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| ESPECIAL |

A DELICADA RELAÇÃO ENTRE MEMÓRIA E INTELIGÊNCIA


ANO XIII
No 310 AMIZADE
Proximidade com gente
equilibrada favorece
amadurecimento
emocional
SONO
Como recuperar
as horas
de descanso
“em atraso”

EXERCÍCIOS
DROGAS E DOCES
Semelhanças entre
compulsão por calorias
e por substâncias que
PARA MANTER A causam dependência

SAÚDE MENTAL
Atividade física afasta sintomas
de demência e depressão
carta da editora

Corpo e cérebro
em movimento

Q
ue o exercício físico é uma maneira eficiente e poderosa de manter a saúde não
é novidade para ninguém. Acessível, barato e sem contraindicação, é capaz
de trazer inúmeros benefícios ao corpo – a ponto de ser considerado bastante
eficaz para evitar mortes prematuras. Um estudo coordenado por Lennert Veerman, da
Universidade de Queensland, na Austrália, por exemplo, já revelou que seis horas de se-
dentarismo por dia – sem contar o período de sono – diminuem, em média, cinco anos
na vida de uma pessoa. O curioso é que uma das desculpas mais comuns dos sedentá-
rios é que não têm tempo para se exercitar. Mas é justamente a atividade física que pode
garantir mais tempo às pessoas... Mas não só: o exercício regular favorece o aprendizado
e a memória, melhora a capacidade de concentração e o humor.
Mais especificamente no caso de depressão, um dos quadros mais prevalentes do planeta,
estudos reconhecidos no meio científico têm comprovado que a atividade física é eficiente,
sendo capaz de potencializar os efeitos da medicação. O que várias pesquisas apresentadas
nesta edição apontam, porém, é ainda mais revolucionário. Segundo o psicólogo clínico James
Blumenthal, da Universidade Duke, muita gente se beneficia da atividade física tanto quanto de
medicamentos – ou até mais. O psiquiatra Madhukar Trivedi, pesquisador da Universidade do
Texas, que vem estudando a relação entre exercício e saúde mental por mais de 15 anos, con-
corda e vai mais longe, ao afirmar que já existe literatura científica suficiente para considerarmos
que o exercício, em especial se aliado à terapia, não só potencializa o efeito da medicação, mas
em muitos casos pode até substituí-la. Saiba mais nesta edição de Mente e Cérebro.

Boa leitura.

GLÁUCIA LEAL, editora-chefe


glaucialeal@editorasegmento.com.br

3
sumário | novembro 2018

capa
12 Suar para fortalecer
o cérebro
Praticantes de esportes tendem a manter não
só o corpo, mas também a mente saudável por
mais tempo. A atividade física afasta sintomas de
depressão, ansiedade e Alzheimer

20 Exercício físico, um
caso de amor ou ódio?
Para uns é uma obrigação desagradável, enquanto
para outros a atividade é um prazer. O que explica
essas diferentes relações está na neuroquímica

especial
48 A delicada relação entre
memória e inteligência
Pesquisadores constataram que pessoas mais
hábeis intelectualmente têm maior capacidade
para conservar na mente as informações relevantes

53 Cada um de um jeito
O tamanho do cérebro pode não ser garantia
de capacidade mental superior, mas
as dimensões de áreas específicas podem
facilitar (ou dificultar) a de aprendizagem

8 Quero minhas
horas de sono de volta!
A maioria dos moradores das grandes cidades
vive em constante estado de sonolência,
causado pela privação crônica de descanso.
Especialistas dizem que é possível recuperar
esse déficit, mas não de uma só vez
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26 “Diga-me com Presidente: Edimilson Cardial


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cinema

UMA NOITE DE 12 ANOS.


105 min. Argentina, Espanha e
Uruguai, 2018
Direção: Álvaro Brechner
Elenco: Antonio de la Torre, Alfondo
Tort, Chino Darin, Cesar Troncoso.

A fenda do horror
Filme sobre encarceramento arbitrário de José Mujica e
outros integrantes de movimento de libertação no Uruguai
convida à reflexão sobre a crueldade

Pensar sobre a crueldade de que seres humanos são capazes – não só de praticar, mas também
de compactuar – não costuma ser tarefa agradável. Para a maioria das pessoas, é mais confortável
pensar que se trata de um tema distante, presente em obras de ficção, mas jamais ao nosso. Nos
últimos meses, entretanto, com a apologia à ditadura e à tortura cada vez mais presente, fica difícil
não esbarrar em certas reflexões. No cinema, no filme Uma noite de 12 anos, o cineasta Álvaro Brech-
ner apresenta a sucessão de brutalidades físicas e emocionais praticadas pela ditadura civil-militar
do Uruguai contra três membros do Movimento Nacional de Libertação Tupamaros, um grupo
marxista-leninista que se opôs ao regime ditatorial. A selvageria institucional, que ataca a dignidade
dos presos para além de qualquer justificativa racional, se contrapõe à resiliência psíquica dos pro-
tagonistas que suportam a situação por quase 4.500 dias desesperadores.
Para quem assiste ao filme que estreou na Seleção Oficial no 75.º Festival Internacional de Cine-
ma de Veneza, e foi selecionado para representar o Uruguai na disputa de melhor filme estrangeiro
no 91.º Oscar, a pior parte talvez seja se confrontar com o fato de que não se trata de ficção. De
fato, nove dirigentes do movimento, entre os quais o presidente do Uruguai entre 2010 e 2015, José
Alberto Mujica Cordano, permaneceram presos de forma arbitrária de 1973 a 1985. Na maior parte
do tempo permaneceram em celas subterrâneas minúsculas, privados de água, comida e constan-
temente ameaçados de morte.
“A tortura é um ato humano, cruel e degradante, que atinge ao mesmo tempo a humanidade
à qual o torturador também pertence”, afirma a psicanalista Maria Auxiliadora de Almeida Cunha
Arantes, autora da tese de doutorado Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente huma-
no, realizada no programa de pós-graduação de ciências sociais da Pontifícia Universidade Católi-

6
ca de São Paulo (PUC/SP), em novembro de 2011. “A prática percorre a história e sua sustentação
ao longo dos tempos; apesar do processo contínuo de desenvolvimento da cultura, faz supor que
há um empecilho intrínseco aos humanos que impede sua exclusão do campo da civilização”,
salienta a pesquisadora, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae,
em São Paulo, autora livro Tortura (Casa do Psicólogo, 2013).
Cabe lembrar que a tortura se sustenta com a presença de três protagonistas: o torturado, o tor-
turador e a sociedade que a permite. “A tortura transita no campo dos interditos, seu amálgama é o
segredo, seu locus privilegiado, a prisão ou outro lugar qualquer onde a vítima é totalmente privada
de sua liberdade. Nesse local, o torturador exerce seu poder sobre um semelhante assimetricamen-
te imobilizado, vedado, amordaçado e nu”, diz.
Arantes toma quatro textos de Freud como principal referência em seu trabalho: Totem e tabu
(1913); Reflexões para os tempos de guerra e de morte (1915); O mal-estar na cultura (1929) e Por
que a guerra? (1933). “Esses quatro ensaios apresentam uma concepção radicalmente pessimista
dos avatares do homem frente ao seu único e possível destino: a morte”, explica.
“O silêncio que se sobrepõe à tortura interessa principalmente aos torturadores e aqueles
que a autorizaram e continuam a autorizá-la, dos que sabem que a tortura ocorre e dos que se
calam porque pensam ser um assunto que não lhes diz respeito”, escreve Arantes, que também
recorre a subsídios da psicanalista francesa Nathalie Zaltzman, autora contemporânea que entre-
laça a psicanálise à figura do homo sacer sistematizada em Giorgio Agamben, uma articulação
indispensável para a compreensão do crime de tortura. Ao final, faz referência a Françoise Sironi,
etnopsiquiatra francesa do Centro Georges Devereux, pesquisadora na Universidade Paris VIII,
que formulou uma concepção sobre o silenciamento, afirmando que “a tortura faz calar”.
A psicanalista observa que “quando Freud estabeleceu a filogênese como uma contingência
da história da humanidade a partir do mito da morte do pai da horda, o mito do parricídio, talvez
ainda não pudesse supor que este ato fundador viesse a se tornar presente de forma tão avassa-
ladora, a ponto de estabelecer uma fenda no avanço da civilização e da cultura, atravessada pela
pulsão de morte”. E ressalta: é dessa fenda que emerge a tortura. Com base na teoria psicana-
lítica, Arantes mostra uma constatação triste: apesar dos esforços humanitários e civilizatórios
que reiteradamente condenam a tortura e outros comportamentos que aviltam a humanidade, a
destrutividade insiste e se mantém. Com certeza Uma noite de 12 anos não é um filme fácil, mas
se faz necessário. Uma possibilidade de repúdio da crueldade seja denunciá-la de forma criativa,
por meio da arte.

