lc. 7:11–18; cf. Sl 146:9; Pv. 15:25; Is.
1:17).
Agora, esta mulher era oprimida por uma grande tristeza. Tinha
uma filha 337 — Marcos meigamente diz “filhinha” 338 — a qual amava
337
Notem-se _ς … α_τ_ς, o que é perfeitamente natural ao tratar-se de um estilo vivo, o da
conversação, o estilo de Marcos.
338
Sobre diminutivos, veja-se Introdução IV, nota 5 h; veja-se também sobre 3:9, nota 108.
Marcos (William Hendriksen) 387
muito. Mas esta menina estava endemoninhada. Já tratamos a possessão
demoníaca, veja-se sobre 1:23; também CNT sobre Mt. 9:32–34.
Havia alguma esperança para esta mulher e para esta menina? Não
estaria fechada a porta da esperança para esta mãe por causa de sua raça?
Era grega, quer dizer, gentia de nascimento, uma mulher com
antecedentes pagãos. Era siro-fenícia, quer dizer, de nacionalidade
Fenícia, cujas principais cidades eram Tiro e Sidom. Diz-se “Siro-
Fenícia” porque pertencia à província da Síria, e para distingui-la de
Líbia-Fenícia na costa da África do norte.
Ela foi imediatamente e caiu aos Seus pés. Este ato de prostrar-se
era amostra de sua humildade, reverência, submissão, e ansiedade (cf.
5:22). Ela pediu vez após vez, importunando a Jesus para que libertasse
sua querida filhinha do demônio, daquele espírito imundo.
27. Mas Jesus lhe disse: Deixa primeiro que se fartem os filhos,
porque não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos.
No plano de Deus estava estabelecido que as bênçãos centralizadas
em Cristo teriam que ser oferecidas primeiro aos “filhos”, quer dizer, aos
judeus. A oportunidade de fartar-se com este alimento 339 era oferecida
primeiro a eles, logo aos gentios (cf. Mt. 22:1–10; At. 13:44–48; 18:6;
Rm. 1:17). Essa era a norma. Todo desvio importante desta norma
equivalia a tirar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos. Por certo
que os cães — mesmo os de companhia — não podem esperar ser
tratados como a filhos. A mulher devia saber disso a fim de compreender
que se seu desejo chegasse a ser concedido, sê-lo-ia pela via de exceção
e, portanto, seria um assinalado privilégio.
Era esta norma um tanto, sem exceções, ou era flexível? Eis aqui o
problema. Se era rígida e devia ser literalmente aplicada a todos aqueles
que não deviam sua descendência física a Abraão, então “apagadas —
apagadas as luzes — apagadas todas” (com o perdão de E. A. Poe), e
339
Sobre o verbo χορτάζω (aqui aor. inf. pas. Χορτασθ_ναι) , veja-se 6:42, nota 285.
Marcos (William Hendriksen) 388
esta mulher faria melhor em ir embora. No presente caso, lançar o pão
dos filhos aos cachorrinhos, não só seria impróprio ou inconveniente,
seria impossível.
Note-se, entretanto, que com isto Jesus já está entreabrindo a porta.
Ao dizer “Deixa primeiro que se fartem os filhos”, diz a esta afligida
mulher que Deus não perdeu completamente de vista os gentios. Ela bem
poderia começar a raciocinar: “Se há bênçãos para o dia de amanhã
entesouradas para os gentios, por que não as utilizar hoje mesmo …
embora fosse por via de exceção?”
A fé que Deus lhe tinha dado era forte o bastante para notar que
Jesus não a desprezava. Estava vencida pelo amor, a ternura e a atitude
compassiva que, até sob Sua aparente dureza, Jesus não podia ocultar,
28. Ela, porém, lhe respondeu: Sim, Senhor; 340 mas os
cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas das crianças.
Ao referir-se aos cachorrinhos, é como se Jesus oferecesse um dedo
a esta mulher, por assim dizer. Ela, pelo contrário, tomou a mão inteira.
Converte as palavras de aparente recriminação, “cachorrinhos”, 341 num
argumento otimista, e assim transforma uma iminente derrota numa
brilhante vitória. Parece como se dissesse: “Comparas-me com um
cachorrinho? Aceito o que nesta comparação se implica. Não só a aceito
mas também me alegro por ela, porque sem dúvida, sob a mesa, estes
cachorrinhos comem algumas das migalhas dos filhos”.
Alguns creem que a missão de Jesus em Sua vida terrestre estava
limitada totalmente e sem exceção alguma à nação judaica. Tal teoria
não tem apoio algum na evidência. O que diz Calvino é bem verdade:
“Em nenhum tempo, por certo, encerrou Deus Sua graça entre os judeus
de forma tal que não deixasse os gentios saborear algo dela”. 342
340
De acordo com outra leitura: “Bem, Senhor”, ou “Sim, Senhor”. Cf. Mt. 15:27.
341
τ_ κυνάρια. Deve rejeitá-la opinião de que no Novo Testamento um κύων é o mesmo que um
κυνάριον. Notem-se os contextos nos quais usa-se persistentemente a palavra κύων (Mt. 7:6; Lc.
16:21; Fp. 3:2; 2Pe. 2:22; Ap. 22:15). Contraste-se Mt. 15:26, 27; Mc. 7:27, 28.
342
Harmony, vol. II, p. 268.
Marcos (William Hendriksen) 389
Se o princípio anunciado por Jesus em Mateus 15:24, 26 e em
Marcos 7:27 não permitisse nenhuma exceção, e se tal norma fosse
inflexível, então, como teria sido possível que Jesus dissesse ao
centurião não judeu: “Vê, e como creste, seja-te feito”? Como teria dito
às pessoas que estava presente naquela ocasião, Digo-vos que muitos
virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugares à mesa com Abraão,
Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão
lançados para fora, nas trevas”? (Mt. 8:10–12). Além disso, como pôde
ter dito, “Na verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no
tempo de Elias, quando o céu se fechou por três anos e seis meses,
reinando grande fome em toda a terra; e a nenhuma delas foi Elias
enviado, senão a uma viúva de Sarepta de Sidom. Havia também muitos
leprosos em Israel nos dias do profeta Eliseu, e nenhum deles foi
purificado, senão Naamã, o siro? (Lc. 4:25–27). E como teria podido
dizer, “Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém
conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um
pastor”? (Jo. 10:16). E agora, como poderia ter outorgado Jesus a esta
mulher siro-fenícia sua petição? E finalmente, como pôde ele, depois de
partir de Tiro, ter curado as multidões, entre os quais haviam muitos
gentios, conforme está implícito em Mateus 15:31?
Nem sequer durante a antiga dispensação, as bênçãos especiais de
Deus ficaram limitadas exclusivamente aos judeus. Em grande parte,
sim. Isto se deve afirmar sem reservas (veja-se Sl 147:20; Is. 5:4; Am.
3:2), mas sem nenhuma exceção? Indubitavelmente que não (Lc. 4:25–
27).
Com a vinda de Cristo, as bênçãos que se outorgavam a Israel
foram em grau cada vez mais crescente destinadas a alcançar os gentios,
e isto era algo que Jesus certamente bem sabia. Quanto às profecias e,
em certos casos, seus cumprimentos explícitos, vejam-se Gn. 17:5 (cf.
Rm. 4:17); 22:18; 26:4; 28:14; Sl 72:8–10; Is. 11:10 (cf. Rm. 15:12);
28:16 (cf. Rm. 10:11); 54:1–3 (cf. Gl 4:27); 60:1–3; 65:1; e Os. 2:23
Marcos (William Hendriksen) 390
(para as três cf. Rm. 9:24, 25); Joel 2:32 (cf. Rm. 10:12, 13); Am. 9:11,
12 (cf. At. 15:15–18); Mq. 4:1–3; Ml. 1:11.
Geralmente nos referimos ao Pentecostes como o dia em que, em
virtude do derramamento do Espírito sobre toda carne, a igreja chegou a
ser internacional. Isto é correto. Entretanto, aquele grande acontecimento
foi prefigurado já na antiga dispensação, e certamente em escala um
tanto mais ampla durante o ministério de Jesus na terra, incluindo
também o período anterior à crucificação. A regra de Mateus 15:24, 26 e
Marcos 7:27 teve várias benditas exceções.
Assim podemos entender também que Jesus aprovasse
completamente a perseverança daquela mulher nas três graças cristãs de
fé, esperança, e amor: fé em Cristo, que é Aquele cujo “amor ultrapassa
todo conhecimento” (Ef. 3:19); esperança nAquele que não ia frustrá-la;
e amor para com quem, pelo próprio fato de negar-se a despedi-la, já
tinha indicado que embora ela O amava, Ele a havia amado primeiro.
