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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Paulo André Nassar

ANTI ANTI-DIREITOS HUMANOS

Belém

2014
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Paulo André Nassar

ANTI ANTI-DIREITOS HUMANOS

Trabalho final de disciplina apresentado aos


Prof. Dra. Jane Beltrão e Dr. Antonio
Maués, como requisito parcial à avaliação
na disciplina Teoria dos Direitos
Humanos no Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal do
Pará.

Belém

2014
ANTI ANTI-DIREITOS HUMANOS

Paulo André Nassar

1 A advertência recorrente 3

2 A emergência do discurso anti-direitos humanos. 7

2.1 Caso Lúcio Flávio Pinto 10

2.2 Caso das religiões afro-brasileiras 12

2.3 Caso Richarlyson: 14

2.4 Caso do projeto de “cura gay” 16

3 Considerações finais 18

Referências 19

1 A advertência recorrente

Os textos introdutórios sobre direitos humanos trazem uma advertência recorrente que

pode ser resumida no seguinte: “Cuidado com o discurso convencional dos direitos humanos! Ele

pode ser usado para fins mais perigosos do que se pode imaginar”. Por trás desse aviso há uma

intenção louvável: alertar o iniciante no assunto para não embarcar num discurso ingênuo sobre

direitos humanos em que tudo que é relacionado à matéria é referido como algo politicamente

desejável e moralmente positivo. Esse alerta quer deixar claro que direitos humanos não são a

panaceia para os males da humanidade, mas uma espécie de rótulo que serve para variados

remédios – que por sua vez destinam-se a objetivos muitas vezes antagônicos, da emancipação

social à “guerra ao terror”.

3
Essa instrumentalização do conceito de direitos humanos pode nos levar a conclusão

precipitada que, se podem significar qualquer coisa, ninguém é contra os direitos humanos; toda a

questão se centraria de defini-los segundo os nossos interesses. Parte da literatura crítica dos

direitos humanos se empenhou em demonstrar os riscos dessa instrumentalização, como veremos

adiante. O objetivo central deste artigo é indicar que este diagnóstico ignora uma parte dos

discursos sobre o tema: justamente aquele que é contra direitos humanos, a que chamarei de “anti-

direitos humanos”. Alguém poderia argumentar que, por se opor aos direitos humanos, esta

temática não mereceria ser tratada pelos estudiosos da matéria e não deveria preocupar os ativistas

no assunto. Não entendo desta forma. A análise do discurso anti-direitos humanos é relevante

porque coloca em questão um traço distintivo dos direitos humanos na atualidade, ao menos no

Ocidente: sua inconstestabilidade.

Tal como GEERTZ procedeu no artigo que inspirou o título deste trabalho não me

proponho a defender os direitos humanos, mas atacar o discurso anti-direitos humanos, “que me

parece estar em ampla ascensão e representar uma versão aerodinâmica de um erro antigo”

(GEERTZ, 2001, p. 47). Antes de apresentar o que chamo de discurso anti-direitos humanos, no

entanto, desenvolverei brevemente a mensagem contida na advertência que resumi de forma

caricatural no início desta seção.

Boaventura de Sousa Santos fala da necessidade de construir uma concepção e uma

prática de contra-hegemônica dos direitos humanos. Concepção e prática essas que se opõem à

versão hegemônica ou convencional dos direitos humanos, que tem as seguintes características:

Os direitos são universalmente válidos independentemente do contexto social,

político, cultural em que operam e dos regimes de direitos humanos existentes em

diferentes regiões do mundo; partem de uma concepção de natureza humana como

sendo individual, autossustentada e qualitativamente diferente da natureza não

humana; o que conta como violação dos direitos humanos é definido pelas

declarações universais, instituições multilaterais (tribunais e comissões) e

4
organizações não governamentais (predominantemente baseadas no Norte); o

fenômeno recorrente dos duplos critérios na avaliação da observância dos direitos

humanos ne modo algum compromete a validade universal dos direitos humanos;

o respeito pelos direitos humanos é muito mais problemático no Sul global do que

no Norte global. (SANTOS & CHAUÍ, 2013, p. 53)

A essa versão hegemônica dos direitos humanos está subjacente uma concepção de

mundo que se desdobra em variantes de universalismos. O que DONNELLY chama de

universalismo antropológico seria a pretensão de compreender e representar as fundações e as

estruturas funcionais das sociedades impondo a elas um modelo analítico anacrônico e alienígena,

como se todas experiências sociais mundo afora compartilhassem dos mesmos pressupostos e

fossem determinadas por um conjunto fixo de variáveis (DONNELLY, 2007, p. 286).