7
saúde

D
igamos que todas as noites, durante uma semana,
você durma duas horas a menos do que precisa
por causa de um trabalho que deve ser entregue
na sexta-feira. No sábado e no domingo, conse-
gue ficar na cama até mais tarde – e dormiu quatro horas a mais.
Embora talvez se levante mais animado no domingo, não se deixe
enganar: você ainda está carregando um fardo pesado do perío-
do não dormido – o que os especialistas chamam de “débito de
sono” – a diferença entre a quantidade que você precisa e aquela
que realmente consegue ter ou, no caso do nosso exemplo, algo
em torno de seis horas, ou quase uma noite inteira.
Esse déficit aumenta cada vez que perdemos alguns minu-
tos extras de nosso sono diário. “As pessoas acumulam o débito
de sono sem perceber”, explica o psiquiatra William C. Dement,
fundador da Clínica do Sono da Universidade Stanford. Estudos
demonstram que, a curto prazo, essa privação leva a um
ra na visão, problemas na hora de dirigir e dificul
lembrar das coisas. Os efeitos a longo p a
resistência à insulina e doença
grandes cidades, é cada
de sono”, afirma
Togieiro
s
saúde

dos à fadiga causada pelas horas a menos de descanso.


Hoje, os especialistas reconhecem que a tão propagada ne-
cessidade de oito horas diárias de sono por noite não se aplica a
todas as pessoas (há os que ficam satisfeitos com seis e aqueles
que anseiam por dez horas). Mas, independentemente da neces-
sidade de cada um, parece haver um “encurtamento”, um aumen-
to progressivo do déficit, segundo dados da Fundação Nacional
do Sono, nos Estados Unidos. A estimativa é de que, nas grandes
cidades, onde os apelos para ficar acordado por diversão ou ne-
cessidade (de deslocamento para o trabalho, por exemplo) são
maiores, as pessoas percam pelo menos uma hora de sono to-
das as noites. Ou seja: mais de duas semanas por ano.
Boa notícia é que, como em todo caso de débito, o do sono
também pode ser “pago”. No entanto, isso não vai acontecer
de uma só vez em uma maratona sonolenta nos lençóis. A
melhor maneira de “atualizar” o sono é dormir uma ou duas
hor s a is por oite P r os que sofre e rivação crôni-
r alguns me-
ma Lawrence
h Centers, filia-

vir o corpo” e
uando estiver
la manhã sem
el que, ao co-
“estranhe”, tal-
que o normal
te. No entanto,
ssando, o atra-
ente. E os be-
te o dia.
capa

Suar para
fortalecer
o cérebro
Praticantes de esportes tendem
a manter não só o corpo, mas
também a mente saudável por
mais tempo. A atividade física
afasta (e às vezes evita)
o aparecimento de sintomas
de demência e depressão
capa

Q
uando se trata de fazer atividades físicas, não é
só sentir-se bem de forma imediata que conta.
Afinal, também é muito bem-vinda a ideia de
manter-se mentalmente saudável por mais tem-
po, com o cérebro funcionando bem, para que possamos
desfrutar as alegrias da vida. É aí que a prática regular de es-
porte entra em cena. Já que estamos vivendo por mais tem-
po, parece necessário pensar em como vamos usar os anos a
mais. E um dos maiores fantasmas da velhice é a demência.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), só no Brasil
mais de 1 milhão de pessoas sofrem de Alzheimer. Devido ao
envelhecimento da população e ao aumento da estimativa
do tempo de vida, esse número deve crescer muito nos pró-
ximos anos. Até 2050, a porcentagem de homens e mulheres
com mais de 60 anos na população deve dobrar – e nesse
último terço de vida, a probabilidade de uma pessoa desen-
volver demência se eleva imensamente.

13
capa

Pessoas fisicamente ativas


têm melhores resultados em
quesitos como atenção, memória
e capacidade intelectual;
conseguem memorizar mais
informações e demoram
mais para se cansar

No entanto, o risco pode ser reduzido por meio de um estilo


de vida ativo. Ao lado da alimentação saudável e do estímulo
da rede de relacionamentos, os exercícios físicos parecem ser
a prática mais adequada para manter a capacidade cognitiva
por mais tempo. O pesquisador Eric Larson, da Universidade de
Washington em Seattle, por exemplo, demonstrou que espor-
tistas adoecem mais raramente de Alzheimer. Ele estudou 1.740
homens e mulheres com mais de 65 anos. No início da investi-
gação de longo prazo, todos os participantes não apenas esta-
vam saudáveis, mas apresentavam altos resultados para a faixa
etária no teste de inteligência Cognitive Ability Screening Instru-
ment (CASI). Os médicos examinavam os voluntários a cada dois
anos, avaliando sinais de demência incipiente. Paralelamente,
foram levantados o tipo de atividade física que praticavam e a
frequência com que o faziam, além de dados sobre o estado
geral de saúde, a condição psíquica, hobbies etc.

14
capa

Após seis anos, 158 voluntários estavam dementes, e 107


tinham diagnóstico de Alzheimer. O índice dos doentes entre
aqueles que exerciam atividades físicas três vezes por sema-
na ou mais estava em 13 por 1.000 – uma proporção mais bai-
xa que o valor de praticamente 20 entre os inativos. O espor-
te reduziu especialmente o risco de demência entre aqueles
que haviam apresentado as piores condições físicas antes do
início do treinamento.
Várias dessas comparações entre os que gostam de se
exercitar e outros mais ociosos apontam na mesma direção:
os ativos têm melhores resultados em quesitos como aten-
ção, memória e capacidade intelectual: conseguem memori-
zar mais informações, as processam melhor e demoram mais
a se cansar.
No entanto, ainda há uma questão a ser resolvida. Pesso-
as bem ou mal condicionadas provavelmente se diferenciam
também em outros pontos. Talvez as primeiras tenham, já por
princípio, hábitos mais saudáveis e se alimentem melhor. Mes-
mo que isso seja verdade, não se pode desprezar o efeito do
bom condicionamento. Que o exercício protege contra infar-
tos, diabetes ou mesmo osteoporose, já se sabe há muito. E
quem está em melhores condições físicas também não sofre
um declínio mental tão rápido. Pesquisadores querem saber,
porém, se o exercício na velhice também tem efeito direto so-
bre o cérebro. Uma pessoa saudável que chega aos 90 anos
já perdeu até 20% dos neurônios que possuía quando jovem.

15
capa

No entanto, novas células neurais surgem ininterruptamente –


só no hipocampo estima-se que apareçam vários milhares por
dia. Ou seja: o cérebro em envelhecimento também passa por
constante transformação.
O especialista em biomedicina Stanley Colcombe e colegas
da Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign, comprova-
ram isso em um estudo. Os pesquisadores dividiram, por sor-
teio, 59 idosos saudáveis entre 60 e 79 anos em três grupos: o
primeiro passou por um treinamento cardiovascular; o segundo
realizou exercícios de alongamen-
Olhar o outro para to; e o terceiro, um programa de
mexer o corpo relaxamento. Todos os participan-
tes treinaram três vezes por se-

V
ocê já se perguntou por que há
espelhos nas salas de ginástica e mana durante seis meses e, antes
dança da maioria das academias?
e depois desse período, tiveram o
Certamente o efeito não é apenas estético
ou técnico (uma vez que o recurso ajuda cérebro examinado no laboratório.
a corrigir os próprios erros). Um estudo Ficou demonstrado que o volume
desenvolvido na Universidade de Cambridge,
na Grã-Bretanha, reforça a ideia de que do lobo frontal, assim como o do
observar movimentos feitos por outras temporal, cresceu após os exer-
pessoas desencadeia impulsos motores em
cícios de resistência. Como isso
nós mesmos. Sob a óptica da psicologia
evolucionista isso faz sentido: se um ocorreu exatamente é difícil de
homem pré-histórico via outros correrem, estudar em seres humanos. Para
era aconselhável imitá-los sem parar para
pensar, pois provavelmente havia um perigo esclarecer a questão, os pesquisa-
em algum lugar – e fugir era a providência dores recorrem ao modelo animal.
mais urgente a ser tomada. Por outro lado,
O grupo de trabalho coordenado
não haveria praticamente nenhum prejuízo
à própria sobrevivência se a situação se por Fred Gage e Henriette van Pra-
revelasse inofensiva. Hoje, obviamente, já ag, do Instituto Salk, em La Jolla, na
não precisamos fugir de feras, mas nosso
cérebro mantém dispositivos que ainda Califórnia, forneceu informações
respondem como no passado. Isso talvez inéditas sobre a neurogênese em
ajude a explicar por que os exercícios
idade avançada. Os neurobiólogos
parecem render mais para a maioria das
pessoas quando estamos em grupo. treinaram ratos de 19 meses du-

