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Infanticídio: aspectos jurídicos, psicológicos e culturais

Luciano Gomes Santos

O tema do infanticídio se faz presente ao longo da história da humanidade. Ele é fato em diversas
culturas humanas e exige reflexões em detrimento dos aspectos jurídicos, psicológicos e culturais. O
conceito infanticídio indica “assassínio de uma criança [...] morte do filho provocada pela mãe por
ocasião do parto ou durante o estado puerperal” (Dicionário Houaiss, 2001, p. 1612). Para caracterizar o
crime de infanticídio é preciso das circunstâncias elementares que é o sujeito ativo (mãe), o sujeito
passivo (filho), a conduta (matar), o objeto material (vida), a elementar normativa (estado puerperal) e
a elementar normativa temporal (durante o parto ou logo após), faltando qualquer dessas elementares
ficaria caracterizado outro crime diferente ou o homicídio. O Código Penal brasileiro, em seu artigo 123,
define que o infanticídio é matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto
ou logo após. O infanticídio é compreendido como crime e impõe pena de detenção de 2 a 6 anos de
prisão.
É importante ressaltar o significado do estado puerperal em virtude da consideração do crime.
Puerpério vem do Latim, puer (criança) e parere (parir). É o período durante o qual os órgãos se preparam
para a expulsão do feto já formado rumo à vida autônoma, isto é, sem dependência física da mãe. A
Obstetrícia define o puerpério como sendo o período que começa logo depois da expulsão da placenta e
termina com a completa regressão do organismo materno às condições pré-gravídicas.
O puerpério por si só gera alterações psíquicas, pois é sabido que as parturientes apresentam uma
série de preocupações, como o receio do trabalho de parto, a saúde física e biológica do filho, medo de
não serem boas mães, enfim, preocupações e desejos normais para que tudo corra bem no momento mais
feliz de suas vidas.
No Brasil, a Medicina Legal concorda que a influência do estado puerperal pode ocorrer com
gestantes aparentemente normais, física e mentalmente, que, estressadas pelo momento do parto, acabam
matando a criança. As psicoses que costumam sobrevir durante ou após o parto são chamadas de
puerperais. São geralmente caracterizadas como confusões alucinatórias agudas, de ofuscamento da
consciência e delírios transitórios. A Medicina Legal reconhece como alterações psíquicas que constituem
o estado puerperal a atenção falha, percepção sensória deficiente, memória de fixação e evocação
escassas, dificuldade em diferenciar o subjetivo do objetivo, juízo crítico concreto e abstrato
enfraquecidos, discernimento inibido implicando na incapacidade de avaliação entre o lícito e o ilícito,
inadaptação temporária e desorientação afetivo-emocional.
A influência do estado puerperal pode reduzir a capacidade de compreensão, discernimento e
resistência da parturiente; pode, também, dias após o parto, causar na mulher uma chamada psicose
puerperal, que está quase sempre associada a uma doença mental já preexistente, que possui os mesmos
efeitos de falta de discernimento, tanto que quando a puérpera se reabilita, não apresenta nenhuma
lembrança do ocorrido. O Direito tem por objetivo a defesa da vida em todos os seus aspectos e por isso
determinou que mesmo o infanticídio ocorrendo no estado puerperal se caracteriza como crime. A lei se
estabelece para proteção da criança que não tem como se defender da mãe, seja por ocasião do estado
puerperal ou por tantos outros motivos culturais, econômicos e religiosos. A mulher que comete o
infanticídio sob o estado puerperal não deve ser vista como criminosa, mas compreendida à luz das
alterações psíquicas e hormonais pelo próprio processo da gravidez. Todavia, com a ocorrência da morte
da criança causada por ação de sua mãe é fundamental que ela passe por exames médicos para análise e
comprovação do seu estado puerperal.
Na perspectiva do estado puerperal, deve ser considerada a situação econômica e cultural da mãe.