Paralelamente, percebe-se um universalismo ontológico, ou seja, seria possível falar em valores

universais, um código moral compartilhado por toda humanidade, incontingente e

descontextualizado (DONNELLY, 2007, p. 293).

Não devemos confundir a concepção contra-hegemônica com que estou a chamar de

discurso anti-direitos humanos. SANTOS refere-se a uma concepção que desafia os interesses

contidos na concepção hegemônica e propõe uma concepção alternativa, multicultural, em que o

contexto importa, construída de baixo para cima, heterárquica, atenta às peculiaridade e necessidade

específicas do Sul global (SANTOS & CHAUÍ, 2013), que tem por “premissa uma política de

reconhecimento das diferenças capaz de estabelecer ligações entre, por um lado, as incrustações

locais e a importância e capacidade organizativa das iniciativas vindas da base, e por outro lado a

inteligibilidade translocal e a emancipação” (SANTOS, 2003, p. 46).

Tampouco me refiro aos argumentos levantados por ZIZEK contra os direitos humanos.

ZIZEK alerta para instrumentalização dos discursos dos direitos humanos para legitimar a lógica do

“militarismo humanitário”, a imposição da tirania do mercado, a defesa contra os excessos do

poder. O grande risco está na falsa aparência de universalidade dos direitos humanos que a
5
concepção hegemônica consagra. Essa ideia pretende incutir no discurso dominante um viés

asséptico, de modo a torná-lo, a primeira vista, inofensivo, e posteriormente, desejável. Esta suposta

pureza despolitizada dos direitos humanos surge como o ingrediente importante para legitimar a

exportação dos direitos humanos para “resto” do mundo (ZIZEK, 2010).

Entre aqueles que intervêm em nome dos direitos humanos, que tipo de politização

colocam em movimento contra os poderes a que eles se opõem. [...] Por exemplo,

está claro que a derrubada de Saddam, liberada pelos Estados Unidos, legitimada

em termos de pôr fim ao sofrimento do povo iraquiano, não apenas foi motivada

por interesses político-econômicos pragmáticos, mas também contou com uma

ideia determinada acerca das condições econômicas e políticas sob as quais era

para ser entregue a “liberdade” ao povo iraquiano: capitalismo liberal-

democrático, inserção na economia de mercado mundial, etc (ZIZEK, 2010, p. 24).

Nota-se, portanto, que despolitização declarada traz escondida sob os panos um projeto

de mundo que nada tem de apolítico. É interessante notar que a imposição dos direitos humanos

acontece com auxílio, senão são propulsadas, pelo uso de poderosos aparelhos bélicos. Mas é

enganoso achar que o aparato militar é mobilizado por discursos de guerra. Pelo contrário, esses

tipos de intervenção são justificadas pelas mais nobres intenções e se apropriam da gramática dos

direitos. Como lembra TODOROV, essas incursões militares são legitimadas pelo novel direito de

ingerência. O argumento é que “se num país acontecem violação dos direitos humanos, os outros

países do globo têm o direito de introduzir-se lá pela força, a fim de proteger as vítimas e impedir

os agressores de agir” (TODOROV, 2012, p. 56). E esse messianismo político traz consigo uma

grande contradição “metodológica”: sob a justificativa de levar o primado do direito e dos direitos

humanos, utiliza-se de um expediente indiscutivelmente desumano, a tortura institucionalizada e

detalhadamente descrita em manuais de procedimentos do exército norte-americano, como se a

nobreza dos fins fosse capaz de anular a violência dos meios (TODOROV, 2012, p. 61 e 84).

