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ABORTO

ADOZINDA TINHA AR DE ENFERMEIRA APOSENTADA ou de irmãzinha da caridade. Variava consoante


os dias. Fazia desmanchos, era essa a designação. As mães, as sogras ou os namorados das meninas
batiam-lhe à porta levados pelo medo. O medo das meninas, o medo de sangrarem até à morte: «Não
te preocupes, filha, vais para o hospital, fazem-te uma raspagem, a médica passa-te uns comprimidos
e ficas em casa sossegadinha.» Aos três meses de gravidez os riscos eram maiores. Talvez não faça.
Devo fazer. O olhar sério de Adozinda, inquisitivo, demorado, a avaliar mentalmente a mulher que
tem ali à sua frente, em sua casa, a pedir-lhe ajuda para abortar – que não pode ter mais um. A
mulher pergunta-lhe se é o primeiro que faz, «não, é o quinto», «o quinto?», «sim, o quinto», e
Adozinda sabe que é desespero e desleixo, miséria e hábito, «e onde é que fizeste os outros, filha?»,
dois em Lisboa, mas a senhora que os fazia já não atende, os outros três em casa, mas o último correu
mal, «quase que morria», o sangue não estancava, ensopou toalhas e lençóis, teve de ir de urgência
para o hospital, uma semana de internamento, transfusões de sangue, antibióticos, uma grande
infecção, julgou que morria, mas não morreu, e jurou que nunca mais fazia um, «não, em casa nunca
mais», e foi uma amiga que lhe falou de Adozinda. Cristina.
«Sim, sei quem é.» Disse-lhe que era de confiança, que tinha conhecimentos no hospital, que ia correr
bem. «E não tomas a pílula, filha?» Não, não tomava. «E então só vens agora?» Julgou que era um
atraso, depois do quarto aborto a menstruação era irregular, não ligou, não tinha enjoos nem
náuseas, e agora já não sabia o que fazer porque tinha a certeza de que morria se o fizesse em casa,
morria, e não queria morrer em casa, a esvair-se em sangue deitada na cama sem ninguém para lhe
acudir. «E o teu marido, filha?» O marido não sabia, quando esteve no hospital disse-lhe que era por
causa de um quisto, ele também não se preocupava muito, foi lá vê-la no dia do internamento, foi
buscá-la no dia em que teve alta, os dois no táxi para casa, ela a olhar pela janela, as folhas vermelhas
e amarelas das árvores no Outono, a pensar na puta de vida que tinha para acabar de viver ou para
continuar a viver. «Vamos lá, filha, vou dar-te umas injecções e depois tomas estes comprimidos em
casa, ao fim de umas horas, já sabes, isso vai começar a sair, se a hemorragia for muito forte ligas-me
antes de ires para o hospital, eu vejo se está lá a doutora e aviso-te, se estiver vai estar à tua espera,
já sabe quem tu és. Se não estiver, vais para as urgências e dizes que caíste, que te sentiste mal e
pronto, eles lá tratam de ti, mas ligas-me se a hemorragia for muito forte. Se não for, ao fim de dois
dias ligas-me e eu combino com a doutora para ela te atender, percebes?, se tiveres febre ou muitas
dores, ligas-me logo, não esperes, se isso fica aí dentro pode infectar como da outra vez e depois é
uma carga de trabalhos.» Adozinda já recusara o serviço a mulheres que iam lá pela terceira ou
quarta vez. O mais que podia fazer era arranjar-lhes comprimidos ou dizer-lhes onde os podiam
comprar. Além da médica, tinha contactos numa farmácia e no posto da GNR. Para a ajudar nas
consultas havia uma auxiliar, Maria da Conceição, que trabalhava no hospital e lhe fornecia material
clínico. Às quintas-feiras, dia de folga, Maria da Conceição fazia a limpeza do apartamento, um
primeiro andar de um prédio com um largo em frente onde os miúdos aproveitavam os bancos para
jogar às balizas pequenas. No quarto que servia de sala de espera havia uma televisão com antena de
orelhas de coelho sempre desligada. Ao lado do televisor, ouvia-se um rádio Telefunken mal
sintonizado numa estação que só passava canções das telenovelas. Cheirava muito a Sonasol verde.
No quarto onde Adozinda atendia as mulheres havia uma prateleira com caixas de luvas, frascos de
álcool e água oxigenada, algodão, mercurocromo, Betadine e, por cima, uma imagem de Nosso
Senhor, loiro, triste e misericordioso. Tinha instrumentos para fazer raspagens, mas não as fazia ali
desde que uma rapariga de quinze anos, acompanhada pela sogra, quase lhe morrera em casa.