A mulher durante a gravidez pode vivenciar uma série de conflitos pessoais, familiares e culturais. Esse
estado conflitivo durante a gestação pode conduzir a mulher a desenvolver o estado puerperal e levá-la a
provocar a morte da criança. Assim, torna-se necessário superar simplesmente a dimensão médica no
laudo do infanticídio.
A gravidez é processo de transformação psíquica e biológica da mulher. Ela deve ser amparada em
todo processo de gestação, ou seja, desde a comprovação da gravidez até o período do pós-parto,
recebendo os devidos cuidados psicológicos e de saúde física, considerando as condições de moradia e de
sustento para a criança em gestação e da própria mãe. A mulher ao longo da história foi marginalizada e
nas últimas décadas luta pelos seus direitos de igualdade perante a lei. Ela não pode ser vista como mero
objeto de exploração sexual e de procriação, mas uma pessoa que merece ser tratada com respeito e
dignidade. Muitas são as pressões políticas, econômicas, culturais e religiosas que se impõem sobre a sua
vida. Assim, num processo de uma gravidez indesejada e sem as dignas condições para criar a criança
desenvolve a angústia, o desespero e surtos psicóticos que podem levá-la a matar a criança.
O Estado deve oferecer as condições necessárias para as gestantes durante a gravidez, o
nascimento e a recuperação física e psicológica do pós-parto, ressaltando também a responsabilidade da
mãe e de toda família. A mãe e a criança em gestação devem receber todo cuidado necessário para que a
gravidez seja um momento de alegria e não de sofrimento por falta de condições básicas para a chegada
da criança no meio familiar.
O tema do infanticídio exige, além das considerações realizadas, uma reflexão sobre a tríade: o
mito do amor materno, o mito da mulher perfeita e o tornar-se mãe. O amor materno não é um instinto
da mulher, mas uma ideia construída historicamente pela sociedade daquela época, vocalizada na obra do
filósofo Jean-Jacques Rousseau a partir do texto Émile de 1762. Naquele livro, Rousseau fundamenta o
amor materno que se justifica nos dias atuais. Com intensos debates acadêmicos e intelectuais daquela
época, a sociedade francesa passa a valorizar a função materna, demonstrando com essa afirmação a
superioridade da mulher concedida pela natureza no ato da gestação.
O comportamento da mulher não está destinado irrevogavelmente ao amor materno instintivo,
pois muitas não desejam a maternidade. Diversas mulheres se tornam mães devido à pressão familiar,
social e religiosa. Por isso se tornam mães impacientes, frustradas e medíocres, perdendo a alegria de
viver após o parto. O filho (a) ou filhos se tornam obrigação em suas vidas - o fim da liberdade. Nessa
perspectiva, é relevante destacar a hipótese de que existem bebês que decepcionam as mães na hora que
nascem, pois eles não representam aquilo que a mãe esperava. Assim, podem surgir os sentimentos de
raiva, depressão e frustração.
Muitos bebês ao nascerem não demonstram afetividade para com a mãe, mas um olhar vazio que
não nutre relação e não se deixa nutrir de carinho. Uma relação de parto sem vibração, sem emoção, sem
afecção de calor humano. Toda essa realidade se nutre de vazio, conduzindo a mãe a depressão ou
tristeza. Essa realidade deve ser pensada e analisada junto às parturientes para compreensão do estado
puerperal e superação do mito materno imposto pela cultura às mulheres, ou seja, toda mulher nasceu
para ser mãe e deve cumprir esta função social. A maternidade deve ser opção consciente e livre das
imposições culturais à mulher.
