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CONSELHOS SOBRE A VOCAÇÃO

Padre J. Guibert (Superior do Seminário do Instituto Católico de Paris)


PREÂMBULO

Esta brochura é destinada aos jovens de doze para dezoito anos, nos quais se notam aspirações
ou qualidades para a vida religiosa. Os meninos, raras vezes, são capazes de reparar os
movimentos que a graça opera em seus corações. Quer por leviandade de espírito, quer por
falta de instrução, têm apenas idéias confusas a respeito do que se passa em sua
alma. Incapazes de explicar o que sentem, dominados às vezes por grande acanhamento,
conservam, sepultados no fundo do coração, sinceros desejos de vida religiosa. Quantas
vocações perdem-se desta maneira. Nas páginas seguintes, os jovens hão de encontrar as
noções e os conselhos necessários para esclarecer sua consciência e guiar-se no ponto de vista
da vocação. Pareceu que era melhor tratar da vocação em geral. Porque a grande questão a
resolver para um menino, é saber onde é que vai tomar uma carreira para servir a Deus: no
mundo ou na Igreja. Uma vez decidido este ponto, é sempre fácil descobrir o caminho
particular que lhe convém.
INTRODUÇÃO

MENSAGEIRO CELESTE

1. — Tomai este livro, jovem amigo, e lede-o como se fosse uma carta que o céu vos
enviasse. Espero que encontrareis nele uma resposta às sérias perguntas de vosso
coração. Sem dúvida já notastes a mudança repentina que se operou em vós e ao redor de vós,
depois da Primeira Comunhão.

Até então a vida nada vos custara. Suavemente embalado nos braços dos pais, alimentado
pelos tenros cuidados deles, até hoje vivestes sem receio, inconsciente do futuro.

De repente, quando chegastes aos doze anos, ou um pouco depois da Primeira Comunhão, no
meio mesmo dos carinhos que todos vos prodigalizavam, uma voz se fez ouvir: «Que será
deste menino?» E como todos sentissem perfeitamente que não era possível dispor de vós sem
vosso consentimento, alguém vos perguntou: «Agora, meu filho, que é que Sr. deseja ser?»

Desde aquele momento, não sois mais o mesmo menino de outrora. Pensamentos de homem
maduro entraram-vos na alma. Estais vendo que a vida não é mera brincadeira, que seria um
crime dissipá-la inutilmente, e é preciso aproveitá-la para ganhar o pão e muito mais ainda
para ganhar o céu. Por isso estais ansioso e procurais resolver este problema de importância
capital: «Que uso farei de minha vida?» É principalmente nas horas tranqüilas, quando tudo
está calado em vossa alma, por exemplo, de noite, antes de adormecer ou durante o
recolhimento dos ofícios religiosos, que a pergunta se faz mais instante. Então uma voz
interior e profunda responde: «A vida é curta; os anos voam mais rápidos que a seta quando
atravessa o ar. Ponha depressa sua vida em um quadro definitivo; entre sem demora no
caminho que será preciso seguir. Não perca, em estéril hesitação, nem a menor parcela da
vida.»

Mas como tomar depressa uma resolução definitiva numa questão tão grave? Entre mil
carreiras que se oferecem, qual escolher? Com efeito, os quadros mais variados vos encheram
talvez a imaginação e solicitaram a ambição.

2. — Um dia pensais em ser um hábil operário na oficina do pai; outra vez agrada-vos a sorte
de um negociante feliz ou de um industrial cheio de habilidades; muitas vezes as dragonas de
ouro dos oficiais inflamaram os vossos desejos; mas muitas vezes também, tivestes a idéia de
consumir as forças na abnegação do sacerdócio ou da vida religiosa, a fim de aliviar a miséria
humana e salvar almas. Por isso, vosso pobre coração fica incerto e vai de um projeto para
outro, sem fixar-se em nenhum.
Entretanto, no meio de todos estes quadros, há um que, mais do que os outros, possui o poder
de atrair-vos e seduzir-vos a alma.

Vosso coração, compenetrado de fé religiosa e ávido de dedicação, gosta de um porvir cheio


de orações, de sacrifícios, de devotamento completo. Às vezes imaginais estar no altar, no
esplendor das cerimônias sagradas; outras vezes parece-vos que sois um missionário
intrépido, no meio de índios que ganhais a Jesus Cristo; mais a moído julgais ser um
professor, cercado de numerosa e alegre meninada, arquem ensinais a ciência e a virtude.
Todos estes pensamentos se agitam no mais íntimo de vossa alma; são apenas conhecidos de
Deus e de vós. Ninguém, com efeito, tentou penetrar no santuário de vossa alma a fim de
surpreender-vos os secretos desejos: vós mesmo quase que não os entendeis claramente;
teríeis muita dificuldade para exprimi-los; talvez tivésseis medo de revelar a outros aspirações
tão elevadas, que provavelmente, segundo vos parece, seriam tratadas de visões quiméricas.

Apesar disso, tudo vos excita a tomar uma resolução: a idade não vos permite mais esperar;
vossos pais estão com pressa de arranjar-vos uma colocação. É preciso falar, e não ousais
falar e não sabeis como falar. Daí se origina a angústia de coração que experimentais em
certas horas.

Nestas dúvidas interiores, misturadas de esperança e de receio, quantas vezes dirigistes um


olhar suplicante a Deus para que vos enviasse um mensageiro celeste! Mas o céu não manda
anjos visíveis a todos os homens. Os anjos de Deus são as inspirações que nos alumiam o
interior da alma e os conselhos que nos prodigalizam as pessoas de fora.

Talvez estas páginas sejam para vós o órgão do celestial mensageiro. O que sua leitura poderá
dizer-vos, a graça vo-lo repetirá no íntimo da alma. Por meio desta brochura, sabereis o que é
a vocação, que meios deve tomar cada um para conhecer a vocação, como o eleito de Deus
deve corresponder á vocação.

Então vereis mais às claras os desígnios de Deus sobre vós, tereis mais ousadia e mais jeito
para manifestar vossos desejos e sereis mais corajoso para abraçar os deveres que vos impuser
a vontade de Deus.
ÍNDICE

Preâmbulo

Introdução

CAPÍTULO I
ORIGEM DA VOCAÇÃO
A vocação vem de Deus
Dois caminhos
A vida comum
A vida religiosa
Nobreza do estado religioso
Os sacrifícios
As virtudes
A missão
Como Deus semeia as vocações
Razões das vocações
Como se revela o apelo de Deus

CAPÍTULO II
ESTUDO DA VOCAÇÃO

Necessidade de estudar a vocação


Disposições necessárias para bem estudar a vocação
Oração
Indiferença
Coragem
Necessidade de pedir conselho
Os pais
Os mestres
O confessor
Sinais de vocação
I. O atrativo
Qualidades do atrativo
II. A Aptidão
Saúde
Inteligência
Vontade
Coração
A vocação segundo o Direito Canônico
Escolha de num vocação particular

CAPÍTULO III
COMO CORRESPONDER À VOCAÇÃO

I. A separação
1 ° Renunciar ao pecado
2 ° Separar-se do mundo
3 ° Deixar a família
II. A formação
1 ° A vida sobrenatural
2 ° 0 carácter
3 ° A formação profissional
4 ° O zelo apostólico
III. A conservação:
1 ° Conservar o espírito
2 ° Conservar o coração
3 ° Conservar a vontade
Cansaço
Aborrecimento
Desanimo
Conclusão
História de uma vocação
CAPITULO I - ORIGEM DA VOCAÇÃO

A vocação vem de Deus

3. — A palavra vocação significa apelo, chamado. Indicar a fonte da vocação é indicar quem
chama. Mas quem poderá chamar um homem a um destino especial, quem poderá, de modo
soberano, decidir das vidas humanas, senão o próprio Deus, senhor absoluto do universo? Ele
só tem o direito de decretar o caminho que devemos seguir. Devemos ter uma convicção
profunda desta verdade. Porque se ignorarmos até que ponto Deus gosta de levar os homens
como pela mão, teremos menos zelo em procurar e segurar esta mão paternal que se estende
para nós.

Em consequência de uma fé muito superficial, Deus nos parece ser muitas vezes como um
mestre inacessível, colocado longe de nós, em um trono elevado, donde nos enxerga apenas e
nos abandona no meio das dificuldades da vida, sempre armado para castigar uma criatura
mais frágil do que um vaso de cristal, qual tirano terrível diante de quem os súbditos devem
estar sempre a tremer.

Não, felizmente, Deus não é tal, para nós. Relações mais filiais nos unem a Ele. Sem dúvida, é
um Rei, mas um Rei que se dá com Seus súbditos e Se interessa pelos negócios deles: melhor
ainda, quer que o chamemos de Pai Nosso. Está tão perto de nós que se encontra em cada um
de nossos pensamentos, em cada um de nossos desejos, é o autor de todos nossos bons
movimentos e concorre para todas nossas boas ações. Foi até dizer-nos: “Todos os cabelos de
vossa cabeça estão contados e nem um só há de cair sem a licença de vosso Pai celestial”.

Santa Gertrudes, depois de violenta tentação, se queixava um dia a Deus de que a abandonara
durante o combate: “Ora, Senhor! onde estáveis enquanto Vossa serva lutava tão penosamente
contra a tempestade? — Estava no meio de teu coração, lhe respondeu Jesus, e sou Eu mesmo
que te ajudava a triunfar”.

Unido a nosso ser de modo tão íntimo, partilhando todos nossos atos, Deus não pode
permanecer indiferente à orientação que tomará nossa vida. Nunca há de largar-nos no mais
importante ato de nossa existência, na escolha de uma carreira.

Não somente não nos abandona a nós mesmos, mas traça um caminho para cada um de nós.
Tem um desígnio para cada um de nós; para cada um de nós formou um plano de vida. Este
plano, delineado pelo próprio Deus, é a vocação.

4—Mas como há de revelar-nos seu plano? No íntimo da nossa alma, muitas vezes inclina-
nos suavemente por meio do atrativo, de certo gosto para a carreira que fixou par nós; cria em
nossas almas as aptidões e as inclinações que hão de tornar-nos aptos para o cumprimento de
nossos futuros deveres. No exterior, governa os acontecimentos de modo tal que o caminho
esteja desimpedido para nós; arreda os obstáculos, prepara os auxílios; está presente em cada
parte da estrada a fim de assegurar-nos a marcha até o termo fixado.

Para aquele que toma e conserva a via providencial da vocação, Deus prodigaliza as graças
que asseguram o bom êxito neste mundo e a salvação na eternidade. Para os que fogem da
direção divina da vocação, as graças de estado fazem muita falta; como os comboios
descarrilados, estão expostos às mais perigosas colisões; mesmo nesta vida, a desgraça os
segue por toda a parte.

Portanto, jovem e bom amigo, Deus pensa em vós, tem vistas sobre vós; com Suas mãos
divinas, traçou-vos um caminho. Qual será este caminho? Descobri-lo para o seguir com
ânimo, é, com evidência, para vós, o grande e único negócio.

Nesta pesquisa aplicai vossa alma toda, tanto o espírito como o coração. Mas como Deus não
se revela senão aos que invocam, rogai ao divino Espírito Santo para que vos ilumine a
inteligência e incline o coração pelos suaves atrativos de Sua graça.

Dois caminhos

5. — Na vossa idade, dois caminhos estão abertos para vós: o caminho da vida comum, para o
qual se dirige a maior parte dos homens; e o da vida religiosa, reservado a um pequeno
número de almas escolhidas. O primeiro ato de vossa liberdade há de ser a escolha entre estes
dois caminhos. Conforme tomardes um ou outro, o resto de vossa vida terá uma direção muito
diferente.

Estais portanto numa espécie de bifurcação, de encruzilhada. Tomareis uma carreira no


mundo? Tomareis a carreira da vida religiosa? Sei que estais respondendo: «Minha carreira há
de ser o que Deus quiser para mim.» Mas onde quer Deus que estejais? No mundo ou na vida
religiosa? A pergunta fica portanto a mesma.

Entretanto precisais de pronta resposta. Os ricos, sem dúvida, podem esperar e refletir por
muito tempo. Enquanto estão estudando, vão-se preparando para entrar tanto no mundo como
na Igreja: aos dezoito anos, podem ainda escolher uma carreira. Mas para o maior número dos
meninos e jovens, a escolha precisa ser feita antes dos quatorze anos. Com efeito, uma vez
que um moço entrou no comércio ou na indústria, desde que passou pela oficina, não pode
mais mudar de caminho. Sem dúvida, encontram-se negociantes e operários que entram no
estado religioso; mas são exceções. A regra mais segura é tomar o mais cedo possível o
caminho que se deve seguir sempre. A quantos perigos não estaria exposta uma vida religiosa
no meio de sociedades licenciosas e corruptas?
Pois que é preciso escolher, examinai com atenção os dois caminhos que vos são oferecidos
para toda a vida.

A vida comum

6. — Falemos primeiro da vida ou via comum e examinai vossas inclinações interiores e os


acontecimentos exteriores para ver si Deus vos quer neste caminho.

A vida comum é a vocação dos que Deus destina ao estado do matrimônio. Vivem no mundo
e têm que arranjar uma situação no meio dos negócios do século. Quando alcançam a primeira
maturidade, depois que completam a aprendizagem de um ofício, fundam uma casa, educam
uma família, trabalham para ganhar o pão quotidiano e preparar-se, para o tempo da velhice,
um honesto rendimento.

Na vida comum, penosos trabalhos, de ordinário, são necessários para assegurar a


subsistência; a alma fica absorta pela preocupação dos negócios e pelo pensamento do
dinheiro, o coração está exposto diariamente a mil perigos quase que inevitáveis, as práticas
religiosas ocupam apenas alguns instantes da vida.

Contudo é um estado que Deus quer para a maior parte dos homens. Antes da vinda de Jesus
Cristo, todos os homens deviam fundar uma família. Agora que o Salvador veio ao mundo,
agora que Sua palavra e Sua graça fizeram desabrochar sobre a terra a flor da virgindade
outrora desconhecida, o celibato religioso é ainda a exceção; o estado do matrimônio
permanece a condição regular da imensa maioria dos homens.

Por isso é que lavraria em grande erro quem visse nesta via comum, uma condição destituída
de nobreza, digna mesmo de algum desprezo. Comentem grave abuso os que para exaltar o
estado religioso, se esforçam por aviltar o casamento e a família. O trabalho do operário não
será sempre muito honroso? A bênção de Deus não será especialmente para os pais e as mães
de famílias numerosas e não visitará as casas onde se agita um bando de alegres meninos?

7. — Persuadi-vos bem que a vida da família é um estado santo e que vossos pais são dignos
de todos os elogios. Quem poderá contar os santos que '"ganharam o céu e mereceram o culto
da Igreja por meio desta via? Santa Felicidade, santa Perpétua, santa Mônica, santa Isabel, são
Luiz, santo Isidoro, são Joaquim e tantos outros, acharam neste estado meios e não obstáculos
para alcançar eminente santidade.

Para este estado, abençoado por Deus, são chamadas todas as almas que não experimentam
um atrativo particular para a vida religiosa. Para entrar nesta via, não é preciso ouvir um apelo
do céu; pelo contrário, deve-se esperar o sinal de Deus para se arredar deste caminho.
No meado do século precedente, vivia em Tours um homem, o Sr. Dupont, a quem todos
tratavam de santo por causa de sua grande virtude. Vários amigos aconselhavam um dia ao Sr.
Dupont para que se fizesse religioso. «Pedirei a Deus, respondeu ele, para que me dê a
conhecer Sua santa vontade.» Rezou, com efeito, mas sem experimentar nenhum atrativo para
a vida religiosa. «Embora eu reze bastante, respondeu ele, não sinto nenhum atrativo para o
sacerdócio: ficarei portanto no mundo, onde tratarei de servir a Deus e ser útil às almas.»
Permaneceu no mundo, simples leigo: seus exemplos e suas boas obras deixaram na Igreja
vestígios que hão de durar sempre.

Portanto, persuadi-vos bem, jovem amigo, que a vida comum, embora muito perigosa, não é
um estado de perdição, que as almas piedosas e virtuosas não são todas chamadas para sair do
mundo; que, pelo contrário, a fim de fundar famílias cristãs, são necessários moços
profundamente honestos e religiosos. Por conseguinte, se levardes uma vida santa e exemplar,
não haveis de cair fatalmente na vida religiosa: preparareis apenas vossa alma para conhecer e
seguir perfeitamente a vontade de Deus.

Segundo estes princípios fica assente que permanecereis no mundo, se não ouvirdes um
chamado particular de Deus. Mas, por acaso, já não tereis ouvido este chamado especial de
Deus?

O tal atrativo ou convite do Espírito Santo, é frequentíssimo, na prática, como sinal de


vocação; entretanto não é prova indubitável; há casos de ótimas vocações sem este atrativo.
Mais adiante (números 58 e 59) vão às condições necessárias e suficientes para se reconhecer
se alguém tem ou não tem vocação para o sacerdócio ou a vida religiosa (Ver página 48).

A vida religiosa

8. — Existe, com efeito, outro caminho, estreito, frequentado pelo menor número, no qual
Deus faz entrar os privilegiados de Seu coração.

É caracterizado pela separação do mundo, pela renúncia às honras e aos bens da terra e,
sobretudo pelo sacrifício do casamento. A castidade perfeita ilumina esta vereda de um
esplendor celestial. Esta vida se reparte entre a oração e as obras de zelo: as almas se
esquecem de si próprias para se dar inteiramente a Deus pela religião, e aos homens pela
dedicação desinteressada.

Se a oração predomina, como entre os Cartuxos e os Carmelitas, a vida se chama


contemplativa. Pelo contrário, se for o trabalho apostólico que predomina, como entre os
vigários das paróquias, os missionários, os professores religiosos, a vida se chama ativa.
Contudo, em nenhuma parte a contemplação é preguiçosa e estéril; sempre a ação mais
generosa se renova nas fontes sagradas da oração.

Este estado religioso, com suas formas múltiplas, é um estado que Deus quer. Estas almas
castas e despegadas são o sal da terra: que seria do mundo se este sal preservador viesse a
desaparecer ou perder a força? Que seria da sociedade se o sacerdote não publicasse mais as
leis da verdadeira moral, se os educadores católicos não formassem mais as jovens gerações
para a virtude?

Deus quer, no seio de Sua Igreja, a perpetuidade da oração e das boas obras. Ora, a oração e
as boas obras são alimentadas e sustentadas pelas almas que a vocação religiosa desprende de
todas as coisas terrenas. Eis a razão porque Deus tem obrigação perante o mundo, perante a
Igreja, perante si mesmo de não estancar a fonte das vocações religiosas. Por isso é que, até o
fim do mundo, haverá almas que a graça divina há de solicitar para a oração, a penitência, o
zelo apostólico.

Felizes as almas sobre as quais Deus lança olhares de predileção, que Sua mão paterna
arranca da vida comum dos mortais para as transformar em agentes fiéis a Seus desígnios!
Felizes estas almas, não segundo as idéias do mundo, que não lhes entende a felicidade, mas
felizes segundo as verdades da fé, que nos revela as grandezas da vocação religiosa.

Nobreza do estado religioso

9. — Nunca poderemos conceber coisa mais excelente do que o estado religioso. Porque a
vocação encerra os mais belos títulos de nobreza, quer pelos sacrifícios que impõe, quer pelas
virtudes que faz praticar, quer pela missão sublime que nos confia.

Os sacrifícios

10. — A nobreza de uma alma se mede pela elevação de sua coragem. As famílias nobres
mereceram seus brasões pela magnanimidade de seus antepassados; aos que não recuam
diante do perigo e arrostam a morte para salvar a pátria, a sociedade concede o primeiro lugar.
Expôr-se à morte num campo de batalha é o ato de um grande coração; mas morrer durante
toda a vida para a mais bela das causas, derramar o sangue gota a gota, até o último suspiro,
no silêncio e na escuridão de uma empresa sem brilho, é o ato de um coração maior ainda,
porque supõe uma coragem mais profunda e uma vontade mais constante.

Ora, é para esta espécie de heroísmo que a vocação destina os que ela chama. Os religiosos e
os sacerdotes são outros tantos heróis, cada vez que vivem segundo sua profissão. Com efeito,
vão de encontro às inclinações mais gratas à natureza: vítimas voluntárias, renunciam aos
prazeres, às honras, às riquezas e imolam-se dia por dia no altar do próprio coração. Mais
ainda, dedicam-se a um trabalho austero: prisioneiros do dever, entregam a Deus e às almas
todas as horas de seu tempo e todas as energias de sua atividade.

As virtudes

11. — Não é somente pelos sacrifícios impostos que a vocação religiosa enobrece, é também
pelas virtudes que faz praticar.

Será preciso mostrar-vos toda a grandeza de uma alma que se dedica às virtude? Não sabeis
que o valor de um homem depende do interior e não do exterior?

Os que brilham diante do público e, no fundo, ocultam almas baixas e maculadas, ostentam
apenas uma luz falsa aos olhos dos homens. As vestimentas preciosas e os brilhantes
resplandecentes adornam apenas o corpo; a reputação mais lisonjeira tem só o efeito de
realçar um nome diante dos homens. Mas tudo isto não alcança o fundo da alma; debaixo
destas aparências, diante das vistas de Deus e de suas próprias vistas, a alma permanece o que
ela é: abjeta se andar no vício; cintilante de peregrina beleza, se as virtudes a iluminarem.

Com efeito, que coisa será mais bela do que a alma em quem Deus reside como num
santuário? No seio de um coração em estado de graça, a luz divina resplandece como os raios
do sol através do cristal mais puro. Nos lugares onde Deus habita, o céu em peso baixa: todas
as virtudes formam o cortejo da graça santificante. No meio delas domina a caridade, e da
caridade dimanam os sentimentos de misericórdia e de dedicação que pasmam o mundo e são
a honra da Igreja.