6
Esses são relevantes argumentos “contra” os direitos humanos – contra a concepção

hegemônica dos direitos humanos, Boaventura diria. Em outras palavras, a advertência recorrente

serve a um propósito relevante e precisa ser levada a sério por estudiosos e ativistas de direitos

humano. Por se tratar de um conceito cujo conteúdo está sob disputa, é aconselhável estar sempre

alerta para o uso instrumental dos direitos humanos, especialmente quando usado para legitimar

incursões militares “messiânicas”. Feito esse breve excurso, passo a apresentar o que chamo de

discurso anti-direitos humanos.

2 A emergência do discurso anti-direitos humanos.

O discurso anti-direitos humanos é composto por duas mensagens principais: (a) a

negação de direitos e liberdade civis à minorias e (b) o discurso de ódio e/ou intolerância à

diferença. Os direitos e liberdades civis negados geralmente são aqueles mais ligados à tradição

liberal que deu origem à gramática dos direitos humanos no século XXVI, como liberdade de

imprensa, liberdade de expressão, liberdade de associação e reunião, liberdade religiosa, direito ao

devido processo legal, direito à integridade física e à vida e liberdade contra tortura. O discurso de

ódio manifesta discriminação e também incitação à discriminação contra pessoas que partilham

uma característica de identidade comum, como gênero, religião, orientação sexual, origem, cor da

pele, condição social, entre outras característica que o emissor do discurso considera como

diminutivas da condição humana do outro (SILVA & alli, 2011, p. 448). O viés desses discursos é

excludente, discriminatório e, no extremo, incita violência contra seus destinatários.

Vivemos tempo de mudanças. Pelo menos desde a redemocratização, no final da década

de 1980, não havia espaço no debate público brasileiro para o discurso anti-direitos humanos. Não

estou dizendo que esse tipo de discurso era inexistente, mas que se situava à margem do debate

público predominante – era, portanto, marginal. Era tão periférico que podia ser ignorado, o que já

não pode ser feito nos dias atuais.

7
O discurso anti-direitos humanos se encaixa com quase perfeição no tipo de conduta

que se pretende proibir no art. 20.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado na

XXI Sessão da Assembleia Geral da ONU, de 1966, e ratificado pelo Brasil em 1992. O dispositivo

tem a seguinte redação:

2. Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso

que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência.

E que encontra redação quase idêntica no art. 13.5 da Convenção Americana de Direitos

Humanos, o Pacto de San José da Costa Rica, como vemos abaixo:

Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia

ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à

hostilidade, ao crime ou à violência.

Esse discurso pode ser identificado tanto no seio da sociedade civil quanto entre os

agentes estatais. Em ambos os casos, o discurso anti-direitos humanos pode se transformar em

práticas violadoras de direitos humanos, como veremos a seguir.

Um indicador da emergência do discurso anti-direitos humanos pode ser encontrado em

redes sociais como o Facebook, que segundo dados da empresa tem cerca de 76 milhões usuários

brasileiros.1 São inúmeras as comunidades de usuários que vibram com vídeos de violência policial,

clamam por justiçamentos a “bandidos” e linchamentos a “vagabundos”, reputam movimentos

sociais como criminosos e pedem até um novo golpe militar para “moralizar” o país. O Laboratório

de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo, fez

um levantamento recente de páginas de admiradores da Polícia Militar no Facebook, mapeando as

teses mais frequentes entre os usuários. Um traço comum entre as notícias e comentários

compartilhados é defesa da violência física e institucional como instrumento de pacificação social.

8
O repúdio a políticas e a defensores de direitos humanos também são recorrentes. Segundo Fábio

MALINI, coordenador do projeto,

“isso aparece com inúmeros textos e imagens que satirizam qualquer política de

direitos humanos ou ligadas aos movimentos sociais. Essas páginas funcionam

como revides à popularização de temas como a desmilitarização da Polícia Militar

ou textos de valorização dos direitos humanos. Atualmente, muitas dessas páginas

se articulam em função da “Marcha pela Intervenção Militar”. Um de seus

maiores ídolos é o deputado Jair Bolsonaro.” (MALINI, 2014)

A referência ao Deputado Jair Bolsonaro é reveladora. Embora não haja como

estabelecer uma relação de causalidade entre os fenômenos, a emergência da extrema direita

conservadora no Brasil acontece paralelamente ao ganho de notoriedade desse tipo de discurso. Se

analisarmos a divisão das cadeiras do Congresso Nacional na legislatura iniciada em 2010, veremos

que a chamada bancada evangélica reúne 73 parlamentares, sendo 70 deputados e 3 senadores.