O segundo mito a ser considerado é o da mulher perfeita. Sabe-se que a maternidade é fruto dos
valores, crenças e culturas familiares de cada mulher. Na sociedade ocidental atual, diversas mulheres
sofrem em silêncio no exercício da maternidade, pois a pressão social exige uma dedicação exclusiva aos
filhos em suas necessidades e que às vezes se tornam tirânicas. Alguns optam por não terem filhos devido
ao modelo de mãe imposto pela cultura. Outras mães estão com expressão vazia enquanto cuidam de seus
filhos nas praças e jardins. As mães acreditam que não possam agir de modos diferenciados pelos
estabelecidos pela sociedade e vivem tristes e até mesmo depressivas no ato da maternidade que veio pelo
mito do amor materno e pelo mito da mulher perfeita na relação com os filhos.
Por fim, o terceiro mito de tornar-se mãe está ligado com os dois anteriores. As mulheres devem
se tornar mães não pela imposição da cultura local e pela ideia da mulher perfeita, mas tornar-se mãe deve
ser ato livre de cada mulher. A maternidade deverá ser buscada e desejada como parte da construção
social de uma cultura, considerando a liberdade e os direitos de cada mulher conforme sua condição
social, econômica, religiosa e educacional. Tornar-se mãe é uma experiência não antecipada, mas um
processo que cada mulher experimentará no processo de gestação, do parto e da criação da criança.
É fundamental refletir sobre o infanticídio e desconstruir a historicidade da lei sem relação com os
elementos citados. O último Código Penal no Brasil foi promulgado em 1940. O mundo mudou, a cultura
foi alterada, as mulheres buscaram seus direitos de igualdade perante a lei e a ciência evoluiu. É relevante
repensar o infanticídio à luz da mulher atual inserida em sua cultura, considerando a sua condição humana
e a questão de ser mãe pela imposição cultural ou pela opção pessoal como projeto de vida em vista do
progresso da sociedade.
Faz-se, mister ainda, considerar o pai na problemática do infanticídio. O ato de matar criança se
incorre no crime do infanticídio. Mas deve ser considerado diferente do crime causado pela mãe que se
encontra no estado puerperal. Em diversas culturas, bebês e crianças são assassinados pelo pai. As causas
do crime são diversas, desde a rejeição do filho até os atos de violência provocados na família por meio
de divórcios, alcoolismo e outras drogas.
O pai que ajuda a mãe a matar a criança, no crime do infanticídio, ele é condenado pelo crime de
homicídio ou infanticídio? Há três teorias sobre o tema, que é teoria incomunicabilidade, onde a mãe
responde por infanticídio e o terceiro por homicídio, a teoria da comunicabilidade (Código Penal, art. 29),
entende que, ambos são co-autores do crime, devendo responder por infanticídio e a teoria mista, defende
que, como o terceiro praticou ato executório consumativo, responderá por homicídio, enquanto a mãe do
sujeito passivo, por infanticídio.
Portanto, ao falar da temática do infanticídio cabe ressaltar que a maternidade não é um simples
processo físico, mas uma construção psíquica complexa que pode implicar sofrimentos e alegrias,
esperanças e tristezas, realização e decepção para muitas mulheres. Por isso, são fundamentais as políticas
públicas para amparar as gestantes no processo da gravidez com acompanhamento psicológico e médico
para que elas sintam a alegria de estar gerando um novo ser e contribuindo para o progresso da
humanidade.

Referências
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
BRENES, Anayansi Correa. Bruxas, comadres ou parteiras – a obscura história das mulheres e a
ciência. Belo Horizonte: Pelicano, 2005.
Código Penal – 12ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
DELASSUS, Jean-Marie. Tornar-se mãe – o nascimento de um amor. São Paulo: Paulinas, 2010.
Dicionário Houaiss, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
Dicionário de Bioética, Aparecida (SP): Santuário, 2001.
HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, Vol. I, Rio de Janeiro:
Forense, 1981.
JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 25ª
ed., São Paulo: Atual, 2003.
JUNIOR, A. Almeida e JUNIOR, J.B. de Oliveira e Costa. Lições de Medicina Legal. São Paulo:
Nacional, 1996.

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