Você está na página 1de 4

MEUS "ORIENTES"

O Oriente tem sido uma paixâo constante na minha vida: não, porém, pelo seu

chamado "exotismo" - que é atração e curiosidade de turistas - mas pela sua

profundidade poética, que é uma outra maneira de ser da sabedoria. Como se

cristalizou em mim esse sentimento de admiração emocionada por esses povos

distantes, não é fácil de explicar em poucas linhas. Mas foi uma cristalização

muito lenta, dos primeiros tempos da infância. E lembro-me nitidamente desses

antigos encontros, que me deixavam tão pensativa e interessada, antes que eu

pudesse adivinhar, sequer, a sua significação.

Minha Avó, que falava uma linguagem camoniana, costumava dizer, em certas

oportunidades: "Cata, cata, que é viagem da India!" Eu ainda não sabia do

sentido náutico do verbo "catar": mas parecia-me que, com aquele estribilho,

tudo andava mais depressa, como para uma urgente partida.

Eu ainda nem sabia ler, e a babá Pedrina mostrava-me as figuras dos livros.

Foi assim que conheci o touro alado dos assírios; e durante muito tempo aquele

poderoso animal com face humana habitou a minha imaginação infantil, mais

sugestivo e misterioso que os príncipes e princesas das histórias de fadas.

Havia também a cozinheira com a velha bandeja decharão para as compras do

quitandeiro. Ela me explicava à sua moda aqueles pavilhões, aqueles barcos


dourados, aquelas figurinhas já meio desfeitas pelo tempo... E no dia em que,

diante dos cestos do quitandeiro eu a ouvi pronunciar a palavra "quingombó",

que era como chamava ao quiabo, instalou-se na minha fantasia a idéia que

aquilo devia ser chinês: que assim deviam falar as pessoas representadas na

antiga bandeja de charão.

A babá Pedrina sabia muito do Oriente, de tanto fazer chá, cujas folhas

vinham numa caixa maravilhosa da India ou da China. Ela tratava também de uns

pobres restos de louças, sobreviventes a muitas catástrofes domésticas, e

contava-me histórias que iam sendo ilustradas pelas pontes, pelos pagodes,

pelas árvores azuis pintados nos pratos e nas xícaras. Mas as suas intuições

orientais se concentravam numa canção que me parece andava na moda, por aquele

tempo, e que começava assim: "Não és tu quem eu amo, não és! Nem Teresa,/ nem

mesmo Ciprina,/nem Nlercedes, a loura, nem mesmo/a travessa, gentil

Valentina..." A cantiga continuava com a descrição da mulher amada: "Quem eu

amo, te digo, está longe,/lá nas terras do império chinês,/num palácio de

louça vermelha,/sob um teto de azul japonês."

Essa mistura da China com o Japão acrescentava indizível mistério à

lânguida canção. Mas a mim o que verdadeiramente me encantava era poder-se

habitar um "palácio de louça vermelha", moradia que se me afigurava


extremamente aprazível, pela beleza da cor, pela frescura e sonoridade da

louça.

Eu também gostaria de morar numa habitaçâo dessas. E foi por isso que

tentei entrar num jarrão, semelhante, no meu sonho, ao palácio da cantiga, e

foi por isso que, para salvar o jarrão da sua pequena inquilina, o puseram num

lugar tão acautelado, tão inacessível, tão escondido, que um cabide caiu por

cima dele e o desbeiçou.

Esses foram os meus "orientes" mais remotos, enfeitados por algumas sedas

estampadas com a palma indiana - motivo que perdura nos mais modernos tecidos

- e por uma infinidade de móveis de junco, de aparelhos de chá, de bibelôs que

se acumulavam nas casas das pessoas amigas, e que iam de suntuosas esculturas

em marfim a pequenos objetos de papel colorido. As senhoras usavam quimonos,

as mocinhas se abanavam com ventarolas de seda, leques de marfim rendado,

comia-se tanto arroz, tantas "fatias chinesas", falava-se de tanto cetim de

Macau e de outras fazendas orientais que era como se as naus dos bisavós

continuassem a trafegar por esses mares, e delas recebêssemos diretamente a

canela e o cravo dos nossos doces de cada dia.

Uma velhota; que chamavam de "turca", ia pedir à minha Avó folhas de

videira para fazer sua comida; e o mascate que vendia de porta em porta
alfinetes e pentes, rendas de linho e fitas, sabonetes e cosméticos,

conversava; na sua língua atravessada, sobre coisas de sua terra, a mais bela

terra do mundo ...

Havia as noites de febre. E então minha Avó começava a contar-me a história

da princesinha que tinha uma estrela de ouro na testa. A história nunca foi

além do título, já por si tão lindo que começava por me fazer sonhar, e logo

me fazia dormir. E no dia em que me encontrei, na India, com tantas moças

maravilhosas, tendo na testa aquele sinal que foi indicação de casta e hoje é

simples adorno, sinal que pode ser de tinta vermelha ou de diamante, percebi

que eram aquelas as minhas antigas princesinhas, que eu ia encontrar tão longe,

quando o Oriente se abriu, claro e amorável,

sobre os meus remotos "orientes".

38

Você também pode gostar