Articula-se em torno de uma agenda contra a descriminalização do aborto, a união civil entre

pessoas do mesmo sexo e igualdade racial. Um fato marcante de sua influência no Congresso foi a

eleição do Deputado Marco Feliciano (PSC/SP), pastor neopentecostal da igreja Catedral do

Avivamento, ligada à Assembleia de Deus, a Presidência da Comissão de Direitos Humanos e

Minorias da Câmara dos Deputados. Já a bancada ruralista conta 158 parlamentares, sendo 140

deputados e 18 senadores e sua agenda envolve flexibilização da legislação trabalhista, fundiária e

ambiental e ferrenha oposição de interesses indigenistas e quilombolas.2 Essa numerosa bancada é

capaz de mobilizar seus agentes em torno de projetos de lei que pretendem institucionalizar o

discurso anti-direitos humanos, como veremos a seguir.

Neste ponto, proponho o estudo de quatro casos que veiculam o discurso anti-direitos

humanos com maior ou menor intensidade. São três decisões judiciais e um projeto de lei. Sobre as

decisões judiciais é preciso esclarecer que não se tratam de decisões finais. Algumas foram

reformadas ou ainda seguem aguardando decisões superiores. Estou ciente que esses casos são

9
isolados, ou seja, não correspondem à posição institucional dos órgãos que fazem parte. Prova disso

que é duas das três decisões judiciais analisadas foram reformadas por instancias superiores ou

mesmo retratadas pelo próprio julgador. Já o projeto legislativo foi retirado de plenário em

decorrências das pressões que exercidas pela opinião pública sobre ele. Esse reconhecimento,

entretanto, não retira a utilidade do estudo. Ao invés de tentar generalizar o que é, neste momento,

localizado, pretendo jogar luz sobre de um discurso tido por inexistente, como objetivo de alertar a

sua potencial emergência.

A seguir, passo apresentar os casos com comentários a respeito do seu caráter anti-

direitos humanos. São eles, (a) o do jornalista Lúcio Flávio Pinto, (b) das religiões afro-brasileiras,

(c) do jogador Richarlyson, e (d) do Projeto de Cura Gay.

2.1 Caso Lúcio Flávio Pinto

Em 1999, o jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto publicou artigo no Jornal Pessoal,

que o próprio edita, comentando reportagem de capa da revista Veja da semana anterior que

denunciava esquema de grilagem de terras no Estado do Pará praticado pelo empresário Cecílio do

Rego Almeida, a quem se referiu como “pirata fundiário”. À época, Rego era proprietário de cerca

de 7 milhões de hectares de terras na margem direita do Rio Amazonas, área correspondente a

aproximadamente a 8% do território paraense. O empresário moveu ação3 de danos morais contra o

jornalista, alegando a violação de sua honra pelo uso da expressão mencionada acima. É importante

ressaltar que, em 1996, o Instituto de Terras do Pará (ITERPA) moveu ação judicial contra Rego

com objetivo de anular o registro dos imóveis supostamente objeto da grilagem, na Comarca de

Altamira, sendo julgada procedente em primeiro grau, e reformada no Tribunal de Justiça do Estado

do Pará. Após o deslocamento da competência da Justiça Federal para funcionar no caso, e ação

seguiu impulsionada pelo Ministério Público Federal, e como desdobramento do caso, houve uma

intervenção no cartório de Altamira, na qual foram destituídos alguns serventuários incluindo a

titular do cartório. Em 2005, a ação de indenização foi sentenciada e Lúcio Flávio Pinto foi

10
condenado a pagar R$ 8.000,00 (oito mil reais) a Cecílio de Almeida Rego. O jornalista apelou da

decisão e o recurso recebido e indeferido por maioria de votos em 2006. Sobre a questão de fundo,

o voto condutor da maioria, da Desembargadora Maria Rita Lima Xavier, fez as seguintes

considerações:

Vê-se no presente caso que os fatos suscitados, os fundamentos legais aduzidos e,

principalmente, os instrumentos probatórios juntados denotam que o

autor/apelado sofreu um desrespeito a sua pessoa, causando, o renomado

jornalista, um dano moral tanto na esfera subjetiva quanto na esfera objetiva, o

que enseja necessariamente numa reparação.