16
capa

rante várias semanas com rodas de exercícios. Depois, os ani-


mais idosos foram submetidos ao “water maze test” – um expe-
rimento para avaliar a memória no qual eles nadam dentro de
uma bacia d’água e devem se lembrar do local onde está uma
plataforma que pode salvá-los. E vejam só: os velhinhos espor-
tistas conseguiram cumprir a tarefa melhor do que os roedores
sedentários da mesma idade. Além disso, o índice de neurogê-
nese nos animais treinados era apenas um pouco menor do que
o de cobaias jovens. Aparentemente, a perda de hardware neu-
ronal com a idade pode ser, em parte, compensada.
“O desenvolvimento do cérebro dura a vida inteira”, confirma
também o pesquisador da neurogênese Gerd Kempermann,
da Universidade Técnica de Dresden. No final dos anos 90, ele
descobriu junto com Van Praag e Gage que a atividade físi-
ca estimula o crescimento de neurônios também em adultos.
Os pesquisadores Charles Cotman e Nicole Berchtold, da Uni-
versidade da Califórnia em Irvine, descobriram as causas mo-
leculares: camundongos que corriam assiduamente na roda
produziam mais um importante fator de crescimento neuronal
(BDNF). E após um descanso de vários dias os animais volta-
vam a atingir rapidamente o nível que os seus semelhantes
não treinados só conquistavam por meio de um programa de
corrida de semanas.

17
capa

Mas o que acontece no caso da demência já presente?


Será que o declínio intelectual pode ser refreado pelo exercí-
cio? Isso foi estudado em 2005 por um grupo coordenado por
Paul Adlard, também da Universidade da Califórnia, em ca-
mundongos geneticamente alterados. Os animais foram in-
duzidos artificialmente a desenvolver um problema genético
que causa redução das células neurais. A situação é seme-
lhante à de pessoas com Alzheimer. Os pesquisadores dividi-
ram os roedores doentes em
dois grupos. A única diferen-
O estudo do cérebro ça é que em uma das gaiolas
nunca nos deu tantos havia uma roda de exercícios
bons argumentos para e na outra não. Após cinco
começarmos a nos exercitar meses, os animais que cor-
quanto agora. E se isso ainda riam apresentaram menos
trouxer satisfação, melhor placas amiloides no córtex
do lobo frontal e temporal do
que outros, da mesma idade,
que estavam em gaiolas comuns. No hipocampo foi encon-
trada apenas metade dos emaranhados de proteínas que ca-
racterizam a doença.
No mesmo ano, pesquisadores da Universidade de Chicago
comprovaram que camundongos transgênicos com Alzheimer
também tiravam proveito de “pequenas expedições” por am-
bientes estimulantes: eles saíam em “férias de aventuras” em
uma ampla gaiola com roda de exercícios, túneis coloridos e
brinquedos, no início por três horas diárias e, após um mês,
três vezes por semana. Os passeios retardaram consideravel-
mente o declínio do hipocampo. O estímulo aparentemente
fortaleceu a capacidade do cérebro dos roedores de eliminar
a perigosa beta-amiloide. Como demonstraram análises, as

18
capa

vias sinalizadoras epigenéticas foram responsáveis por isso:


nos núcleos celulares dos neurônios, informações genéticas
que estimulam processos de reparação e desenvolvimento de
neurônios foram lidas com frequência.
Os resultados estão de acordo com observações feitas em
seres humanos. Stanley Colcombe e Arthur Kramer avaliaram
os resultados de 18 estudos relevantes. Segundo eles, o trei-
namento aeróbico melhora o desempenho cognitivo em adul-
tos saudáveis com mais de 50 anos.
O psicólogo Ulman Lindenberger, diretor do Instituto Max
Planck de Pesquisas em Educação, de Berlim, porém, relativi-
za esses resultados. Segundo ele, quanto mais for divulgada
a ideia de que a demência não é fato do destino, mas con-
sequência de um estilo de vida inadequado, mais provavel-
mente a culpa pela doença será atribuída à pessoa afetada. O
especialista faz um alerta contra a estigmatização: “Não exis-
te nenhum meio milagroso que proteja com certeza contra o
declínio intelectual na velhice”. No entanto, parece que já está
mais do que na hora de aplicar na prática o conhecimento
científico para o bem do corpo e da mente. Afinal, o estu-
do do cérebro nunca nos deu tantos bons argumentos para
começarmos a nos exercitar quanto agora. E se isso trouxer
satisfação, melhor ainda.

19
capa

Exercício
amor
ou ódio?

Malhar regularmente é uma obrigação extremamente


maçante para uns e um grande prazer para outros. Por
que há formas tão diferentes de encarar a relação com
a atividade física? A resposta está no cérebro, mais
precisamente em substâncias que são ativadas quando
colocamos o corpo em movimento

20
capa

J
á se foi o tempo em
que esporte era re-
comendado apenas
para a melhoria da
capacidade cardiovascula ,
controle da pressão arterial,
do colesterol e de doenças
como diabetes. Hoje em di
o exercício é indicado tam-
bém para a manutenção da saúde do cérebro, melhoria da
autoestima, combate aos efeitos nocivos do estresse crônico,
depressão, ansiedade, favorecimento da memória e da cog-
nição. Mas se perguntarmos a qualquer corredor de rua ou
frequentador assíduo de academia por que ele é um adep-
to do esporte, certamente a maioria dará a mesma resposta:
sentem-se bem após a prática. Mas como algo trabalhoso, que
cansa, nos faz suar (o que pode ser irritante para muita gente)
e às vezes nos deixa doloridos pode ser tão prazeroso para
tanta gente? A resposta está no cérebro – mais precisamente
em substâncias que são ativadas quando colocamos o corpo
em movimento.
Pesquisadores do Centro de Estudos em Psicobiologia e
Exercício (Cepe), da Universidade Federal de São Paulo (Uni-
fesp), vêm realizando uma série de estudos sobre esse aspecto
do exercício físico e até mesmo a dependência que sua prática
pode causar. “Três substâncias específicas são responsáveis
pela sensação de prazer, que sentimos com a prática esporti-
va”, diz o professor de educação física Vladimir Modolo, mestre
em ciência da saúde e especialista em fisiologia do exercício. A
endorfina é a mais conhecida. O neurotransmissor liberado du-
capa

Uma das substâncias estimuladas


pela atividade física é o fator de
crescimento cerebral (BDNF, da sigla em
inglês), responsável pelo processo de
regeneração, que favorece o nascimento
de novas células neurais

rante o exercício atua em áreas cerebrais de recompensa, que


quando estimuladas desencadeiam sensações de bem-estar
e euforia. “Além disso, a beta-endorfina, uma de suas muitas
variações, tem função analgésica, contribuindo para o relaxa-
mento das tensões e alívio do estresse”, observa Modolo.
Outra substância estimulada pela atividade física é o fator de
crescimento cerebral (BDNF, da sigla em inglês brain derived
neurotrophic fator), uma neurotrofina responsável pelo processo
de regeneração neural, que favorece a neuroplasticidade. Pes-
quisadores da Universidade de Xangai publicaram, em 2008,
estudo demonstrando, entre outras coisas, que o exercício físi-
co favorece a síntese de BDNF, incentivando a neurogênese. “O
aumento da liberação desse fator no organismo faz com que os
neurônios aumentem e as conexões melhorem”, afirma Modo-
lo. Na prática, isso pode significar a preservação da memória e
da capacidade de aprendizagem, por exemplo. Além disso, se
a depressão pode causar a morte de neurônios, como mostram
alguns estudos neurocientíficos, entende-se que o oposto – o
nascimento de células cerebrais e a formação de sinapses –
também influencie nos níveis de prazer e bem-estar.
Outra substância que favorece a sensação de satisfação de-
sencadeada pelo movimento – tanto amadores quanto profis-
sionais – é a anandamida, denominação originada do sânscrito,

22
capa

ananda, que significa fe-


licidade. Descoberta no início
dos anos 90 por pesquisadores da
Universidade de Jerusalém, a molécula
é extremamente similar ao tetrahidrocanabinol
(THC), responsável pelo efeito psicoativo da Canna-
b i s (maconha), só que produzida pelo próprio organismo. Seus
níveis aumentam com a prática de exercícios e, com o passar do
tempo, os efeitos analgésicos, ansiolíticos e antidepressivos, se-
melhantes aos do THC, tornam-se mais evidentes.
Isso expõe o fato de que sentir prazer em fazer atividade física
não está relacionado ao gosto, mas sim às reações que o mo-
vimento físico proporciona ao corpo. “Existem algumas crenças
de que a herança genética exerce influência sobre a maior ou
menor facilidade para a prática esportiva, mas o que as pesqui-
sas mostram é que o organismo de todos nós reage dentro dos
mesmos padrões diante do movimento”, diz o especialista da
Unifesp. O que faz diferença, nesse caso, é o hábito.

