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Beatriz
TODAS AS NOITES, dona Beatriz afadigava-se a despachar encomendas de dúzias de rissóis para os
cafés do bairro e para alguns particulares. Com a minúscula televisão da cozinha por companhia,
esticava a massa sobre a bancada de pedra, enquanto escaldava o miolo de camarão numa panela. O
ar ficava impregnado do odor denso, acre, do camarão cozido, da vaga reminiscência sexual dos
mariscos quando vão ao lume. Depois de cozido o camarão e de esticada a massa, dona Beatriz
repousava num banquinho de madeira, molhava os lábios e a garganta com um gole de vinho que a
tranquilizava sem a adormecer e olhava para a televisão, a ver a telenovela, vozes mecânicas e rostos
de plástico a repetirem tragédias vezes sem conta mas que continuavam a emocioná-la, até que, ao ir
para intervalo, dona Beatriz, sentindo o corpo descansado, um pouco entorpecido, regressava aos
afazeres. Fazia o recheio e, com uma colher de medida, colocava-o em cima da massa que recortava
com o auxílio de uma taça de sobremesa e que, depois de dobrada, ficava uma meia lua perfeita.
Banhava os rissóis em farinha e depois em gema de ovo, para que o pão ralado aderisse, e alinhava-os
às dúzias dentro de uma bandeja com gravuras japonesas que dona Beatriz nunca vira em nenhum
outro lugar. Por muito que se esforçasse, não se conseguia lembrar de onde a comprara. Aquecia o
óleo numa velha frigideira de pegas lassas e, quando o ouvia assobiar, deixava cair os rissóis
delicadamente. O óleo não podia estar morno, ou os rissóis amoleciam, nem demasiado quente, ou
estalavam. Os donos dos cafés, sobretudo Teixeira, eram esquisitos e exigentes: «Olhe que ontem
queixaram-se de que os rissóis não tinham camarão.» Dona Beatriz negava, punha sempre dois, o
que, para aumentar a pequena margem de lucro, quase ninguém fazia. Era verdade. Dona Beatriz
costumava pôr dois bocadinhos de miolo de camarão e os seus rissóis tinham sempre um aspecto
delicioso e insuflado. Quando se trincava, sentia-se a consistência da massa e, nem um segundo
depois, o recheio cremoso, nunca aguado. A excelência do trabalho de dona Beatriz angariou-lhe
muitos clientes. Quando alguém de poucas posses organizava uma festa de casamento no Barracão,
um local barato que permitia desviar o investimento para grandes quantidades de cerveja, contratava
os serviços de dona Beatriz para fornecimento de salgados: rissóis, empadas, croquetes, pastéis de
bacalhau, panados. Eram pelo menos três dias de trabalho, mesmo recorrendo aos préstimos de
amigas generosamente pagas. Com o tempo e porque nem sempre lhe pagavam o que lhe era devido,
desistiu de fazer casamentos e ficou-se pelo trabalho para os cafés, que não era pouco. Depois de
fritar os rissóis, punha-os numa travessa almofadada com papel de cozinha e esperava que
arrefecessem antes de os guardar nos tupperwares dos clientes. O negócio não era mau.
Acrescentava algum dinheiro ao da reforma e ocupava-lhe as noites que habitualmente, desde aquela
em que mataram o Joãozinho, lhe eram duras e sombrias. Aquela casa necessitava de gente, de vozes
que dessem vida aos objectos que se amontoavam em todos os cantos. Mas Beatriz era também os
artefactos que coleccionava: deixara para trás uma vida inteira com todos os objectos que a
preenchiam e, agora, guardava tudo para que o peso das coisas a mantivesse presa ao chão. Não
haveria de fugir outra vez.