12. — Mas qual vida há de favorecer melhor tal desabrochar das virtudes cristãs? Não será a
vida religiosa, retirada do mundo, ao abrigo das seduções? Oh! sem dúvida, mesmo no meio
dos perigos do século, pode-se viver sem pecado grave e conservar Deus presente no coração.
Como é difícil, porém, manter-se em estado de graça! como é difícil, portanto, que uma alma
conserve intacto este rico tesouro de virtudes! Pelo contrário, tudo se reúne para preservar a
alma do religioso: o retiro em que vive, os socorros sobrenaturais que lhe são prodigalizados,
o encanto da vida de família, a seriedade das ocupações diárias...

É sobretudo a propósito de uma alma assim preservada pelo privilégio da vocação religiosa,
que S. Tereza podia exclamar: «Se Deus nos descobrisse a beleza de uma alma enriquecida
pela graça e fecundada pelas virtudes, havíamos de morrer de admiração e de alegria.»

A missão
13. —Nobilíssima é também a missão a que se destina a vocação religiosa. Porque, seja qual
for o gênero de vida ao qual se consagra a alma dedicada a Deus, sempre sua carreira é mais
importante que as carreiras do mundo.

Por mais variadas que sejam as vocações da Igreja, todas se resumem em quatro grupos
principais: a oração, as obras de caridade, o ensino, o apostolado sacerdotal.

14. — A oração e a penitência caracterizam a vida dos Cartuxos, dos Trapistas, dos
Beneditinos, das Clarissas, dos Carmelitanos, etc... Retirados em seus claustros, extranhos aos
negócios mundanos, levam uma vida angélica que o mundo desconhece. — «Para que, dizem
os mundanos, estes religiosos inúteis, egoístas, que não pensam senão em si próprios e nada
fazem em proveito da sociedade?» contudo, estes religiosos são mais úteis à sociedade do que
os que se agitam e enchem o mundo da fama de seu nome. Com efeito, nos santuários onde se
reúnem, formam focos de vida, cujo ardor se espalha por toda a parte; constituem centros de
virtudes cujas influências irradiam ao longe; representam a humanidade no louvor e na
adoração que se deve a Deus; são como que pára-raios vivos que arredam da terra os trovões
da vingança divina: porque, por meio de suas penitências, alcançam do céu o perdão por
numerosíssimos pecadores. Os homens precisam tanto da graça e da misericórdia, que, aos
olhos da fé, a vida do claustro é talvez aquela que produz os efeitos mais profundos. Se Deus
vos chamasse para ela, não tenhais receio de perder vossa existência. Assegura-se que S.
Teresa, por suas orações, não converteu menos infiéis do que S. Francisco Xavier, o grande
apóstolo das índias.

15. — Muito melhor é compreendida pelo povo a missão dos que se consagram às obras de
caridade: sua utilidade é acessível aos sentidos e fere as vistas. Em todas as línguas exaltaram-
se com razão as maravilhas desta dedicação que alivia as misérias humanas. Tira-se o chapéu
com respeito diante da irmã de caridade; admira-se a humilde irmãzinha dos pobres; o irmão
de São João de Deus, companheiro e criado dos mais deserdados da natureza, aparece como
um prodígio da graça. Nestes devotamentos, não é o sentimento da dedicação que mais nos
comove; porque a piedade para com o pobre e o doente se encontra em qualquer coração bem
formado. É antes o desapego heróico de tudo, inspirado pela piedade, que excita nossa
admiração; porque se o mundo encontra criados que oferecem seu tempo e suas penas em
troca de pão ou de ouro, é Deus só que suscita os heróis desinteressados que dão a própria
vida para que o enfermo e o indigente tenham alguém para lhes suavizar as dores.

16. — Existe outra forma de dedicação que o mundo aprecia menos, que até persegue de seu
ódio, e trata de destruir hoje: quero falar da missão de educador.

O professor tem um papel social de imenso alcance; como possui as jovens gerações, o
professor possui também o futuro; foi sempre verdade incontestável que o porvir pertence aos
que formam a mocidade. E como é preciso que o porvir pertença a Deus, quanto não importa
que Deus suscite mestres generosos que formem perfeitamente a mocidade? Esta obra dos
professores católicos é tão necessária que Deus gostaria mais de fazer novas criaturas antes do
que deixá-la perecer. — De uma importância capital nos tempos presentes, sempre austera e
muitas vezes ingrata, esta missão do professor católico é também uma fonte de puras alegrias
e de fecundas bênçãos. Que coisa poderá ser mais suave do que a paternidade que um bom
mestre exerce sobre seus numerosos discípulos? Que coisa será mais meritória diante de Deus
e diante dos homens, do que consumir a existência no duro serviço de uma escola? Felizes as
almas que Deus chama a esta forma de apostolado: «Porque, diz a Escritura Sagrada, os que
ensinam a verdade e a santidade hão de brilhar como astros durante toda a eternidade.»

17. — Fica ainda a missão do padre, ministro da palavra de Deus e depositário do tesouro dos
Sacramentos. Unido a Deus como deve ser unido, representante de Jesus Cristo entre os
homens, o padre alcança uma altura tal que dá a vertigem à pobre razão humana. Quanto mais
elevado é o padre por seu poder de ordem, tanto mais perfeita deve ser a santidade de sua
vida. Quer evangelize os povos infiéis, quer desenvolva a vida cristã entre os povos
convertidos, seu papel aparece sempre na mesma sublimidade. «Se eu encontrasse ao mesmo
tempo, no meu caminho, um padre e um anjo, dizia um grande santo, eu cumprimentava
primeiro o padre e depois o anjo.»

18. — Estais vendo, jovem amigo, a vida religiosa apresenta numerosos caminhos. Tomai
aquele que quiserdes; certamente, há de conduzir-vos para regiões elevadíssimas.

É deste modo que pensaram tantos grandes homens do mundo, os quais, em todos os tempos,
pisaram aos pés as mais belas coroas da terra para terem a felicidade de servir a Jesus Cristo.
De todas as posições sociais, dos próprios degraus dos tronos, saem almas que ambicionam
uma nobreza mais elevada que a da terra. Se os príncipes e os grandes do mundo não julgaram
que fosse indigno de sua alta posição, consagrar sua vida às obras de zelo, como não
haveriam, os filhos do povo, de gostar de servir com eles nas fileiras da milícia religiosa?

Da grandeza da vocação religiosa se deduz outra consequência: é que não é permitido a


ninguém introduzir-se, sem um apelo de Deus, numa missão tão sublime. «Quando estiverdes
convidados a um banquete, diz o Salvador Jesus, não tomeis o primeiro lugar, de medo que
tenhais a vergonha de serdes obrigados a descer em um lugar inferior, na extremidade da
mesa. Tomai antes o último lugar; então aquele que vos convidou, virá para colocar-vos num
lugar melhor; e assim tereis muita honra diante de todos os convidados.»

O mesmo se dá no banquete desta vida. Ninguém se deve arrogar o primeiro lugar: esperai
que o Mestre vos chame para introduzir-vos entre os príncipes de seu povo.
Entretanto não se "deve afirmar que a total ausência de atrativo seja prova de que a vocação
não possa existir; mais adiante (números 58 e 59) veremos quais são os sinais indubitáveis de
vocação (pag. 48 e seguintes).

Como Deus semeia as vocações

19. — Por acaso nunca vistes como procede o lavrador no tempo da sementeira? Depois de
escolher o campo onde quer obter rica messe, vai jogando a semente à mão cheia pela terra
revolvida. Sabe que muitos germens serão estéreis, que vários outros serão devorados pelas
aves do céu ou pelas larvas ocultas debaixo do chão; sabe que de todas as plantas que hão de
brotar da terra, muitas hão de secar antes do tempo da flor e do fruto. Mas sabe também que,
graças a uma cultura atenta, bastantes sementes hão de germinar para assegurar uma boa
colheita no tempo da messe.

Deus procede da mesma maneira. Para falar de modo humano, pode-se dizer que prodigaliza
sem medida a graça das vocações; em grande número de almas, depõe, no momento da
criação, o gérmen benéfico da vocação religiosa. Aqui a semente não poderá germinar, mais
adiante há de ser devorada, em outro lugar há de secar ainda verde antes do tempo da seara
apostólica. Deus conhece tudo isto, e precisamente porque conhece tudo isto, arroja as
vocações às mãos cheias, de sorte que muitos gérmens caem em todas as escolas, em todos os
colégios, pode-se dizer até em todas as famílias.

20. — É um ponto de honra para Deus velar pelo recrutamento de Seu exército. Ninguém
pode alistar-se a não ser que Deus o chame; e Deus chama bastantes soldados para que as
fileiras nunca tenham vagas. Por isso considerai o que está se passando: é debalde que os
inimigos da Igreja acumulam obstáculos sobre obstáculos contra as vocações religiosas: as
fileiras de nossas falanges católicas não rareiam. Imaginais que os formidáveis exércitos
europeus teriam um recrutamento suficiente se recebessem apenas voluntários? Se não
houvesse a polícia, quantos não corresponderiam ao chamado do Estado? Entretanto, o
exército de Deus recruta, cada ano, milhares de jovens voluntários, sem que haja nenhum
constrangimento, muito melhor ainda, apesar de todas as barreiras que se elevam para lhes
estorvar o caminho.

É que Deus exerce uma espécie de fascinação sobre as almas que escolhe, a fascinação do
devotamente. Não as constrange exteriormente: inclina-as suave e fortemente pelo interior.
Tal inclinação, porém, não é irresistível a ponto de aniquilar a liberdade do homem: Deus
atrai sem violentar. Por isso é que na prática muitos resistem aos atrativos da Sua
misericórdia. Daí a profusão com a qual espalha as vocações.

Razões das vocações


21. — Por mais numerosas que sejam, as vocações não caem ao acaso. Nenhum ato divino é
desprovido de sabedoria; toda a vocação, portanto, tem sua razão de ser. Embora seja difícil,
para cada vocação em particular, discernir o motivo do apelo divino, pode-se afirmar
entretanto que a escolha de Deus não se faz sem motivo.

Muitas vezes Deus tem por fim recompensar a fé e a dedicação de uma família cristã. Debaixo
das vistas atentas de pais zelosos, quando os filhos crescem, quais flores mimosas num jardim
cultivado com esmero, Deus gosta de colher, para ornamento do santuário, a flor mais
delicada e mais perfumada.

Quando se estuda a história de uma vocação, encontra-se quase sempre uma alma de oração e
de sacrifício para a qual esta vocação é uma digna recompensa. Ao lado do menino que vai
chamar, Deus coloca, de ordinário, uma alma santa que reza, trabalha, faz penitência; tais atos
de santidade são como que o alimento que sustenta o gérmen da vocação.

Na vida de S. Francisco de Sales, vê-se que a vocação dele foi o prêmio merecido desde muito
pela eminente piedade da família. S. Agostinho foi concedido às orações prolongadas de S.
Mônica, sua mãe. Quantas vezes depois da revolução francesa, não se reparou que as
vocações eram numerosíssimas nas famílias que tiveram a coragem, durante os dias de
perseguição, de dar asilo aos padres fiéis! Não se disse que São João Vianney, o santo vigário
de Ars, foi dado à Igreja da França depois das orações e das bênçãos de S. Bento Labre, o
peregrino mendigo, quando achou, na casa da família Vianney, tão suave e tão amável
hospitalidade?

22. — Outras vezes, a escolha de Deus é motivada pelas necessidades da Igreja. A Igreja é a
obra prima de Deus, mas está nas mãos dos homens; o valor humano dos que a povoam e a
dirigem lhe dá brilho e aumenta o prestígio. Sem dúvida, muitas vezes Deus gosta de operar
grandes prodígios, por meio de instrumentos ínfimos; muitas vezes também tem prazer em
chamar as almas mais distintas, mais ilustradas, a fim de patentear a todo o mundo que a
religião é tão sublime que seduz os espíritos mais poderosos e os corações mais generosos. Os
espíritos poderosos vêm a ser os apologistas da Igreja; os corações generosos se tornam os
denodados criadores de obras de caridade.

Foi esta razão que motivou a escolha de S. Paulo, espírito tão culto, coração tão ardente, que
veio trazer o concurso de suas belas qualidades aos apóstolos de Jesus Cristo. Pela mesma
razão, no quinto século, Deus suscitou aqueles homens especiais, tão instruídos nas ciências
humanas, que a Igreja honra debaixo do glorioso nome de Padres: S. Basílio, S. Gregório
Nazianzeno, S. João Crisóstomo, S. Jerônimo, S. Ambrósio, S. Agostinho, depois S. Leão
Magno, S. Gregório Magno, etc... Ainda hoje a milícia sagrada recruta intrépidos soldados na
mocidade mais culta; moços generosos, para os quais estavam abertas as carreiras mais
brilhantes segundo o mundo, vêm trazer aos pés do Cristo Jesus os tesouros intelectuais e
morais que os exornam.

Contudo, como a vocação não é devida a ninguém, ela permanece, da parte de Deus, um ato
de pura benevolência. Deus vos chama porque vos ama. E tal amor não é o pagamento de uma
dívida; é inteiramente gratuito. «Amo-vos, diz Ele na Santa Escritura, de um amor que
começou na eternidade; é por misericórdia e bondade que vos chamei e atraí.»

Como se revela o apelo de Deus

23. — No momento em que Deus forma as almas, depõe nelas o gérmen de seu destino. Para
cada berço, Deus exprime um apelo. Mas este gérmen, quando e como há de desenvolver-se
de modo que a criança tenha consciência dele? Mas este apelo quando e como há de ser
percebido, de modo que o menino saiba qual caminho deve seguir?

Toda a vocação tem sua história. As manifestações divinas são variadíssimas; assim como não
há duas vidas que sejam semelhantes, do mesmo modo não há duas vocações que se repitam.
Mas a história de uma alma, seja qual for, é sempre interessante.

Certos meninos experimentam aspirações religiosas desde a mais tenra idade; outros notam só
muito tarde o atrativo da vocação. Alguns mesmo entram no sacerdócio ou na vida religiosa
sem atrativo, embora com retas intenções, e vem a ser muito virtuosos, apesar da ausência de
atrativo.

Os primeiros, educados nos joelhos de uma mãe cristã, aprenderam, desde criancinhas, a
colocar a religião acima de tudo, a considerar a vida sacerdotal e religiosa como a mais nobre,
a mais invejável das existências: não são capazes de precisar a época em que lhes apareceu
sua inclinação; antes mesmo do uso da razão, já começavam a declarar que sua vida havia de
ser consagrada a Deus. Na história da Igreja, deparamos grande número de almas santas que
pronunciaram, desde a idade de sete anos, o voto de virgindade perpétua.

Com os segundos, em que a vocação é mais ou menos tardia, a educação, em geral, foi menos
cristã; Deus não lhes apareceu tão cedo no caminho da vida. Quer por leviandade de espírito,
quer por vivacidade de gênio, quer por ambição mundana, tinham em mira uma carreira
brilhante, que lisonjeira a vaidade. Recolhiam-se muito pouco no interior de sua alma para ali
ouvir a voz de Deus, levaram uma vida por demais mundana e pouco cristã para que o gérmen
da vocação pudesse desenvolver-se logo. Mas um dia, numa hora de profundo recolhimento,
debaixo da impressão de tédio e de vácuo que o mundo produz muitas vezes, em seguida a
alguma forte prova talvez, escutaram enfim a Deus e ouviram a mesma palavra que
determinou a vocação de Abraão: «Sai de tua terra e de tua família e vai para o país que eu te
indicar.» Este país novo, Deus o dá a conhecer pelos meios mais variados.
24. — Eis, por exemplo, como nasce uma vocação sacerdotal. No menino, a primeira
impressão é causada pelas belas cerimônias do culto sagrado. O altar, cercado de mil luzes
brilhantes, onde o sacerdote, vestido com paramentos de ouro e de prata, desempenha os
augustos mistérios, tem o poder de fascinar uma alma juvenil. Esta visão celeste continua a
brilhar na sua imaginação; os cânticos litúrgicos permanecem gravados na sua memória e lhe
voltam espontaneamente aos lábios. Na casa paterna, o menino arranja um santuariozinho,
ergue um altarzinho e repete as cerimônias sagradas. Não considera isto como simples
divertimento: tem um vago pressentimento que está se exercitando para o futuro. — À medida
que vai crescendo, suas idéias se tornam mais precisas; debaixo do quadro encantador que lhe
atraiu a atenção, o jovem distingue a Deus que o sacrifício do altar honra, o jovem distingue
as almas a cujo serviço a vida sacerdotal é consagrada. Não é somente para gozar do culto que
este menino deseja ser sacerdote; é para imolar a vida a Deus e aos homens que há de encetar
resoluto o longo e austero preparo que leva ao sacerdócio.

25. — Quando a vocação vem depois dos doze ou quatorze anos, não é o atrativo das belas
cerimônias que a faz desabrochar. Aos doze anos, um menino já sabe refletir; começa a
entender a rara beleza moral dos que gastam a vida em favor dos outros; sente elevadas
aspirações de virtude e de dedicação que nenhuma carreira do mundo pode satisfazer.
Raciocina do modo seguinte: «Não me importo com a riqueza e as honras; os prazeres do
mundo me dão asco; quero que minha vida sirva para alguma coisa e não se perca no vil
egoísmo; portanto entregar-me-ei inteiro a Deus e ao serviço de Sua santa causa.» Estas
reflexões sérias são muitas vezes provocadas por algum acontecimento grave: às vezes por
uma leitura que deixou profunda impressão no espírito; outras vezes por alguma desgraça que
abalou vivamente o coração; ou ainda por uma circunstância providencial que de repente
abriu as vistas.

Francisco de Borja, duque de Gândia, era um dos primeiros gentis homens da corte de
Espanha. Como a rainha, cujos encantos humanos fizeram as delícias da corte, viesse a
falecer, Francisco foi encarregado de transportar ao longe seus restos mortais. No momento da
sepultura abriu-se o féretro para que Borja contemplasse uma última vez aquele rosto augusto
que arrebatara tantos olhares. Oh! espetáculo de horror! ficava apenas um montão abjeto de
podridão. «Será para chegar a isto, disse Francisco, que somos escravos do mundo e dos
bajuladores?» Debaixo do toque da graça que atuava nele, Francisco de Borja disse adeus ao
mundo, renunciou à fortuna e às honras e foi consagrar sua grande alma ao serviço de Deus na
companhia de Jesus.

Os grandes golpes da graça não determinam senão raras vocações. Sobretudo quando se trata
da vocação de educador, de professor ou de professora, é por meio de suaves influências e
progressos insensíveis que a graça leva pouco a pouco as almas para o lado da montanha
santa.
26. — Tomemos um menino que frequenta, desde os seis anos, a escola dos Irmãos. Logo nos
primeiros dias, o Irmão lhe aparece como um ser misterioso, superior aos outros homens, de
certa maneira separado do resto da humanidade. Tudo se destaca, com efeito, neste religioso:
o hábito, as funções, a vida retirada. A primeira impressão que a criança nota, é a da
felicidade: o Irmão lhe parece feliz, honrado, digno de ser imitado. Porque, ele também, não
poderia viver do mesmo modo?

Tal vista é inteiramente humana, sem dúvida; mas dura pouco, purifica-se e cede lugar a
sentimentos mais nobres. Este Irmão, cuja sorte é tão suave, está com a fronte nimbada pela
auréola da virtude; sobre as almas singelas, que o vício ainda não contaminou, esta irradiação
da santidade exerce grande império. O menino pensa em si mesmo: «Esta vida santa, feita de
piedade, de religião, de renúncia aos falsos prazeres do mundo, por que razão não seria
também a minha vida?»

Com o tempo, os pensamentos tornam-se mais sérios ainda. O papel social do professor
religioso se revela aos poucos. Há tanta glória para um homem de coração em dedicar a vida
ao serviço dos outros! A sociedade sofre tão grande penúria de bons mestres que saibam
ensinar a religião católica aos meninos! Tão bela vocação atrai, fascina, seduz: «Porque, diz o
generoso moço, não daria eu também minha vida para tão grande causa? Durante os poucos
anos que dura a existência humana, será possível que eu tenha alguma hesitação em sacrificar
os gozos grosseiros que o mundo apresenta e preferir-lhes as puras alegrias que se originam
na imolação e na dedicação?»

Tal trabalho interior não se faz, de ordinário, senão em pequeno número de almas
privilegiadas, nas almas que Deus marcou do caráter da vocação, nas almas em que o gérmen
divino brota debaixo do ardente sopro da graça. Numa escola ou um colégio, enquanto a
maior parte das almas estão entregues a pensamentos vulgares ou a loucos desejos de
ambição, encontram-se algumas almas tímidas, discretas, muitas vezes ignoradas de todos e
ocultas debaixo de aparências insignificativas, em que a graça opera esta ação misteriosa e
profunda que foi descrita nas linhas precedentes.

Além disto, este trabalho se faz aos poucos. No começo, os sentimentos estão confusos, as
idéias estão envolvidas em nuvens quase que impenetráveis; é um pressentimento que Deus
vai pedir alguma coisa; nada mais. Pouco tempo depois, o divino chamamento se torna mais
preciso, a visão se esclarece. Uma palavra, uma boa leitura, uma comunhão bem feita, uma
fervorosa oração, uma coisa insignificante chega muitas vezes para que a alma do menino
venha a conhecer às claras o que Deus deseja.