29. Então, lhe disse: Por causa desta palavra, podes ir; o
demônio já saiu de tua filha.
Quando Jesus disse, “Por causa desta palavra”, quis dizer muito
mais que “O que acabas de dizer (v. 28) demonstra quão hábil e
engenhosa que és”. No fundo, elogiava-a por sua fé, a virtude
fundamental que se tinha expresso tão gloriosamente em sua esperança,
decidida e firmemente ancorada, e por seu amor, puro e quente.
É verdade que, segundo Mateus, Jesus disse, “Ó mulher, grande é a
tua fé!”, conquanto em Marcos O apresenta elogiando-a por sua
declaração (ou palavra). Entretanto, visto que mediante esta palavra, ela
manifestou sua fé, não existe diferença essencial.
Ela também manifestou sua fé de outra forma, ou seja, indo para
casa. Se não tivesse sido pelo fato de ter crido que Jesus tinha curado a
sua filha, não se teria apressado para ir para casa. Note-se, Jesus a curou
sem tê-la visto nunca, dando-lhe completa cura à distância [cf. Mt. 8:5–
13 (Lc. 7:1–10); Jo. 4:46–54].
Sua fé não se viu defraudada:
Marcos (William Hendriksen) 391
30. Voltando ela para casa, achou a menina sobre a cama, pois o
demônio a deixara.
A pequena achava-se repousando tranquilamente.
Havia paz em seu semblante e em seu coração, porque tudo estava
bem. O demônio foi embora. Tinha saído totalmente vencido e não
voltaria jamais. 343 A mãe estava cheia de regozijo; tinha “achado” ao
mesmo tempo uma filha sã e um Salvador maravilhoso!
Há duas lições práticas que não se nos devem escapar:
a. Se os pais de hoje amassem ao Senhor e a seus filhos como ela o
fez, quanto dano poderia evitar-se, e que grande abundância de bênçãos
resultaria!
b. Se uma mulher pagã de nascimento usou o pouco conhecimento
que tinha do Senhor com tantos resultados, quanto mais se requer
daqueles que receberam privilégios muito maiores?
31. De novo, se retirou das terras de Tiro e foi por Sidom até ao
mar da Galiléia, através do território de Decápolis.
Não se indica quanto tempo permaneceu Jesus nos arredores de
Tiro. Nem sequer se indica com exatidão o lugar por volta de onde agora
Se dirige. Entretanto, a situação não é tão insubstancial como alguns
desejariam que crêssemos. Sabemos o seguinte:
a. Jesus viajou passando por Sidom.
b. Partiu cruzando pelo centro de Decápolis.
c. Provavelmente chegou até o Mar da Galileia ou seus arredores
em geral. Cf. Mc; 7:31 com Mc; 8:10.
Veja-se o mapa para seguir sua possível rota; será de ajuda para
obter um panorama mais detalhado das dez cidades.
343
Note-se βεβλημένον e _ξεληλυθός, ambos os particípios perfeitos.
Marcos (William Hendriksen) 392
32. Então, lhe trouxeram um surdo e gago e lhe suplicaram [a Jesus]
que impusesse as mãos sobre ele.
Segundo os versículos 32, 36, 37, é evidente que Jesus está rodeado
de uma multidão. Mateus 15:29–31 descreve os muitos milagres
realizados entre aquela gente. De todos eles, Marcos seleciona somente
este, que só ele descreve. O verbo “trouxeram” é um plural impessoal. 344
Cf. “Lançar-te-ão dos homens”, no sentido de, “Serás expulso de entre
os homens” (Dn. 4:32).
O homem que levaram a Jesus sofria de uma dupla incapacidade.
Primeiro, era surdo. 345 Em segundo lugar, falava com dificuldade; no
melhor dos casos, gaguejava. Assim que as pessoas o levaram pediram a
Jesus que pusesse a mão sobre o homem. Isto é provavelmente o que
viram que Jesus fez em outros casos de curas (cf. 6:5). E esta não seria a
última vez que o Mestre o faria (cf. 8:23). Sem dúvida, pôr a mão sobre a
pessoa era algo bom. Não significava que algo que vinha dEle lhes era
transferido, ou ao menos aplicado? (veja-se 1Tm. 4:14; 5:22; 2Tm. 1:6);
e quanto à uma transferência francamente diferente, veja-se Lv. 16:21.
Mas aquela gente ia descobrir que o Mestre tinha Sua própria forma
de fazer as coisas. Por exemplo, quando Jairo lhe fez uma petição similar
(Mc. 5:23), viu como o grande Médico fazia algo distinto, algo talvez
mais expressivo, demonstrando um amor mais pessoal e tenro (5:41). E
assim seria no caso presente. Ao tratar com as pessoas, o Senhor escolhe
Seus próprios métodos. Naamã teve que aprender esta lição (2Rs. 5:10–
14). O próprio Jacó, muito antes (Gn. 42:36; 45:25–28). Igualmente José
e seus irmãos (Gn. 50:15–21). E assim, também, mais tarde, Paulo (2Co.
344
Como em alemão man, holandês men, francês on, e o espanhol se.
345
κωφός pode estar relacionado tanto falando (portanto, mudo; Mt. 9:32, 33; 12:22; 15:30, 35; Lc.
1:22; 11:14) como escutando (portanto, surdo; Mt. 11:5; Mc. 9:25; Lc. 7:22). Pelo fato de que outro
adjetivo indica qual era o defeito deste homem, resulta claro que no presente caso (Mc. 7:32, 37) o
significado deve ser surdo. A razão da ambiguidade de significado deve-se provavelmente ao sentido
básico da palavra, que está relacionada com κόπτω. Um dos significados deste verbo é cortar. Cf. as
palavras em português síncope, apócope, etc. Este cortar, embotar, gastar, pode afetar tanto ao falar
como ao ouvir.
Marcos (William Hendriksen) 393
12:7–10). Nunca devemos dizer a Deus os métodos que deveria usar para
responder nossas orações … nem onde deveria pôr a mão! Seu próprio
método é sempre o melhor. Ama as pessoas não só em multidões, mas
também individualmente. Seu coração Se comove não só diante de uma
multidão (Mc. 6:34), mas também diante de um homem, este homem em
particular, a quem trata de forma diferente à maneira em que trataria a
qualquer outro.
33, 34. Jesus, tirando-o da multidão, à parte, pôs-lhe os dedos
nos ouvidos e lhe tocou a língua com saliva; depois, erguendo os
olhos ao céu, suspirou e disse: Efatá!, que quer dizer: Abre-te!
Nótense estas seis acciones:
a. Jesus o levou à parte sozinho, longe da multidão. Fez isto
provavelmente para que o surdo e gago se sentisse menos incômodo (cf.
Mc. 5:37; Lc. 8:51) e pudesse concentrar toda sua atenção em seu
Benfeitor.
b. Pôs os Seus dedos nos ouvidos do homem. A menos que o
homem pudesse ler os lábios não lhe teria sido possível ouvir nenhuma
pergunta preliminar que Jesus lhe pudesse ter feito (cf. Mc. 10:51; cf.
Mt. 9:28). Assim que o Mestre decide o tratamento especial que este
surdo-mudo necessita. Jesus pensou: “É preciso fazer algo por seus
ouvidos … e o vou fazer”.
c. Jesus cuspiu, provavelmente em seu próprio dedo, e com o dedo
assim molhado tocou a língua do homem. 346 O significado era: “É
preciso fazer algo por sua língua … e o vou fazer”. Em apoio a esta
interpretação veja-se a passagem análoga de João 9:6 (com relação à
restauração da vista; e cf. Mc. 8:23).
d. Olhou ao céu, para indicar que Sua ajuda vinha de cima; em
outras palavras, que mediante a oração “se apegava” a Seu Pai celestial
(cf. Is. 64:7). Com relação a isto veja-se também Sl 25:15; 121:1; 123:1,
2; 141:8; 145:15; Jo. 11:41; 17:1; At. 7:55. Com relação às diferentes
346
Veja-se Lenski para um ponto de vista distinto; Op. cit., p. 196.
Marcos (William Hendriksen) 394
posturas para orar mencionadas nas Escrituras, consulte-se CNT sobre
1Tm. 2:8.
e. Suspirou. Veja-se também sobre Mc. 8:12. No Jesus de manifesta
bondade, isto era algo totalmente natural. Mostra que vivia intensamente
Sua condição de homem. Assim opina também Calvino sobre esta
passagem. As tristezas daquele homem eram também suas tristezas.