Caixas de sapatos com chávenas de café dos restaurantes onde trabalhara; embalagens de
Ovomaltine, de um laranja muito pálido, cheias de pacotes de açúcar; caixas de costura com dedais de
borracha e outros de metal, carrinhos de linhas de todas as cores, alfinetes cravados em pequenas
almofadas; garrafas de brandy nunca abertas em forma de toureiro, trazidas de Espanha há mais de
vinte anos; serviços de chá; páginas amarelas antigas; uma única prateleira com livros; um rádio a
pilhas com o visor preenchido pelos nomes de várias cidades europeias que nunca visitaria; uma
máquina de costura a pedal, enferrujada, e à qual já não dava uso; frascos vazios de perfumes e
águas-de-colónia baratas ao lado de guarda-jóias, caixas de música com bailarinas a dançar ao som de
Tchaikovsky, numa lembrança do que poderia ter sido a vaidade feminina; jogos de cama e de banho
empilhados em cima do guarda-vestidos; esperanças perdidas. Quando abria o bar do móvel da sala,
espalhava-se um odor doce a biscoitos e a licores caseiros, como se ali dentro respirasse a essência da
casa com todas as memórias. Era um cheiro semelhante ao da despensa, este mais fuliginoso, onde
guardava latas de conserva e ferramentas, pacotes de massa e pequenos utensílios domésticos, e
onde, de tempos a tempos, descobria um frasco de compota esquecido há anos, uma chave de
fendas, um bule lascado. Ela, que era muito mais do que um inventário de objectos inúteis, também
era tudo aquilo, a ferrugem no canto do frigorífico, a máquina de lavar loiça avariada, os copos baços
que tinham sobrevivido ao tempo em que Joãozinho ainda era vivo, guardados em armários comidos
pelo tempo e pela incúria, cobertos de pó e de tristeza. Pensava que as suas bicuatas lhe
sobreviveriam, inteiras, fiéis testemunhas da sua passagem pelo mundo. Chegara de Angola com uma
mão à frente e outra atrás, um filho para acabar de criar, a ausência do marido. Nunca, como nos
primeiros dias numa Lisboa chuvosa e triste, sentira tanta força interior, tanta vontade de vencer,
tanto amor pelo filho. Desfez-se de Angola, da brisa fresca do quintal nas manhãs de domingo, do
odor quente dos bolos que enchiam a casa de uma alegria familiar, do calor viril do corpo do marido
encostado ao seu enquanto os primeiros raios de sol venciam a resistência das portadas de madeira,
das longas viagens que costumavam fazer até ao rio onde o marido pescava enquanto o filho, de
carabina ao ombro, fazia pontaria aos pássaros pousados nos embondeiros e eucaliptos, das tardes
em que saíam maravilhados do cinema, comiam um gelado na pastelaria Cascata e prolongavam o
tempo em passeios pela avenida marginal, tranquilizados pelo sol reflectido no grande areal da praia.
Beatriz arrumou tudo num canto da memória a que só regressava quando as lágrimas lhe podiam
correr livremente, sem que alguém, além dela, as pudesse sofrer. Naquela casa, tudo o que havia
estava suspenso: era um tempo parado, como se tivesse entrado por uma porta e nunca chegasse a
encontrar a saída, e caísse agora como poeira sobre as plantas do quarto, como um vento negro a
cobrir-lhe o coração de cinzas. Sonolenta, deitava-se de lado no sofá e o movimento fazia-lhe deslizar
uma lágrima que não era lágrima, era água a escorrer, pouca, um fiozinho que secava naturalmente
na sua pele cansada. E, ao adormecer, chegava aquele pesadelo recorrente que já não a assustava: via
o filho, via-o apenas, já não conseguia ouvi-lo, caído numa poça de lama e de sangue, sangue e lama
que saíam do próprio corpo. Beatriz queria aproximar-se do filho, mas não conseguia. Estava morto,
caído no chão, as vísceras a saírem-lhe por uma fenda. Beatriz acordava. Era outro dia. Os cortinados
puídos deixavam entrar fiapos de luz, raios de calor que pousavam nas plantas empoeiradas.
Respirava fundo. Não havia maneira de o mundo acabar.