[...]

Como sabido, o ato de interpretar e comentar, em nada se confunde com o ato de

transcreve [sic] (narrar), pois pela atividade intelectiva do nobre jornalista, houve

excesso no seu livre exercício ao direito de informação previsto na Constituição

Federal de 88, na medida que se deu conotação diversa e efetuou qualificação

negativa acerca da imagem do apelado.

Portanto, ainda que tivesse a verdadeira intenção de atingir a honra do apelado,

ainda assim, o que descaracterizaria o dolo da conduta, o fato de ter tornado

público [sic] seus comentários e interpretações sobre outra fonte de informação,

agiu com culpa na modalidade imperícia, visto que o como qualificado jornalista,

deveria pautar-se no bom senso ao qualificar as pessoas em matérias

jornalísticas. Não teve, portanto, a devida perícia ao qualificar o apelado de

“pirata fundiário” (grifos apostos).

O raciocínio jurídico do voto transcrito é que, ao usar a expressão “pirata fundiário” o

jornalista desrespeitou o empresário, violando sua honra subjetiva, e atingiu sua reputação no meio

social em que vive, violando sua honra objetiva. E que sempre que houver abalo injustificado da

honra alheia, surge a necessidade de reparação pecuniária. Nenhum consideração é feita sobre o

11
exercício da profissão de jornalista e sua intrínseca relação com a liberdade de imprensa. Em

momento algum se menciona o evidente conflito existente entre patrimônio moral do ofendido, de

um lado, e o liberdade de imprensa e o direito à informação da coletividade, do outro4. Tampouco

fez-se consideração alguma sobre a veracidade dos fatos imputados ao empresário pelo jornalista.

Ora, se restasse provado que o empresário apropriou-se das terras valendo-se de meios ilícitos, não

se mostraria inadequada a expressão utilizada pela jornalista. Quanto a potencial ofensividade do

que foi publicado, vale lembrar George Orwell, para quem o verdadeiro “jornalismo é publicar

aquilo que alguém não que se publique; todo o resto é publicidade”. Dito de outra forma, trazer a

público um esquema de fraude à documentação fundiária certamente incomoda os agentes que dele

se beneficiavam. Transformar a notícia dessa descoberta em dano moral em favor agentes é, na

verdade, um atentado à liberdade de imprensa e ao direito à informação.

Dos quatro casos colacionados, esse é o que o discurso anti-direitos humanos aparece de

forma mais sutil. O que aparece no final do voto como “falta de perícia”, pode ser lido como

legítimo exercício da liberdade de imprensa. O que é chamado de “excesso no livre exercício ao

direito de informação” decorre da “qualificação negativa da imagem do apelado”. Por esse

raciocínio, qualquer notícia que associe nome de alguém a prática ilegal, mesmo que como suspeito,

teria como consequência o dever de indenizar.

2.2 Caso das religiões afro-brasileiras

Em razão de denúncia Associação Nacional de Mídia Afro, o Ministério Público

Federal promoveu ação civil pública com pedido de liminar5 contra o Google com o objetivo de

tirar do ar 17 vídeos de cultos evangélicos neopentecostais que se considera ofensivos às religiões

de matriz africana e seus adeptos. Nos vídeos, os pastores proferem discurso odioso contra religiões

afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé – geralmente referidas nos vídeos como macumba

– associam suas práticas ao culto ao diabo e referem-se aos praticantes como um “legião de

demônios”.