27. — Em numerosos casos, não há nenhum atrativo sensível ou ele é tão fraco que merece
pouca consideração e tem mínimo efeito; a determinação para a vocação é provocada por
raciocínios, pensamentos mais ou menos como o seguinte: «Na vida religiosa, no sacerdócio,
hei de salvar mais facilmente minha alma; amarei melhor a Deus; serei mais dedicado a Nossa
Senhora; poderei obter a salvação de bastantes almas, que sem mim iriam dificilmente para o
céu. Logo, quero ser sacerdote, quero abraçar a vida religiosa.»

Tal raciocínio é um caso do que se chama hoje reta intenção; antigamente era designado pela
expressão de atrativo de razão, a fim de o distinguir do atrativo de sentimento ou atrativo
sensível.

A este menino que a graça solicita, que se sente o coração norteado para a vida religiosa, de
qualquer natureza que ela seja, quero dizer agora o que ele tem de fazer para conhecer e
sustentar sua vocação

CAPÍTULO II
ESTUDO DA VOCAÇÃO

Necessidade de estudar a vocação.

28. — Suponho, jovem amigo, que de vez em quando experimentastes o desejo da vida
sacerdotal ou religiosa. Um instinto secreto vos diz, no fundo do coração, que um dia subireis
os degraus do altar ou sereis, como vossos mestres, um educador da mocidade. Donde vem
este atrativo interior? Qual é a voz que se faz ouvir no fundo de vossa alma? Se for Deus que
vos fala, é preciso obedecer-Lhe; se não for Deus que vos fala, é preciso não tomar
compromisso algum. Como reconhecer a origem de vosso atrativo? Sabê-lo-ei pelo estudo
sério de vossa vocação.

Será necessário demonstrar-vos que tal estudo é uma obrigação para vós? Não estais vendo
toda a gravidade da determinação que ides tomar quando escolherdes um estado? Se vos
enganardes de caminho, sereis certamente muito infelizes neste mundo e correreis grande
perigo de vos perder por toda a eternidade. Acreditai bem que o negócio é muito sério: não se
brinca com a vida nem com a eternidade; ninguém se deve arrojar às cegas numa carreira
qualquer, sem fazer caso dos gostos pessoais nem da vontade de Deus.
Há dois defeitos igualmente perigosos que se devem evitar: desprezar o apelo de Deus e
acreditar com demasiada facilidade em um apelo de Deus.

29. — Certos meninos, uns por falta de reflexão, outros por acanhamento, desprezam o
chamamento de Deus. Ouvem muito bem, no fundo do coração, uma voz que lhes diz: «Não
gostarias de me pertencer? Se me desses tua vida, se me sacrificasses as alegrias da terra,
obterias a graça de ser meu representante entre os homens, ganharias uma das mais belas
coroas no meu reino eterno.» Indiferentes a estas palavras, não prestam senão uma atenção
distraída. Como receiam de largar os prazeres do mundo, arrojam-se para o jogo e uma vida
de distrações, a fim de que a voz da consciência seja abafada pelos ruídos exteriores. Para
qualquer pessoa, prestariam mais respeitosa atenção; estão com medo dos sacrifícios que o
Pai celestial vai pedir-lhes. Que injúria não fazem a Deus por meio de tal procedimento!

30. — Outros, os tímidos, ouvem perfeitamente a voz interior que os chama. Mas estão com
medo de falar, não sabem como exprimir o estado de sua alma, haviam de corar se fossem
obrigados a descobrir todo o fundo de seu pensamento. Às vezes estariam com vergonha de
revelar aos pais e deixar perceber aos companheiros as aspirações elevadas que nutrem na
alma. Outras vezes permanecem mudos pelo simples efeito das circunstâncias. É debalde que
os pais lhes perguntam: «Meu filho, que queres fazer?» Têm apenas uma única resposta:
«Farei o que o Sr. quiser.» Meninos infelizes, destinados a muito sofrer, mais tarde, quando,
mais corajosos por causa da idade, eles dirão: «Não estou onde eu deveria estar; meu lugar era
na religião; um estúpido receio de criança me fechou a boca outrora e me impediu de falar.»
Para que tenhais certeza de não contrariar a vontade de Deus, jovem amigo, estudai e falai.

Outro perigo consistiria em acredita-se chamado por Deus com demasiada facilidade. Nem
todas as aspirações para a vida religiosa constituem uma vocação. Dois casos, com efeito,
podem apresentar-se em que haja o atrativo interior sem que ele seja uma prova do
chamamento divino.

31. — Quase todos os meninos, nos momentos de grande fervor sensível, experimentam uma
verdadeira inclinação para a vida religiosa. A vida religiosa lhes aparece como um ideal tão
puro, tão nobre, tão sobrehumano, que estão com vontade de elevar-se até ele e abraçá-lo para
sempre. Nestes momentos há como que vigorosos esforços que transportam a alma, por algum
tempo, até os picos mais altaneiros. Tais desejos, de ordinário, passageiros e sem grande
influência sobre o procedimento, não são, porém, um indício seguro de vocação. Já os
experimentastes, de certo, jovem amigo, pois que tendes a alma boa e sincera; vêm eles do
céu ou apenas originaram-se em um coração bem disposto? Tal é a questão que deveis
resolver.

32. — Alguns meninos consideram a vida religiosa como uma boa carreira, como um ofício
vantajoso, onde se passa uma vida suave e tranqüila, ao abrigo dos penosos trabalhos que se
abatem tão pesadamente sobre os operários e muitos outros homens. Desde a infância,
ouviram contar ao redor de si: «Olhem como os Religiosos e os Padres são felizes; têm a
existência segura; trabalham pouco, vivem bem, habitam em verdadeiros castelos... Tome esta
vocação, menino, estará certo de que nada lhe faltará.» Semelhantes discursos convencem, às
vezes, certas almas de meninos; deles resulta um vivo desejo de vida sacerdotal ou religiosa.
Mas poderá uma aspiração que se origina no interesse, tornar-se uma verdadeira vocação?
Sem dúvida, sentimentos humanos, terrestres, podem misturar-se a uma boa vocação, como a
lama e a areia de um riacho se misturam às palhetas de ouro puro; mas dá-se o caso em que
estes baixos sentimentos são os únicos e não vêm acompanhados de verdadeira vocação. Não
será necessário discernir em vossa alma a natureza dos atrativos que a solicitam? Se eles
vierem de Deus, haveis de segui-los; se vierem da terra, procurareis outro rumo.

Disposições necessárias para estudar a vocação

33. — Estais para começar este importante estudo da vocação. Para fazê-lo com fruto, três
disposições são necessárias: o espírito de oração, a indiferença e o ânimo da vontade.

34. — Por que motivo a oração? Todas as luzes nos vêm de cima. Portanto, em todas nossas
dificuldades devemos procurar a luz do lado do céu. Enquanto Deus, como um sol divino, não
se levanta acima do horizonte de nossa alma, ela permanece como que envolvida em espessas
trevas. Em que negócio a luz de Deus poderia ser-nos mais necessária do que na escolha de
um estado de vida?

Porque o negócio consiste então em descobrir qual é a vontade de Deus a nosso respeito. Este
segredo, Deus o leva no fundo de Seu Coração e não o revela senão aos que o pedem pela
oração. Oh! como Ele deseja iluminar-vos, como Ele quer dizer-vos a palavra do enigma de
vosso destino, como gosta de declarar-vos, quanto antes, que vos reservou um lugar de
predileção nas fileiras de seu exército de elite, de sua guarda de honra! mas está com a
resolução de não revelar todo o segredo se não o solicitardes. Já enunciou as primeiras sílabas
deste segredo nas palavras misteriosas que vos ecoaram fundo na consciência e vos
despertaram tantos sentimentos no coração; mas não acabará seu discurso se não o
constrangerdes a descobri-lo até o fim.

«Batei e a porta vos será aberta,» diz Ele, no Seu santo Evangelho. É pela oração que podereis
bater na porta de Deus. Até obterdes uma resposta, não vos canseis de importuná-lO. De
manhã e de noite, muitas vezes também durante o dia, interrogai-O? «Mostrai-me, Senhor, o
caminho em que devo entrar.» Fazei intervir a onipotente influência de Maria Santíssima;
nesta intenção rezai o terço todos os dias. Retirai-vos mesmo durante alguns dias, em um
lugar silencioso; longe de qualquer agitação, rezareis melhor, escutareis mais atentamente.
Nenhuma prática é mais eficaz do que o retiro para descobrir a vontade de Deus. Pedi as
orações dos que vos amam; o céu tem prazer em não ceder senão diante desta santa violência
da oração que se adianta como um exército em ordem de batalha.

Não acrediteis porém que para atender a vossa oração, Deus há de enviar-vos um anjo visível
que vos trace o caminho. Atender-vos-á sem milagre, dispondo vosso coração e dirigindo
vossos conselheiros de modo tal que façais com felicidade o que Ele decretou para vós.

35. — Quando se fala em indiferença, não se entende aquele descuido de uma alma que não
toma nenhum interesse na questão de sua vocação, que não quer experimentar nenhuma
inclinação de preferência a outra. Tal descuido é próprio de uma alma leviana e não de uma
alma séria: tal alma não procura seu norte para segui-lo depois, mas deixa-se virar para
qualquer lado como o insignificante catavento ao menor sopro; tal alma não é atraída pela luz
de Deus, antes delia foge.

A indiferença que se deve trazer no estudo da vocação, é uma dependência absoluta da


vontade de Deus. Se começardes um retiro para examinar o caminho que deveis seguir, não
deveis dizer: «Custe o que custar, quero absolutamente entrar na religião: fora dali nenhuma
outra carreira me é possível; tudo está perdido para mim se vier a perder este caminho.» Não
direis nem tão pouco: «A vida religiosa não é lá comigo; tenho demais relações que me
prendem ao mundo para que possa quebrá-las; muitos sacrifícios me seriam impostos, não
teria bastante coragem para aceitá-los.»

Em lugar de tais decisões, tomadas de antemão, antes de qualquer exame, deveis estar na
disposição seguinte: «Ao começar este estudo, este retiro, abandono-me completamente à
vontade de Deus, tal como há de me ser manifestada por meu diretor. Se for preciso renunciar
a meus desejos de vida religiosa, estou pronto a ficar no mundo onde hei de trabalhar tanto
quanto for necessário para me criar uma posição: mas de nenhum modo quero arrebatar um
lugar que não me fosse destinado. Pelo contrário, se eu souber que minha vocação é séria, que
devo segui-la, nada será capaz de me deter: quebrarei todos os vínculos, pisarei aos pés todos
os prazeres, renunciarei a adquirir riquezas, entregarei nas mãos de Deus todo meu ser
perfeitamente livre.»

36. — Uma alma precisa de muita coragem para se estabelecer nesta santa disposição de
indiferença. A pobre natureza humana gosta de agitar-se; aquietá-la, reduzi-la ao silêncio,
submetê-la ao jugo da obediência a Deus, é o trabalho de uma grande energia de caráter.

Corajoso para permanecer indiferente, deveis sê-lo também para executar a decisão que foi
tomada. Diante de uma decisão, não sejais nem hesitante, nem pusilânime.

Certos espíritos inconstantes nunca podem resolver coisa alguma: gastam as forças em
discutir o pró e o contra; nas mãos deles a balança oscila sempre; apenas parece pender para
um lado, que põem logo o dedo para que penda do outro lado. São muito para lastimar porque
perdem os melhores anos da vida em hesitações estéreis, discutindo sempre a respeito do
melhor modo de trabalhar; na realidade nunca trabalham. Se observardes em vós tal hesitação,
pedi a vosso diretor que tenha a bondade de dar-vos uma decisão categórica e vos obrigue a
segui-la sem discussão.

37. — Outros hesitam apenas por pusilanimidade, por falta de coragem. — Quando o diretor
lhes declara que não têm vocação, estão tremendo diante das consequências: se já tiverem
entrado em algum noviciado, estão com vergonha de voltar para traz, receiam por respeito
humano; os trabalhos da vida, no mundo, os espantam; as incertezas de uma nova carreira os
perturbam; seria tão fácil continuar a jornada em um caminho que estão apreciando desde
tanto tempo! — Quando o diretor lhes diz que sua vocação é séria e é preciso segui-la quanto
antes, entram a inquietar-se, a calcular, a ficar com medo: como anunciar a notícia à família e
sustentar o assalto de todos? Depois como vai ser duro deixar tudo, família, amigos, renunciar
a projetos tão caros, sacrificar tantos prazeres inocentes sepultar-se no túmulo de um
noviciado ou de um seminário! Como desconhecem as alegrias que os esperam na vida
religiosa, compreende-se que hesitem em atravessar a barreira que há de separá-los do mundo.
Mas se soubessem!...

Tende confiança, jovem amigo, e armai-vos da oração para vencer qualquer hesitação: o que
Deus vos disser, fazei-o; no caminho que vos indicar, entrai sem receio.

Necessidade de tomar conselho

38. — Em qualquer negócio é alta sabedoria o tomar conselho. Grandes temerários são
aqueles que se metem, sem conselho de ninguém, em um negócio importante. A razão indica
muito claramente que nossas luzes são limitadíssimas, que o campo alcançado por nossos
olhares é estreitíssimo: quanto mais consultarmos, tanto mais aumentaremos nossos
conhecimentos e tanto mais igualmente diminuiremos as possibilidades de erro. Se houver
uma questão que exija prudência, onde a luz deve acrescentar-se à luz, em que sejamos
obrigados a consultar os pareceres de pessoas prudentes e esclarecidas, é certamente a questão
de nossa vocação. Perder o dinheiro é muito para lastimar; perder toda a consideração diante
de nossos semelhantes é mais lastimável ainda; mas perder nossa vida, dirigindo-a para um
caminho errado, seria para nós a maior das desgraças.

É por isso que a sabedoria humana nos impõe a obrigação de pedir conselho. A vontade de
Deus nos impõe a mesma obrigação, com maior rigor ainda: porque Deus costuma revelar
seus desígnios, por intermédio de seus representantes. Vive, encarna-se de algum modo na
pessoa de nossos pais, mestres e confessores; dirige- nos, educa-nos por meio deles: quando
os interrogamos, a resposta é o mesmo parecer de Deus. Salvo alguns casos muito
excepcionais, o próprio Deus se exprime por boca deles.

Os pais.

39. — De ordinário os primeiros confidentes de vossos segredos hão de ser os pais. Contudo,
dois casos podem apresentar-se: vossa família é religiosa e podeis acreditar que gostará de
ouvir tudo quanto falardes a respeito de vocação; ou ainda, ela é indiferente, e estais com
medo que se oponha à execução de vossos desígnios.

No primeiro caso vosso procedimento é muito evidente. Não tereis gosto em abrir vosso
coração a vossa mãe, em primeiro lugar? Se tiverdes qualquer reserva, acanhamento com
vosso pai, vossa mãe falará em vosso lugar. Como supomos que vossa família é religiosa,
vossa vocação será, para todos, uma causa de grande alegria. Talvez vossos pais, desde muito
tempo, desejassem vossa vocação religiosa, sem ousar, porém, declarar-vos suas esperanças,
com receio de antecipar a ação da graça em vós. Apenas vossa mãe, e só de vez em quando,
tratou de indagar os sentimentos de vosso coração por meio de palavras muito discretas.
Agora que seus mais caros votos estão atendidos, agora que todos se ufanam pela escolha que
Deus fez na família, cada um há de falar mais claramente convoco a respeito de vossa
vocação. Os pedidos e informações para o Seminário ou o Noviciado, qualquer membro da
família os fará com gosto; os sacrifícios de tempo, de dinheiro que vai custar vossa vocação,
serão feitos com grande prazer; os bons conselhos, as tenras exortações e outros auxílios
morais de que precisais para marchar resoluto em vosso caminho novo, vos serão
prodigalizados por todos.

40. — Encontram-se, contudo, famílias cristãs que recebem com desgosto a notícia de uma
vocação religiosa para um de seus filhos. Às vezes, é o efeito de um preconceito instintivo;
outras vezes, é o efeito da decepção de esperanças humanas que se nutriam a respeito de
futuro de tal filho. Desde muito tempo os pais vos preparavam em segredo um brilhante
futuro no mundo: de repente a vocação deita abaixo o edifício deste projeto; a pena que os
pais sentem, se compreende facilmente. — Neste caso, o menino deve evitar de magoá-los por
uma proposição direta: por si mesmas as dificuldades desaparecerão se o menino proceder
com prudência. No começo, que não faça insistência alguma para ter uma resposta favorável,
mas que deixe à graça o tempo de persuadir os pais. Se o procedimento do menino revelar um
desígnio firme, se a todas as perguntas, ele der a mesma resposta, modesta e convencida, há
de ganhar, com toda a certeza, o consentimento que deseja; embora fossem precisos vários
anos de paciência, um dia, o menino há de triunfar.

41. — Bem que Deus tome de preferência as vocações nas famílias cristãs, gosta todavia de
escolher almas de elite nos meios indiferentes ou mesmo hostis à religião. O menino encontra,
então, na maior parte do tempo, vivas oposições; para triunfar, precisa de fervorosas orações e
grande prudência.

A prudência não lhe permite manifestar seus desígnios antes que tenha a total certeza da
vocação. Com efeito para que irritar-vos pais e provocar questões de família, se as provas
ainda não garantiram o apelo divino? Por isso, o procedimento mais prudente é que o menino
fale primeiro aos mestres e ao confessor: que examine com eles se o atrativo que sente vem do
céu, se possui bastante virtude para carregar o peso da vida religiosa.

Depois de ter amadurecido sua resolução, poderá descobri-la à família.

Já seu procedimento ótimo, cheio de piedade, muito diferente do comportamento dos


companheiros, será um primeiro modo de falar; a santidade de sua vida mostrará aos pais que
desejos elevados lhe fermentam na alma, que suas aspirações não são para o mundo.
Uma vez que a família tiver compreendido esta linguagem muda, será mais fácil ao menino
tentar um passo para diante: dá-lo-á suavemente, aos poucos, em várias vezes, deixando, de
quando em quando, cair palavras que acabarão por reunir-se no espírito dos pais e formular
um verdadeiro pedido.
É evidente que nesta luta discreta contra a oposição sistemática da família, o menino deve
seguir constantemente os avisos de um diretor prudente e cheio do espírito de Deus.

Os mestres.

42. — Haverá obrigação de falar aos mestres de vossas aspirações para a vida religiosa?
Distinguirei duas situações muito diferentes a respeito deles: ou a graça vos leva a entrar na
sociedade deles, ou estais inclinado para outra direção.

Se aspirardes a entrar na família deles, a ser um dia como eles, muito cedo deveis revelar-lhes
vossos desejos. Prodigalizar-vos-ão então cuidados especiais, que terão o resultado de uma
cultura mais apropriada para vosso futuro, mais proveitosa para vosso desenvolvimento
intelectual e moral. Animar-vos-ão com bons conselhos e iluminar-vos-ão com sábios avisos,
de modo que não estareis mais sozinho para lutar contra as dificuldades exteriores ou os
desalentos interiores. Incumbi-la-ão de organizar todos os preparativos de vossa próxima
admissão no Instituto deles.

43. — Mas «há numerosas moradas na casa de Deus» podeis dar-vos a Deus sem incorporar-
vos na Sociedade de vossos mestres. São eles bastante esclarecidos para compreender que
Deus sopra para onde quiser e bastante delicados para não contrariar em vós a ação divina.
Portanto não temais em revelar-lhes vossos projetos e pedir-lhes o que pensam neste ponto.
Podeis estar na ilusão a respeito de vossas aptidões; por meio deles sabereis o que podeis
esperar de vós.

Mas como falar-lhes? Aí está a dificuldade. Estais com tanto acanhamento! estais embaraçado
por uma espécie de vergonha e pelo medo. Eis dois modos de entrar em relações com vossos
mestres.

Em primeiro lugar, comportai-vos tão perfeitamente, sêde tão aplicado e tão piedoso que
vossos mestres notem que alguma coisa especial está se passando em vós. Interrogar-vos-ão
então e tereis ocasião de revelar-lhes todo vosso segredo. Os mestres têm tanto jeito para
descobrir os meninos em que a graça trabalha para a vocação religiosa!

Se, por acaso, os mestres não vos fizerem nenhuma pergunta, tendes ainda o recurso de
comunicar-lhes, sob forma de carta, o estado de vossa alma. Logo que algumas idéias
estiverem trocadas neste assumpto, tereis apenas o trabalho de responder ás perguntas que vos
serão feitas e seguir o impulso dado.

O confessor.

44. — Mas o conselheiro por excelência no negócio da vocação, é o confessor. Podeis


resolver definitivamente vossos projetos sem falar nem aos pais nem aos mestres: nada podeis
decidir sem pedir os conselhos do guia de vossa consciência. Para vós é ele o representante
mais autorizado de Deus; é o juiz mais desinteressado e mais competente ao mesmo tempo.
Com efeito, ele não tem interesse próprio na questão: para ele, o único negócio é colocar-vos
no lugar que vos compete; esforça-se apenas para descobrir a vontade de Deus. Aliás, para
conhecer esta divina vontade, dispõe de meios que não possuem nem os pais nem os mestres:
lê em vossa consciência, está a par do trabalho da graça em vós, pode comparar os recursos e
as insuficiências de vossa natureza, discerne vossas aptidões particulares.

Consultareis portanto vosso diretor espiritual. É fácil para vós, depois de uma confissão,
declarar no segredo do santo tribunal: «Meu Padre, tenho que lhe dar parte de uma idéia que
me persegue desde algum tempo: uma força interior me excita a não ficar no mundo; gostaria
da vida de retiro e de abnegação que levam os religiosos e os sacerdotes. Muitas vezes,
porém, estes desejos são combatidos por pensamentos contrários; estou com medo de não ser
digno de entrar na casa de Deus; estou com medo de ser muito fraco para cumprir as
obrigações que esta vida impõe; estou com medo que meus pais não queiram. Por isso, hesito
e não ouso falar.»