Jesus nunca operou pela metade quando curava alguém. Sempre pôs tudo
o que Ele era em Sua obra de misericórdia. Veja-se Mt. 8:17; 9:36;
14:14; 15:32; 18:27; 20:34; Mc. 1:41; 6:34; Lc. 7:13; 8:46; Jo. 11:33;
Hb. 4:14–16. cada uma destas passagens deve ser cuidadosamente
considerada.
f. Disse, “Efatá!” Também isto era natural nEle, porque o aramaico
era a língua materna do Mestre. 347 Pensando em seus leitores não judeus,
Marcos traduz o termo: “Abra-te”. 348
Provavelmente era aplicável a todo o homem: tanto ouvidos e
língua, como recepção e resposta.
35. Abriram-se-lhe os ouvidos, e logo se lhe soltou o empecilho
da língua, 349 e falava desembaraçadamente.
Seus ouvidos se abriram completamente. Isto sucedeu
instantaneamente. Talvez ouviu a própria palavra Efatá enquanto o
Senhor a dizia. 350
347
Ultimamente se debateu sobre si a palavra “Efatá” é na realidade arameia. Quanto a evidência que
apoia a teoria do aramaico, veja-se S. Morag, “Ephphatha (Mr. 7:34): Certainly Hebrew, not
Aramaic?” JSS 17 (2, 1972), pp. 198–202.
348
διανοίχθητι aor. imper. pas. 2ª. pes. sing. de διανοίγω.
349
Ou, com NVI, “Lhe destravou a língua …”.
350
Jesus usa uma palavra em aramaico. É isto prova conclusiva de que o homem era judeu?
Naturalmente que pôde havê-lo sido, visto que nesta região predominantemente gentílica havia muitos
judeus. Por outro lado, os judeus não eram as únicas pessoas bilíngues, nem as atividades de Cristo
excluíam absolutamente aos não judeus. Veja-se mais acima sobre 5:13, nota 194 e sobre 7:27, 28. É
evidente por Mt. 15:31 que muitos dos que foram curados durante este período eram gentios. Veja-se
CNT sobre essa passagem. Mas o ponto principal desta história não se centraliza no fato de que este
homem em particular fosse gentio ou judeu.
Marcos (William Hendriksen) 395
351
Os ouvidos se abriram. sua língua foi libertada. Mais
352
literalmente, “a atadura” — quer dizer, qualquer coisa que fosse que
impedia a língua de funcionar corretamente — de uma só vez se soltou,
de modo que, repentinamente, aquele que antes balbuciava ou gaguejava
agora falava distintamente, claramente. A menção de todos estes
diversos vivos detalhes mostra que Marcos transmite a história de uma
testemunha ocular (provavelmente Pedro).
36. Mas [Jesus] lhes ordenou que a ninguém o dissessem.
A princípio esta proibição parece algo estranha, e é assim por duas
razões: a. Jesus não está na Judeia entre os inflamados inimigos que
decidiram matá-Lo; na realidade, não está nem sequer no lado ocidental
do mar da Galileia; e b. Sendo este o caso não esperaríamos que o
Mestre tivesse mandado o homem proclamar por toda Decápolis quão
grandes coisas o Senhor fez por ele? Não foi exatamente isto o que
sucedeu anteriormente no caso de outra pessoa que pertencia a esta
região, um homem angustiosamente necessitado de ajuda, que logo foi
bondosa e totalmente restabelecido? Veja-se 5:19, 20.
Talvez seja impossível chegar a uma solução completamente
satisfatória. Há, entretanto, duas considerações que podem ser de ajuda.
Em primeiro lugar, tinha passado bastante tempo do evento relatado em
Marcos 5:1–20. Não restam muitos dias, e os inimigos estão ainda mais
decididos a dar morte a Jesus. Entretanto, o programa que o Pai preparou
para o Filho deve ser levado a cabo em sua totalidade. Não se deve
351
_νοίγησαν aor. pas. 3ª. pes. pl. de _νοίγω (forma alterativa de _νοίγνυμι). Esta é a única vez que
aparece o verbo em Marcos. No resto do Novo Testamento encontra-se mais com frequência em
Mateus, João, Atos e Apocalipse. Uns poucos exemplos: abrindo tesouros (Mt. 2:11), os céus (3:16), a
boca (5:2; 13:35; 17:27), uma porta (7:7, 8; cf. 25:11, At. 5:19; 12:10; 16:26ss.; Ap. 4:1), os olhos
(Mt. 9:30; 20:33), tumbas (27:52), um selo (Ap. 6:1). Note-se também o uso metafórico em 1Co. 16:9;
2Co. 2:12; Cl. 4:3.
352
_ δεσμός, cf. δέω amarrar, atar; cf. diadema. Nas epístolas, o plural deste substantivo refere-se a
“cadeias, prisões”. Pode ter referência literalmente a correntes, prisões ou cadeias (Lc. 13:16; At.
16:26; 23:29), mas também a todas as penalidades do encarceramento (At. 20:23; 23:29; 26:31; Fp.
1:7, 13, 14, 17; Cl. 4:18; Fm. 10, 13). Correntes e cadeias estão tão intimamente relacionados que não
é sempre fácil decidir a melhor tradução. Mas “prisões” pode servir para ambos os conceitos.
Marcos (William Hendriksen) 396
esgotar antes do dia da crucificação. Também, à medida que esse dia
aproxima-se, Jesus vai pôr mais ênfase no significado espiritual e
redentor de Sua missão (veja-se 10:45; 14:24). Ele não veio para este
mundo para ser um Taumaturgo (praticante de milagres) mas o Salvador.
Isto é o que requer maior ênfase, agora mais do que nunca.
Mas não obedeceram o encargo: contudo, quanto mais
recomendava, tanto mais eles o divulgavam. 353 A intensidade e
frequência da desobediência levava o mesmo ritmo da intensidade e
frequência do encargo: ambos iam de mãos dadas. 354 Aqui se manifesta
claramente a obstinação e perversidade da natureza humana. Lembra-nos
uma mãe que sabia que a única forma de obter que Joãozinho fosse
comprar o que ela desejava era lhe dizendo: “Não te atreva a ir ao
armazém para me trazer dois quilos de açúcar!”. As crianças passam por
um jardim de maçãs cem vezes sem tentar tomar uma das maçãs dos
ramos ao seu alcance. Mas se há um letreiro que diz “Proibido entrar no
jardim”, e se verá que os bolsos das crianças começam a encher-se de
maçãs. Não fala Mark Twain das piscinas que nos eram proibidas e,
portanto, as mais frequentadas …”? Entretanto, aquelas pessoas que
resolutamente desobedeceram o mandato de Cristo não eram crianças. A
maioria eram adultos. Não havia desculpa alguma para a desafiante e
persistente desobediência à ordem específica e repetida de Jesus; nem
sua admiração pelo que Jesus fez podia servir de expiação para sua
conduta recalcitrante.
Eles, entretanto, mostraram sua admiração:
37. Maravilhavam-se sobremaneira, dizendo: Tudo ele tem feito
esplendidamente bem; não somente faz ouvir os surdos, como falar
os mudos.
353
Quanto ao verbo διαστέλλω, veja-se mais acima sobre 5:43, nota 219, “proibir, encarregar que
não”. Note-se como aqui em 7:36 usa-se a forma do aoristo, logo o imperfeito. Note-se os dois
imperfeitos correspondentes: encarregava-lhes … publicavam (ou: proclamavam).
354
μ_λλον περισσότερον duplo comparativo com o fim de acrescentar maior ênfase. Cf. Fm. 1:23.
Marcos (William Hendriksen) 397
Os versículos 36, 37 mostram que se necessita algo mais que
admiração e entusiasmo para ser um verdadeiro seguidor de Cristo.
Muitos admiradores de Cristo se perderam. A verdadeira marca do
discipulado está revelada em Jo. 15:14, “Vós sois meus amigos, se fazeis
o que eu vos mando”. Cf. Jo. 8:31, 32. Esta gente estava fazendo
justamente o oposto.