Deliciosa preguiça
Diante de tudo isso, como explicar o fato de que tanta gente
enxerga nos equipamentos de uma sala de musculação de
academia verdadeiros objetos de tortura e prefere o sedenta-
rismo ao esporte? Por que o sofá, a cama e o controle remoto
parecem tão mais prazerosos que uma caminhada pelo bair-
ro? Neste caso a explicação está nos músculos, ou melhor, no
condicionamento físico. As pesquisas científicas comprovam
que o ser humano foi feito para movimentar-se. Acontece que,
nos últimos 100 anos, desde o advento da Revolução Industrial
até os dias de hoje, em que nos acostumamos a uma avalan-
che de tecnologias e facilidades, gradativamente abandona-

23
capa

“É muito grande o número de pessoas


que nunca fez exercício, as novas gerações
mal andam 500 metros num dia; muitas
crianças e adolescentes limitam-se a exercitar
os dedos em teclados de computadores
e smartphones”, diz especialista

mos o movimento. Hábitos simples como ir a pé ao trabalho


foram abandonados. “É muito grande o número de pessoas
que nunca fez exercício, as novas gerações mal andam 500
metros num dia”, observa Modolo. “Crianças e adolescentes
limitam-se a exercitar os dedos em teclados de computadores
e smartphones.”
Toda essa comodidade e conforto da vida moderna “destrei-
nou” o corpo da maioria das pessoas, em especial nos gran-
des centros urbanos. A boa notícia é que retomar o movimento,
seja por indicação médica ou vontade própria, pode “reensi-
nar” o corpo a encontrar prazer na atividade física. Mas como
o corpo não está acostumado a essa prática e a musculatura
não foi desenvolvida adequadamente, há uma percepção ne-
gativa, causada por desconfortos físicos, que se sobrepõem ao
prazer e ao bem-estar despertados pela liberação de ananda-
mida, endorfina e fator de crescimento cerebral. “Todo mundo
pode sentir prazer com os exercícios; o difícil para quem sem-
pre teve uma vida sedentária é ultrapassar os primeiros dois
ou três meses, nos quais a falta de condicionamento faz com
que o cansaço, o desconforto e uma leve sensação dolorosa
se sobreponham momentaneamente ao bem-estar. ”
comportamento

“Diga-me
com quem
anda...”
As companhias que escolhemos são
importantes durante toda a vida, mas na
adolescência podem ser decisivas. Recorrer
a amigos e colegas que consideramos mais
equilibrados pode ser uma forma eficiente
para se acostumar a administrar a própria
falta de limites, um comportamento capaz
de causar muitos problemas – tanto para si
mesmo quanto para os outros
comportamento

M
eu colega de colégio Tom G. era considerado por
muita gente um garoto com um futuro nada pro-
missor. Ele costumava beber em excesso e dirigir
em alta velocidade, além de ter sido preso algu-
mas vezes por pequenos furtos. Tom era bastante indisciplina-
do em relação a esportes ou outras atividades organizadas e
sempre que podia arrumava um jeito de faltar às aulas na es-
cola. Quando conseguia um emprego logo desistia ou era rapi-
damente demitido. As pessoas o julgavam como um perdedor.
Imagine minha perplexidade quando me encontrei com Tom
(cujo nome mudei para
proteger sua identidade),
alguns anos mais tarde.
Ele estava sentado em
uma lanchonete, beben-
do café enquanto lia um
jornal. Após alguns anos,
o rapaz havia se casado
com uma de nossas mais
estudiosas colegas de
classe. Tom procurou se
cercar de amigos estáveis
e conscientes, deixando
para trás as “más companhias” do ensino médio. Ele raramen-
te bebia ou dirigia em alta velocidade. Agora, meu colega da
época de colégio era pai de família, tinha um pequeno porém
bem-sucedido negócio, e vivia com moderação.
Muitas pessoas conhecem alguém como Tom G. ou se iden-
tificam com ele, mas a maioria das histórias não costuma ter

27
comportamento

final feliz. De fato, grande Em um experimento,


parte das crianças com di- voluntários com
ficuldades de autocontrole baixa capacidade
crescem com o problema.
de autocontrole
Por que sua natureza in-
demonstraram ser
disciplinada não o levou a
mais dependentes de
uma vida de fracassos e
dificuldades como muitos
seus parceiros, mas
haviam previsto? somente quando
Pesquisas recentes tal- o par se mostrava
vez possam ajudar a com- equilibrado, nesses
preender a misteriosa re- momentos, eles
viravolta na vida do rapaz. sentiam que a relação
A psicóloga Grainne Fitzsi- era essencial para seu
mons e sua equipe da Uni- bem-estar
versidade de Duke estuda-
ram pessoas com baixa autodisciplina – a ideia era verificar se
indivíduos como Tom estariam cientes de suas dificuldades e
se poderiam de alguma forma compensá-las. Os pesquisado-
res acreditam que Tom tenha escolhido deliberadamente fre-
quentar outros círculos sociais como uma estratégia para re-
gular seu próprio comportamento, pegando uma carona com
pessoas mais bem sucedidas.

Falta força de vontade


A pesquisadora e seus colegas desenvolveram vários experi-
mentos em laboratório, além de um estudo com casais reais. O
objetivo era compreender como pessoas com dificuldades de
se autocontrolar formam pontos de vista em relação a indiví-
duos mais disciplinados. Em um dos estudos os pesquisadores

28
comportamento

enfraqueceram o domínio próprio de alguns dos voluntários por


meio de uma manipulação feita no laboratório. Os participan-
tes deveriam prestar atenção em um vídeo enquanto ignoravam
palavras que piscavam na tela (uma técnica capaz de colocar
a força de vontade a prova e identificar pessoas suscetíveis a
ceder aos impulsos). Depois de ter a acuidade mental tempora-
riamente enfraquecida, os voluntários (e indivíduos de controle
que não haviam passado pelo procedimento) tiveram que ler
histórias sobre três gerentes de um escritório: um extremamen-
te disciplinado, um displicente e outro equilibrado entre os dois
extremos. Depois, os participantes deveriam avaliá-los.
Os resultados foram claros. Os voluntários com autocontro-
le artificialmente enfraquecido julgaram os gestores altamente
disciplinados de forma mais positiva do que os gerentes media-
nos, e de maneira geral os favoreceram em relação aos displi-
centes. Os participantes de controle não mostraram preferência.
Os resultados apoiam a hipótese dos pesquisadores: pessoas
indisciplinadas parecem ser atraídas por indivíduos, mesmo que

29
comportamento

sejam estranhos, que dispõem de mais recursos emocionais.


A situação criada artificialmente em laboratório explorou o
enfraquecimento temporário do autocontrole. Mas o que dizer
sobre indivíduos como meu amigo Tom, em quem esse traço
de caráter persiste? Será que eles também demonstram pre-
ferência por pessoas modelos de disciplina? Para explorar a
questão, os cientistas propuseram uma situação diferente no
laboratório: o teste Stroop, em que palavras coloridas apare-
cem sucessivamente escritas em cor diferente do que o termo
descreve (veja quadro na pág.31 OU OU) – o vocábulo “verde”,
por exemplo, é grafado em vermelho. Os participantes devem
ignorar o significado da palavra e se concentrar apenas em sua
cor. O bom desempenho no teste dá indicações de força de
vontade como uma característica de personalidade.
Após medir o autocontrole, os pesquisadores dividiram os
voluntários disciplinados e displicentes em dois grupos. De-
pois, os participantes leram histórias bem semelhantes às do
primeiro estudo e avaliaram o persona-
gem. Eles gostariam de conhecer essa
Cientistas acreditam
pessoa? Poderiam ser amigos? Traba-
que pessoas
lhar junto com ela?
autossuficientes Como os pesquisadores suspeitavam,
não prestam muita os displicentes avaliaram positivamente
atenção ao nível as pessoas disciplinadas. Surpreenden-
de autodisciplina temente, os voluntários mais controla-
alheia, enquanto que dos não demonstraram preferência por
aqueles com mais essa característica nos outros. Os cien-
dificuldades nessa tistas acreditam que pessoas autossufi-
área tentam controlar cientes não prestam muita atenção ao
nível de autodisciplina alheia, enquanto
esse traço nos outros
30
comportamento

TESTE DE STROOP,
clássico medidor de
força de vontade, traz
uma série de palavras;
voluntários devem dizer
rapidamente o nome
da cor, ignorando o
significado da palavra

que aqueles com dificuldades tentam controlar esse traço nos


outros. Segundo essa lógica, em algum nível Tom percebeu
que deveria se cercar de pessoas diferentes de si mesmo. A
relação com a esposa e os novos amigos o ajudou a regular
seus impulsos destrutivos.