Muitas vezes os confessores facilitam estas revelações aos penitentes. Provavelmente o vosso
já vos perguntou o que pensais ser mais tarde. Quem sabe se não vos disse que Deus vos
chama talvez para a dedicação religiosa? Esta pergunta vos perturbou no começo e nada
respondestes. Mas desde aquele tempo, esta palavra germinou em vossa alma: vossos desejos
saíram do estado confuso em que estavam e tomaram uma forma precisa, uma firmeza cheia
de vigor. Parece-vos agora que vossa vocação é clara.

Veio pois a hora de estudá-la com todo o cuidado. Dirigi claramente a pergunta a vosso
confessor: «V. Rvda pensa que Deus me chame à vida religiosa?» Para resolvê-la, ele precisa
de elementos ou sinais de vocação, os quais são geralmente dois na prática: o atrativo divino e
a aptidão profissional. Examinareis pois juntos si a palavra que acabais de ouvir em vós, tem
os caracteres da voz de Deus, e si vossas aptidões são suficientes para que possais esperar o
cabal desempenho dos deveres de vossa vocação.

Sinais de vocação
45. — Deus marca as almas que escolheu para Seu serviço. Ao diretor espiritual encarregado
de dar uma decisão, não faz nenhuma revelação direta: manda-lhe apenas que examine a alma
que o interroga e veja se possui o sinal divino. Daí resulta para vós, jovem amigo, a
necessidade de revelar inteiramente vosso coração e pôr vosso diretor espiritual a par de tudo
quanto se passa em vós. Para vos facilitar aquele trabalho, vou percorrer convosco os mais
ordinários sinais de vocação. O atrativo.

46. — Frequentemente um sinal de vocação é o atrativo. Por atrativo entende-se uma


inclinação do coração que dirige a alma para uma profissão de preferência a qualquer outra. O
atrativo faz convergir todos os pensamentos, todos os sentimentos, todos os esforços, para um
fim determinado. O objeto que vos ocupa o espírito, que colocais em primeiro lugar em vossa
estima, que preferis a todos os outros, que desejais mais ardentemente, é o objeto de vosso
atrativo. Por exemplo, o moço que tem atrativo para a vida militar, não sonha senão em
manobras de soldados e divisas de oficiais; dirige todos os estudos a fim de ter bom êxito na
carreira que deseja tomar.

É uma regra geral que ninguém deve entrar em uma carreira para a qual não tem gosto; sem
atrativo, sem aptidões, sem amor pelo estado que escolher, o homem não pode deixar de
sofrer e ter mau êxito.

Mas quando se trata do estado religioso, o atrativo é mais indispensável do que para qualquer
situação no mundo. Começar um ofício sem gosto, é sempre coisa deplorável: ligar-se pelos
votos de religião sem um gosto muito pronunciado para este estado, seria uma irreparável
desgraça. Se houver uma vocação em que tenhais direito à liberdade, em que devais seguir a
inclinação de vosso coração, em que não possais experimentar nenhum constrangimento, é
certamente a vocação religiosa.

Que pena não teríeis um dia, no momento em que sentiríeis pesar-vos nos ombros o jugo de
um dever austero, se não podíeis dizer então: «Este peso, eu mesmo o tomei, eu o quis;
ninguém me violentou para impô-lo a mim: tomei-o porquê o amava; hoje, embora seja
pesado, amo-o ainda e quero carregá-lo com valentia.»

Entretanto nem todos os atrativos são uma prova que Deus nos chama. Certos atrativos são o
resultado do gênio ou de influências exteriores. Para que um atrativo venha de Deus e não da
natureza, deve ser preciso, constante, provado, desinteressado, suave e forte ao mesmo tempo.

47. — Um atrativo é preciso quando se refere a um objeto perfeitamente determinado. Um


sentimentalismo vago, que produzisse na imaginação certos estados quiméricos que se
apagassem com a reflexão, não seria verdadeiro atrativo. Se Deus vos chama, há de dizer-vos
claramente, no fundo do coração, o que quer de vós, porque vos quer, para que obras quer
empregar-vos, no sacerdócio, no ensino, ou nas obras de caridade. Os desejos, que nasceram
na oração e no recolhimento, persistem até no meio dos negócios práticos: uma visão nítida
não se dissipa entre as realidades da vida.

Mas sozinho não podeis julgar deste caráter de vosso atrativo. Nos primeiros momentos, uma
vocação não se mostra muito clara, nem precisa nas suas linhas principais; nem tão pouco a
vida se desenrola numa profética aparição, até os detalhes mais ínfimos; enfim certos
espíritos, de caráter sempre indeciso, são incapazes de exprimir com precisão o objeto de seus
desejos. Por isso é que o Diretor espiritual é o único juiz competente que possa revelar-vos
claramente o estado de vossa alma.

48. — Para ser constante, o atrativo deve ser um movimento ininterrupto do coração para seu
objeto. Fracos e vagos no começo, os desejos vão crescendo, formulam-se com uma clareza
cada vez maior, tomam posse da alma com um império cada vez mais irresistível. Como uma
semente imperceptível no princípio, a vocação cresce pouco a pouco; acaba por tornar-se
como uma poderosa árvore, que absorve toda a seiva da alma e abafa qualquer planta que
queira germinar na vizinhança. Se vosso coração oscila como o pêndulo de um relógio, indo
da direita para a esquerda, variando constantemente de direção, não se fixando em nenhum
equilíbrio, acreditai bem que não é o Espírito de Deus que vos dirige; a ação d’Ele seria
contínua; não cessaria de dirigir-vos, a despeito das perturbações causadas por vossa natureza,
na direção do polo para o qual vos atrai.

Todavia, lembrai-vos de que um coração de menino está sempre mais ou menos solicitado por
múltiplos atrativos. É inevitável que não tenhais horas de hesitação. Enquanto os magos iam
procurando o Messias, a estrela que os guiava, desapareceu por algum tempo. Preparai-vos
para suportar os eclipses da luz divina. Sobretudo quando por acaso cometerdes algumas
culpas, frequentardes companhias perigosas, fizerdes leituras suspeitas, lembrai-vos de que
vossas vistas intelectuais hão de turvar-se e não verão mais o astro que ainda está brilhando,
contudo. Quando, nas horas de arrependimento, de oração e de reflexão, os desejos nascerem
de novo, persuadi-vos bem que no fundo de vosso coração o atrativo permaneceu muito
constante.

49. — Esta constância é tanto mais segura quanto mais provado for o atrativo. Um atrativo
superficial, uma aparência de atrativo pode permanecer por muito tempo em uma alma que
nada perturba: tais são os atrativos que se esvaecem na primeira dificuldade. Quando uma
árvore resistiu por muitos anos aos ímpetos do furacão, julgais que tem profundas raízes no
chão. Do mesmo modo um atrativo é poderoso, muito arraigado em um coração, quando
triunfou de todas as tempestades. Tivestes que vencer a oposição da família? tivestes que
lutar, para salvaguardar a virtude, contra os perigos das más frequentações? Conservastes,
apesar dos sorrisos e das palavras de mofa dos colegas, vosso desejo de vida religiosa? Depois
de ouvir dizer que vossos projetos eram insensatos, irrealizáveis, que exigiriam muito
sacrifícios..., tendes esperado na Providência e conservado vossas aspirações? Quanto mais
fortes forem os assaltos de que triunfastes, tanto mais seguro deveis estar que a mão de Deus
vos sustentava a coragem e lutava a vosso lado.

50. — O sinal por excelência do atrativo divino, é a idéia sobrenatural. Quereis ser padre,
quereis ser religioso? Para que isso? Alguém perguntava um dia a um menino de treze anos,
porque desejava ser religioso, que coisas lhe agradavam neste estado: «Oh! respondeu ele,
terei que trabalhar muito menos que meu pai.» Esta vocação toda natural e baseada no
interesse, não era um apelo de Deus e não podia ter bom êxito; o menino não tinha intenção
reta.

Duas coisas, nos religiosos e nos padres, agradam a certos meninos: a honra que os cerca e a
felicidade material de que parecem gozar. Será para comer numa boa mesa, não vos calejar as
mãos como os operários ou os camponeses, não sofrer os incômodos de uma situação a
arranjar, que estais ambicionando o estado religioso? Será para gozar do respeito de todos,
ocupar lugares de honra, trajar ornamentos de brilhantes cores, que desejais entrar no
sacerdócio? Neste caso, acreditai bem que não é Deus que vos chama, porque falta-vos a
intenção reta.

No menino que Deus chama, a piedade e a dedicação ditam todos os sentimentos. O


sacerdócio e o estado religioso aparecem como meios de viver na intimidade de Deus,
agradar-Lhe, não ofendê-lO, promover-Lhe a glória, trabalhar para a salvação das almas,
servir utilmente a Igreja.

Este menino é animado de intenções retas.

De vez em quando, alguns motivos humanos se misturam também com estes fins
sobrenaturais. Fica reservado ao vosso diretor espiritual o discernimento da natureza íntima de
vossas aspirações; ele só pode dizer-vos se as preocupações humanas estão na raiz ou
simplesmente na superfície de vossos desejos.

51. — Enfim, o sopro de Deus é, ao mesmo tempo, suave e forte, nunca violento. Por ser
suave, não perturba, vai progredindo, não se irrita diante das dificuldades, mostra-se paciente
com os obstáculos momentâneos, inspira a coragem de esperar. Por ser forte, não cede nem às
ameaças nem aos atrativos contrários; uma vez que orientou um coração para um lado, não o
abandona. Exclui qualquer mal-estar, qualquer precipitação. O que vem da natureza, de
ordinário, é instável e precipitado: o que vem de Deus é perseverante e moderado.

A aptidão
52. — Desejais a vida religiosa. Vosso atrativo é nítido, constante, sobrenatural, provado;
numa palavra, tendes intenção reta: é um primeiro sinal de vocação. Para determinar-vos, um
segundo sinal é necessário, a aptidão ou idoneidade. Por esta palavra de aptidão, entendem-se
as disposições indispensáveis para desempenhar as obrigações da vida religiosa. Com efeito,
entendereis sem custo que as comunidades, assim como o clero, não são asilos onde vão
abrigar-se as pessoas incapazes de criar-se uma posição. São outras tantas legiões ou falanges,
que formam, juntas, o grande exército católico e nas quais ninguém entra senão para ser
valente soldado e ocupar um posto de honra nos combates. Antes de alistar-se nesta milícia,
cada um deve examinar suas forças e sua coragem e verificar se é capaz de ser um bom
soldado de Jesus Cristo.

A habilidade dos pretendentes deve ser examinada com grande cuidado. Como Deus não Se
contradiz em Seus atos, não pode chamar os incapazes a Seu serviço. Embora tivésseis as
mais ardentes aspirações para o sacerdócio ou a vida religiosa, este atrativo não vem de Deus
se este bom Pai não vos deu as qualidades indispensáveis para a missão que ambicionais.

Estas qualidades são: a saúde física, a inteligência suficiente, a retidão do espírito, a força da
vontade, a pureza do coração.

53. — Não é evidente que a saúde deve ser boa?

Há hospitais para recolher os doentes; nos seminários e noviciados só pessoas de boa saúde
podem ter ingresso. Os temperamentos doentios seriam um peso e não um auxílio para uma
comunidade. Em todas as famílias religiosas, prodigalizam-se os desvelos mais dedicados a
todos os membros que estão sofrendo; mas o mesmo zelo caritativo que faz cuidar dos
soldados feridos, há de servir para arredar, logo no princípio, todos quantos são incapazes de
manejar as armas.

Por exemplo, os meninos atacados de graves enfermidades, de compleição fraca,


notavelmente disformes, deverão resignar-se a nunca seguir seu atrativo se o experimentarem.
Depois de adquirir forças, melhorar o temperamento, poderão, com toda a segurança,
contentar seus desejos.

54. — A respeito do espírito, duas qualidades são necessárias: a inteligência suficiente e a


retidão do juízo.
A inteligência é suficiente quando os estudos se podem fazer com facilidade. Espíritos por
demais obtusos, aos quais não se podem inocular os primeiros elementos do saber, não podem
pretender a um lugar em comunidade alguma. Quanto ao grau maior ou menor de inteligência,
tudo depende do gênero de vida que se deve levar mais tarde.
Por exemplo, se quiserdes entrar no ensino ou no sacerdócio, precisais de sérias capacidades
intelectuais: tendes que fazer estudos, prestar exames; tereis que distribuir aos outros a ciência
das coisas divinas e das coisas humanas: ao gosto pelo trabalho, deveis unir os talentos
necessários para garantir o bom êxito.

No caso em que tiverdes mau êxito nos estudos, e mostrardes mais inclinação para os
trabalhos manuais e as coisas práticas do que para as ciências, não desanimeis: vossas
aspirações religiosas ainda podem realizar-se; porque podeis escolher uma congregação que
se dedique de preferência às obras de caridade; ou mesmo numa congregação de ensino,
podereis desempenhar um ofício em que as ciências e os títulos acadêmicos não sejam
necessários.

55. — Mas a retidão de juízo é uma qualidade essencial. Espíritos de pouco alcance, sem
brilho, contanto que sejam bem ajuizados, equilibrados, servem por toda a parte; podem
mesmo prestar grandes serviços. Os espíritos falsos, desajuizados, sempre lançam a
perturbação e a confusão por onde passam; razão pela qual os superiores devem arredá-los
com uma severidade intransigente.

Não vos pertence, de certo, julgar a retidão de vosso espírito; se fosse falso, haveria muita
dificuldade para convencer-vos disto, porque todo o espírito falso se acredita sempre muito
reto. Mas se os superiores deixam de lado vosso pedido de admissão e julgam que vosso
atrativo não vem de Deus, não façais insistência; porque os superiores nunca hesitam em
receber alguém quando lhe conhecem muito juízo: a maior parte das vezes, recusam apenas
afim de não admitir espíritos perigosos. Os outros defeitos podem ser corrigidos; um espírito
falso nunca se corrige, não há remédio para ele.

56. — Sois muito mais senhor de vossa vontade do que de vosso espírito. Sois de tal modo
senhor dela que podeis, por meio de esforços constantes, dar-lhe as qualidades que hão de
torná-la digna de vossa vocação. Estas qualidades se resumem numa só: a força. Pela força de
vontade estareis em condições de combater os defeitos de vosso gênio e praticar as virtudes de
vosso estado.

Nenhum gênio está sem defeitos: os meninos, sobretudo, precisam formar-se o caráter.
Examinai o estado em que se acha o vosso e criai coragem para lutar contra vossas más
tendências. — Sois colérico, insubordinado, independente? Acostumai-vos cedo à obediência:
porque se a docilidade vos faltasse, o jugo de uma regra religiosa havia de quebrar-vos em
lugar de vos sustentar. — Sois melancólico, triste, cismador, pouco amigo da sociedade de
vossos colegas? Violentai vossa natureza e tornai-vos amável, delicado, bondosíssimo: porque
o humor misantrópico, se permanecesse em vós, vos tornaria o flagelo da comunidade. —
Tendes inclinação para a preguiça, estais com moleza no trabalho, não cumpris vossas
obrigações senão por medo de castigos? Renunciai a um estado cujas obrigações exigem
grande força de ânimo; ou melhor, lutai com vigor contra estas desgraçadas faltas; levantai-
vos ligeiro de manhã, mostrai-vos ativo no jogo, exato em todos os deveres que vos são
impostos. A moleza de vosso gênio poderá, com algum exercício, transformar-se em grande
energia. —Sois fraco de caráter, deixando-vos dominar pelos colegas, acompanhando-os
cegamente para onde queiram, corando de parecer bom diante deles? Não sois apto para a
vida religiosa: porque Deus quer em seu exército soldados que não se pejem de servir a boa
causa e não passem para o inimigo.

Graças à energia do caráter, sereis franco, sincero, não estareis com medo de expandir-vos,
não tereis respeito humano, praticareis com denodo todos os deveres de um bom cristão, não
vos deixareis arrastar pelas más companhias, e tereis sobre vossos companheiros a boa
influência de palavras e exemplos virtuosos.

Sem dúvida, o gênio não pode ter, logo no começo, tanta perfeição e tanta grandeza moral.
Mas para acreditar que tendes vocação, não é a perfeição que deveis realizar, é o esforço
constante para alcançá-la que deveis mostrar. Se nada fizerdes para formar vossa vontade,
vossos atrativos de vocação não são sérios: pelo contrário, se lutardes contra vossas
tendências más e se vossos primeiros sucessos pressagiam a vitória, tudo vai bem do lado da
vontade.

57. — Enfim o coração também deve trazer o sinal divino. Não se manchar no lamaçal do
vício, subir até Deus sobre as asas da piedade: tal deve ser o coração que Deus escolheu.

O vício da impureza é o mais perigoso de todos para um coração que deve conservar, na
religião, a mais inviolável pureza. Portanto um menino, desde cedo estragado pela corrupção
e já incapaz de praticar a angélica virtude, não pode aspirar ao estado religioso. Não se deve
confundir, é verdade, o vício com faltas de surpresa, o hábito com fraquezas passageiras:
pecados arrependidos e apagados pelo sacramento da Penitência, não são um obstáculo à
vocação em um coração perfeitamente convertido. E mesmo, em certos casos, um menino
pode ter sido, por muito tempo, a vítima de costumes lastimáveis, e ainda aspirar à vida
religiosa, contanto que tenha vitoriosamente extirpado as raízes do mal, mas então a prova dos
hábitos de virtude deve ser mais comprida e muito mais rigorosa. A graça gosta de realizar
todos os dias tais milagres de transformação.

Certas doenças do coração são um grande obstáculo para a vida religiosa: quero falar das
tendências a procurar, nas amizades sensuais, gozos perigosíssimos. Porque, embora seja
possível deter o coração durante alguns anos num terreno tão escorregadio, é raro que uma
alma tenha bastante vigor na vontade para nunca se deixar cair. Contudo, como tão delicado
ponto é de apreciação dificílima, é unicamente ao confessor que pertence o direito de dar a
última decisão. O dever de um menino consiste em revelar exatamente suas inclinações: seja
qual for a resposta que receba depois, terá, ao menos, assegurado a paz de sua consciência.
O mesmo se deve dizer de todos os outros sinais de vocação. Como ninguém é bom juiz em
causa própria, não deveis tomar um partido sem consultar vosso diretor; abri-lhe totalmente
vossa alma de modo tal que possa discernir os últimos recantos. Contai-lhe todas vossas
culpas, todas vossas inclinações, todos os movimentos de vosso coração. Mas não vos limiteis
em descobrir o mal: dai igualmente a conhecer o bem, vossas aspirações, vossos ímpetos de
fervor, as palavras secretas que Deus vos diz durante as horas de oração, os recursos
intelectuais e morais de que dispondes. No momento em que vossa alma inteira estiver
desdobrada diante de vosso diretor, como uma folha aberta, ele distinguirá sem custo o
caminho que Deus vos traçou para mais tarde: se fordes chamado, ele o dirá, e seguireis o
rumo que vos indicar; se não fordes chamado, ele o dirá também, e então ficareis na via
comum dos cristãos.

A vocação segundo o Direito Canônico

58. — Doutrina de Roma sobre a vocação. — Em 1910, o cônego Lahitton, da diocese de


Dax, na França, publicou um livro de alta importância sobre a vocação sacerdotal ou
religiosa. Após certa polêmica, este livro foi examinado por Roma e aprovado com grande
louvor. Baseando-se na Escritura e na tradição, o digno teólogo afirmou as três teses
seguintes:

1.º Antes de ser o seminarista chamado pelo Bispo para receber a ordenação sacerdotal,
nenhum direito tinha a ela, por mais que lhe dissessem os confessores ter ele vocação ab
eterno;

2.º Da parte do ordinando, o que se chama propriamente «vocação sacerdotal», não consiste
(ao menos, não é necessário, nem é de lei ordinária) num tal atrativo ou convite do Espírito
Santo para abraçar o sacerdócio;

3.º Mas, para que o ordinando possa, com razão, ser chamado pelo Bispo, é necessário e
suficiente que ele possua: a) reta intenção, b) e idoneidade, isto é, tais dotes da graça e da
natureza, tal probidade de vida e suficiência de doutrina, que inspirem ao Prelado fundadas
esperanças que, no futuro, venha a ser um sacerdote modelar, cumpridor das obrigações do
seu estado.

Estas teses foram aprovadas e louvadas por Roma; não indicam o atrativo sensível como base
da vocação mas apenas a reta intenção e a idoneidade da parte do aspirante e a aceitação para
a ordenação da parte do Sr. Bispo.

Com leves mudanças outro tanto se pode dizer da vocação ao estado religioso.
59. — A VOCAÇÃO À VIDA RELIGIOSA SEGUNDO ROMA.

Para a vocação à vida religiosa, o cânone 538 do Código de Direito Canônico enuncia
claramente quatro sinais que deve possuir o aspirante; eis o texto deste artigo:

Na Religião, pode ser admitido — qualquer católico, não ligado por algum impedimento, —
que seja movido por reta intenção, — e pareça idôneo para suportar a vida religiosa.

Como se vê, nada de atrativo sensível, nada de voz interior misteriosa para chamar o
candidato; contam-se numerosas e excelentes vocações que se decidiram apenas por motivos
de razão, de juízo e não de sensibilidade.

Portanto, as condições necessárias e suficientes para se conhecer se alguém tem ou não tem
vocação para a vida religiosa, são quatro, a saber: 1.° ser católico; 2.° não ter impedimento; —
3.° ter reta intenção; — 4.° ser idôneo.