12
O pedido de liminar foi indeferido no primeiro grau sobre sob o argumento que os

vídeos eram resultado do exercício de direitos fundamentais da Igreja Universal, dentre os quais

mencionou a liberdade de opinião, liberdade de reunião e liberdade de religião. E no desenvolver do

seu argumento, afirmou que:

No caso, ambasmanifestações de religiosidade[a umbanda e o candomblé] não

contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão,

bíblia etc.) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser

venerado.

Não se vai entrar , neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser

religião, apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um

sistema de fé́ . As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em

religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de

crença – são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.

O caso apresenta uma combinação de discurso de ódio de duas ordens: religiosa e racial.

E aqui o ocorre o inverso do observado no caso anterior: reconhecendo o conflito existente entre

dois direitos, e sob o pretexto de privilegia-lo, o julgador faz considerações depreciativas a um dos

pólos envolvidos no conflito. O anti-direitos humanos não se manifesta no dispositivo da decisão,

mas no obter dicta da mesma. Faz-se uma distinção baseada em critério estranho – afinal, de onde

foram extraídas essas características essenciais a uma religião? – com o objetivo de negar aos cultos

de origem africana a condição de religião. Tem-se, portanto, que a restrição a um direito humano (a

liberdade religiosa) decorre de uma distinção baseada na cor, raça ou na descendência ou origem

étnica do titulares do direito, se enquadrando na definição de discriminação racial prevista no art. 1º

da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.

Nesta Convenção, a expressão "discriminação racial" significará qualquer

distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência

ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anula ou restringir o

13
reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição),

de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico,

social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida.

O argumento de que o diferente não é possível – nesse caso, de que o candomblé não é

religião – remete ao conceito de sensibilidade jurídica e confirma a tese que o direito é um saber

local, ou seja, é uma forma específica de representar a realidade. Nas palavras de GEERTZ

o direito [...] é um saber local; local não só com respeito ao lugar, à época, à

categoria e variedade de seus temas, mas também com relação a sua nota

característica – caracterizações vernáculas do que acontece ligadas a suposições

vernáculas sobre o que é possível (GEERTZ, 1997, p. 325).

A concepção jurídica que o juiz apresenta de religião é contextual e historicamente

determinada, ou seja, depende em grande medida, da interpretação que faz do seu entorno. Mesmo

sem conhecer a religião que professa o julgador, é bastante provável que seja praticante de uma das

três grandes religiões monoteístas: o cristianismo (católico ou protestante), o islamismo ou o

judaísmo. Ainda que seja ateu, essas são as religiões que mais frequência estão ao alcance do

brasileiro. Daí porque suas características comuns são apontadas na decisão como condição

necessária a uma religião: a existência de um livro sagrado e um deus a ser venerado. Isso mostra

como o sentido de justiça é relativo, na medida em que decorre da forma como as instituições

jurídicas representam os fatos e o traduzem para a linguagem normativa (GEERTZ, 1997, p. 260).

2.3 Caso Richarlyson:

O jogador de futebol Richarlyson ajuizou queixa-crime contra José Cyrillo Júnior, à

época diretor administrativo do Palmeiras, por ter insinuado em um programa televisivo que o

jogador seria homossexual. O juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª Vara Criminal de São

Paulo, negou seguimento a queixa-crime e determinou o arquivamento do processo. Mais uma vez,

o discurso anti-direitos humanos se manifesta no obter dicta na decisão, como vemos a seguir.

14
Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil,

não homossexual. Há hinos que consagram esta condição: ‘OLHOS ONDE

SURGE O AMANHÃ, RADIOSO DE LUZ, VARONIL, SEGUE SUA SENDA DE

VITÓRIAS...’

Esta situação, incomum, do mundo moderno, precisa ser rebatida...

Quem se recorda da ‘COPA DO MUNDO DE 1970’, quem viu o escrete de ouro

jogando (FELIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA;

CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais

conceberia um ídolo seu homossexual.

Quem presenciou grandes orquestras futebolísticas formadas: SEJAS,

CLODOALDO, PELÉ e EDU, no Peixe; MANGA, FIGUEROA, FALCÃO e

CAÇAPAVA, no Colorado; CARLOS, OSCAR, VANDERLEI, MARCO AURÉLIO e

DICÁ, na Macaca, dentre inúmeros craques, não poderia sonhar em vivenciar um

homossexual jogando futebol.