Jogo da atração
Para aproximar a pesquisa da vida cotidiana, Grainne Fitzsimons
e sua equipe decidiram estudar relacionamentos românticos.
Eles avaliaram autocontrole em mais de cem casais, além da
dependência entre eles – nesse caso, os cientistas investiga-
ram até que ponto o parceiro seria capaz de satisfazer as ne-
cessidades do outro.
Os resultados reforçaram o que os pesquisadores haviam
descoberto em laboratório. Como descrito no artigo que será
publicado na revista Psychological Science, os voluntários
com baixo autocontrole demonstraram ser mais dependentes

31
comportamento

de seus parceiros, mas somente quando seu par se mostrava


disciplinado – nesses momentos, eles sentiam que a relação
era essencial para seu bem-estar. Os mais controlados não
mostraram diferença em relação à dependência emocional.
Os cientistas acreditam que essas pessoas não tenham a mes-
ma forte necessidade de ter um parceiro para compensar a
própria impulsividade.
Em conjunto, os estudos oferecem evidências de um pro-
cesso de autorregulação social pelo qual nos aproximamos de
outras pessoas para compensar nossas falhas. Os pesquisa-
dores afirmam, no entanto, que a confiança no outro não é su-
ficiente para superar completamente a impulsividade. De fato,
os resultados sugerem o oposto: dificuldades em controlar os
próprios impulsos são muito difíceis de superar. Geralmente,
O AUTOR pessoas com esse traço têm maior dificuldade em ter uma
WRAY HERBERT
é psicólogo, vida plena e bem-sucedida. No entanto, os resultados dão es-
membro da
Association for perança para pessoas naturalmente impulsivas atuar de forma
Psychological
Science. ativa para superar fraquezas.

32
socialização

Com
o status
afeta a
saúde A hierarquia social,
bastante marcada nos
grupos de macacos
rhesus, causa diferenças
em sua capacidade física
de responder a invasores
bacterianos e virais.
Cientistas investigam como
esse mesmo processo ocorre
em seres humanos

34
socialização

V
ocê anda preocupado em ser promovido no tra-
balho, ansioso por receber curtidas de suas posta-
gens nas redes sociais e ter opiniões respeitadas
entre seus amigos? Pois bem, a vida dos macacos
rhesus em comunidade também não é das mais fáceis. Pelo
contrário. Nos grupos com forte hierarquia social, os privile-
giados, que estão no “topo da pirâmide”, passam mais tempo
socializando, enquanto aqueles que se encontram nas cama-
das mais baixas sofrem com ataques – às vezes mais, às ve-
zes menos explícitos – de seus colegas. E aí está seu ponto
em comum com os macacos: tanto eles como você podem
estar mais vulneráveis ao adoecimento quando não são valo-
rizados por seus semelhantes.

35
socialização

Um estudo publicado pelo periódico Science revela que as di-


ferenças de posição social influem na saúde dos símios, muitas
vezes provocando picos de estresse, o que afeta o sistema imu-
nológico dos animais “desfavorecidos”. E isso nos ajuda a enten-
der como processos semelhantes ocorrem com seres humanos.
No estudo, feito em parceria entre as universidades Duke e
Emory, nos Estados Unidos, e de Montreal, no Canadá, os pes-
quisadores organizaram 45 macacas adultas em hierarquias
sociais e acompanharam as funções imunológicas dos ani-
mais. Eles descobriram que as fêmeas mais respeitadas pelo
grupo têm maior número de células imunes necessárias para
combater ataques
Num estudo com 45 fêmeas adultas, virais.  O mais sur-
cientistas alteraram artificialmente preendente: quando
a posição dos animais entre seus os pesquisadores
pares, o que, surpreendentemente, manipularam artifi-
provocou alterações em suas cialmente as posi-
ções das macacas
funções imunológicas
entre seus pares,
suas funções imunológicas mudaram. Esses resultados suge-
rem uma relação causal entre o lugar que o indivíduo ocupa no
grupo e a função imunológica – algo que pode ser reversível
quando as condições sociais são alteradas.
Há décadas os cientistas sabem que, para os seres huma-
nos e outros animais sociais, a interação social pode ser um
forte preditor de saúde e doença. De fato, um estudo longitu-
dinal recente descobriu que os homens americanos de nível
socioeconômico mais alto vivem quase 15 anos mais do que os
de classes mais baixas. Em relação a mulheres, as mais ricas
vivem cerca de 10 anos mais que as mais pobres. 

36
socialização

Nos últimas décadas, cientistas têm lu-


tado para desvendar as causa
sas diferenças dramáticas s
incorrer em preconceitos. A
pessoas de status socioe-
conômico mais baixo são
particularmente propensas
a adoecer?  Desenvolvem
comportamentos mais
arriscados, como fumar,
ou simplesmente não têm
acesso a bons cuidados de
saúde? Tudo isso pode ser v
dade, mas há outro aspecto
considerado: assim como ocorre com
macacos, o status social parece causar mudanças fisiológicas
que afetam negativamente a saúde ao longo do tempo.
Foi para estudar a relação entre status social e saúde em
um ambiente mais controlado que os pesquisadores analisa-
ram a função imune em macacos, uma espécie de primatas
altamente social. Os macacos formam grupos hierárquicos li-
neares, em que os membros mais respeitados passam mais
tempo exercitando o chamado grooming (em tradução literal,
“preparação”, mas na verdade se refere à socialização e refor-
ço de vínculos), enquanto os animais de “classes baixas” são
frequentemente excluídos do grooming e experimentam mais
assédio e isolamento social. 
Na natureza, um macaco entra na hierarquia logo abaixo de
sua mãe, mas em cativeiro os recém-chegados demoram mais
para serem incluídos. “Isso nos oferece a chance de refazer gru-

37
socialização

pos com indivíduos


Os resultados sugerem a existência que não se conhe-
de uma relação causal entre o lugar cem, estabelecendo
que o indivíduo ocupa no grupo novas relações”, diz
e sua capacidade de controlar a coautora do estu-
inflamações, ou seja, a fisiologia é do, Jenny Tung, da
influenciada por condições sociais Universidade Duke.
Na primeira par-
te do estudo, ela e seus colegas dividiram as 45 fêmeas em
nove grupos sociais de tamanho igual e as observaram por um
ano. Quando analisaram amostras de sangue das macacas,
descobriram que as mais “populares” tinham maior expressão
de genes que produzem anticorpos responsáveis por conter
infecções virais.  Em contrapartida, amostras de sangue das
macacas de baixo status mostraram uma resposta inflamatória
muito mais forte quando confrontadas com um composto que
imita um ataque bacteriano. 
Para investigarem se a diferença na resposta imune era de
fato causada pelo status social, os pesquisadores reorganiza-
ram os macacos em novos grupos sociais – todos os espécimes
que estavam “no topo” da hierarquia foram reagrupados, assim
como as macacas de “segundo escalão” e assim por diante.

38
socialização

Os cientistas encontraram fo t i
dência de que o status social,
si só, pode causar alteraçõe
imunes: a resposta orgânica
dos animais mudou, houve
uma correspondência ao seu
novo posto social.  “Há real-
mente muita plasticidade no
modo como as células estão
respondendo a uma infecção
que é diretamente controlada
pelo status social”, diz o pesqui
sador Luis Barreiro, da Universid
McGill, coautor do estudo. Tung acres-
centa: “Se a condição social muda, o mesmo
acontece com a expressão genética imune, que passa a sofrer
influência do ambiente atual”, afirma.
Segundo Tung, todos os animais tiveram alguma reação in-
flamatória necessária para combater infecções bacterianas. No
entanto, ao longo do tempo, a resposta aumentada nos maca-
cos de baixo status pode levar a danos nos tecidos. A cientista
lembra que, em seres humanos, algumas das doenças mais
graves estão associadas a processos inflamatórios. A pesqui-
sadora vê as descobertas com otimismo. “Mostramos de for-
ma convincente que o estresse social crônico, por si só, pode
mudar a forma como nosso corpo funciona”, diz Tung. “Mas
acredito que a mensagem esperançosa é que sistemas imu-
nes podem responder a mudanças no ambiente, e isso acena
com a possibilidade de transformação; a pessoa não precisa
ficar aprisionada ao seu histórico social.”