1.ª Condição. —A condição que seja católico qualquer aspirante à vida religiosa, está muito
clara e dispensa comentários.

2.ª Condição. — Os impedimentos canônicos que fecham as portas da vida religiosa, são
indicados pelo cânone 542 e divididos em duas categorias: 1.° os dirimentes, que anulam o
noviciado desde a entrada; 2.° os impedientes, que não anulam o noviciado mas o tornam
ilícito, de modo que um pretendente que tivesse um destes impedimentos e começasse o
noviciado calando-o, cometeria pecado.

Os impedimentos que anulam a entrada no noviciado são 8, a saber:

1.º ter aderido a uma seita acatólica;


2.º não ter a idade requerida para o noviciado (em geral, 15 anos completos);
3.º entrar no noviciado, forçado (por medo, por violência ou por engano); — igual nulidade se
o superior fosse forçado a receber o noviço;
4.º ser casado (enquanto vive o outro cônjuge);
5.º ter já feito profissão em outra ordem religiosa;
6.º ser criminoso ameaçado de sentença judiciária;
7.º ser bispo, mesmo que apenas fosse preconizado;
8.º para um clérigo, ter compromisso com seu bispo, de servir na diocese.

Quem tiver qualquer um destes 8 impedimentos tem recepção nula em qualquer noviciado; se
for descoberto terá que retirar-se.

Os impedimentos impedientes são cinco, a saber:


1.º para um clérigo, mesmo livre de compromisso com seu bispo, entrar no noviciado, sem
licença do seu bispo ou contra a sua licença;
2.º ter dívidas a pagar;
3.º ter que prestar contas complicadas, com perigo de comprometer mais tarde a ordem
religiosa;
4.º ser o único arrimo de parentes (pai, mãe, avô, avó) gravemente necessitados; o mesmo se
dá para os pais que deixassem filhos menores sem alimento e sem meios de educação;
5.º os católicos de rito oriental não podem entrar em Religião de rito latino sem licença de
Roma.
Quem tem algum destes impedimentos e entra no noviciado calando-se, comete um pecado;
mas o noviciado é válido apesar disto, porque estes impedimentos são apenas impedientes.

3.ª Condição. — A 3.ª condição exigida é a reta intenção. Cada aspirante deve examinar-se e
ver quais são os motivos que o levam a abraçar a vida religiosa.

Eis alguns exemplos de intenção nobilíssima para entrar na Religião:

- Fugir do mundo onde há numerosas ocasiões de pecar e perder a alma;


- Progredir no amor de Deus e na santidade, o que é facílimo na Religião e muito custoso no
século;
- Salvar as almas por meio da oração, do ensino ou de qualquer ramo de apostolado;
- Reparar os próprios pecados ou as faltas alheias;
- Obter a salvação de algum ente querido, como a do pai, da mãe, de algum parente ou amigo;
- Tratar de alcançar a palma do martírio, procurando ir a algum país de missão onde os pagãos
matam os cristãos.

Eis casos de intenções não retas, condenáveis, sinais certíssimos de que o pretendente não tem
vocação:

- Arranjar «vida cômoda»,— «sem muito trabalho» porque se pensa que na Religião a gente
passa bem;
- Ter o intuito de fazer fortuna, — de avançar na vida, de alcançar dignidades eclesiásticas.

4.ª Condição. — A idoneidade é a 4.ª condição exigida do candidato à Religião; consiste em


tais dotes da graça e da natureza, em tal probidade de vida e suficiência de doutrina, que
inspirem aos superiores da Religião fundadas esperanças que o pretendente venha a ser
Religioso modelo, cumpridor dos deveres do seu estado.

Quem é juiz da intenção reta é a própria consciência do candidato à vida religiosa.


Quem tem qualidade para verificar a idoneidade, não pode ser o aspirante à vida religiosa,
pois que seus juízos são suspeitos de interesse pessoal; mas a decisão, neste caso, compete em
primeiro lugar ao confessor ou diretor espiritual e, de modo definitivo e irrefutável, ao
superior provincial do instituto religioso escolhido pelo pretendente.

De modo que, em definitiva, a vocação religiosa se resume em: ter aptidão e vontade da parte
do candidato aceitação da parte do superior.

Esta doutrina é confirmada pelo catecismo do concilio de Trento que diz: Quem é chamado
pelos ministros ilegítimos da Igreja tem vocação legitima.

60. — SINAIS DE IDONEIDADE. — Acabamos de ver que há dois tribunais competentes


para decidir da idoneidade de um aspirante à Religião: o confessor e o superior provincial.

Para um coração generoso, apresenta-se facilmente seguinte dúvida: «Quem sabe se Deus não
me chama à vida religiosa?”. Quem sabe se eu não deveria consultar os cais tribunais
competentes a respeito da minha idoneidade para a Religião? Se eu fosse recusado, a
humilhação seria tão grande que não ouso arriscar a tentativa.»

Para resolver esta dúvida a respeito da idoneidade, a mestres da vida espiritual apontam
alguns sinais ou rotas que permitem a um coração piedoso reconhecer com grande
probabilidade se é idôneo ou não o é.

Quando verifica esta probabilidade, o interessado começa então a ter certa obrigação moral
em resolver totalmente o seu caso e consultar os dois tribunais supracitados.

Depois de refletir seriamente sobre o assunto, se o interessado não descobrir em si vestígio


algum de idoneidade, é evidente então que não tem obrigação alguma para consultar.

SINAIS DE PROVÁVEL IDONEIDADE

Eis alguns sinais de provável idoneidade para a vida religiosa ou sacerdotal:

1.º Sentir inclinação para a vida religiosa ou sacerdotal, em geral, vagamente;

2.º Pensar frequentes vezes na necessidade de fugir do mundo a fim de salvar a alma;

3.º Uma suave inclinação para a virtude da castidade, embora acompanhada de tentações
contrárias em vários casos, pois a história mostra inúmeros santos que alcançaram grandes
vitórias somente depois de terríveis lutas;
4.º Certo atrativo para a oração, em geral, — para as leituras piedosas, — para as cerimônias
da igreja, etc.;

5.º O zelo para salvar almas, o desejo de ensinar o catecismo, de dar a conhecer a religião aos
ignorantes, etc.;

6.º Algum atrativo para o silêncio, — para a solidão, — embora misturado de tentações para o
mundo;

7.º Amor aos estudos sérios, — mesmo que a natureza incline também para a preguiça ou
leviandades;

8.º Respeito, em geral, para a autoridade legítima, apesar de algum instinto de revolta;

9.º Refletir muitas vezes sobre a vaidade do mundo, de suas grandezas; — ponderar como
tudo passa, etc.;

10.º Certa convicção íntima de que «se eu permanecer no mundo, serei condenado;» este sinal
é dado por santo Afonso de Ligório assim como o seguinte:

11.º Depois de fervorosa confissão, passar «muito tempo sem recair no pecado;».

12.º Ter saúde forte ou pelo menos regular, contanto que não sofra de moléstia contagiosa;

13.º Possuir um gênio franco, aberto, expansivo, comunicativo;

14.º Ter um exterior decente, razoável, sociável, isto é, não ter deformidade notável
repugnante;

15.º Ser filho legítimo; ter boa índole (cânone 1.363);

16.º O Pe. William Doyle, no seu tratado da vocação, além dos sobreditos casos de provável
idoneidade, cita outro curiosíssimo, a saber: ser alguém perseguido por insistente medo de ter
vocação. Nisto, vê ele refinada tentação diabólica, que foi muito comum na vida dos grandes
santos. Numerosos são os que chegaram a rezar para não terem vocação e que mais tarde
foram ótimos religiosos.

Ao terminar, é preciso dizer que os precedentes sinais de provável idoneidade não são os
únicos nem tão pouco são infalíveis.
Certos pretendentes possuíam tal ou tal destes sinais e entretanto não tinham verdadeira
vocação.

Outros cristãos desprovidos destes indícios exteriores, revelaram séria vocação por meio de
outras provas.

De modo, que o único modo certíssimo de averiguar a idoneidade é consultar o confessor e


depois o superior provincial do instituto em que se projeta entrar. É a confirmação do
princípio do catecismo do concílio de Trento: tem vocação legítima aquele que é chamado
pelos ministros legítimos da Igreja (Ver o Mensageiro do Coração de Jesus, n.° 486).

Escolha de uma vocação particular

62. — Suponhamos que vosso diretor vos diga: «Meu menino, creio ver claramente que Deus
vos chama a Seu serviço; deveis renunciar ao mundo e entrar em religião.» Estará acabado o
estudo da questão? Fica ainda uma parte secundária a decidir, que tem bastante importância:
Que lugar ocuparei na religião? Para os moços, a questão é a seguinte: «Hei de entrar no
sacerdócio ou consagrar minha vida à educação da juventude em um Instituto de Irmãos?» No
sacerdócio pode-se escolher o clero secular, que administra as paróquias, ou o clero regular,
que vive em comunidade e se consagra ao serviço da educação e das missões. Se quiserdes
entrar numa congregação, será ainda preciso ver que sociedade religiosa deveis preferir.

Para as moças a questão se divide também. Que deverá preferir essa moça, as obras de
caridade ou as obras de educação? As missões longínquas, os hospitais, os asilos de pobres, os
doentes a domicílio, as escolas e os colégios solicitam, com efeito, o zelo de todos e reclamam
numerosíssimas vocações. Depois de escolher entre a caridade e a educação, resta ainda
determinar a sociedade religiosa na qual se deve entrar.

Todas estas questões se resolvem muito mais facilmente que a questão capital da vocação.
Uma vez que alguém resolveu deixar o mundo, uma vez que a família consentiu ao sacrifício,
a escolha do caminho particular que se deve seguir, pode fazer-se depressa.

63. — Com efeito, as diferentes comunidades não se distinguem senão por diferenças pouco
importantes: por toda a parte a profissão religiosa impõe os mesmos votos, a regra estabelece
os mesmos exercícios de piedade, os superiores exercem a mesma autoridade, os religiosos
vivem longe do mundo e de seus prazeres insensatos. Todos os modos de vida religiosa se
assemelham: discutir muito tempo aquele que tomaremos, seria desperdiçar os dias e expor-
nos a perder a vocação. Tenhamos confiança que Deus estará conosco, seja qual for a
comunidade que nos der asilo.

Contudo é justo que cada menino escolha a sociedade que prefere. No meio escolhido por
livre vontade, sentir-se-á mais feliz e poderá ser mais virtuoso. Quantos aborrecimentos,
quantos desânimos, quantas faltas haveria um dia para o religioso que pudesse dizer: « Se
estou nesta sociedade onde sofro, é que alguém fez violência a meus atrativos.» Muito mais
forte contra a tentação é o religioso que vive no lugar que amou e escolheu por espontânea
vontade.

Mas esta escolha deve ser esclarecida. Para fazê-la com todo o conhecimento de causa, o
adolescente deve considerar dois pontos: 1.° O modo de vida que se leva, as boas obras que se
praticam na comunidade que tem suas simpatias; — 2.° se os atrativos e as aptidões que o
distinguem terão plena satisfação nesta congregação.

Não se deve, portanto, ir de vistas fechadas para qualquer noviciado: antes de tudo, tomai
conhecimento das provas que vos esperam, dos trabalhos que vos serão impostos. As
surpresas são perigosas: são a causa mais ordinária das numerosas defecções que entristecem
os superiores de comunidades. Para que serve esconder aos meninos as dificuldades reais da
vida religiosa? Tanto mais que as próprias dificuldades e as austeridades são antes um
estímulo para seu ardor juvenil.

Uma vez a par da vida e dos trabalhos de uma comunidade, o menino se considera a si mesmo
para saber:

1.° Se terá forças morais suficientes para suportar o peso dos deveres 2.° Se suas aptidões e
gostos pessoais serão satisfeitos.

A maior parte dos meninos têm disposições para toda a espécie de trabalhos: mediante uma
formação particular, podem adaptar-se a qualquer gênero de ocupações, obras de caridade ou
de ensino. Todavia alguns meninos têm inclinações particulares muito pronunciadas, uns para
o ensino, outros para a caridade: é uma indicação providencial que seria perigoso contrariar.

64. — Em geral, a Providência mesma se encarrega de mostrar ao menino o caminho que


deve seguir. — Eis um menino que quer absolutamente ser religioso; em religião, aprenderá a
desempenhar todos os empregos que seus superiores poderão confiar-lhe. Mas conhece
apenas uma comunidade religiosa, a que o educou. Não será justo que entre nesta família que
já ama e da qual ele é filho? — Tal outro menino possui maravilhosas disposições para os
estudos: quer ser professor. Porque não havia de entrar na falange dos educadores que lhe
formaram a alma? — Outro menino anela para dedicar-se às missões longínquas: uma vez
adquirido este ponto, entre ele na sociedade que ele tem a felicidade de conhecer: para que
serve hesitar muito tempo entre as várias sociedades de missionários?

Na realidade, é deste modo que se passam as coisas: os meninos sequiosos do devotamento


religioso, entram na comunidade que os formou. Nada é mais justo: as sociedades religiosas
vivem então dos frutos do campo onde trabalham.
Mesmo para esta escolha particular, o diretor espiritual deve ser consultado. Só ele pode
preservar um menino contra a ilusão, contra um movimento passageiro, contra entusiasmos
pueris. A respeito de vocação pode-se dar aos meninos, como regra áurea, o aviso seguinte:
«Não dar nenhum passo, sobretudo não tomar nenhuma decisão sem o consentimento prévio
do confessor.»

CAPÍTULO III
COMO CORRESPONDER À VOCAÇÃO

65. — Estareis com a alma em paz, jovem amigo, depois de receber o aviso de vosso diretor.
A palavra dele, que vossa fé há de considerar como a própria palavra de Deus, acabará com
toda a indecisão e vos fixará as idéias. Se ele vos dissesse: «Meu menino, procurai uma
carreira no mundo, porque o estado religioso está acima de vossas forças;» não deveríeis
hesitar um só instante em sacrificar vossas primeiras esperanças. Mas se ele vos respondeu:
Tenho fé que Deus vos chama, meu menino: preparai-vos para segui-lO;» não hesiteis tão
pouco e considerai esta decisão como um oráculo do céu. Então não tendes mais dúvida
alguma; sereis sacerdote ou religioso; estais vendo o caminho que Deus vos abre. Novas
obrigações vos aguardam agora. Uma vez conhecida a vocação devemos nos tornar dignos
dela; quando se sabe claramente o desejo de Deus, é preciso corresponder a ele; quando o
caminho está traçado, é preciso andar por ele. Tudo isso se chama corresponder à vocação.

Para corresponder à vossa vocação tendes três coisas a fazer: separar-vos, formar-vos,
conservar-vos. É o que devo ainda explicar-vos com alguns pormenores.

I. A SEPARAÇÃO

66. — Pois que Deus vos escolheu e vos marcou com o sinal da vocação, é justo que lhe
pertençais. Para lhe pertencer é necessário romper todos os vínculos: vínculos do pecado em
primeiro lugar, depois os vínculos do mundo, enfim os vínculos da própria família.

1.º Renunciar ao pecado.

67. — O grande inimigo de Deus é o pecado. O pecado grave, com efeito, expulsa Deus da
alma para se apoderar dela. Que injúria seria para Deus, se, depois de resolver dar-vos a ele na
religião, deixásseis ainda o pecado dominar em vós! Por isso é que vosso primeiro dever é
combater energicamente para defender vossa alma contra os assaltos do demônio.

Talvez, até agora, tenhais conservado a inocência batismal. Como teríeis a ousadia de perdê-
la, no momento em que desejais dedicar a Deus vossa alma como um templo sagrado?
Mas pode ser que tenhais perdido a primeira inocência. Surpreendido pelas primeiras
perturbações da adolescência, arrastado pelos exemplos de companheiros perversos, pecastes.
É uma desgraça muito grande, da qual as almas religiosas nunca se consolam. Mas, graças a
Deus, as devastações do pecado não são irreparáveis: no sacramento de Penitência, as
lágrimas de vosso arrependimento, misturadas com o sangue de Jesus Cristo, apagaram todas
as nódoas e vos restituíram a vida. A inocência foi recuperada.

Conservada ou recuperada, dora em diante esta inocência deve permanecer intacta em vosso
coração. Estais com firme vontade de não pecar mais. Mas a vontade não basta: é preciso
tomar os meios.

68. — Com efeito, rudes assaltos hão de fazer-se contra vossa virtude: vossa inocência será o
prêmio de vossos combates. Inimigos terríveis hão de nascer dentro de vós mesmo e
persuadir-vos de vos deixar escorregar no abismo dos maus prazeres. Se cederdes um
pouquinho diante das primeiras tentações, se quiserdes provar, por pouco que seja, a taça
envenenada, em breve tereis a morte espiritual: portanto é preciso resistir logo, desde as
primeiras instigações do mal.

A estas inclinações da natureza sensual, unir-se-ão os atrativos exteriores: o mundo esforçar-


se-á por seduzir-vos por meio de suas falsas máximas e seus prazeres enganadores; o exemplo
de companheiros corruptos vos deixará acreditar, em certos momentos, que o mal talvez não
seja o mal, que a virtude talvez não esteja ao alcance do homem; certa vergonha mal
entendida de que sejais o único menino recatado e puro no meio de uma sociedade pervertida,
talvez vos enfraqueça a coragem. Oh! como é difícil manter-se firme no bem, quando tantas
correntes arrastam para o mal!Para vencer, nesta guerra encarniçada, três coisas são
necessárias: o auxílio de um bom diretor, orações fervorosas, esforços de vontade.

69. — Um diretor prudente vos indicará o que é mau, mostrar-vos-á onde está o perigo,
prevenir-vos-á contra as surpresas. Revelar-lhe-eis o fundo de vosso coração, vossas
perturbações, desânimos, se houver. Na luta, é ele que vos indicará a tática e o modo de
manejar as armas. Nada lhe escondais: a menor dissimulação tornar-se-ia para vós uma causa
de ruína moral. Se ele parecer severo, não vos espanteis: porque sua severidade se dirige toda
contra o pecado e não contra vós; para vossa alma, possui apenas ternura e dedicação.

A oração há de atrair-vos a graça de Deus. Rezar é absolutamente necessário; porque não


triunfareis senão pela graça; e a graça, na sua plenitude, não é dada senão à alma que reza.
Sede um menino piedoso e nunca haveis de pecar. Recomendo-vos, de modo especial, a
santíssima comunhão, a devoção a Nossa Senhora: o divino corpo de Jesus Cristo purifica e
fortifica as almas; Nossa Senhora mostrou-Se sempre a protetora dos corações puros.
Contudo, para alguém que é mole e inativo, os socorros mais poderosos de nada servem.
Apesar de tudo, permaneceis livre de ser bom ou mau. Deus vos entrega várias armas que
vosso diretor espiritual vos ensina a manejar. Mas se vossos braços, preguiçosos e sem vigor,
não tiverem a coragem de mover-se, sereis um vencido, não há a menor dúvida. O esforço que
se exige de vossa parte, é que fujais das sociedades perigosas, nunca permaneçais
desocupado, eviteis as leituras suspeitas, nunca fiqueis complacente e impassível diante da
tentação e peçais o auxílio de Deus cada vez que o demônio vos ataca.

Todavia, se viésseis a sucumbir, oh! não hesiteis em recorrer a vosso confessor. Deus é bom
pai e pastor condescende. Entende que uma ovelha erre o caminho e receba ferimentos; logo
corre-lhe atrás e apresenta-lhe os braços e não quer que ela fuja diante de Suas
misericordiosas carícias. Quem não gostará muito desta bela palavra de S. João, o apóstolo
que Jesus amava particularmente: «Meus filhinhos, escrevo-vos isto para que não pequeis;
mas se por acaso pecardes, não vos esqueçais de que temos perante o Pai um advogado
omnipotente, Jesus o Santo!»

2.º Separar-vos do mundo.

2.º Separar-vos do mundo.

70. — Para evitar a morte do pecado, o melhor modo é subtrair-vos ao perigo. Ora, o grande
perigo para as almas, é o contacto do mundo. «O mundo está inteiramente mergulhado no
mal»: o ar que se respira nele é um veneno para a alma. Suas máximas alteram o espírito, seus
exemplos corrompem o coração. Quantas vezes não se ouvem moços a dizerem: «Em tal
cidade, parece que se respira o mal.»

Mas o mundo, este mundo amaldiçoado pelo Salvador, felizmente não está por toda a parte.
Mesmo antes de entrar numa comunidade religiosa, podeis viver longe do mundo, preservar-
vos da atmosfera pestilencial que suas emanações impuras criam. O mundo de que é preciso
fugir, consiste nos companheiros perigosos, nas festas e nos prazeres mundanos, nas vaidades
e bens da terra.

Pois que já vos separastes do mundo e vos dedicastes a Deus em vosso coração, é justo que o
mostreis exteriormente por vosso procedimento. Se o público notar vossa resolução de ser
religioso, entenderá facilmente que tenhais uma vida retirada, que eviteis as frequentações
suspeitas, que não assistais às festas, aos espetáculos, etc., onde os mundanos se divertem e
muitas vezes se perdem, que eviteis de atrair os olhares pela ostentação, a vaidade ou o desejo
de agradar...

Entretanto não ficareis isolado. Encontrareis uma sociedade, sem perigo para vossa alma, nas
pessoas religiosas que visitareis com assiduidade, nos atos de zelo a que vos entregareis com
atividade, na convivência de Jesus Eucarístico que visitareis muitas vezes no seu templo. Não
conhecereis, em vossa cidade, outras ruas que as que vão da casa paterna para a igreja, para
vossa família religiosa ou para vossa escola. O jovem aspirante ao sacerdócio frequenta o
clero; aquele que deseja ser religioso procura a companhia dos que hão de ser seus irmãos em
breve. Para todos a casa paterna é um lugar bom; salvo raras exceções, os meninos
conservam-se virtuosos na sociedade do pai e da mãe, ao contacto dos irmãos e das irmãs.