Não obstante, as obras de Jesus eram tão maravilhosas que até
aquela gente desobediente estava atônita, fora de seus sentidos (cf. 1:22;
6:2), e isto, “sobremaneira”, até o ponto que não puderam reter a
exclamação: “Tudo ele tem feito esplendidamente bem.” Fixavam-se
especialmente no fato de que os que anteriormente tinham sido surdos
agora ouviam, e os que antes não podiam falar, agora falavam. 355 Isto
mostra também que Marcos estava consciente de que o evento que acaba
de relatar era só um entre muitos, coisa que Mateus afirma
explicitamente em sua passagem paralela.
Sobre tudo, não devemos passar por alto que através do evento
descrito aqui (Mc. 7:31ss) e por outros parecidos, as profecias se
estavam cumprindo. Veja-se Is. 35:5, 6.
“Tudo ele tem feito esplendidamente bem.” Em seu comentário, R.
A. Cole chama a atenção de forma muito acertada ao fato de que todas as
obras da criação são perfeitas. 356 Não só Deus viu que eram boas (Gn.
1:4, 10, 12, 18, 21, 25, 31), e sim nesta ocasião (Mc. 7:37) também o ser
humano o viu.
355
Note-se o jogo de palavras: _λάλους … λαλε_ν.
356
Op. cit., p. 125.
Marcos (William Hendriksen) 398
Resumo do Capítulo 7:24–37
357
Se tiramos do relatório de Marcos em Mc. 8:1–3 as palavras introdutórias, “Naqueles dias, quando
outra vez se reuniu grande multidão, e não tendo eles o que comer”, e a cláusula final, “e alguns deles
vieram de longe”, o que resta é quase exatamente idêntico:
Mateus : “Jesus chamou seus discípulos e lhes disse: -Meu coração se compadece pela multidão,
porque já levam três dias comigo e não têm o que comer. Não quero despedi-los sem comer, não seja
que desfaleçam no caminho.”
Marcos: “Naqueles dias, quando outra vez se reuniu grande multidão, e não tendo eles o que comer,
chamou Jesus os discípulos e lhes disse: Tenho compaixão desta gente, porque há três dias que
permanecem comigo e não têm o que comer. Se eu os despedir para suas casas, em jejum,
desfalecerão pelo caminho”
A resposta quase desesperada de Seus discípulos é também praticamente idêntica. Excetuando a
transposição de duas palavras no original, a pergunta de Jesus que imediatamente segue, “Quantos
pães tendes?” é de novo idêntica. Em Mateus a resposta é, “Sete, e uns peixinhos”. Marcos introduz os
peixinhos um pouco mais adiante (8:7), como um detalhe de seu próprio relatório e não indiretamente
como informação proporcionada pelos Doze. Ambos os evangelistas relatam com linguagem quase
idêntica que Jesus ordena as pessoas a acomodar-se no solo. O resto da história é também muito
parecido em Mateus e Marcos. Mateus sublinha o fato de que os quatro mil eram homens, e depois de
mencionar os quatro mil, acrescenta: “sem contar as mulheres e as crianças”. Finalmente, o último
ponto em ambos os casos indica que Jesus Se despediu da multidão e entrou no barco. Entretanto, aqui
Marcos acrescenta “com seus discípulos”, e identifica o lugar onde chegam como Dalmanuta,
conquanto Mateus o chama Magadã.
358
Ou: convocou a seus discípulos.
359
Ou lit.: comovo-me em minhas vísceras pela multidão.
Marcos (William Hendriksen) 401
três dias que permanecem comigo e não têm o que comer. Se eu os
despedir para suas casas, em jejum, desfalecerão pelo caminho; e
alguns deles vieram de longe.
Não se faz menção de viagens que se tivessem realizado entre o
evento precedente (Mc. 7:31–37) e este (Mc. 8:1–10), embora pôde
havê-los. Mas visto que a “região deserta” mencionada em Mc. 8:4,
facilmente pôde ter sido Decápolis, perto da costa oriental do mar da
Galileia (7:31), é razoável a conclusão de que Jesus ainda Se achava, ou
estava outra vez, em ou perto do mesmo lugar onde curasse o homem
surdo-mudo.
Outra vez “uma grande multidão”. Este “outra vez” pode referir-se
a Mc. 7:33 (cf. Mt. 15:30, 31) ou a Mc. 6:31–34, 44, 55, 56. Poderia
referir-se inclusive a toda a série de multidões já mencionadas por
Marcos (Mc. 1:33, 45; 2:2–4, 13; 3:7–10, 20, 32; 4:1, 36; 5:21, 27, 31,
etc.), como se fosse dito, “outra vez” como foi com frequência
anteriormente.
Não tinham o que comer. 360 Tão magnética era a presença de Jesus,
tão maravilhoso era em palavra e obra, que os que O rodeavam sentiam
que era quase impossível deixá-Lo.
O Mestre fala com Seus discípulos no meio desta situação. Embora
anteriormente, durante o ministério no retiro, o Senhor não Se apartou
totalmente da multidão, agora um de Seus principais objetivos é ensinar
os Seus discípulos. Não obstante, sua preocupação pela multidão é
evidente, e se demonstra pelas palavras mesmas que dirige aos Doze:
“Meu coração se compadece pela multidão”. Outra tradução
igualmente válida é “Tenho compaixão da multidão”. Acaso não tinha
experimentado pessoalmente as dores da fome? (veja-se Mt. 4:2; cf. Hb.
4:15, 16). Note-se o que Marcos contou anteriormente (Mc. 1:41) a
respeito da tenra, comovedora, profunda e intensa compaixão de Jesus,
360
Note-se o genitivo absoluto que chega até μ_ _χόντων. O particípio _χόντων é pl. porque _χλος,-ου
é um substantivo coletivo. Quanto a φάγωσιν (que é aor. subj. 3ª. pes. pl. de _σθίω; cf. esôfago), pode-
se entender melhor como um subjuntivo deliberativo que se retém na pergunta indireta.
Marcos (William Hendriksen) 402
compaixão que se expressava não só em palavras mas também em atos.
Neste caso, o que produziu este sentimento e esta efusão de compaixão,
foi que toda aquela gente tinha estado com Jesus desde há três dias, e
tudo o que pudessem ter tido quando chegaram, consumou-se totalmente.
Se os tivesse despedido em tais condições teriam desacordado no361
caminho. Isto se agravava porque alguns, segundo o relato de Marcos,
tinham vindo “de muito longe”.
É evidente que Jesus sentia muita compaixão e que também
desejava que Seus discípulos participassem deste sentimento. Não Se
dirige a eles neste momento porque ignora o que se deve fazer. Acaso
não foi Ele quem anteriormente fez-se cargo de uma situação similar?
(veja-se Mc. 6:30–44). Além disso, não se pode aplicar aqui também
João 6:6, que diz: “Porque ele sabia o que devia fazer”? O Mestre fala
com Seus discípulos com o propósito de despertar seu sentido de
responsabilidade. Os Doze deviam tomar o grave problema da multidão
tão seriamente que chegassem a dizer, “Este é nosso próprio problema.
Nós devemos fazer algo a respeito. Pode-se ser um verdadeiro seguidor
de Cristo sem ter compaixão?
O mínimo que os Doze podiam e deviam ter feito era pedir ao
Mestre que repetisse o que antes tinha realizado, e logo dizer à multidão
que a ajuda estava próxima. Pelo versículo 4 é evidente que falharam
nisso.
4. Mas os seus discípulos lhe responderam: Donde poderá
alguém fartá-los de pão neste deserto? 362
Esta região do este ou sudeste do mar da Galileia era um lugar
desolado, um verdadeiro deserto. A cena no caso da alimentação dos
cinco mil era algo mais favorável, porque ali era possível comprar nas
granjas dos arredores e nas aldeias próximas (6:36), mas não era essa a
situação aqui. Sem Jesus e Seu poder para realizar milagres, aquela
361
_κλυθήσονται, fut. ind. pas. 3ª. pes. pl. de _κλύω. Na voz passiva significa: perder forças, debilitar-
se; daí, debilitar-se até o ponto de esgotamento total; paralisar.
362
Ou: desolado.
Marcos (William Hendriksen) 403
região não tinha valor algum como fonte para conseguir alimentos. E
embora pareça estranho, os discípulos não tinham tomado a sério a lição
que deviam ter aprendido. Por isso falaram daquele modo, e disseram
que naquela região desolada seria totalmente impossível encontrar pão,
especialmente conseguir tanto para satisfazer a necessidade daquela
enorme multidão.
Surpreende que Jesus nem sequer lhes repreende. Em lugar disto,
5. E Jesus lhes perguntou: Quantos pães tendes? Responderam
eles: Sete.