39
compulsão

A estreita
relação entre
drogas e doces
Exames de neuroimagem revelam
semelhanças entre o desejo
por alimentos calóricos, obesidade
e uso de substâncias que causam
dependência química

por Nora D. Volkow


compulsão

I
númeras evidências científicas demonstram que o comer
compulsivo e o consumo de drogas envolvem circuitos ce-
rebrais com funcionamento semelhante. Essa constatação
tem oferecido nova compreensão da obesidade e aberto
caminhos para possibilidades de tratamento. Mas, afinal, que
circuitos do cérebro são ativados pela adicção – seja de comi-
da ou de substâncias tóxicas? O sistema neural ativado tanto
pela ingestão compulsiva de alimentos quanto pelo consumo
de drogas é basicamente o circuito que evoluiu para recom-
pensar comportamentos essenciais à sobrevivência. Em ge-
ral, as pessoas são atraídas pelos alimentos
porque isso é recompensador e produz pra-
zer. Quando experimentamos prazer, nosso
cérebro aprende a associar essa sensação
com as condições que o predispõem a
isso. Essa memória fica mais forte à me-
dida que, nesse ciclo, a predição, a busca
e a obtenção do prazer são repetidas e
tornam-se, aos poucos, mais frequentes,
criando condicionamento. E as drogas
são eficientes nesse processo.
Estímulos naturais como comida ou sexo levam mais tem-
po para ativar o circuito da recompensa. O condicionamento,
porém, estabelece um elo entre a memória, o estímulo e o
ambiente. É exatamente isso que a natureza “pretende”: se a
ação necessária para atingir uma experiência prazerosa for dis-
parada exclusivamente pelo estímulo em questão, a resposta
condicionada será muito ineficiente. Uma vez criada a memó-
ria condicionada, a resposta torna-se um reflexo – presente no
uso abusivo de drogas e na ingestão compulsiva de alimentos.

41
compulsão

Por essa razão, alimentos


altamente calóricos são mais
propícios a desencadear um
desejo compulsivo por co-
mida. Como os caçadores,
nem sempre conseguimos
uma presa, e alimentos ca-
lóricos, com grandes quan-
tidades de energia, contêm um ape-
lo maior: a suposta garantia de sobrevivência. Ao longo
do processo evolutivo, fomos compelidos a consumir a maior
quantidade de comida que pudéssemos encontrar. E esses
estímulos serviam de reforço. Mas, agora, quando abrimos a
geladeira, temos 100% de certeza de que vamos encontrar al-
guma coisa para comer. Nossos genes mudaram pouco, mas
em nosso entorno estamos sempre cercados de alimentos
com altos teores de açúcar e gordura, que contribuem para o
aumento da obesidade.

Crises de desejo
Se Pavlov pudesse analisar o funcionamento do cérebro dos
cães que utilizava em seus experimentos, provavelmente te-
ria notado um aumento na dopamina sempre que os animais
viam a luz que tinham associado à oferta de carne. A dopamina
nos informa sobre o que é importante: pequenos indícios de in-
formação inesperada a que precisamos estar atentos para po-
der sobreviver – alertas sobre sexo, alimento, prazer, perigo e
sofrimento. Ao mostrar certos alimentos a voluntários de uma
pesquisa, previamente condicionados, é possível observar um
aumento de dopamina no striatum, região do cérebro envolvida

42
compulsão

nos processos de recompensa e motivação comportamental.


Mas é preciso observar que esse aumento de dopamina só
ocorre quando os participantes do estudo, já avisados de que
não poderiam comer o alimento, apenas o olham e o cheiram.
E esta é exatamente a mesma resposta neuroquímica que
surge quando dependentes químicos assistem a um vídeo de
pessoas consumindo drogas ou qualquer outra imagem rela-
cionada. A mensagem recebida quando a dopamina é liberada
no striatum é a de que é preciso agir para
alcançar certa meta, no caso, obter o ob-
jeto de desejo.
No cérebro de dependentes de drogas
e de pessoas obesas também encontra-
mos um número reduzido dos recepto-
res dopamina D2 no striatum. Talvez es-
sas descobertas revelem que o sistema
nervoso está tentando compensar on-
das de dopamina liberadas por estímu-
los contínuos de drogas ou de alimentos.
Outra possibilidade é que, de início, essas
pessoas talvez disponham naturalmente
de poucos receptores, o que pode predispô-las a aumentos
crescentes de doenças causadas pela dependência. É interes-
sante notar que encontramos uma correlação negativa entre a
disponibilidade de receptores D2 em indivíduos obesos e seu
índice de massa corpórea (IMC); ou seja, quanto mais obesa for
a pessoa, menos receptores ela tem.
Parece haver, portanto, indivíduos mais predispostos ao
uso de drogas ou a comer demais. Estudos realizados com
gêmeos mostram que aproximadamente 50% do risco para

43
compulsão

as duas tendências é ge-


nético. Mas os genes
envolvidos começam a
atuar em níveis muito di-
ferentes – há variações
em relação à eficiência
com que metaboliza-
mos certas drogas ou
alimentos, à inclinação
para nos arriscarmos
ou nos engajarmos em
comportamentos exploratórios que
oferecem riscos mais específicos e no que diz respeito à sen-
sibilidade que sustenta o sistema de recompensas de cada
um. Nos casos de obesidade, algumas pessoas podem se
arriscar mais ao comer compulsivamente porque podem ser
excessivamente sensíveis à recompensa por alimentos. Um
estudo mostrou que a atividade cerebral de alguns obesos
aumentava em resposta a sensações nos lábios, boca e lín-
gua. Já outros respondem com muito menos eficiência ao re-
gistrar sinais internos de saciedade, ou ao responder a eles,
sendo assim muito mais vulneráveis aos desejos desenca-
deados pelas ofertas de alimento do ambiente.
A sobreposição entre dependência e obesidade pode
revelar novos alvos para tratamento. Há intervenções far-
macológicas ainda não exploradas, como a medicação que
aumenta a resposta da dopamina no cérebro. Um desen-
volvimento animador é a síntese recente de uma droga ad-
ministrada oralmente que bloqueia a orexina, um peptídeo
que reforça o nível “alto” associado ao consumo de bebidas
compulsão

alcoólicas, e acredita-se que regule sua ingestão. Essa dro-


ga poderia ser extremamente útil no tratamento de pessoas
que utilizam drogas e comem de forma abusiva. Além disso,
devido ao estigma social, tanto a obesidade quanto a droga-
dicção podem levar o indivíduo a um estado de isolamento,
que é muito estressante e desencadeia um círculo vicioso
de solidão e autodestruição. Nesses casos, a terapia de gru-
po pode ser extremamente benéfica.

Injeções de morfina
Quando se fala na associação entre uso de substâncias tóxicas
e obesidade, outra área muito promissora de estudo é o uso de
imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) em tem-
po real para ensinar as pessoas a exercitar partes específicas
do cérebro. Por esse método, o anestesiologista Sean Mackey,
professor do Laboratório de Dor da Universidade Stanford, e o
neurocientista Christopher De Charms, do centro de tecnologia
e pesquisas em neuroimagem Omneuron, em São Francisco,
treinaram pessoas saudáveis e pacientes com dores crônicas
para controlar sua atividade cerebral e modular suas experiên-
cias de desconforto. Dessa forma estamos explorando a pos-
sibilidade de que se possa usar esse
tipo de técnica para ajudar homens e
mulheres a controlar a região do cé-
rebro chamada de ínsula, associada
ao desejo compulsivo por alimentos
e drogas. Os fumantes que tiveram
uma lesão nessa área depois de um
derrame cerebral parecem perder a
vontade de fumar.
Um obstáculo para recuperar co-
compulsão

milões compulsivos esbarra numa questão social. Enquanto o


usuário de drogas está de certa forma protegido, já que o con-
sumo da droga é ilícito e a substância nem sempre está dispo-
nível de forma óbvia, a comida é anunciada e encontrada em
qualquer lugar do planeta, nas mais diferentes formas. Uma
das intervenções terapêuticas para usuários de drogas, inclu-
sive, é ensiná-los a evitar locais onde seus hábitos são prati-
cados livremente. Mas como
fazer isso com comida? É pra-
ticamente impossível, o que
causa um sofrimento adicio-
nal aos obesos, fazendo com
que muitas vezes se sintam
socialmente excluídos.
Em ratos, verificou-se que
se lhes for oferecida uma die-
ta rica em açúcar e depois
for administrado um anta-
gonista opioide chamado de
naloxone, pode haver o de-
sencadeamento de carência
alimentar semelhante à que ocorre com animais que recebe-
ram naloxone depois de repetidas injeções de morfina. Esse
resultado indica que a exposição crônica de ratos a dietas com
altos níveis de açúcar produz neles dependência física. Nos
humanos, ocorre um processo análogo. Dessa forma, verifica-
A AUTORA -se que intervenções com o objetivo de mitigar os sintomas
NORA D. VOLKOW
é diretora do da retração podem ser benéficas para aqueles submetidos a
National Institute
of Drug Abuse. dietas rigorosas.
especial