Conseguiu levá-la ao hospital. Ao fim de três dias, a rapariga morreu com uma septicemia e, se não
fosse a intervenção da doutora, teria sido o fim. Adozinda disse mais tarde que não fazia aquilo por
dinheiro. Chegava a convencer algumas, como a Licínia ou a Felicidade, a terem as crianças. Se o fazia
era para ajudar mulheres que não tinham para onde ir e sabia que ao menos ali ainda eram
acompanhadas. Era mais seguro. Se não tinham dinheiro para ir a outro lado, o que é que lhes fazia,
mandava-as para casa? E depois, o que é que lhes acontecia? Talvez o mesmo que à filha de
Hermínio. Engravidou do namorado que a deixou assim que soube que estava à espera de uma
criança. Escondeu a gravidez enquanto pôde. Não disse nada aos pais, nem às amigas. Aos sete
meses, quando já não conseguia esconder a barriga, dissolveu um pacote de veneno para ratos num
copo de leite e acabou com os problemas. Era nestas miúdas que Adozinda pensava. Era fazer o
serviço ou deixá-las ir para casa, entregues à má sorte de vidas de merda, a beber litros de chá de
cominho, a ingerir meia dúzia de comprimidos para as úlceras que alguma amiga lhes arranjara. E
depois ficavam em casa à espera, a chorar, assustadas e raivosas, como cadelas já paridas, sentadas
na sanita à espera de que aquilo saísse, até que sentiam uma bola a deslizar, «é como um ovo, filha»,
e sabiam que a maior parte já tinha saído e então puxavam o autoclismo e queriam esquecer tudo. Só
não sabiam que ainda não tinha acabado. Havia os restos agarrados ao útero e, se o corpo não os
expulsasse, tinham de ir para o hospital para lhes rasparem o útero, uma colher longa a remexer-lhes
as entranhas, a retirar cada bocado esquecido do feto, até não restar nada, nem um único vestígio, e
serem mandadas para casa com antibióticos e uma vida fodida. Por muitos filhos que tivessem,
haveriam sempre de pensar no que tinham deitado fora e mesmo muitos anos depois, em sonhos,
viviam atormentadas pelos fetos que acabavam no sistema de esgotos ou num saco hermético de
hospital. Era a vida de muitas raparigas do Bairro Amélia.

Beatriz
TODAS AS NOITES, dona Beatriz afadigava-se a despachar encomendas de dúzias de rissóis para os
cafés do bairro e para alguns particulares. Com a minúscula televisão da cozinha por companhia,
esticava a massa sobre a bancada de pedra, enquanto escaldava o miolo de camarão numa panela. O
ar ficava impregnado do odor denso, acre, do camarão cozido, da vaga reminiscência sexual dos
mariscos quando vão ao lume. Depois de cozido o camarão e de esticada a massa, dona Beatriz
repousava num banquinho de madeira, molhava os lábios e a garganta com um gole de vinho que a
tranquilizava sem a adormecer e olhava para a televisão, a ver a telenovela, vozes mecânicas e rostos
de plástico a repetirem tragédias vezes sem conta mas que continuavam a emocioná-la, até que, ao ir
para intervalo, dona Beatriz, sentindo o corpo descansado, um pouco entorpecido, regressava aos
afazeres. Fazia o recheio e, com uma colher de medida, colocava-o em cima da massa que recortava
com o auxílio de uma taça de sobremesa e que, depois de dobrada, ficava uma meia lua perfeita.
Banhava os rissóis em farinha e depois em gema de ovo, para que o pão ralado aderisse, e alinhava-os
às dúzias dentro de uma bandeja com gravuras japonesas que dona Beatriz nunca vira em nenhum
outro lugar. Por muito que se esforçasse, não se conseguia lembrar de onde a comprara. Aquecia o
óleo numa velha frigideira de pegas lassas e, quando o ouvia assobiar, deixava cair os rissóis
delicadamente. O óleo não podia estar morno, ou os rissóis amoleciam, nem demasiado quente, ou
estalavam. Os donos dos cafés, sobretudo Teixeira, eram esquisitos e exigentes: «Olhe que ontem
queixaram-se de que os rissóis não tinham camarão.» Dona Beatriz negava, punha sempre dois, o
que, para aumentar a pequena margem de lucro, quase ninguém fazia. Era verdade. Dona Beatriz
costumava pôr dois bocadinhos de miolo de camarão e os seus rissóis tinham sempre um aspecto
delicioso e insuflado. Quando se trincava, sentia-se a consistência da massa e, nem um segundo
depois, o recheio cremoso, nunca aguado. A excelência do trabalho de dona Beatriz angariou-lhe
muitos clientes. Quando alguém de poucas posses organizava uma festa de casamento no Barracão,
um local barato que permitia desviar o investimento para grandes quantidades de cerveja, contratava
os serviços de dona Beatriz para fornecimento de salgados: rissóis, empadas, croquetes, pastéis de
bacalhau, panados. Eram pelo menos três dias de trabalho, mesmo recorrendo aos préstimos de
amigas generosamente pagas. Com o tempo e porque nem sempre lhe pagavam o que lhe era devido,
desistiu de fazer casamentos e ficou-se pelo trabalho para os cafés, que não era pouco. Depois de
fritar os rissóis, punha-os numa travessa almofadada com papel de cozinha e esperava que
arrefecessem antes de os guardar nos tupperwares dos clientes. O negócio não era mau.