O Senhor queria que gravassem este número firmemente em sua
mente, para que jamais o esquecessem. Se sabiam exatamente quão
inadequada e mísera (humanamente falando) era a provisão disponível, o
milagre ressaltaria de maneira muita mais notável. Um pouco mais
adiante (veja-se 8:19, 20) Jesus os faria lembrar novamente os números
que caracterizam estes dois milagres: 5; 5.000; 12; e 7; 4.000; 7.
6, 7. Ordenou ao povo que se assentasse no chão. E, tomando os sete
pães, partiu-os, após ter dado graças, e os deu a seus discípulos, para que
estes os distribuíssem, repartindo entre o povo. Tinham também alguns
peixinhos; e, abençoando-os, mandou que estes igualmente fossem
distribuídos.
Note-se o seguinte:
a. Jesus ordenou às pessoas que se sentassem no solo, não na erva
verde, como em Mc. 6:39. Já estava avançada a estação.
b. “Sete pães”. Não se tratava de “pão regular” como poderíamos
pensar, mas de uma espécie de torta fina que se podia quebrar facilmente
em pedaços para comer.
c. Jesus “deu graças” (veja-se a explicação de Mc. 6:41, 42). Na
presente narração aparece o mesmo uso intercambiável de dois verbos
gregos: Mateus diz “tendo dado graças” (assim literalmente, Mt. 15:36);
Marcos tem no versículo 6 “tendo dado graças”, e no versículo 7 “tendo
abençoado”. Ambos podem traduzir-se “tendo dado graças” ou “depois
que teve dado graças”.
Marcos (William Hendriksen) 404
d. Marcos deixa a clara impressão de que Jesus dá graças duas
vezes: pelo pão e logo pelos peixes. Embora Mateus não o diz assim, não
há nada na narração que suponha uma contradição.
e. Observe-se a forma tão gráfica em que se descreve o que Jesus
fez com os pães (tanto em Mateus como em Marcos); “partiu-os e se
manteve dando-os …”.
f. Literalmente, Marcos afirma que Jesus Se manteve dando os
pedaços a Seus discípulos “para pô-los diante, e eles os puseram diante
da multidão”. Mateus narra o mesmo fato assim, “… e os discípulos
(seguiam-nos dando) às pessoas”. Exatamente no que momento ocorreu
o milagre? ”Em suas mãos”, quer dizer, enquanto partia pedaços
adaptados e os dava a seus discípulos? Isto é o que provavelmente
sucedeu, embora não se afirme explicitamente.
g. Marcos sublinha que o que ocorreu com o pão também sucedeu
com uns poucos peixinhos — mais de dois; compare-se Mc. 6:38. O
“peixe preparado” era um prato regular que acompanhado com pão
nunca faltava numa região onde o peixe abundava.
A descrição detalhada do ocorrido, ponto por ponto, mostra que
atrás destas narrações estava a observação de uma testemunha ocular.
Mateus esteve ali e relatou em seu Evangelho o que ele mesmo tinha
visto. Isto em nenhuma maneira exclui a possibilidade — incluso
probabilidade — de que antes de consignar seus pensamentos por
escrito, teria lido o escrito por Marcos. Este tinha escutado a história dos
lábios de outra testemunha ocular, ou seja, Pedro.
8. Comeram e se fartaram; 363 e dos pedaços restantes
recolheram sete cestos.
Tome-se nota dos doze cestos de pedaços que se recolheram quando
teve lugar a alimentação dos cinco mil, em comparação com os sete
cestos cheios com os pedaços que se recolheram nesta ocasião. A
distinção entre as duas palavras usadas no original se mantém
363
Ou: Comeram quanto quiseram.
Marcos (William Hendriksen) 405
coerentemente no Novo Testamento; isto é, em relação ao que sobrou da
alimentação dos cinco mil, o Novo Testamento usa sempre uma mesma
palavra (Mt. 14:20; 16:9; Mc. 6:43; 8:19; Lc. 9:17; Jo. 6:13); e com
relação ao que sobrou da alimentação dos quatro mil, sempre usa a outra
(Mt. 15:37; 16:10; Mc. 8:8, 20). 364 O cesto usado no caso da alimentação
dos quatro mil era provavelmente maior. Assim parece deduzir do fato
que um cesto parecido foi o bastante grande para conter a Paulo e baixá-
lo de um muro (At. 9:25).
9. Eram cerca de quatro mil homens. Então, Jesus os despediu.
Mateus nos informa que além destes quatro mil havia mulheres e
crianças. Depois de ter satisfeito a necessidade espiritual (tinha estado
com eles durante três dias!) e física da multidão, Jesus os despede, e Ele
também vai embora:
10. Logo a seguir, tendo embarcado 365 juntamente com seus
discípulos, partiu para as regiões de Dalmanuta.
Há razões para crer que Dalmanuta estava situada ao sul da planície
de Genesaré, no lado sudoeste do mar da Galileia. Nesta localidade se
achou uma cova que tinha o nome da Talmanuta”. Não sabemos se o
Magadã de Mateus era simplesmente outro nome para o mesmo lugar ou
o nome de um lugar próximo.
É o relato da alimentação dos quatro mil quase uma repetição do
milagre anterior, de tal maneira que se fosse omitido, nada teríamos
perdido? Claro que não. Há dois pontos adicionais que agora ficam
esclarecidos: a. Jesus é capaz não só de realizar obras poderosas mas
também de repeti-las; e b. manifesta Sua compaixão não só pelo povo da
364
As duas palavras são κόφινος, “cesto de vime”, e σπυρίς, “cesto de vime maior, cesto”.
365
Podia tratar-se da mesmo barco que antes (Mc. 6:32) havia trazido a Jesus e aos Doze à ribeira
oriental do lago. Entretanto, esta barco tinha voltado para a ribeira ocidental (Mc. 6:54). Levou-a
posteriormente de volta algum seguidor de Jesus ao lado oriental para voltar o a usar? Ou se efetuou
pelo menos outra travessia a qual Marcos não faz menção? Cf. Jo. 20:30, 31; 21:25. Outra
possibilidade seria que em 8:10 traduzíssemos simplesmente “de navio”. Veja-se também em 6:32.
Em 8:10 alguns manuscritos omitem inclusive τό diante de πλο_ον. Devemos dar espaço a todas estas
possibilidades.
Marcos (William Hendriksen) 406
aliança, mas também inclusive pelos alheios a ela. Quanto a que este
território era predominantemente gentílico, veja-se CNT em Mateus
15:31.
366
Quanto ao significado de σημε_ον, veja-se CNT sobre João 2:11 e nota 56. K. Kohler Jewish
Encyclopedia (Nova York e Londres, 1916), Vol. VIII, p. 606, não provê provas de por que rejeita o
que diz Paulo em 1Co. 1:22.
367
Para _ρξαντο, veja-se sobre 1:45; 6:7, nota 233. No caso presente, o auxiliar pode não ser mais
“redundante” ou “pleonástico” que em linguagem similar de hoje em dia; p. ex., “começou a discutir
comigo”, significando provavelmente que depois de uma pausa começou a discussão.
368
Embora συζητέω tem às vezes um significado mais suave — falar (entre si), perguntar-se (1:27,
9:10) — o contexto presente mostra que aqui o significado é arguir, disputar; como o é também em
9:14,16.
Marcos (William Hendriksen) 407
incluindo o da multiplicação dos pães? Era isto o que havia realimentado
sua persistente inveja? Tentavam convencer-se que o que sucedeu em
Decápolis não era um verdadeiro sinal da grandeza de Jesus. Afinal de
contas, o que Ele havia proporcionado era mero pão terrestre, “não pão
do céu”, como Moisés o fez. Que Ele produza “um sinal do céu”! Sim,
que faça o que Moisés fez (Êx. 16; cf. Jo. 6:32). Ou como Josué, que Ele
faça com que o sol e a lua se detenham (Js. 10:12–14). Que repita o que
fez Samuel (1Sm. 7:10), ou Elias (1Rs. 18:30–40; cf. Tg. 5:17, 18). Se
Jesus fizesse alguma destas coisas ou algo de caráter sensacional, teriam
atribuído esse sinal ao poder de Belzebu! Veja-se Lc. 16:31.
Seu propósito era tentar a Jesus para O induzir a realizar tais sinais.
Esperavam que buscasse fazê-lo e que fracassaria, e assim perderia Seu
prestígio publicamente.
12. Jesus, porém, arrancou do íntimo do seu espírito um gemido
e disse: Por que pede esta geração um sinal? Em verdade vos digo
que a esta geração não se lhe dará sinal algum.