3. ° Abandonar a família.

71. — A própria família, por mais religiosa que seja, há de ser abandonada. Nada é doloroso
como partir os vínculos, ao mesmo tempo suaves e fortes, que nos prendem aos pais.
Entretanto, por mais funda que venha a ser a ferida, cedo ou tarde, será preciso sofrê-la.

Em que idade se deve deixar a família? Como realizar esta separação?

Em geral, é melhor abandonar a família cedo, logo que for conhecida a vocação. Com efeito,
se o contágio do mundo prova algumas vocações, com grande facilidade também arruína e
destrói bom número de outras. Ainda mais, a vocação religiosa exige longa formação, muitas
vezes estudos demorados, que não são possíveis senão para espíritos ainda tenros e maleáveis.
Por exemplo, um aspirante ao sacerdócio entra no seminário menor antes dos quatorze anos.
Os Irmãos educadores instituíram também juvenatos ou noviciados menores onde os meninos
entram muito cedo, desde a primeira comunhão; ali, a vocação deles está mais abrigada do
que em qualquer outro lugar. Em certas comunidades de religiosas existem igualmente
juvenatos onde donzelas piedosas se preparam de longe à profissão religiosa.

Na idade de doze para treze anos, um menino inteligente já sabe o que quer ser: não é possível
surpreender-lhe a ingenuidade convidando-o a entrar em um seminário menor ou um
juvenato. Aliás, um erro, se existisse, seria fácil a emendar. O menino sem vocação se
aborrece a tal ponto no meio da austeridade dos noviciados, que não pode aguentar-lhes as
práticas; as portas estão bastante abertas para que torne a tomar a liberdade. Longe de
conservá-lo à viva força, os superiores antes precisam insistir para pô-lo de novo no seu
caminho e enviá-lo outra vez para o mundo.

72. — Mas, muitas vezes, a família se ergue como uma barreira entre o menino e o noviciado
religioso. Em alguns casos um menino é indispensável à família para ajudar o pai nos
trabalhos diários, ou à mãe em casa, para tomar conta de irmãos menores, para aliviar pais
enfermos; são necessidades providenciais às quais não é bom subtrair-se; porque tais deveres
constituem uma vocação cuja nobreza não é menor que a do religioso hospitaleiro ou da irmã
de caridade. Quando um menino vem a ser livre por causa da situação da família, então siga
ele seus atrativos para a vida religiosa: nada pode ser melhor; mas enquanto a piedade filial
exigir que um menino se dedique em favor dos pais, saiba ele que seu convento é o lar
doméstico.

Em outros casos um menino permanece em casa porque a família quer provar a vocação dele,
porque os pais se opõem a esta vocação. É então que este menino deve usar de grande
prudência e afetuosíssima delicadeza, para obter suavemente o consenso e a bênção de que
precisa. Deverá rezar muito, porque Deus segura todos os corações em sua mão e pode dirigi-
los para onde quiser.

Deverá levar no mundo uma vida tão religiosa, tão retirada, tão austera, que os pais tenham
plena certeza de que a coragem não lhe faltará para suportar os rigores da vida de
comunidade. Enfim, por meio de certos atos mais carinhosos e casos múltiplos de piedade
mais filial, deverá mostrar que o amor da família não é apagado pela vocação, e que, afinal de
contas, um filho pertence tanto mais à família quanto mais perfeitamente se consagrar a Deus.
Certos meninos são admiráveis nos meios que seu zelo juvenil inventa para ganhar o coração
dos pais em favor de sua vocação.

73. — Cedo ou tarde, tereis o consenso de vossa família. Será o momento favorável para sair.
Neste instante dolorosíssimo à natureza, usareis de procedimento mais delicado para suavizar
a pena dos pais. Dois sentimentos então vos serão necessários. O primeiro será o de um vivo e
sincero afeto por eles; vejam bem eles que os amais, que o sacrifício vos rasga o próprio
coração, que precisais de toda a irresistível força de um apelo divino para vos resolver à
separação. O segundo sentimento será o de uma grande firmeza de resolução: não hesiteis,
não cedais, não tenhais dúvidas por causa de saudades; parecer inquieto a respeito de vosso
futuro, inconsolável por causa dos sacrifícios, seria despedaçar o coração de vossos pais;
porque, na dor que os crucia, têm eles um lenitivo quando podem dizer: «Ao menos, nosso
menino será feliz, pois que mostra tanta coragem para ir aonde Deus o chama.»

Uma vez todos os liames rompidos um depois de outro, cantareis como David: «Senhor,
quebrastes meus grilhões; oferecer-vos-ei o sacrifício de minha gratidão e abençoarei vosso
santo nome.»

A FORMAÇÃO

74. — Pela separação, ganhais a liberdade da qual usais para voar logo a Deus. Achais Deus,
cuja voz vos atraia no Seminário ou na Congregação religiosa onde ides abrigar vossa
juventude.

Mas ainda nem tudo acabou. Pelo contrário, estais apenas no início de uma vida nova, na
entrada de uma carreira. Trata-se agora de trabalhar à vossa formação para que sejais digno de
vossa vocação e adquirais a habilidade necessária para desempenhar utilmente todas suas
obrigações.
Desde o dia em que vosso diretor espiritual resolveu a questão de vossa vocação, contraístes
em consciência a obrigação de formar-vos. Portanto, quer estejais ainda no mundo, quer
tenhais entrado em um noviciado, vosso grande negócio agora é o de vossa formação.

A formação do sacerdote e do religioso compreende quatro partes: a vida sobrenatural, o


caráter, a habilidade profissional, o zelo apostólico.

A vida sobrenatural.

75. — Começareis por estudar o que é a vida sobrenatural: deveis ter santa avidez de receber
esta lição fundamental e para isto gostareis de ouvir as conversas e leituras espirituais, assim
como de estudar livros piedosos e ascéticos que tratam deste ponto. No mesmo tempo, ireis
bebê-la com abundância e santa avidez na sua própria fonte, que é o coração mesmo de Jesus
Cristo, por meio da oração e dos sacramentos.

Não vos admireis de que vossos mestres, logo que entrais em um seminário ou noviciado
religioso, tenham pressa em ensinar-vos esta ciência divina. Antes de conhecer as ciências
humanas, antes de fazer de vós um professor que ensine aos outros, não é justo que alguém
vos diga que vida interior deveis alimentar em vossa alma? Nenhuma vida é sólida e meritória
senão a vida sobrenatural que Deus nos comunica.

76. — Eis em poucas palavras o resumo do que aprendereis nesta matéria: Vossa alma é um
templo que Deus se reservou e onde habita como em um tabernáculo. — Enquanto não
pecardes mortalmente, Deus está presente em vós por Sua graça, e todo o céu está com Ele.
— No coração que o pecado suja, a graça foge e deixa lugar ao demônio, que logo entra. —
Mas não haveis de expulsar Deus da morada de vosso coração, pois que estais com firme
resolução de nunca pecar. — Se Deus habita em vós, não é para ficar inativo, mas para viver.

Mas como Jesus Cristo poderá viver em nós? Ali está o glorioso mistério de nossa união com
Deus. — Do trono em que está sentado em nossa alma, Jesus Cristo nos ilumina o espírito,
inspira grandes idéias, generosos projetos; fortifica a vontade, dá-lhe a força de executar atos
de coragem, serve-se de nós como que de instrumentos dóceis para lhe cumprir as vontades.
— Para Jesus não são bastantes todos os atos de religião, de humildade, de mortificação, de
caridade, de dedicação que Ele mesmo cumpriu durante a vida; quer continuar, em cada um
dos fiéis, a glorificar seu Pai e a servir o próximo. 77. — O que faz nosso merecimento, é que
poderíamos impedi-lo de trabalhar em nós, poderíamos arrancar-lhe o instrumento de que
precisa. — O que faz a sublime grandeza de nossos atos, é que o próprio Deus, por sua graça,
os cumpre em nós.
Uma vez instruídos disto, como poderíamos recusar de atender aos pedidos de Jesus? Porque
não havíamos de consultá-lo antes de cada um de nossos atos? Que infidelidade não haveria
em desagradar-lhe, mesmo por meio de simples imperfeições! Quão grande se sente o cristão,
pois que tem a certeza de poder repetir com S. Paulo: «Vivo, sem dúvida, mas não sou mais
eu que vivo, é Jesus Cristo que vive em mim!»

Iniciado em boa hora a esta sublime doutrina, tereis apenas um desejo, o de possuir com
abundância tão preciosa vida. Pedireis a vossos mestres a que fontes ela se encontra e eles vos
responderão: «Ide á oração e aos sacramentos.» — A oração é o pão quotidiano do sacerdote e
do religioso; gostar da oração deve ser o primeiro ato de sua formação. Pela oração, entrais
em comércio com Deus; quando o adorais no céu, no tabernáculo ou em vosso próprio
coração, travais conversa com Ele. Nesta troca de palavras íntimas, Deus vos revela o que Ele
é, o que fez em vosso favor, o que está esperando; vós lhe dizeis o que estais sofrendo e lhe
entregais vossa vida. No momento em que o contemplais tão grande e tão bondoso ao mesmo
tempo, ides a ele com mais confiança; tendes a coragem de lançar-vos nos seus braços com
todas vossas misérias e vos deixar amoldar por sua mão, impregnar por sua vida, transfigurar
por sua graça. Felizes comunicações da santa oração, donde voltais com a alma iluminada, o
coração abrasado, como Moisés ao sair do monte Sinai!

As alegrias destas relações com Deus, haveis de gozá-las sobretudo no começo de vossa
formação. Tereis orações vocais, orações mentais; por toda a parte, Deus virá a vosso
encontro, com as mãos cheias de graça. Mesmo fora dos exercícios de piedade, não perdereis
de vista a Deus que está sempre presente em vós. Por um recolhimento sem constrangimento,
calmo e suave, ficareis unido a Ele. Uma vez tomado o bom hábito da presença de Deus, não
vos separareis mais d’Ele; até no meio dos negócios, a lembrança d’Ele há de acompanhar-
vos.

78. — Mas o contato com Deus será ainda mais íntimo nos sacramentos. Pela Penitência
recebereis um acréscimo de vida. Pela Comunhão recebereis o próprio Jesus, o autor da vida.

Será possível recomendar-vos demais a frequente comunhão, a comunhão quotidiana? Neste


ponto, seguireis os avisos de vosso diretor espiritual; mas deveis pedir-lhe com muita
coragem e insistência que vos permita todos os dias ou muitas vezes a santa comunhão.
Recebermos o próprio Deus em nosso coração, alimentarmo-nos da carne e do sangue de
Jesus Cristo, que coisa maior e mais nobre podemos invejar? Não receeis que vossa avidez
desagrade a Deus; não receeis tão pouco a vossa grande indignidade. Ide comer a bondade, a
doçura, a humildade, a própria força e haveis de ser um dia bom, suave, humilde e forte. Baste
esta palavra e acreditai que Jesus Cristo, recebido como se deve, há de dar á vossa alma a
formação necessária [1].
[1] Neste ponto seguir os conselhos de S. Santidade Pio X que aconselhou muito a comunhão
quotidiana a todos os fiéis e de modo especial aos aspirantes ao sacerdócio e á vida religiosa.

2.º O caráter.

79. — A vida divina é uma força entregue em vossas mãos: vossa obrigação é tirar proveito
dela. Seja qual for o que empreenderdes, não estareis sozinho a trabalhar: Deus mesmo
tomará parte em tudo quanto fizerdes.

Ora, o objeto principal que deveis ter em vista, é a formação de vosso caráter. Em um sentido
geral, a palavra caráter ou gênio designa aquilo pelo qual um homem é o que é. Nosso caráter
se compõe, ao mesmo tempo, de nossos defeitos e nossas qualidades: por conseguinte a
formação de nosso caráter consiste na correção de nossos defeitos e no desenvolvimento de
nossas qualidades. É para ter bom êxito nesta empresa de suma importância, que imploramos
o auxílio de Deus por meio da oração e dos sacramentos.

Para corrigir vossos defeitos, procurareis primeiro conhecê-los. Em pouco tempo notareis que
todos dependem de um só, o defeito dominante. Logo que descobrirdes em vós o defeito que é
a causa de todas vossas faltas, será preciso combatê-lo sem trégua. Toda a vitória ganha
contra este inimigo capital é um triunfo alcançado sobre todos os outros. Talvez sozinho não
consigais descobri-lo; mas vosso diretor espiritual e vossos mestres ajudar-vos-ão.

80. — O defeito dominante, ao mesmo tempo mais perigoso e mais comum entre os meninos,
é a moleza, a fraqueza da vontade. Torna os meninos preguiçosos, escravos do respeito
humano, negligentes a respeito de seus deveres, ávidos de satisfações sensuais, fracos diante
dos maus companheiros, incapazes de grandes esforços... Para fortalecer a vontade, é preciso
exercitá-la cada dia a praticar atos de generosidade; um menino que diariamente fizesse
alguns sacrifícios, se impusesse mortificações, contrariasse seu gênio, em breve adquiriria
grande virilidade na vontade. Se na maior parte os homens permanecem sem energia, é que na
sua mocidade não contraíram o bom hábito de se vencer a si próprios. Não é possível fixar
práticas particulares a este respeito; cada um deve examinar as circunstâncias em que se
reconhece fraco e pusilânime, e dirigir a luta para estes pontos.

81. — Outras vezes é a susceptibilidade, o espírito melindroso que domina. Não falta coragem
ao menino; é até aplicadíssimo. Mas basta uma ninharia para o ferir e irritar; não pode tolerar
que alguém o repreenda de uma culpa, lhe faça a menor observação; uma palavra um pouco
azeda o perturba; mostra-se exigente, quer que todos tenham muita contemplação para com
ele, e zanga-se si alguém o esquece ou lhe falta um pouco de respeito. Às vezes esta
susceptibilidade e patenteia por palavras duras ou violentas cóleras; outras vezes aparece no
humor melancólico, no aspecto inexpansivo, no olhar desdenhoso daquele que se julga
ofendido. Em religião, não se pode fazer bastante guerra a este defeito, que se tornaria em
breve a peste das comunidades. Para ter êxito feliz, é preciso desenvolver na alma o
sentimento da humildade. Se tivésseis muita persuasão que sois pouca coisa, que tendes
grande vantagem em ficar no segundo lugar, teríeis grande prazer quando alguém vos
despreza, não faz caso de vós, vos injuria. Certos caracteres são orgulhosos, teimosos,
rebeldes à obediência. Não se tornam próprios para a vida religiosa senão quando aprendem a
docilidade, etc.

82. — Pela correção de vossos defeitos, preparareis o lugar para o reino das virtudes. Os
mestres encarregados de vossa formação terão como que duas partes em seu programa:
tomarão a peito fazer de vós primeiro um homem honesto, depois um perfeito cristão.

O homem honesto é sincero, reto, expansivo, incapaz da menor duplicidade e da mais leve
mentira; é delicado, discreto, recatado, cuidadoso dos bens alheios como dos que lhe
pertencem; é simpático, cortes, prestimoso, obsequioso, pronto para todas as dedicações; é
enérgico, disposto ao sacrifício, capaz de imolar-se para uma nobre causa.

sobre um homem assim educado, o perfeito cristão se enxerta com facilidade; a seiva cristã
faz brotar muitos frutos de vida, tais como a humildade, o amor à pobreza, a mortificação e
sobretudo a caridade.

3.º A formação profissional.

83. — Este programa está muito acima dos esforços de um dia; mas não podereis realizá-lo
senão com a condição de conhecê-lo e tratar de executá-lo desde os primeiros dias de vossa
vocação.

Quando Deus vos chamou, não se propôs apenas encher-vos das alegrias da vida religiosa,
colocar-vos mais seguramente no caminho da salvação eterna: designou-vos para uma missão
especial, reservou para vós uma parte do trabalho que se faz na santa Igreja. As pessoas do
mundo nada entendem nesta vocação ao trabalho; imaginam que não entramos na religião
senão para evitar os incômodos dos negócios e os cansaços de um penoso ofício. Deus nos
livre que assim aconteça! Temos que cumprir uma tarefa: no campo do trabalho, temos uma
parte a cultivar.

Mas nossa missão especial, tão laboriosa como sublime, exige ao mesmo tempo grande
energia de caráter e vastos conhecimentos profissionais. Pelos meios indicados acima,
adquirireis o vigor da vontade que faz aceitar todos os sofrimentos: acrescentarei apenas
algumas palavras sobre o modo de desenvolver vossas aptidões.

A Providência pôs em vós, em graus variados sem dúvida, aptidões para todas as boas obras.
Algumas predominam, entretanto; foram o motivo que vos determinou a entrar em tal
comunidade religiosa de preferência a qualquer outra. Cada Sociedade possui seus trabalhos
particulares: as aptidões que é preciso desenvolver em vós, são portanto as mais próprias para
vos fazer concorrer á tarefa comum.

84. — Na maior parte dos casos, este desenvolvimento começa por fortes estudos. Os estudos
são necessários, com efeito, não somente para o sacerdote e o educador, que exercem a
missão de instruir os homens, mas também para os religiosos dedicados à caridade. Porque
não estudamos apenas para educar os outros; trabalhamos também para formar nossas almas,
para adquirir ciência suficiente a fim de ter prestígio e inspirar confiança, para realçar o brilho
de nosso estado.

Todo o menino que Deus chamar à religião dedicar-se-á pois aos estudos. Mas os estudos são
custosos; nenhum trabalho pesa tanto como o trabalho intelectual. Nos trabalhos manuais, o
organismo se agita, o esforço provém apenas dos músculos, a variedade produz certo
interesse. Nos trabalhos intelectuais, o corpo sofre a inação, a vontade padece para se
concentrar em um assunto preciso, a memória se aflige para lembrar e conservar os textos
necessários, a monotonia pode gerar o aborrecimento. É por isso que vários meninos perdem
coragem: impotentes para vencer as dificuldades do estudo, vão até renunciar á sua vocação.

O mesmo não se dará convosco; não tereis medo do esforço que o trabalho intelectual impõe.

85. — Eis vários meios para evitar o desânimo.

Em primeiro lugar, fecundai vosso trabalho pela oração. Não há nada que devais mais
recomendar a Deus como dar-vos luz e força para vossos estudos.

Diante de uma dificuldade, rezai interiormente: muitas vezes, depois de alguns minutos de
oração, a luz penetra no espírito.

Embora tivésseis ainda invencíveis obscuridades, não vos deixeis desanimar. O que não
entendereis hoje, haveis de entendê-lo amanhã. Para que inquietar-vos, se vosso espírito tiver
menos vivacidade que o do vizinho? Empregai vossas faculdades e Deus estará contente
convosco. Faculdades ordinárias, cultivadas com paciência, dão, frequentes vezes, muito
melhor resultado do que faculdades brilhantes mal dirigidas.

Os espíritos mais ordinários conseguem infalivelmente bom êxito quando trabalham com
ordem, calma e constância. — Pela calma evitareis a precipitação: o importante não é fazer
depressa, mas fazer bem. Um longo trabalho, mal feito, não dá proveito: qualquer exercício
aplicado, por mais curto que seja, desenvolve o espírito. — Pela ordem e o método fareis cada
coisa em seu tempo e achareis tempo para cada coisa. Não empreenderei estudos acima de
vossas forças; não saíreis do programa traçado por vossos mestres. Vagarosa e seguramente,
seguireis vosso caminho com perfeição. — Enfim pela confiança, tereis feliz êxito em tudo;
alcançareis bom resultado nos estudos e dareis ao vosso espírito todos os conhecimentos
profissionais necessários em vossa missão.

86. — Acima de tudo, tratai de adquirir o espírito de reflexão. É ótima coisa desenvolver a
memória, por ser ela um armazém que se deve encher de tesouros. Mas é muito mais
importante cultivar a inteligência: a inteligência trata de explicar tudo, faz jorrar raios de luz
entre os objetos de que se aproxima. Tomai a resolução de compreender tudo nas leituras, nas
lições. Notai os pontos em que vos falta luz a fim de pedir esclarecimentos ao mestre.

Se tiverdes a coragem de vencer qualquer inclinação à preguiça e à negligência, se gostardes


de entender tudo claramente em vossos estudos, alcançareis, sejam quais forem vossas
faculdades, um valor intelectual que vos tornará poderosíssimo nas boas obras.

4.º O zelo apostólico.

87. — E para que trabalhar tanto? Para ser, na Igreja, um útil operário de Deus. É que, em
resumo, queremos estabelecer o reino de Deus, e, por este meio, arrancar as almas ao império
do mal e fazer-lhes ganhar o céu. O pensamento de um fim tão sublime deve dominar tudo em
nossa vida. É para sermos mais úteis a Deus e aos homens que nos alistamos no exército da
religião.

No começo, a vocação não vos aparecia claramente com esta orientação. A graça de Deus,
com efeito, vos transformou pouco a pouco. No princípio atraia-vos pela beleza das
cerimônias, pelos suaves encantos da vida religiosa. À medida que crescestes, alargou vosso
coração e revelou vossas aspirações. Reconhecereis que ela se tornará todo poderosa em vós
quando o zelo apostólico tomar posse de todo vosso ser.