A delicada
relação entre
memória e
inteligência
Que a capacidade

reprodução/ instagram
intelectual difere de
uma pessoa para

@thecollageclub
outra não é novidade.
O desafio da ciência
tem sido descobrir
como e por que essas
variações ocorrem.
Recentemente,
pesquisadores deram
um passo importante:
constataram que
uma das chaves para
entender esse mistério
está na memória de
curto prazo

por Roberto Colom

48
especial

P
essoas mais inteligentes costumam obter melhor
aproveitamento na escola, costumam ter mais chan-
ces de ocupar postos de trabalho nos quais têm au-
tonomia e recebem salários acima da média. Além
disso, são mais atentas a estratégias que favoreçam sua saúde,
tanto física quanto mental – e vivem mais tempo. É claro que
só o aspecto cognitivo não basta, mas pesquisas têm mostra-
do que os benefícios de um alto nível intelectual são numero-
sos – assim como as desvantagens de uma inteligência pouco
privilegiada. Obviamente existem exceções, mas essa é a nor-
ma vigente na sociedade ocidental atual.
Não por acaso, em vários países os programas de pesqui-
sa destinados a melhorar a inteligência se encontram entre os
que recebem mais investimento. Cada vez mais há consenso
de que melhorar a inteligência da
população é relevante, sobretudo
pelos benefícios obtidos quando
esse objetivo é alcançado.
Contudo, seguimos sem uma
resposta clara sobre como conse-
reprodução/ instagram @thecollageclub

guir isso. Estudos revelam que os


ganhos obtidos por meio de estra-
tégias de melhora cognitiva se dis-
sipam com o passar do tempo após
a intervenção ser concluída. Pelo
menos é esse o parecer oficial da
Associação Americana de Psicolo-
gia depois da revisão de dezenas
de pesquisas nessa área.
Nesse contexto está enquadrada,

49
especial

reprodução/ instagram @thecollageclub


em parte, a intenção de encontrar os mecanismos mentais e
cognitivos básicos sobre os quais se apoia a inteligência. Há
muitos anos, cientistas vêm insistindo que alguns processos
mnêmicos são essenciais para a inteligência. A memória ope-
rativa (ou de trabalho) constitui um rico e complexo mecanis-
mo mental, mas seus processos mais básicos se consolidam
sobre o armazenamento temporal da informação relevante.
A memória operativa permite o “uso” de determinada infor-
mação durante um breve período. Por exemplo, compreender
a frase que você está lendo neste exato momento exige a ca-
pacidade de conservar na lembrança a primeira parte do que
foi apreendido até que seja lido todo o resto – e, assim, o trecho
do texto faça sentido. Trata-se da memória “de ação”, não para
armazenamento, como um arquivo. Afinal, não é possível enten-
der o que não lembramos nem podemos raciocinar a respeito
de um problema que não temos em mente e cujos detalhes
vão se perdendo à medida que procuramos solucioná-lo. Não é

50
especial

reprodução/ instagram @thecollageclub


possível resolver uma questão se alguns
de seus elementos se perdem no cami-
nho ou considerar uma informação que
vai se “desfazendo”.
Existe uma extensa pesquisa sobre
o tema ainda não concluída – portan-
to, ela é parcial. Os estudos se concen-
tram apenas em algumas variáveis po-
tencialmente relevantes, sendo raros
os que consideram a maior parte delas
de forma simultânea. Tratamos desse
Para não esquecer
FUNÇÃO EXECUTIVA
impasse no artigo “Podemos reduzir a É a capacidade de regular ativamente os
inteligência fluida à memória de curto processos mentais mediante processos
prazo?”, publicado no periódico científi- cognitivos como a inibição, a mudança
ou a atualização.
co Intelligence. Geralmente são medi- INTELIGÊNCIA CRISTALIZADA
das algumas capacidades intelectuais Implica a habilidade de resolver, por
exemplo, desafios ligados à leitura e à
básicas: inteligência fluida ou abstrata, matemática.
cristalizada ou cultural e visuoespacial. INTELIGÊNCIA FLUIDA
Também costumam ser avaliados as- Baseia-se no nível de complexidade
com que se podem resolver problemas
pectos como funcionamento executivo, abstratos nos quais o conhecimento
atenção, velocidade mental, memória prévio é irrelevante.
INTELIGÊNCIA VISUOESPACIAL
de curto prazo e memória operativa. Implica construção, manutenção e
Considerando-se as relações recípro- manipulação de imagens mentais.
cas, foi descoberto que o elemento MEMÓRIA DE CURTO PRAZO
Requer codificar, conservar
comum na memória de curto prazo, na temporalmente e recuperar informação
memória de trabalho e no funciona- relevante de curto prazo
MEMÓRIA OPERATIVA
mento executivo – ou seja, o armaze- (OU DE TRABALHO)
namento temporal da informação – se Envolve a capacidade de armazenar
encontrava profundamente associado à momentaneamente determinada
informação enquanto, de forma
inteligência fluida. simultânea, se realiza outra atividade.

51
especial

Na prática, esse resultado nos leva a supor que as pessoas


mais inteligentes têm maior capacidade para conservar, em
estado ativo, a informação considerada mais relevante durante
o tempo necessário para ser utilizada. Já aspectos como rapi-
dez de raciocínio ou concentração são considerados secundá-
rios quando se trata do armazenamento de curto prazo.
Tal resultado corrobora as
conclusões de outras pesqui-
sas nas quais foram usados
outros métodos de investiga-
ção. De um lado, os estudos
reprodução/ instagram @thecollageclub

de neuroimagem revelam que


a inteligência e a memória de
curto prazo compartilham um
suporte neuroanatômico dis-
tribuído em regiões-chave
dos lóbulos frontais e parie-
tais. De outro, o treinamento
adaptativo cognitivo embasa-
do no aumento da capacidade
para supervisionar uma maior
quantidade de informação durante determinado tempo ele-
va significativamente o rendimento nos testes que valorizam
a inteligência fluida.
Curiosamente, capacidades intelectuais superficialmente
muito diferentes parecem encontrar-se fortemente ligadas
por alguma classe de limitação compartilhada. Quando pu-
O AUTOR
ROBERTO COLOM
dermos superar essa dificuldade, talvez estejamos mais per-
é doutor em
psicologia, professor to de atingir um objetivo que fascina tanto cientistas quanto
da Universidade
Autônoma de Madri. leigos: encontrar formas de nos tornarmos mais inteligentes.

52
especial

Cada um reprodução/ instagram @thecollageclub

de um jeito
O tamanho do cérebro pode não ser garantia
de habilidades intelectuais superiores, mas
as dimensões de áreas cerebrais específicas
podem influir na eficiência do fluxo de
informações e facilitar (ou dificultar) a
capacidade de aprendizagem
53
especial

N
em todos os cérebros funcionam da mesma ma-
neira. Estudos com imagens vêm desvendando
indicações de como a estrutura e as funções ce-
rebrais dão origem a diferenças individuais na in-
teligência. Até o momento, os resultados confirmam uma visão
que muitos especialistas têm há décadas: pessoas com quo-
ciente intelectual (QI) igual podem resolver um problema com
a mesma velocidade e exatidão usando diferentes combina-
ções de áreas cerebrais.
Indivíduos com características variáveis, como gênero e
idade, revelam diferenças nas avaliações com neuroimagens
– mesmo apresentando nível similar de inteligência. Estudos
recentes têm aberto possibilidades para novas definições de

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especial

O LUGAR DA LEMBRANÇA:
existe relação próxima entre memória de curto prazo e memória operativa, funcionamento executivo e
inteligência fluida. As áreas fundamentais do cérebro para o bom funcionamento dessas habilidades se
localizam no lóbulo frontal e parietal do encéfalo.