Note-se o seguinte:
a. suspirando profundamente. Jesus tinha enchido a região com
“provas indubitáveis” (cf. At. 1:3) de que sem dúvida era Aquele a quem
o Pai tinha enviado, conforme a predição dos profetas. Estes sinais
tinham sido de vários tipos: restabelecer os aleijados, curar os doentes,
purificar os leprosos, acalmar as ondas, alimentar os famintos e inclusive
ressuscitar os mortos. Pedir ainda mais sinais era, evidentemente, um
insulto. Implicava que os milagres já realizados eram credenciais
insuficientes. Não é de estranhar que Jesus recebesse esta petição de
outro sinal com um profundo suspiro 369 em Seu espírito. Profundo
porque a dureza de coração revelada naquela demanda O feriu
dolorosamente.
369
O original tem _ναστενάξας, part. aor. de _ναστενάζω; no Novo Testamento se acha somente aqui.
Para a forma simples στενάζω, veja-se mais acima sobre 7:34. A forma usada aqui em 8:12 é
perfectiva em significado: suspirar profundamente. Com o verbo στενάζω cf. retumbante; alemão
stöhnem, holandês steunen.
Marcos (William Hendriksen) 408
b. em seu espírito. A angústia que Jesus experimentava provinha de
seu ser mais íntimo. Aqui a palavra “espírito” usa-se num sentido não
muito diferente ao de “coração” ou “ser interior”. 370 Assim também em
Mc. 2:8; cf. 14:38.
c. esta geração. Jesus fica perplexo e perturbado de que os fariseus,
muitos de seus seguidores e uma grande parte de seus contemporâneos
370
Num estudo inédito que este autor fez dos conceitos ψυχή e πνε_μα, estabeleceram-se as seguintes
conclusões depois de examinar cada palavra à luz do contexto em cada lugar do Novo Testamento
onde aparece.
Na totalidade do Novo Testamento, ψυχή aparece 100 vezes, πνε_μα mais de 370 vezes. Alguns
querem ver uma diferença entre ambas as palavras, mas é totalmente impossível traçar uma distinção
exata, como se no Novo Testamento ψυχή tivesse sempre um significado e πνε_μα outro. É verdade
que quando o apóstolo Paulo pensa na parte invisível do ser humano em sua relação com Deus,
geralmente usa a palavra πνε_μα. Entretanto, no Novo Testamento como um todo há um alto grau de
superposição de significados. Nunca devemos dizer, “No Novo Testamento ψυχή é a parte invisível
do homem que dá vida ao corpo, conquanto πνε_μα é essa mesma entidade imaterial vista em sua
relação com Deus”. O tema é muito mais complexo do que indica esta generalização. Por exemplo, o
equivalente grego para alento pode ser tanto ψυχή (At. 20:10) como πνε_μα (2Ts. 2:8). Similarmente,
o conceito de vida, com ênfase no físico, pode-se expressar quer seja por πνε_μα (Lc. 8:55) ou por
ψυχή (Mt. 2:20). Não só se pode provocar ao πνε_μα (At. 17:16), também se pode incitar a ψυχή (At.
14:2). O πνε_μα alegra-se em Deus (Lc. 1:47), mas da ψυχή também diz-se que engrandece ao Senhor
(Lc. 1:46). Um ser incorpóreo pode ser um πνε_μα (Hb. 12:23), mas também pode ser uma ψυχή (Ap.
6:9). Por outro lado, quando a referência é ao Espírito Santo, a palavra usada é sempre πνε_μα, com
ou sem modificativo (Mc. 1:8–12; 3:29; 12:36; 13:11; Lc. 1:5, etc.). Um espírito imundo é um πνε_μα
_κάθαρτον (Mc. 1:23, 26, etc.). Às vezes usa-se um sinônimo (Mc. 9:17, 25). A palavra πνε_μα pode
inclusive indicar uma atitude: “espírito de mansidão” (1Co. 4:21). Por outro lado, quando faz-se
referência à pessoa como um todo, sempre usa-se ψυχή (Mc. 10:45; cf. 1Tm. 2:6). Nestes casos, ψυχή
poderia ter sido substituído por um pronome pessoal, e de fato muitas vezes a passagem paralela usa
um pronome pessoal. Este significado de ψυχή está provavelmente influenciado pelo hebraico. A
pessoa assim entendida, pode considerar-se sob um duplo aspecto. Veja-se sobre Mc. 8:35–38.
Sendo que existem estas distinções, mas também muitas áreas comuns, é impossível estabelecer regras
rígidas. Talvez pode-se dizer que em geral πνε_μα ressalta a atividade mental, e ψυχή a emocional. É
o πνε_μα aquele que percebe (Mc. 2:8), planeja (At. 19:21) e conhece (1Co. 2:11). É a ψυχή a que
está triste (Mt. 26:28). O πνε_μα ora (1 Cor. 14:14), a ψυχή ama (Mc. 13:20). Além disso, ψυχή tem
com frequência um âmbito mais amplo, indicando a soma total da vida que se eleva sobre o físico,
enquanto que πνε_μα é mais limitado. Com frequência, mas de modo algum sempre, πνε_μα indica o
espírito humano em sua relação com Deus, a autoconsciência ou personalidade do homem considerada
como o sujeito em atos de adoração ou em atos relacionados com a adoração, tais como orar, dar
testemunho, etc. Mas, repetimos, não se pode estabelecer uma regra rígida ou fixa. Cada ocorrência
deverá interpretar-se à luz da origem da passagem particular em que aparece, e à luz de seu contexto
específico e das passagens paralelos.
Marcos (William Hendriksen) 409
demandassem sinais. Em passagens tais como Marcos 8:12, 38; 9:19, o
termo “geração” refere-se às pessoas entre a qual alguém vive. Falando
em termos gerais, especialmente a gente do lado ocidental do mar da
Galileia era judia, embora isto não recebe ênfase no presente caso. Não é
raro que ao sublinhar-se as características nacionais ou raciais, a palavra
“geração” adquira o significado da nação ou povo judeu” como em
13:30; cf. Mt. 24:35.
d. em verdade vos digo. Veja-se sobre Mc. 3:28. Também aqui em
Mc. 8:12, esta solene introdução conduz à uma declaração que merece
muito especial consideração.
e. não se lhe dará sinal algum. 371 À luz da passagem paralela (Mt.
16:4) o significado é, “Não se lhes dará de modo algum nenhum sinal
como o que vós demandais” (veja-se CNT sobre Mt. 16:4). A
ressurreição triunfante de Jesus dentre os mortos, prefigurada pela
experiência de Jonas (Jon. 1:17; 2:10), marcaria a condenação de todos
os fariseus de coração endurecido. Quanto ao sinal que eles pediam
agora, Jesus lhes assegura que não o receberão absolutamente. 372
13. E, deixando-os, tornou a embarcar e foi para o outro lado.
Ficam abandonados ao destino que eles, pela dureza de seu coração,
escolheram para si mesmos.
371
δοθήσεται fut. ind. pas. 3ª. pes. sing. de δίδωμι.
372
O original diz literalmente, “Solenemente lhes declaro, se deve-se dar a esta geração um sinal …”.
A conclusão ou apódose fica sem expressar-se. Isto nos lembra um modismo subjacente ilustrado no
2Sm. 11:11, “Por tua vida, e por vida de sua alma, se (Hb. ‘im.) eu não faço isto …”. Nesse caso
particular a apódose não expressa era provavelmente “então que morra”, ou algo semelhante. É fácil
notar de que um se como este, em que a conclusão é tácita, converte-se numa negação muito forte.
Marcos (William Hendriksen) 410
373
14. Ora, aconteceu que eles se esqueceram de levar pães e, no
barco, não tinham consigo senão um só.
Olhado do ponto de vista puramente humano — quer dizer, sem
considerar o poder de Cristo —, este descuido era indesculpável, porque
era mais fácil conseguir pão no populoso lado ocidental do mar que no
oriental, embora, segundo se indicou anteriormente, nos arredores de
Betsaida era menos difícil obter provisões que mais ao sul. Um só pão
jamais seria suficiente para treze homens!
15. Preveniu-os, 374 Jesus, dizendo: Vede, guardai-vos do
fermento dos fariseus e do fermento de Herodes.
Sem dúvida, Jesus estava pensando na dura incredulidade dos
fariseus que tinham pedido um sinal do céu, como se não se lhes tivesse
dado nenhum sinal de importância (veja-se 8:11–13). Mas, qual tinha
sido o motivo daquela demanda insolente? Resposta: o contraste entre o
ensino de Jesus e a dos fariseus: enquanto Ele fazia insistência na lei de
Deus, e na genuína adoração a Deus, eles punham toda a ênfase na
tradição.