Durante os anos de vossa formação religiosa, abri vossa alma, o mais que puderdes, às
sugestões do zelo. Pois que Deus vos amou tanto, poderíeis recusar de defender-lhe os
interesses? Pois que Jesus Cristo deu a vida para nos salvar, como havíamos de hesitar em dar
a nossa por ele? Estas almas, pelas quais verteu todo o sangue, que Lhe custaram tanto, que o
pecado ou o erro Lhe arrebatam cada dia, não quereis trabalhar para ganhá-las de novo a Ele?
Se tiverdes um pouco de coração, não tereis compaixão de tantos pecadores, que uma corrente
fatal leva para a eterna reprovação? A estas almas que vão perecer nas chamas do inferno, não
quereis estender um braço salvador?

Quando todas estas perguntas existem em um coração generoso, provocam infalivelmente o


zelo apostólico. Tal zelo já existe em vós: rogai a Deus para que lhe avive a chama. Debaixo
da ação destes ardorosos entusiasmos, tereis apenas um desejo: Que atos será preciso fazer
para salvar almas?
Que fazer? Oh! a resposta é fácil. Em primeiro lugar mostrai-vos cada vez mais digno de
vossa vocação: deste modo aumentarei a prosperidade da Sociedade de que sois membro e ela
cumprirá melhor seu papel apostólico entre os homens. Depois, em vossa vocação, esforçai-
vos por adquirir um elevado valor intelectual e moral: deste modo, onde estiverdes colocado,
deixareis o vestígio de Deus, preparareis a divina colheita das almas para o céu. Agora
mesmo, por vossas orações e por um ardente zelo em vossas relações, podeis já atingir as
almas e desempenhar eficazmente sobre elas vossa missão de apóstolo.

III. A CONSERVAÇÃO

88. — Se a vocação vos parecer de tão subido valor, que a estimeis mais do que qualquer
tesouro, não será justo que veleis sobre ela com o maior cuidado? Objeto delicado e precioso,
a vocação pode perder-se como um cristal que se quebra, ou como um fruto que se estraga.
Aliás quem ainda não viu vocações perder-se? Entre tantas almas chamadas por Deus,
quantas, depois de correr com ardor no bom caminho, param de repente no meio de sua
belíssima vocação?

A vocação se perde de três modos: às vezes o espírito se extravia em falsas idéias, outras
vezes o coração se corrompe pelo amor dos prazeres mundanos, enfim a vontade cede debaixo
do peso dos deveres. Ensinar-vos a conservar o espírito, o coração e a vontade, será dar-vos o
segredo de preservar vossa vocação.

Quer estejais ainda no mundo, ou tenhais já entrado numa casa religiosa, os perigos são os
mesmos, as precauções que vou indicar são igualmente necessárias.

1. Conservar o espírito.

89. — Em primeiro lugar, cuidai de vosso espírito e conservai-o são.

Notai bem que são as idéias que vos guiam. Se sentistes o desejo de vos dar a Deus na vida
sacerdotal ou religiosa, é que tivestes uma fé viva. Acreditastes em Deus, em Jesus Cristo;
pensastes que a salvação é a única coisa necessária neste mundo; por meio de vossa própria
salvação, quisestes arrancar outras almas à morte eterna. Persuadido de que Jesus Cristo deve
reinar sobre os homens, tomastes a resolução de alistar-vos como soldado na milícia d’Ele,
para auxiliá-lO na conquista de todas as almas. Pareceu-vos depois evidente que havíeis de ser
um melhor soldado renunciando a viver no mundo e abraçando a vida religiosa. Enfim a
comunidade em que viveis vos pareceu ser o melhor meio de alcançar este fim tão desejado.

Não será esta, toda a série de vossos raciocínios? Estas idéias, fortemente ligadas umas às
outras, não formarão a base inabalável na qual descansa o edifício de vossa vocação?
90. — Imaginai agora que estas idéias desapareçam uma depois de outra, com que coisa
ficará? Imaginai que alguém vos inspire para com os superiores e a comunidade uma
desconfiança e uma suspeita que resfriem ou apaguem vossas simpatias; imaginai que os
sacrifícios religiosos vos apareçam logo como inúteis, contrários à natureza, acima das forças
humanas; imaginai em seguida que a vida no século vos pareça muito mais razoável e vos
solicite por atrativos mundanos; enfim imaginai que a raiz mesma da fé seja atingida pela
dúvida e hesiteis sobre o próprio valor de vossas primeiras crenças. Que poderá ficar de vossa
vocação? Depois de ter sido solapada pela base em tantos assaltos sucessivos, não há de
desmoronar-se como, uma casa da qual se destruíram os alicerces?

91. — E como tal trabalho de destruição poderá operar-se? Debaixo da dupla influência das
conversas demasiado livres e dos livros perigosos. É lentamente, de modo quase
imperceptível, que o trabalho fatal se realiza: começado pela palavra envenenada de falsos
amigos, consome-se pelo mau livro.

No começo, emitem-se queixas, críticas em vossa presença. Como nenhuma coisa humana é
perfeita, em breve estais descobrindo reais defeitos nos homens que vos cercam, verdadeiros
inconvenientes na vida que abraçastes. Se o fervor não vos conservar, haveis de vos extraviar
em um caminho péssimo. Em breve, cessareis de ver as qualidades dos homens e as vantagens
das instituições para notar apenas as fraquezas. Chegará o momento em que vós também
criticareis, queixar-vos-eis.

No começo, vossas palavras irão mais longe do que vossos pensamentos e sentireis algum
pesar no fundo do coração; mas, pouco a pouco, vossas idéias harmonizar-se-ão com vosso
coração e pensareis até mais do que ousareis dizer. Então, virá o tempo dos desânimos:
quando a vontade não segue mais o dever, o espírito cessa de estimá-lo. Volvendo o olhar
para o mundo, vê-lo-eis sorrir e chamar-vos. Quantas idéias de aventuras atravessam a cabeça
nas horas de relaxamento!

As sugestões dos falsos irmãos e da tibieza, virão unir-se as dos livros perigosos. O livro é,
com efeito, o companheiro do homem que está aborrecido; mas no aborrecimento causado
pela tibieza, não é o bom livro que agrada; os livros religiosos parecem enfadonhos.
Procuram-se livros mundanos. Às escondidas, então, bebe-se com avidez nestas fontes
envenenadas que estragam, ao mesmo tempo, o espírito e o coração. Se o coração somente
estivesse atacado, haveria meio de curá-lo; mas será possível curar as doenças do espírito? No
meio dos livros modernos, há uma tal atmosfera de incredulidade, que uma alma já
enfraquecida não pode respirar este ar mefítico sem perder a vida da fé!
Vosso lugar, desde então, não é mais no seminário ou no noviciado. Parai: ir mais adiante
seria um odioso sacrilégio e irreparável desgraça. O verme roedor estragou todas as raízes; a
árvore da vocação fenece seca e morre por falta de seiva. Deixai-a cair.

Esta lamentável história, por acaso, será a vossa jovem amigo? Espero que não; ao menos
estais querendo o contrário. Como preservar-vos? Pela fuga dos primeiros ataques do mal.
Preservai-vos dos falsos amigos que criticam: suas bocas destilam o mais mortífero veneno.
Preservai-vos dos livros não aprovados por vossos superiores e que não podeis ler diante de
todos: nestes caminhos escuros e retirados estão escondidas mil ciladas contra vossa vocação.

1. Conservar o coração.

92. — O coração precisa ainda de mais vigilância do que o espírito. Encontram-se certas
vocações que experimentam poucos assaltos do lado do espírito; mas não há nenhuma que
não sofra grandes provações do lado do coração. Conservar o coração significa conservar a
pureza. Quanto mais cara for a santa virtude para vós, tanto mais zeloso sereis para preservar
vosso coração de toda mancha.

Precisareis que alguém vos explique o que é para vós a virtude da pureza? Não é ela a
condição mesma de vossa vocação? Se não quiserdes dedicá-la a Deus, se não estiverdes com
a resolução de guardá-la intacta durante toda a vida, se não puderdes conter-vos, não entreis
em religião, não façais voto de castidade perfeita: no mundo em que vivereis, vossos sentidos
não serão acorrentados de modo tão rigoroso, o estado do matrimônio será remédio à
concupiscência. Mas estai com vontade de deixar o mundo, custe o que custar querei
pronunciar e observar os votos sagrados de religião sede então perfeitamente resolvido a
guardar a mais estrita, a mais completa castidade de atos e de desejos.

Esta angélica pureza, a honra e o ornamento dos padres e dos religiosos, é uma pérola
preciosa que levamos em um vaso de lodo. Com a menor facilidade ela toca o vaso e perde o
brilho, razão pela qual não se conserva senão à custa dos cuidados mais vigilantes. Prometer a
castidade por um voto e depois acreditar que esta virtude se conserva sozinha, é expôr-se a
perdê-la; uma vez prometida, precisa ser guardada com a mais constante solicitude.

93. — Mas que fazer para conservar o coração ao abrigo de qualquer mancha? Abster-se, ao
mesmo tempo, dos atos que o sujem e dos atos que o enfraqueçam.

É o pecado de impureza que suja o coração. Este desgraçado pecado pode consistir tanto em
atos interiores como em atos exteriores. O hábito de pensar com gosto em más imaginações
ou de tolerar desejos carnais, mata a alma do mesmo modo que o hábito de procurar
criminosas satisfações no exterior.
Não acrediteis que sereis isento de tentações. As almas mais puras são tentadas: com muito
maior razão, se já pecastes, haveis de ser violentamente batido pelas tempestades das baixas
paixões. O que é preciso obter, mesmo ao preço dos maiores esforços, custem o que custarem,
a primeira vitória a ganhar contra vós mesmos, não é de não experimentar a tentação, mas é
de não sucumbir à tentação. — Para conseguir este resultado, revelai tudo a vosso confessor:
dizei-lhe todos os casos duvidosos para que não fiqueis com a consciência ansiosa; dizei-lhe
mesmo as tentações às quais não sucumbistes. Auxiliado por ele, amparado pela graça de
Deus, fortificado por uma energia maior na vontade, chegareis ao ponto de não pecar mais. À
medida que se aumentar o tempo de vossa fidelidade, crescerá também a facilidade da vitória.
No começo, três meses passados sem pecado serão um princípio de virtude: em breve, um ano
sem culpa vos dará a esperança da perseverança; depois de muitos anos de vida pura, podereis
acreditar que o coração não será mais atacado.

94. — Tudo isto debaixo de uma condição importante: é que preservareis vosso coração de
tudo quanto o enfraquece. Não há virtude, por mais forte e provada que seja, que possa resistir
com os imprudentes. «Aquele que se expõe ao perigo, há de perecer.» Ora, enfraquecer o
coração é arrojá-lo no perigo.

Que coisa enfraquece o coração? — Qualquer prazer sensual. A mortificação o fortalece e


conserva; o prazer sensual o debilita e desarma.

Não falo aqui de todos os prazeres; porque o homem não pode viver neste mundo sem gozar
de algum modo. Mas o religioso que consagrou o coração a Deus, não deve aceitar senão os
gozos elevados e recusar todos os prazeres baixos. Notai que não entendo aqui os gozos
vergonhosos que são já por si mesmos verdadeiros pecados: falo de gozos inofensivos em si
mesmos, mas que criam um perigo real para um coração dedicado á pureza perfeita. Eis
alguns exemplos.

Nada é mais necessário do que beber e comer.

As privações neste ponto não trazem muita vantagem para a virtude: porque poderiam tornar
alguém incapaz de trabalhar sem garanti-los de tentação alguma. Mas um organismo
alimentado com demasiada abundância e delicadeza torna-se depressa um escravo revoltado
cujas paixões se reprimem com extrema dificuldade. Tomar apenas uma alimentação
moderada, abster-se de qualquer licor e bebida alcoólica ou excitante, eis, não há dúvida,
excelentes meios para conservar a virtude em segurança.

95. — Do mesmo modo, o sono é indispensável: a não ser que haja uma disposição particular,
aprovada pelos Superiores, as vigílias prolongadas devem ser proibidas ao religioso. Mas
igualmente o sono deve ser moderado: o levantar pronto de manhã, a luta contra qualquer
sono durante o dia, a virilidade no porte, mesmo na vida privada, eis ainda excelentes meios
para conservar a alma ativa e disposta para lutar contra a tentação.

96. — Os prazeres da vista contam entre os mais perigosos atrativos do mal: por estas janelas
da alma, a tentação penetra com extrema rapidez. Quem quiser preservar seu coração, deve
conservar vistas modestas, porque é sobretudo pelas vistas que o coração se cativa. Se
tiverdes cuidado de vossa virtude, não deixareis as vistas demorar-se em quadros pouco
decentes, em pessoas de sexo diferente: não procurareis na leitura de livros apaixonados,
como os romances, um perigoso alimento para vossa imaginação.

97. — Enfim, a própria amizade, tão nobre em si mesma, tão elogiada pelo Espírito Santo na
Sagrada Escritura e pelos maiores Doutores da Igreja, tem uma contrafação de que ninguém
se pode preservar com bastante cautela. Tal contrafação tem igualmente o nome de amizade;
afim de não ser confundida com a verdadeira e virtuosa amizade, recebe muitas vezes o nome
de amizade particular. É apaixonada, inquieta e agitada, baseia-se nas feições exteriores da
fisionomia ou no timbre da voz, procura as satisfações sensuais das conversas íntimas, dos
olhares lânguidos, dos apertos de mão. É um flagelo para as almas que devasta e para as
comunidades que divide e escandaliza. Nenhum gozo é mais pernicioso; se não der a morte,
depõe na alma os germens mais mortíferos. Não vos admireis de experimentar os primeiros
indícios de tão grande mal: é coisa demasiado humana para serdes totalmente isento dela. Mas
renunciai sem hesitar a todas as relações que teriam para vós este caráter de sensualidade.

Graças a esta vigilância, vosso coração não ficará ressequido, mas apenas bem conservado.
Podereis ter o coração na mão para extrair dele tesouros de dedicação; ao mesmo tempo tereis
a mão no coração para que nada vo-lo arrebate.

Conservar a vontade

98. — A vontade é a sentinela que vigia na porta do espírito e do coração: tudo em vós estará
em segurança, vossa vocação será preservada de qualquer perigo, se a vontade permanece fiel
a seus deveres.

O que caracteriza uma vontade é a coragem que de nada se amedronta, é a energia que nada
cansa, é a perseverança que nada faz parar, é a firme retidão que nada faz desviar. Um homem
conserva sua vontade quando nunca cede debaixo do peso das dificuldades.

Já estais convencido que uma vontade forte vos é necessária, porque a vida é um longo
caminho a percorrer, porque este caminho é áspero e montuoso, porque muitas causas se
reúnem para esgotar as forças e suspender a marcha.

99. — Três causas principais contribuem para enfraquecer a vontade: o cansaço, o


aborrecimento e o desânimo. Aprendei a combater estes três perigos.
Primeiro, o cansaço. No começo, tendes muito entusiasmo, experimentais as alegrias do
fervor, estais arrastado pela própria novidade deste gênero de vida. Em breve, não sentireis
mais nada: a brisa que enfunava a vela de vossa embarcação, há de cessar; não podereis ir
para diante senão a poder de remos. Então experimentareis um sentimento de fadiga; os dias
vos serão pesados, o trabalho vos parecerá duro, o horizonte do futuro se apresentará triste,
despido de qualquer atrativo. Que grande tentação tereis de sustentar! Para que ir mais
adiante, direis, pois que já estou sem forças?

Não vos deixeis abater por esta impressão. Contentai-vos em considerar o dia de hoje: não
podeis continuar até a noite? que força será necessária para andar mais estes poucos passos?
Cada manhã, tomareis de novo o fardo do dever, apenas por um dia: para o futuro Deus há de
prover: «A cada dia basta sua pena.»

Conta-se que um religioso, violentamente tentado de abandonar o mosteiro, tomou a


resolução de adiar sempre para a manhã seguinte a execução deste desígnio. Conseguiu por
este meio enganar o tentador: quando prouve a Deus chamá-lo ao céu, estava sempre na
véspera de sair.

100. — O aborrecimento é o veneno da alma. O aborrecimento, também chamado saudade,


que toda a gente conhece sem poder defini-la, é o sentimento de uma alma que tem a
impressão de viver no deserto, de não se afeiçoar a ninguém pela amizade, de estar tão vazia e
desolada no interior como está abandonada no exterior; parece-lhe que é como um navio sem
bússola, sem leme e sem velas, feito joguete das ondas... É, sobretudo nas horas de
aborrecimento que a vontade cede, que a alma se deixa estragar pelo pecado, que a vocação se
perde.

Na crise aguda do aborrecimento, lançai-vos nos braços de Deus e de Maria Santíssima pela
oração e repeti esta máxima cara aos santos: «Deus só me basta!» Para curar a triste tendência
ao aborrecimento, eis dois meios. Em primeiro lugar, tende ordem em vossa vida, de modo
que nunca estejais entregue ao acaso: estareis com Deus, com vossos trabalhos ou com os
homens, mas nunca estareis sozinho. Uma regra religiosa bem observada não deixa nenhum
lugar ao aborrecimento. Depois, sede simpático, afável, não tenhais nada de selvagem e de
esquivo em vossos modos, de sorte que tenhais verdadeiros amigos nos irmãos que vos
cercam: como tereis corações para expandir o vosso, não sofreres muito da superabundância
de sentimentos; como tereis corações que de vez em quando se derramam no vosso, nem tão
pouco sofrereis de esterilidade.

101. — Do aborrecimento nasce muitas vezes o desânimo. Contudo, o mau êxito é a causa
mais ordinária do desânimo. Caem-se no desalento porque não se consegue vencer depressa o
pecado, corrigir logo os defeitos, ornar prontamente a alma das virtudes religiosas. Caímos no
desalento quando temos mau êxito nos estudos, quando os colegas nos excedem em talentos e
virtudes, quando não entendemos o que o professor explica. Caímos no desalento quando
estamos abandonados, quando imaginamos que somos desprezados, quando alguém nos
contradiz em nossas mais queridas empresas. Pobres almas desanimadas! Causam-me grande
piedade! Sofrem tanto! Apesar disso, todas suas forças se esgotam em pura perda como as
águas de um canal rachado por toda a parte. Que deveis fazer si o desânimo vos oprimir um
dia?
Em primeiro lugar, continuai com paciência o trabalho de vossa formação: não é em um dia
só que podeis ser perfeito. Um ato de vontade muito enérgica pode originar em vós uma ação
heróica; mas não pode, em um instante, desarraigar vossas más tendências e desenvolver bons
hábitos. As virtudes cristãs crescem, como as plantas, lentamente, sem que a vista perceba o
movimento da seiva interior. Resignai-vos a sentir-vos ainda cheio de defeitos: mas rezai e
trabalhai. Aliás, Deus não exige que sejais perfeitos: exige que trabalheis continuadamente
para sê-lo um dia.

Quanto aos estudos, é a aplicação que se exige e não o feliz êxito imediato. Não vos queixeis
mais de não ter elevadas faculdades: porque Deus não vos pedirá contas senão dos meios que
vos deu. Tende apenas a peito desenvolver todos os talentos que recebestes. Com talentos
medíocres, mas assíduo trabalho, há sempre bom êxito. Em todo caso, o bom êxito depende,
em definitiva, da bênção de Deus: ora, Deus vos abençoará e fecundará todos vossos atos,
contanto que depois de trabalhar com todas as forças, fiqueis muito humilde e muito
resignado na dependência d’Ele.

Enfim, tende a alma bastante grande, a fé bastante viva, para que os encorajamentos humanos
não vos sejam necessários, para que a convicção de ter cumprido o dever e servido o divino
Mestre de todas as forças vos seja mais valiosa do que qualquer aprovação humana. Entrai no
íntimo de vossa alma, e escutai sinceramente a resposta de Deus: si Ele vos disser que está
satisfeito com vossos esforços, que fizestes o que pudestes, contentai-vos com tal afirmação.
Um dia virá em que sereis mais perfeitamente conhecido, em que vosso trabalho será mais
justamente apreciado, em que vossos esforços serão elogiados: por enquanto, a contradição
dos homens é um estímulo que vos excita a proceder melhor ainda, e não uma barreira que
vos tranque o caminho. Sofrei pois com resignação, esperai em Deus, o qual contempla
vossos esforços, mas não cesseis de trabalhar por Ele.

CONCLUSÃO

102. — Conheceis, jovem amigo, o que o Evangelho refere dos Magos do Oriente que vieram
em Belém para adorar o Menino Jesus.
Uma estrela brilhou no céu. Ao redor deles talvez ninguém a reparasse. Reconheceram-na
eles, porém, como o sinal do Deus e disseram uns aos outros: «É o sinal do grande rei: vamos
oferecer-lhe nossos presentes.»— Com efeito, seguiram a estrela que os guiou até o presépio
onde repousava o Menino Deus: «Ali, entraram em casa, prostraram-se aos pés de Jesus e Lhe
ofereceram seus tesouros, ouro, incenso e mirra.»

Jesus, uma vez descoberto e adorado, «voltaram eles para sua terra seguindo caminhos
novos,» e a tradição conta que perante seus concidadãos foram os primeiros apóstolos do
Evangelho.

Toda vossa própria história se resume nestas poucas palavras.

Vistes no céu brilhar a estrela do grande Rei. Vossos amigos não perceberam a mesma luz,
porque Deus não concedeu a todos semelhantes privilégios. Por uma graça especial, o astro
divino feriu-vos as vistas, a voz divina ressoou até vosso coração e dissestes: «Seguirei a
estrela e irei até os pés do grande Rei que me chama.» E desde então resolvestes fazer as
primeiras tentativas para satisfazer o imperioso dever de vosso coração. Agora que
encontrastes Aquele que a estrela designava, agora que estais aos pés do Cristo Jesus, agora
que estais seguro de vossa vocação, abri todos vossos tesouros; dai tudo: o espírito, o coração,
a vontade, o próprio corpo; Deus gosta de possuir todas vossas faculdades; quer tê-las todas
para empregá-las na mais bela das causas. Durante o período da formação, sede totalmente
«entregue á graça de Deus.»