Não que homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas,

forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira

pelejar contra si.

[...]

Ora, bolas, se a moda pega, logo teremos o ‘SISTEMA DE COTAS’, forçando o

acesso de tantos por agremiação...

E não se diga que essa abertura será idêntica proporção ao que se deu quando os

negros passaram a compor as equipes. Nada menos exato. Também o negro, se

homossexual, deve evitar fazer parte de equipes futebolísticas de héteros.

[...]

15
O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol

brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o

entrosamento, o equilíbrio, o ideal...

Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio, por vezes

com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de

perder-se em análises de comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente

problema de personalidade, ou existencial; desconforto também dos colegas de

equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube. (grifos apostos).

O discurso de ódio homofóbico do juiz se manifesta em diversas passagens da sentença,

a começar pela impossibilidade de conceber que um ídolo possa ser homossexual, como se a

orientação sexual servisse para descredenciá-lo da condição de ídolo. A isso se segue a proposta

segregacionista, de que os atletas homossexuais constituíam um time e uma federação próprios, de

modo a impedir o convívio entre jogadores “normais” e jogadores homossexuais, como se a

homossexualidade fosse uma espécie de doença contagiosa. O que se corrobora com o próximo

trecho grifado. A intolerância e a hostilidade com o diferente se colocam de forma mais evidente no

trecho sobre a suposta irrazoabilidade de aceitar homossexuais no futebol brasileiro, que se mostra

ainda mais preconceituosa quando vem a justificativa: “porque a uniformidade de pensamento da

equipe, o entrosamento, o equilíbrio”. Ou seja, a diferença é vista como um atributo negativo e

degradante, capaz de minar a uniformidade de pensamento e o entrosamento de uma equipe.

2.4 Caso do projeto de “cura gay”

Outro caso relacionado a discursos homofóbicos aparece no que ficou conhecido por

“Projeto de Cura Gay”. Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo nº 234,de 2011, de autoria do

Deputado João Campos (PSDB/GO), que propõe a sustação da aplicação do parágrafo único do Art.

3º e o Art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999,que

estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à orientação sexual de seus pacientes.

16
O projeto ganhou notoriedade depois que chegou a ser aprovado pela Comissão de Direitos

Humanos e Minorias, quando era presidida pelo Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC/SP), mas

foi retirado de tramitação a pedido do autor, no plenário da casa, em julho de 2013. A pretensão é

recorrente, tendo sido apresentada na legislatura de 2010 pelo Deputado Paes de Lira (PTC/SP) e

reapresentada em 2014, pelo Deputado Pastor Eurico (PSB/PE).

Os dispositivos que se pretendia sustar tem a seguinte redação:

Art. 3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização

de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva

tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.

Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que

proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Art. 4º - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de

pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a

reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como

portadores de qualquer desordem psíquica.

A justificativa do projeto não aborda a questão substancial da proposta, qual seja, a

necessidade de tratamento psicológico terapêutico a homossexuais. Se restringe ao suposto abuso de

poder regulamentar do Conselho Federal de Psicologia e adequação do decreto legislativo como

remédio para o suposto excesso. No entanto, da negação dos postulados normativos que a proposta

visa sustar, é possível fazer algumas ilações: a primeira, e mais óbvia, é que a homossexualidade

precisa ser tratada e curada, como se uma doença fosse. Isso se ancora no paradigma patológico da

homossexualidade, que a considera moralmente reprovável ou contranatural (MOITA, 2006). A

segunda, e mais grave, decorre especificamente da tentativa de sustar o dispositivo contido no art.

4º da Resolução. Ora, se a resolução proíbe que psicólogos se pronunciem de modo a reforçar os

preconceitos sociais existente em relação aos homossexuais, e o proposta do decreto legislativo

17
pretende sustar tal dispositivo, podemos concluir, por mais absurdo que pareça, que sua finalidade é

permitir que os psicólogos se pronunciem publicamente no sentido de reforçar esse tipo de

discriminação.