Segundo Mateus 16:1, os saduceus se aliaram com os fariseus no
perverso intento de desprestigiar a Jesus. Mateus não menciona Herodes.
Por sua vez, Marcos omite toda referência aos saduceus, mas relaciona
“a levedura dos fariseus” com “a levedura de Herodes”. Visto que havia
uma estreita relação entre herodianos e saduceus, não há contradição
entre os dois relatos. Os saduceus eram o partido sacerdotal, partido ao
qual pertenciam os sumos sacerdotes, etc. A oligarquia sacerdotal, para
sua própria existência e continuidade, dependia do favor de Herodes
(veja-se CNT sobre Mateus, pp. 166ss). Mas havia uma relação ainda
mais próxima. Embora os saduceus fizessem alarde de que se aferravam
à lei de Deus, não se opunham em nada à extensão do helenismo. Como
rejeitavam tanto a ressurreição do corpo como a imortalidade da alma,
373
_πελάθοντο aor. ind. 3ª. pes. pl. de _πιλανθάνομαι. Cf. letárgico, latente.
374
Para o verbo grego, veja-se mais acima em 7:36; também em 5:43, nota 219.
Marcos (William Hendriksen) 411
seus interesses estavam centralizados só no mundo presente. Eram
“mundanos” e neste sentido eram semelhantes a Herodes e seus amigos.
A seguir apresentamos a “levedura” ou “ensino” característico —
seja por exemplo, por preceito ou por ambos — dos três grupos:
Os fariseus ensinavam o tradicionalismo (Mc. 7:4, 8).
Herodes e seus seguidores, os herodianos, o secularismo (Mc.
6:17ss.).
Os saduceus, o cepticismo (Mc. 12:18; cf. At. 23:8).
Havia entre eles, naturalmente, muitos pontos de coincidência. Em
certo sentido, o secularismo era a marca dos três (veja-se CNT sobre Mt.
16:6).
Ambos os imperativos — “Cuidado!” e “Guardai-vos de” — têm
um sentido durativo. Portanto, o significado é: “Continuem atentos (ou
estando alerta)”; “Estejam sempre em guarda contra”.
Os Doze necessitavam esta advertência. Apesar de sua relação
diária com Jesus, sempre estavam em perigo de prestar muita atenção
aos pontos de vista daqueles que se opunham aos de Jesus (vejam-se Mt.
15:12; 19:3–10; Mc. 7:1, 17–23; 10:2–12, 35–45; At. 1:6).
16. E eles discorriam entre si: É que não temos pão.
Aqueles homens começaram a ter — ou “estavam tendo” — um
diálogo entre si. 375 Jesus tinha mencionado a levedura, referindo-se ao
ensino (veja-se Mt. 16:11, 12). À vista do que diz Marcos 8:11–13 e por
relatos de confrontos anteriores entre Jesus e Seus adversários, este
significado já devia estar claro para os discípulos. Além disso, eles
tinham escutado a parábola da levedura (Mt. 13:33), que lhes ensinava
que a palavra levedura nem sempre deve ser tomada literalmente.
Levedura e ensino têm vários pontos de semelhança: a. ambas agem
invisivelmente, b. são muito potentes, e c. têm a tendência de aumentar
gradualmente sua esfera de influência. Quanto ao uso figurativo do
termo “levedura”, vejam-se também 1Co. 5:6ss.; Gl 5:9. Neste mesmo
375
Em Mc. 2:6 e 7:21 o diálogo produz-se dentro de sua própria mente.
Marcos (William Hendriksen) 412
instante (Mc. 8:15) Jesus está usando esta palavra em sentido
desfavorável: ensino pernicioso, considerado muito poderoso e com
influência corruptora crescente.
Entretanto, os discípulos não consideraram cuidadosamente nem
sopesaram seriamente o significado da advertência de Cristo de guardar-
se da levedura dos fariseus e da levedura de Herodes. Antes, atribuíram à
“levedura” um significado literal e concluíram provavelmente que o
Mestre lhes proibia receber pão dos fariseus e das pessoas relacionada
com Herodes. O que achamos aqui, então, é outro caso de interpretação
literal errônea das expressões de Jesus (cf. Jo. 2:19, 20; 3:3, 4; 4:13–15;
6:51, 52; 11:11, 12).
Além disso eram culpados de outro erro, como se vê claramente
pela reação de Jesus refletida nos versículos 17–21. Pensaram que Jesus
estava aborrecido com eles porque se esqueceram de trazer pão, e
estavam preocupados com a carência de pão. Seu erro fundamental,
então, era a falta de fé suficiente. Isto é exatamente o que naquela
ocasião, segundo Mateus 16:8, Jesus lhes disse quando os chamou
“homens de pequena fé”. Tendo entre eles Aquele que tinha dado provas
de seu poder nas duas alimentações milagrosas, não deviam ter sido mais
otimistas? Mas antes, foram pessimistas. Podemos dizer, então, que a
seção de Marcos 8:14–21, em combinação com seu paralelo Mateus
16:5–12, adverte contra quatro erros: O tradicionalismo dos fariseus
(Mc. 7:4–8); o secularismo de Herodes e de seus seguidores, os
herodianos (Mc. 6:17ss.); o cepticismo dos saduceus; e o pessimismo dos
discípulos.
A preocupação que em voz baixa ia e vinha entre os discípulos teve
uma resposta aberta e franca da parte do Mestre. Foi uma resposta que
consistiu em várias perguntas intimamente entrelaçadas. Por certo que
era perguntas de recriminação mas de muita ajuda, pois seu propósito era
tirar os Doze de seu indesculpável pessimismo e restaurar em seu
coração o espírito de confiança e otimismo.
Marcos (William Hendriksen) 413
17–21. Jesus, percebendo-o, lhes perguntou: Por que discorreis sobre
o não terdes pão? Ainda não considerastes, nem compreendestes? Tendes
o coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não
ouvis? Não vos lembrais de quando parti os cinco pães para os cinco mil,
quantos cestos cheios de pedaços recolhestes? Responderam eles: Doze! E
de quando parti os sete pães para os quatro mil, quantos cestos cheios de
pedaços recolhestes? Responderam: Sete! Ao que lhes disse Jesus: Não
compreendeis ainda?
Mateus 16:8–10 registra este comovedor parágrafo de maneira
grandemente reduzida, retendo somente a., b. (em parte), e., e f. dos
pontos esboçados de Marcos. A passagem de Mateus 16:11, 12 reflete
que os apóstolos deram uma interpretação literal às advertências de
Cristo. Informa-nos que as palavras de Jesus tiveram o favorável
resultado de libertar os discípulos de sua interpretação errônea, resultado
que Marcos não menciona.
Eis aqui algumas observações sobre cada elemento dos pontos a até
o g:
a. A preocupação pela falta de pão era desnecessária.
b. Os discípulos deviam ter usado a cabeça (cf. Mc. 7:18; 13:14).
Deviam ter pensado com lógica (cf. Mc. 4:12; 6:52; 7:14). Era
indesculpável não tomar a sério as lições que Jesus lhes tinha ensinado
antes por meio de palavras e atos.
c. Com relação ao significado da palavra “coração” e seu sentido
fundamental, veja-se sobre Mc. 6:52. “Endurecido” usa-se aqui não no
sentido da obstinação e impermeabilidade resultante que caracterizava
aos fariseus, mas no sentido de letargia espiritual. Novamente veja-se
sobre Mc. 6:52.
d. A referência a olhos que não veem e ouvidos que não ouvem (cf.
Jr. 5:21; Ez. 12:2; Mc. 4:12) está estreitamente relacionada com o ponto
imediatamente precedente. O coração endurecido tinha produzido esta
situação.
Marcos (William Hendriksen) 414
e. Este ponto pode ser considerado como uma transição. Poderia
unir-se com o ponto precedente. A incapacidade para lembrar seria o
resultado da dureza de coração. Também poderia ligar-se com o ponto
que segue imediatamente (“Já não vos lembrais de quando parti …”; NC,
cf. CI, NBE, BJ, LT). Os discípulos deviam ter prestado maior atenção
àquelas milagres, e deviam ter considerado seu significado com relação à
grandeza de Cristo.