Acrescentava algum dinheiro ao da reforma e ocupava-lhe as noites que habitualmente, desde aquela
em que mataram o Joãozinho, lhe eram duras e sombrias. Aquela casa necessitava de gente, de vozes
que dessem vida aos objectos que se amontoavam em todos os cantos. Mas Beatriz era também os
artefactos que coleccionava: deixara para trás uma vida inteira com todos os objectos que a
preenchiam e, agora, guardava tudo para que o peso das coisas a mantivesse presa ao chão. Não
haveria de fugir outra vez.
Caixas de sapatos com chávenas de café dos restaurantes onde trabalhara; embalagens de
Ovomaltine, de um laranja muito pálido, cheias de pacotes de açúcar; caixas de costura com dedais de
borracha e outros de metal, carrinhos de linhas de todas as cores, alfinetes cravados em pequenas
almofadas; garrafas de brandy nunca abertas em forma de toureiro, trazidas de Espanha há mais de
vinte anos; serviços de chá; páginas amarelas antigas; uma única prateleira com livros; um rádio a
pilhas com o visor preenchido pelos nomes de várias cidades europeias que nunca visitaria; uma
máquina de costura a pedal, enferrujada, e à qual já não dava uso; frascos vazios de perfumes e
águas-de-colónia baratas ao lado de guarda-jóias, caixas de música com bailarinas a dançar ao som de
Tchaikovsky, numa lembrança do que poderia ter sido a vaidade feminina; jogos de cama e de banho
empilhados em cima do guarda-vestidos; esperanças perdidas. Quando abria o bar do móvel da sala,
espalhava-se um odor doce a biscoitos e a licores caseiros, como se ali dentro respirasse a essência da
casa com todas as memórias. Era um cheiro semelhante ao da despensa, este mais fuliginoso, onde
guardava latas de conserva e ferramentas, pacotes de massa e pequenos utensílios domésticos, e
onde, de tempos a tempos, descobria um frasco de compota esquecido há anos, uma chave de
fendas, um bule lascado. Ela, que era muito mais do que um inventário de objectos inúteis, também
era tudo aquilo, a ferrugem no canto do frigorífico, a máquina de lavar loiça avariada, os copos baços
que tinham sobrevivido ao tempo em que Joãozinho ainda era vivo, guardados em armários comidos
pelo tempo e pela incúria, cobertos de pó e de tristeza. Pensava que as suas bicuatas lhe
sobreviveriam, inteiras, fiéis testemunhas da sua passagem pelo mundo. Chegara de Angola com uma
mão à frente e outra atrás, um filho para acabar de criar, a ausência do marido. Nunca, como nos
primeiros dias numa Lisboa chuvosa e triste, sentira tanta força interior, tanta vontade de vencer,
tanto amor pelo filho. Desfez-se de Angola, da brisa fresca do quintal nas manhãs de domingo, do
odor quente dos bolos que enchiam a casa de uma alegria familiar, do calor viril do corpo do marido
encostado ao seu enquanto os primeiros raios de sol venciam a resistência das portadas de madeira,
das longas viagens que costumavam fazer até ao rio onde o marido pescava enquanto o filho, de
carabina ao ombro, fazia pontaria aos pássaros pousados nos embondeiros e eucaliptos, das tardes
em que saíam maravilhados do cinema, comiam um gelado na pastelaria Cascata e prolongavam o
tempo em passeios pela avenida marginal, tranquilizados pelo sol reflectido no grande areal da praia.
Beatriz arrumou tudo num canto da memória a que só regressava quando as lágrimas lhe podiam
correr livremente, sem que alguém, além dela, as pudesse sofrer. Naquela casa, tudo o que havia
estava suspenso: era um tempo parado, como se tivesse entrado por uma porta e nunca chegasse a
encontrar a saída, e caísse agora como poeira sobre as plantas do quarto, como um vento negro a
cobrir-lhe o coração de cinzas. Sonolenta, deitava-se de lado no sofá e o movimento fazia-lhe deslizar
uma lágrima que não era lágrima, era água a escorrer, pouca, um fiozinho que secava naturalmente
na sua pele cansada. E, ao adormecer, chegava aquele pesadelo recorrente que já não a assustava: via
o filho, via-o apenas, já não conseguia ouvi-lo, caído numa poça de lama e de sangue, sangue e lama
que saíam do próprio corpo. Beatriz queria aproximar-se do filho, mas não conseguia. Estava morto,
caído no chão, as vísceras a saírem-lhe por uma fenda. Beatriz acordava. Era outro dia. Os cortinados
puídos deixavam entrar fiapos de luz, raios de calor que pousavam nas plantas empoeiradas.
Respirava fundo. Não havia maneira de o mundo acabar.

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