3 Considerações finais

Esse trabalho se propôs a um objetivo modesto mas relevante: jogar luz sobre a

emergência de um perigoso discurso anti-direitos humanos no Brasil contemporâneo. Ao invés de

fazer uma espécie de defesa incondicional dos direitos humanos, procurei identificar os principais

traços desse discurso, mapear seus potenciais espaços de desenvolvimento – seja no âmbito da

sociedade civil, seja entre agentes estatais como juízes e congressistas – e colocar em questão seus

argumentos.

É significativo que esse discurso desponte no curso de um recente processo de

consolidação democrática e expansão dos direitos humanos, em que as redes de seguridade social

estão em consolidação e em que direitos sociais e econômicos não sejam claramente percebidos

como obrigação estatal exigível em termos judiciais. Não precisamos recorrer a sensibilidades

jurídicas estrangeiras para perceber um sentido de justiça bastante diferente daquele que

costumamos chamar de “nosso”. Essa percepção talvez nos ajude a complexificar um pouco mais

representação que fazemos de nós mesmos. Enquanto estamos empenhados em traduzir “valores

asiáticos” ou teologias políticas (SANTOS, 2014) para a linguagem dos direitos humanos para

compreender gramáticas alternativas de direitos humanos, corremos o risco de não perceber que a

dignidade humana talvez não seja uma meta universal e incontestável.

Isso cria um novo aos campos de estudo aos teóricos de direitos humanos e um novo

front aos ativistas. Dessa feita, desconstruir os discursos de ódio e a negação às liberdades civis

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elementares constitui-se, ao mesmo tempo, em objeto de pesquisa e de luta, a que esperamos

minimamente ter contribuído com este trabalho.

Notas
1
Informação disponível em http://www1.folha.uol.com.br/tec/2013/08/1326267-brasil-chega-a-76-milhoes-
de-usuarios-no-facebook-mais-da-metade-acessa-do-celular.shtml, acesso em 03 de agosto de 2014.
2
Informações do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar – DIAP, disponível em
http://www.diap.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=15500&Itemid=300 e
http://www.diap.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14637&Itemid=296 , acesso em
30 de julho de 2014.
3
Tribunal de Justiça do Estado do Pará, processo nº 0003791-93.2000.814.0301, disponível a consulta em
http://wsconsultas.tjpa.jus.br/consultaprocessoportal/consulta/principal?detalhada=true
4
O voto vencido da Desembargadora Sonia Maria de Macedo Parente decide pela reforma da sentença e
consequente improcedência da ação com base no argumento de que notícia publicada era fruto do legítimo
exercício da liberdade de imprensa do jornalista, como se vê no trecho a seguir:
“Entendo que, se a matéria causou desconforto ao autor/apelado, não se pode atribuir ao réu/apelante a
prática de ato ilícito, nos moldes em que a lei o define, eis que como jornalista que é, apenas exercitou o
direito de informar, acobertado pelo manto da liberdade de expressão e de imprensa.”
5
Tribunal Regional Federal da 2ª Região, processo nº 0004747-33.2014.4.02.5101, disponível a consulta em
http://www.trf2.jus.br/Paginas/paginainicial.aspx

Referências

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no. 2, 2007, p. 281-306.

GEERTZ, Clifford. "Anti anti-relativismo." In Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 2001.

GEERTZ, Clifford. "O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa." In: O saber local:

novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 249-356.

MALINI, Fabio. Facebook: um mapa das redes de ódio. Disponível em

http://outraspalavras.net/brasil/facebook-um-mapa-das-redes-de-odio/. Acesso em 1º de agosto de

2014.

19
MOITA, Gabriela. "A patologização da diversidade sexual: Homofobia no discurso de clínicos."

Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 76, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. "Poderá o direito ser emancipatório?" Revista crítica de ciências

sociais v.65, 2003, p. 3-76.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Se deus fosse um ativista de direitos humanos. São Paulo: Cortez,

2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos, democracia e

desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.

SILVA, Roseane Leal, et alli. "Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira."

Revista Direito GV v. 7, n. 2, 2011, p. 445-468.

TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

ZIZEK, Slavoj. "Contra os direitos humanos." In: Mediações v.15, no. 1,2010, p.11-29.

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