Sem dúvida alguma a memória pode fortalecer-se com a reflexão
espiritual, com a meditação, e, quando for possível, pode-se traduzir em
ação. Diz-se que uma pessoa do Oriente convertida ao cristianismo
confessou que o aprender de cor o Sermão da Montanha lhe tinha
produzido muitos problemas, até que pela graça de Deus tinha começado
a pôr seus princípios em prática diariamente!
Deve acrescentar-se que Jesus fez algo mais que reprovar os
discípulos por sua falta de memória (veja-se Jo. 14:25, 26).
f. Note-se a distinção que os Evangelhos fazem em cada caso entre
os dois tipos de cestos (veja-se mais acima sobre Mc. 8:8). O argumento
é basicamente o seguinte: Se cinco pães foram mais que suficientes para
cinco mil pessoas e sete pães foram mais que suficientes para quatro mil
— que são fatos que os discípulos aqui mesmo confirmam — então, não
poderia Jesus alimentar a Si mesmo e aos Doze com um só pão (Mc.
8:14)? Na realidade, não poderia Ele, até sem pão algum, prover tudo o
que fosse necessário?
g. Não há uma razão convincente para interpretar a pergunta final
“Não compreendeis ainda?” num sentido distinto do usado anteriormente
(veja-se b.). A pergunta de Cristo era o suficientemente importante para
justificar uma repetição. As palavras e as obras de Jesus devem ser
sopesadas e levadas a sério. Não devem ser esquecidas rapidamente. É
preciso meditar nelas em oração, e isso incrementará a fé e eliminará o
pessimismo.
Marcos (William Hendriksen) 415
Mc. 8:22–26 - A cura de um cego em Betsaida
376
_ψηται, aor. subj. meio 3ª. pes. sing. de _πτω.
Marcos (William Hendriksen) 416
individualmente. Seu coração Se enternecia pelos necessitados não só de
forma geral, mas por cada um em particular, de modo que Seu
tratamento de um caso nunca foi uma mera duplicação do que fez antes.
Pode ver-se isso ao estudar e comparar as seguintes passagens: Mt. 9:27–
31; Mc. 8:22–26; 10:46–52 (e paralelos); Jo. 9. Veja-se também sobre
Mc. 7:33, 34.
Em primeiro lugar, Jesus tomou este homem pela mão. Não é que o
indivíduo impedido de precisasse de guias. Tinha-os, e o haviam levado
a Jesus. Mas Jesus desejava comunicar àquele homem Sua própria
atenção e amor de maneira pessoal. Em consequência, Ele mesmo Se
constituiu em seu Guia.
Em segundo lugar, Jesus o conduziu para fora da aldeia. Com
relação à palavra “aldeia”, veja-se no versículo 22. Os expositores estão
divididos sobre o tema do por quê conduziu o homem para fora da
aldeia. Foi porque Jesus desejava evitar que se formasse uma grande
multidão que fora correndo após ele para ser curada? Ou foi pelo bem do
cego mesmo, para lhe fazer sentir mais livre e que pudesse concentrar
toda sua atenção em seu Benfeitor? As duas razões são possíveis. Em
concordância com o que se disse em 7:33, a segunda razão nos parece
melhor.
Em terceiro lugar, Jesus cuspiu nos olhos do homem. Neste caso
compare-se também com a cura do surdo-mudo (Mc. 7:31–37). Naquela
ocasião Jesus aplicou saliva à língua do homem; na presente, cuspiu em
seus olhos, visto que o problema deste homem estava em seus olhos (cf.
Jo. 9:6). O significado outra vez é claro: “Algo deve ser feito por seus
olhos … e eu o farei”.
Em quarto lugar, de maneira tranquilizadora, o Mestre pôs Suas
mãos sobre aquele homem, o que era uma ação que com frequência era
prelúdio da cura e que, portanto, foi um sinal prometedor para o cego.
Marcos (William Hendriksen) 417
377
Em quinto lugar, Jesus lhe perguntou, “Vês alguma coisa?”. É
evidente que o Senhor desejava que aquela pessoa “participasse” passo a
passo de sua própria cura.
24. Este [o cego], recobrando a vista, respondeu: Vejo os
homens, porque como árvores os vejo, andando.
No original deste versículo são usadas três palavras diferentes e
todas têm relação com a visão.378 O homem elevou a vista,
involuntariamente elevou seus olhos. Disse “Vejo os homens”. Isto se
refere aqui a um discernimento externo, algo vago. Acrescentou, “porque
como árvores os vejo, andando”. Percebe que certos objetos, que para
ele parecem árvores, diferem das árvores num aspecto importante:
“(estão) andando” e, portanto, devem ser pessoas. É possível que
estivesse olhando os discípulos de Jesus. Sua visão externa era ainda
imprecisa, mas sua percepção ou observação mental era correta: esses
objetos que se moviam eram pessoas, por certo. O que o fazia estar mais
seguro disto era o fato — uma alta probabilidade a menos que não
tivesse nascido cego. Portanto, sabia que aspecto tinham as pessoas.
Não obstante, se os homens pareciam árvores — exceto pelo fato de
que os homens se movem, e as árvores não —, havia algo que ainda ia
mal. Como Jesus nunca deixa Sua obra inconclusa (cf. Jo. 17:4; Fp. 1:6),
segue:
25. Então [Jesus], novamente lhe pôs as mãos nos olhos, e ele,
passando a ver claramente, ficou restabelecido; e tudo distinguia de
modo perfeito. 379
377
É a expressão grega ε_ τι βλέπεις uma abreviação de “queria saber se vir algo”? Isto não deve nos
estranhar, porque os idiomas, qualquer idioma, em todos os tempos, estão cheios de expressões
abreviadas (veja-se CNT sobre Jo. 5:31). Mas até sendo assim, a forma provavelmente tinha chegado
a ser equivalente à uma pergunta direta devido a seu uso frequente, e pode traduzir-se assim. Veja-se
Robertson, p. 916.
378
Os três verbos são _ναβλέψας (part. aor. de _ναβλέπω); βλέπω; e _ρ_ (os dois últimos são pres.
ind. 1a. pes. sing.).
379
Aqui há dois verbos mais que têm relação com a visão. São διέβλεψε (= “olhou claramente, abriu
bem os olhos”), aor. indic. de διαβλέπω; e _νέβλεπεν τηλαυγ_ς quer dizer, τ_λε “distante” (cf.
televisão) e α_γώς “resplandecente”; mas note-se o imperfeito, contrastado com os dois aoristos
Marcos (William Hendriksen) 418
Desta vez o homem, com os olhos bem abertos, dirigiu seu olhar
atentamente e já não via mais os homens como árvores. Sua visão estava
totalmente restaurada. Via e continuava vendo os objetos longínquos
como se estivessem junto a ele.
Devemos sublinhar que este ato de cura não tem nenhuma
semelhança às curas lentas de hoje em dia que requerem várias visitas ao
“que cura”.
Neste caso, todo o processo de cura se realizou em uns poucos
momentos, com o resultado de uma transformação da absoluta cegueira à
perfeita visão.
Não nos foi revelada a razão do por que neste caso particular o
processo de cura ocorreu em duas etapas. Foi talvez pela especial
necessidade que aquela pessoa tinha de compreender a inestimável
natureza da bênção que lhe era outorgada? A razão não podia ser uma
falta de poder da parte de Jesus. Não há lugar a dúvida de que Aquele
que podia levantar os mortos instantaneamente era capaz também de
comunicar uma recuperação imediata a este cego. Por alguma razão,
conhecida só por Aquele que cura, esta cura ocorreu em duas etapas.
26. E mandou-o Jesus embora para casa, recomendando-lhe:
Não entres na aldeia.
Por que esta advertência? Talvez pela mesma razão mencionada
com relação a outros milagres (veja-se sobre Mc. 1:44; 7:36). A vinda de
Cristo não teve o propósito de produzir emoção ou despertar falsas
esperanças sobre a cercania de uma libertação política. Não obstante, é
possível que ao enviar este homem diretamente para sua casa, Jesus teria
em mente o bem-estar do homem, ou seja, que pudesse assim meditar
com tranquilidade sobre a grande bênção recebida, e tivesse a
oportunidade de falar sem interferências sobre isto com os seres
διέβλεψε e _πεκατέστη; daí, “via (ou: seguiu vendo) … claramente”, de modo que até os objetos
distantes lhe eram muito claros. Note-se também o verbo duplamente composto _πεκατέστη aor. ind.
de _ποκαθίστημι (“foi totalmente restaurado”).
Marcos (William Hendriksen) 419
queridos, para que assim todos juntos pudessem glorificar a Deus. Cf.
5:19.