LÓBULO FRONTAL

LÓBULO
FRONTAL
LÓBULO
PARIETAL LÓBULO
PARIETAL

CEREBELO

capacidade intelectual com base no tamanho de regiões ce-


rebrais específicas e na eficiência do fluxo de informações en-
tre elas, indicando quais características individuais referentes
a estrutura e funções cerebrais relacionadas à inteligência são
essenciais para aprendermos com mais facilidade.
Durante um século, as pesquisas sobre o tema fundamenta-
ram-se em testes feitos com lápis e papel para mensurar, por
exemplo, o QI. Psicólogos usaram métodos estatísticos para
caracterizar os componentes da inteligência e a forma como
eles se alteram ao longo da vida. Especialistas determinaram
que praticamente todos os testes de aptidão intelectual, in-
dependentemente de seu conteúdo, estão relacionados, e
as pessoas que marcam mais pontos em um deles tendem a
repetir o resultado em outros. Esse fato sugere que todos os
testes compartilham um fator, que foi chamado de g, um fator

55
reprodução/ instagram @thecollageclub
geral para a inteligência. O fator g é um poderoso indicador de
sucesso e tem sido objeto de vários estudos.
Além desse fator, os psicólogos estabeleceram outros com-
ponentes primários da inteligência, incluindo os fatores espa-
ciais, numéricos, verbais e as aptidões de raciocínio. Os me-
canismos do cérebro e as estruturas fundamentais do g e de
outros fatores, porém, não puderam ser inferidos por meio de
resultados de testes de pessoas com dano cerebral e, portan-
to, permaneceram ocultos.
Nos últimos anos, o uso da tecnologia aplicada às pesqui-
sas neurocientíficas ofereceu métodos, como a neuroimagem,
que permitem nova abordagem da definição de inteligência
baseada nas propriedades físicas do cérebro. O psicólogo Ro-
berto Colom, da Universidade Autônoma de Madri, e seus co-
especial

laboradores divulgaram um relatório sobre a


reprodução/ instagram @thecollageclub

relação entre volume de massa cinzenta e os


vários fatores de inteligência em 100 jovens
adultos. Cada voluntário completou uma ba-
teria de nove testes cognitivos, usados para
indicar diferentes fatores de inteligência,
como o g, a inteligência fluida, a cristalizada
e o fator espacial. Ao final, foi constatado que
o volume de massa cinzenta em certas áreas
do cérebro estava relacionado a outros as-
pectos da inteligência específica.
Uma das ideias mais surpreendentes que resultaram des-
sa pesquisa recente foi a possibilidade de a massa cinzenta
ser combinada com o padrão da massa branca de seu g e de
outros fatores de inteligência específica. Em outras palavras, o
tecido de certas áreas pode revelar um padrão pessoal singu-
lar de vantagens e desvantagens cognitivas entre várias habili-
dades mentais. Esses perfis diferentes de cérebro explicariam
por que duas pessoas com resultados idênticos de QI podem
apresentar aptidões cognitivas diversas. As informações obti-
PARA SABER MAIS
Além da inteligência.
das pelo doutor em psicologia espanhol Roberto Colom e sua
Reuven Feuerstein e Louis
H. Falik. Vozes, 2014. equipe, na Universidade Autônoma de Madri, ilustram essa
O que é inteligência? ideia. No estudo coordenado pelo pesquisador, os voluntários
James R. Flynn. Artmed,
2009. que participavam de um grupo com resultados de g mais altos
introdução ao estudo de tinham muito mais massa cinzenta que a média dos participan-
Psicologias: uma

psicologia. Ana Mercês


Bahia Bock e outros. tes do grupo em várias áreas de P-FIT. A constatação, porém,
Saraiva, 2009.

Mente e corpo: integração


não surpreendeu os cientistas. Mas é interessante notar que
multidisciplinar em
neuropsicologia. Luiza duas pessoas com resultados idênticos – 100 de g é a média
Elena L. Ribeiro do Valle
e Kátia Osternack Pinto. do grupo testado no estudo – exibiram perfis cognitivos diver-
Wak, 2008.
sos, sugerindo diferentes pontos fortes e fracos.

57
livros | lançamentos

Recusa do não-lugar.
Juliano Garcia Pessanha.
Ubu Editora, 2018
192 páginas. R$ 42,00

Da exclusão à inclusão
Mestre em psicologia e doutor em filosofia, autor recorre
à poesia para discutir transições subjetivas, em uma
espécie de narrativa autobiografica filosófico-literária

A
proposta do autor de Recusa do não-lugar, Juliano Garcia Pessanha, é au-
daciosa. Logo na primeira frase da apresentação ele anuncia: “Este livro
trata da determinação existencial e do anseio de se ter um eu”. Em seguida,
formula uma questão: “Como alguém acolhe a determinação existencial e cabe no
mundo?” Ora, em tempos de colonização de afetos, em que tantos vivem obcecados
pela ideia de possuir um ego e um espaço de existência, o desafio da obra é justa-
mente transitar entre os complexos universos da ficção, da psicanálise, da filosofia
e da poesia. O autor trata da existência, em uma narrativa que pode ser entendida
como uma espécie de autobiografia filosófico-literária.
Na essência de Recusa do não-lugar estão as reflexões so-
bre transições, passagens da exclusão à inclusão, do Fora
Pessanha recorre ao
ao Dentro – assim mesmo com iniciais maiúsculas, como
conceito de esferologia,
cunhado pelo filósofo escreve Pessanha. Mestre em psicologia e doutor em filo-
alemão Peter Sloterdijk, sofia, ele mesmo não se circunscreve a um único campo:
segundo o qual alguns estudioso de Heidegger e Hegel, percorre os domínios das
nascem “para fora”, sem um artes. Para o autor de Sabedoria do nunca (1999), Ignorân-
eu, e outros “para dentro”, cia do sempre (2000), Certeza do agora (2002) e Instabilida-
constituídos por um eu de perpétua (2009), todos publicados pela Ateliê Editorial,
livros | lançamentos

a ideia de exclusão diz respeito a uma posição na qual não se atinge intimidade
com o mundo, nem consigo mesmo. “Este livro tenta guardar a passagem ente
esses dois lugares – e isso não acontece sem um doloroso atrito”, escreve. “Não
há como pensar a determinação existencial e o encontro humano do ‘eu’ sem
realizar uma crítica do self negativo e de sua mística.”
Num híbrido de ficção e não ficção, o autor define seu trabalho como “nada
mais que a narrativa de um destino” e recorre ao conceito de esferologia, do filó-
sofo alemão Peter Sloterdijk, segundo o qual há pessoas que nascem “para fora”,
sem um eu, enquanto outras nascem “para dentro”, com um eu constituído. Para
Sloterdijk, autor do maior best-seller alemão de filosofia desde a Segunda Guerra
Mundial, Crítica da razão cínica, lança-
do em 1983, com mais de mil páginas,
O escritor paulistano
o que determina essa condição de nas-
embrenha-se na busca
cido para fora ou para dentro é o pri-
de uma nova maneira
meiro agente de contato do bebê com
de olhar para o mundo,
recusando-se a ocupar o o mundo, ou seja, a figura materna – e,
não-lugar, segundo ele, a partir dela, as outras pessoas com
já experimentado por quem a criança toma contato. São as
Nietzsche e Heidegger esferas de interações que sustentam
o desenvolvimento subjetivo do bebê.
Aos poucos, à medida que a criança
cresce, essas bolhas relacionais se am-
pliam, permitindo que o sujeito ingresse, gradativamente, em outras. Aqueles
que nascem para fora, no entanto, tendem a se sentir “estrangeiros na própria
casa” e a única linguagem possível nesse contexto é a que ressoa no vazio.
Pessanha diz ter se constituído para fora. E acredita estar em boa companhia:
Nietzsche e Heidegger teriam a mesma condição. Em Recusa do não-lugar, o au-
tor paulistano embrenha-se na busca de uma nova maneira de olhar para o mun-
do. E com as bênçãos de Sloterdijk se recusa a ocupar um não-lugar. Como diz o
psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo (USP), ao
comentar o lançamento, “trata-se de um livro para ler devagarzinho”.

59
Coleção

LIGHT
História da Pedagogia
P i a g e t • Vi g o t s k i • Wal l o n • Fre i r e • Ro u s s e a u • D e w e y

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