E depois de conhecer e adorar o Rei Jesus, depois de Lhe dar tudo, depois de aprender os
segredos e experimentar a poderosa ação d’Ele, ireis, por caminhos novos, pregá-lO entre o
povo. Nestes labores do apostolado, longe das doçuras inefáveis do primeiro encontro com
Jesus, trabalhareis sem cansaço, sem desânimo.

Enfim na extremidade do caminho que seguireis sem vos desviar para um lado nem para
outro, encontrareis o Mestre, que estará a vossa espera e Lhe direis: «Senhor Jesus, agradeço-
Vos por me terdes chamado e preferido a tantos outros que valiam muito mais do que eu. Por
vossa graça percorri até o fim a áspera senda do dever; remeto-Vos meu espírito que guardou
Vossa fé divina, meu coração que guardou Vosso puro amor, minha vontade que guardou
Vossos mandamentos; comigo, apresento-Vos a colheita de almas que reuni ao longo da
estrada e, por causa delas, suplico-Vos que me recebais em vossa misericórdia.» E Jesus
responder-vos-á: «Bom e fiel servo, entrai na alegria de vosso Mestre.»

História de uma vocação

103. — Jorge tinha doze anos quando foi obrigado a deixar a escola.
Acabava de passar com boas notas nos exames do último ano de sua escola. Com mais um
ano de trabalho, havia de ser, segundo o parecer dos mestres, o moço mais instruído da
cidadezinha onde nascera.

«— Porque o Snr. nos deixa tão cedo? lhe perguntou o Irmão que lhe dava aulas. O Snr. não
gosta de nossa companhia? Não estaria contente de estudar ainda?»

Em lugar de resposta, Jorge abaixou timidamente a cabeça; grossas lágrimas lhe borbulhavam
nos olhos. Estava com o coração muito apertado para proferir palavra alguma.

104. — Se gostava da escola!... Se estava contente de estudar!... Quem podia duvidar disto?

Nunca menino algum foi mais assíduo às aulas. Sempre escutou com a mais séria atenção as
lições dos Irmãos. Seus cadernos estavam limpinhos, caprichados, escritos com esmero. As
emendas vermelhas, a indicar os erros de cálculo ou de ortografia, eram raríssimas através as
páginas. Eram os trabalhos de Jorge que o Irmão mostrava aos visitantes, não sem algum
orgulho, para lhes dar uma idéia do cuidado dos alunos.
Mas Jorge tinha mais zelo ainda para conservar a pureza da alma. Ele, tão acanhado, tornava-
se um leão indomável quando se tratava de evitar o mal. Os maus companheiros jamais
obtiveram coisa alguma com ele. Logo que uma palavra ruim se pronunciava diante dele,
Jorge afastava-se, de aspecto triste. No começo, alguns fizeram chacota de sua reserva; mas
era tão bom colega, ganhava lugares tão distintos que todos acabaram por respeitar-lhe a
delicadeza de consciência. Por isso é que muitas vezes, durante o recreio, os alunos diziam:
«Olhem! Jorge vem aqui; silêncio; falem de outra coisa.»

105. — Ao perdê-lo, o Irmão perdia seu melhor aluno.

Para todos os condiscípulos, Jorge era um modelo de trabalho, de docilidade, de virtude e de


piedade.

Foi por isso que o Irmão insistiu com a família.

«Este menino, disse ele, é ainda muito criança para ser um bom operário. Seus músculos e
ossos ainda não estão formados: como poderá erguer o martelo e bater por sua vez no ferro da
forja? E então que vantagem haverá em interromper-lhe os estudos? Tiraria tanto proveito de
mais um ano de estudo!...»

O Irmão falou em pura perda.


A mãe pensava do mesmo modo. Quantas vezes não tinha exprimido o desejo que o filho
pudesse continuar os estudos! Mas ela não tinha direito de mandar: diante da vontade formal
do pai, seu papel era ficar calada.

106. — Três anos antes, a mãe ganhara importante vitória. Jorge frequentava então o grupo
escolar. Ela obteve que entrasse na escola dos Irmãos.

« Olhe, dissera ela ao marido, olhe que este menino nada aprende de religião. A idade da
Primeira Comunhão vem logo. Vai fazê-la sem saber o que é. O. Snr. poderá pôr Jorge onde
quiser mais tarde; mas agora deixe-me pô-lo com os Irmãos: estou certa de que, com eles,
aprenderá a ser um bom cristão e também um honesto cidadão; aprenderá a amar a Deus e
também aos pais.»

Falara com tanta firmeza que o pai cedera.

Mas desde aquele tempo, quanto não sofreu este?

No restaurante, muitas vezes os compadres lhe diziam: — «Então, você virou carola?... Você
pôs o rapaz no convento?... Vai aprender muita coisa com os padres?... Então, Você deixa a
mulher e os padres mandar lá na sua casa?...»

107. — Tais conversas rasgavam até o fundo o coração do operário ferreiro. Contudo, não
queria retirar a palavra dada à mulher. Aliás, o menino estava tão bem, aprendia tantas coisas,
mudara tanto desde que ia para a nova escola!...

No fundo, o intratável ferreiro pensava como a mulher. Educado cristãmente, não perdera
todos os sentimentos religiosos da infância que estavam como que cobertos e abafados por
modos factícios que contraíra nas oficinas. Aos dezoito anos perdeu todas as práticas
religiosas e não pôs mais os pés na igreja. O domingo, no restaurante, fazia de fanfarrão e
ninguém falava com mais vivacidade do que ele contra os padres e os frades. Na opinião dele,
todos mereciam a forca. Imprudente, mentia-se a si mesmo e mentia aos outros quando estava
meio tonto pelas bebidas. Porque, em resumo, era uma boa alma.

Depois de sofrer durante três anos os escárnios e as zombarias dos companheiros, resolveu
mandar de novo em casa e retirou o filho das mãos dos «padres.»

108. — Aliás, o pobre homem já notara certos sinais. Seu filho era muito melhor de que todos
os outros meninos da mesma idade; mas achava-o bom de mais.

Não é que Jorge lhe parecesse demais respeitoso, demais amoroso pela família; mas mostrava
tanta piedade, tanta modéstia!... Se viesse a ser padre!...
Tal idéia fuzilou como um relâmpago na mente do ferreiro. Em poucos dias cresceu até
encher-lhe toda a alma. A imaginação lhe fantasiava mil quadros que o irritavam de dia e de
noite.

Que diriam os amigos, se um frade viesse a sair de sua casa? Já tivera tanta dificuldade para
dar uma explicação a respeito da escola clerical! Não era pois sincero quando professava tanto
desprezo pela gente de igreja, porque, se não gostava deles, como é que seu filho podia
aprender a amá-los?...
Para acabar de uma vez com tantas reflexões, o melhor era, de certo, prever o mal e atalhá-lo.
Se por acaso algumas idéias religiosas tivessem entrado na cabeça do filho, em pouco tempo
seriam dissipadas no duro trabalho da forja e no convívio de companheiros que não eram nada
carolas...
Assim raciocinava nosso homem. Obrigando o filho a ficar em casa, pensou achar sossego.
Mas contava sem um terrível adversário. Era com o próprio Deus, com efeito, que disputava a
alma do filho. Na luta que se iniciava, qual seria o vencedor? Se o pai podia segurar o filho
exteriormente, Deus tinha o poder de tocá-lo e prendê-lo interiormente.

109. — O ferreiro não se enganara. Alguma coisa estava se passando na alma do filho.

O que se passava nele, Jorge não o reparara enquanto ia para a escola. Gostava de seus
mestres, era feliz na companhia deles; acompanhava com o mais vivo interesse todo o detalhe
da vida deles e invejava muitas vezes a venturosa existência deles. Nunca estava mais atento
do que durante a liçãozinha de moral que dava o Irmão. Um dia o Irmão coutou a história de
sua própria vocação, Jorge foi profundamente comovido, e um sobressalto inexplicável lhe
tinha abalado o coração.

Às vezes, meio gracejando, o mestre perguntou aos jovens alunos se não gostariam de entrar
no clero ou no Instituto dos Irmãos. Sorriram e responderam: — «Certamente que não!

E porque isso? continuou o Irmão.

Porque não é brincadeira ser Irmão e dar aulas!

«Não é uma brincadeira!» Esta palavra vexou a alma delicada de Jorge. No fundo do coração,
teve outra resposta a sós consigo:

«Se não é uma brincadeira, ao menos é belo. Estaremos neste mundo para brincar? Não
estamos aqui para trabalhar? E pois que é preciso trabalhar, não será melhor tomar o trabalho
mais nobre? Que ofício poderá dar tanta felicidade durante a vida, mais tranquilidade na hora
da morte, como o de Irmão educador? Os Irmãos, sem dúvida, trabalham bastante; mas como
eu gostaria deste trabalho!»

110. — Estas coisas, Jorge as sentia com intensa vivacidade, mas era incapaz de traduzi-la por
palavras. No brilho de seu olhar inflamado, teria sido fácil ler o fundo de seus pensamentos. O
Irmão adivinhara o que se passou no menino; mas, por discrição não lhe falou nada.

Contudo tais aspirações não seriam por acaso meras ilusões? Poderia jamais, ele, o filho de
um ferreiro anticlerical, tornar-se religioso e servo militante da Igreja? Assistira, como triste
testemunha, a tantas cenas de família! Tantas vezes ouvira o pai declamar em violentas
cóleras contra todos os padres! Custou tanta pena à mãe para obter que ele frequentasse a
escola católica! Que havia de acontecer se o pai percebesse no filho alguns desejos de vida
religiosa?

Jorge, portanto, não disse nada, nem em casa nem na escola. O confessor, que lhe notava toda
a candura da alma e toda a energia do caráter, interrogou-o um dia: o menino nada respondeu.
O gérmen da vocação estava no seu coração, mas ainda tão pequeno que ele mesmo não o
reparava nitidamente.

111. — Vestiu portanto as roupas do aprendiz operário e começou a trabalhar na forja do pai.
Tomou primeiro a corrente do fole, atiçou o fogo: e, enquanto ali estava, nunca a chama
baixava por falta de ar, sempre o ferro estava branco e pronto a amoldar-se debaixo do
martelo do ferreiro.

Em pouco tempo Jorge veio a ser um aprendiz modelo. Trabalhava de bom grado sem que
fosse preciso ameaçá-lo. Quando ficava sozinho na oficina, arrumava as ferramentas,
preparava o trabalho do dia seguinte. Quando estava com os operários, fazia-se o ajudante de
todos, dava os recados deles, mostrava-se serviçal, obsequioso para com todos. Muitas vezes
substituía um ou outro, de tal modo que em poucos meses conheceu todos os ramos do ofício.
Seus braços estavam ainda muito fracos para os trabalhos penosos, mas já possuía toda a
ciência de um bom operário.

Todos gostavam de um aprendiz tão diligente e amável. Faziam dele apenas uma queixa: se
era muito amável durante o trabalho, era muito selvagem e esquivo uma vez o serviço
acabado.

De noite e nos domingos, em lugar de frequentar os jovens aprendizes de sua idade, vivia
sozinho. Debalde foi convidado às partidas de prazer, aos jogos, passeios, cinemas e outras
diversões: recusou tudo obstinadamente.
112. — Ao lado de sua vida laboriosa de aprendiz, Jorge criou-se uma vida intelectual e
religiosa. Amigo dos livros, consagrava à leitura a maior parte dos tempos de folga. A
biblioteca dos Irmãos, depois a do Vigário, leu tudo. Entre todos os livros, os que mais lhe
agradavam eram as Vidas dos santos. Os santos dos primeiros séculos provocavam-lhe a
admiração pelos rigores da mortificação e o brilho dos milagres. Nos santos modernos,
admirava o zelo pela salvação das almas e a ousadia das empresas apostólicas.

Na escola dos santos e debaixo da ação da graça divina, operava-se nele um trabalho interior
que ninguém suspeitou no começo. Parecia muito retirado; mas ninguém reparava todo o
alcance das mudanças efetuadas nele. Foi só depois de dois ou três anos que se distinguiu bem
a enorme distância que o separava de todos os moços de sua condição.

Tudo se desenvolvia ao mesmo tempo no jovem operário. A leitura assídua abria-lhe a


inteligência e lhe enriquecia a memória. Seu afastamento das sociedades ruidosas punha-o ao
abrigo dos perigos onde se perde de ordinário a inocência dos costumes. Pela oração e a
frequentação dos sacramentos, a vida da graça se conservava e crescia nele.

113. — Nada mais favorável que tal existência para a germinação da preciosa semente da
vocação. Intensas aspirações religiosas não tardaram a nascer na alma de Jorge. O que
desejava vagamente ao sair da escola, chamava-o agora com os mais ardorosos votos. No
começo, o feliz destino lhe apareceu muito longe, como no meio de uma nuvem remota: saiu
pouco a pouco das sombras e com o tempo revelou-se a Jorge no seio de uma brilhante
claridade.

«Hei de ser professor religioso, se dizia ele consigo mesmo, e hei de ensinar aos meninos de
minha escola os meios de conhecer e servir a Deus.»

Tal resolução, fruto de um longo trabalho interior, Jorge revelou-a só no fim. Várias vezes o
vigário da paróquia e o Irmão da escola lhe fizeram perguntas a este respeito: porque era
evidente que este menino não podia seguir a via comum. Jorge deu sempre respostas evasivas.
Apenas deixou que a mãe lhe adivinhasse o segredo íntimo, por meio de raras palavras
misteriosas que ele lhe disse de vez em quando.

Queria estar seguro de si mesmo antes de declarar seu intento. Também que imprudência não
seria provocar sem motivo a cólera do pai! Uma palavra pronunciada muito cedo podia
comprometer tudo. Jorge sentia perfeitamente a tempestade que havia de rebentar no dia em
que pediria licença para sair. Não escondia os seus pensamentos, mas permanecia calado,
aguardando uma ocasião para os revelar.

114. — Um dia raiou, porém, em que o chamado de Deus foi mais insistente e a inclinação do
coração mais irresistível. Jorge tinha dezesseis anos.
Era então hábil operário. Viera o momento de viajar, de visitar as grandes cidades a fim de
exercitar suas mãos nos trabalhos mais complicados de importantes manufaturas. Iria ele
realizar esta viagem? Não teve a coragem de resolver-se a isto. Era também a hora de entrar
para o noviciado.

É então que falou às claras e explicou todos seus desígnios a seu confessor e ao Irmão da
escola. Com este, teve longas e frequentes conferências. Queria conhecer todos os detalhes da
vida religiosa e estar a par das menores provas que o esperavam. Quanto mais o irmão falava,
tanto mais se inflamavam os desejos de Jorge. Aliás seu confessor lhe disse em termos
categóricos: «Meu filho, Deus o chama; o Snr. tem todos os caracteres de uma boa vocação;
vá para diante; não hesite.»

Com efeito, que coisa podia faltar-lhe? Era inteligente e nunca deixou de cultivar seu espírito;
depressa havia de acabar os estudos necessários a um bom professor. Sua vida no meio do
mundo era semelhante à de um solitário; apenas viu o mal que logo concebeu a maior
repugnância por ele e consagrou todos os esforços para andar somente nos puros caminhos da
virtude.

Pois bem, é coisa decidida; Jorge há de ser religioso.

Mas como desprender-se? Como obter o consentimento do pai?

115. — Com efeito, este era o maior obstáculo; parecia impossível que barreira tão
insuperável pudesse jamais remover-se para deixar passagem à vocação de Jorge.

Aliás, o ferreiro, muitas vezes, tinha observado o filho. Foi com grande desgosto que o viu
tomar modos tão piedosos. No começo, não ousou contrariá-lo, sobretudo porque Jorge era o
modelo mais perfeito dos bons filhos e dos jovens operários; deixou-o portanto frequentar os
«padres» e praticar «suas devoções.» Mas no restaurante ouviu muitas caçoadas a este
respeito.

116. — «Onde vai seu filho? lhe perguntavam os outros operários; estará ele ainda no meio
dos carolas?»
Irritado por estas e outras palavras de escárnio, tratou de arredar o filho da igreja e das rezas.
Nunca, porém, se atreveu a dar-lhe uma proibição formal; mas quantas vezes queixou-se e
repreendeu ao filho porque não era como os outros moços!...

O melhor modo de acabar com tudo isso, pensava ele, era mandar o filho para longe; o melhor
modo de corrigi-lo era enviá-lo percorreras grandes cidades. Foi debaixo desta impressão que
uma viagem através o país foi decidida. O ferreiro deu oito dias ao filho para preparar tudo e
começar a nova e aventurosa vida, longe do teto paterno.

Depois de oito dias de reflexão, depois de tomar conselho dos que podiam guiá-lo, depois de
revelar todos seus desejos à mãe, na manhã de um domingo, Jorge escreveu ao pai a carta
seguinte:

117. — Bondoso e querido pai,


Peço-lhe respeitosamente a bênção.
Nunca lhe desobedeci. Na oficina e em casa, fiz-lhe sempre, como o Snr. sabe, todas as
vontades.
Não é hoje que vou começar a desobedecer.
Mas antes de empreender a longa viagem que o Snr. me ordena, tenho obrigação de revelar-
lhe, como filho respeitoso e cheio de afeição, quanto esta viagem me repugna.
Não é o trabalho que me espanta, porque posso, tanto como qualquer um, ganhar a vida. Nem
tão pouco estou com receio dos maus companheiros das grandes cidades, porque Aquele que
me protegeu aqui, tem o poder de me conservar igualmente em qualquer lugar.
Vou descobrir-lhe todo meu coração, até o fundo. Desde quatro anos, sem nunca porém ter
tido a coragem de confessá-lo ao Snr., nutria em minha alma um desejo ardentíssimo, que não
me é mais possível deixar de satisfazer. Vejo que Deus está me chamando para servi-lO no
Instituto dos Irmãos que me formaram. Para mim o mundo nada vale; estou cada vez mais
aborrecido nele; no meio do meu trabalho, estou sempre pensando na felicidade de estudar, de
ensinar aos meninos, de ganhar almas a Deus.
Se eu soubesse, Pai muito afeiçoado, que isto me impedisse de querer bem ao Snr., minha
vocação me seria muito dura. Mas alguma coisa me diz no coração que, em religião, hei de
amá-lo mais do que no mundo, hei de servi-lo mais utilmente do que no mundo.
Rogo a Deus para que fale ao paternal coração do Snr. e o incline a me tornar feliz para
sempre.
Seu filho muito respeitoso e muito amoroso que lhe beija as mãos,
Jorge.»

118. — Foi no restaurante que o ferreiro leu este bilhete. Pareceu-lhe que o raio lhe caísse aos
pés. Os compadres notaram logo que tinha qualquer coisa, porque não falava, estava triste,
fizeram-lhe perguntas, mas debalde: como teria conseguido explicar o que se passava em
casa? Permaneceu tristonho até que as bebidas alcoólicas lhe restituíssem a jovialidade
ordinária.

De noite, voltou muito tarde, sem dizer palavra alguma à mulher nem ao filho. Nos dias
seguintes, ia para a oficina, mas trabalhava sem pensar no que estava fazendo: tinha o espírito
entretido longe do serviço.
Que fazer? Permitir a Jorge que seguisse o atrativo da vocação, não o podia; que diriam todos
os companheiros? Passar-lhe uma descompostura, dirigir-lhe palavras amargas? Não o queria,
pois não era Jorge o melhor dos filhos? Obrigá-lo a partir longe da casa? Não podia mais
aceitar isto, porque seria despedaçar o coração de Jorge.

Nestes apuros, resolveu ficar calado e esperar. Não disse a Jorge nem uma palavra da carta
que acabava de receber; de seu lado, Jorge, apesar de muito ansioso, não se atrevia a solicitar
uma resposta. Com este mal-estar que acabrunhava toda a família, decorreram seis longos
meses. Jorge multiplicava as orações a Deus e mostrava-se cada vez mais carinhoso, mais
delicado para com o pai. Pouco a pouco, fez-se alguma mudança no espírito do ferreiro.
Estava ainda taciturno, meditabundo; mas frequentava menos o restaurante; a vida de família
lhe agradava mais.

Um dia, ele disse à mulher:

«Não sei o que os padres fizeram a Jorge; creio que não poderemos fazer dele um ferreiro;
diga-lhe que pode ir para o convento, se ele quiser...»

Jorge, avisado, vem ter com o pai, abraça-o com efusão para agradecer-lhe, depois fica em
longa conversa com ele...

118. — Dois anos mais tarde, depois de brilhantes estudos e um fervoroso noviciado, Jorge
pronunciava os votos de religião diante dos santos altares e recebia um destino para a nobre
missão de educador.

Debaixo do nome de Irmão B..., dá aulas a quarenta e poucos meninos. Gosta deles e todos
lhe querem bem. No meio da alegre meninada, vive dias felizes.

Por um sem número de cartas com a família, pouco a pouco conseguiu mudar as idéias do pai.
Quando os operários vizinhos encontram o ferreiro e lhe perguntam a queima-roupa, não sem
um pouco de malícia:

«E seu carola de filho, como vai?»

Responde logo e sem respeito humano:

«— Jorge vai muito bem. Era bom operário, podia fazer fortuna, ganhar muito dinheiro e
arranjar-se todos os prazeres da vida. Preferiu viver pobre; ele gosta da rude profissão de
professor; mas mesmo assim estou muito contente, porque trabalha em benefício dos filhos
dos operários.»

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