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31/12/2018 Arte e vida social - Genealogias do contemporâneo - OpenEdition Press

OpenEdition
Press
Arte e vida social | Alain Quemin, Glaucia Villas Bôas

Genealogias do
contemporâneo
Caminhos da arte brasileira

Luiz Camillo Osório


Résumé
“Genealogias do Contemporâneo: caminhos da arte brasileira” busca
discutir os modos pelos quais a arte contemporânea brasileira, mesmo
que sem fazê-lo intencionalmente, revela elementos inerentes a nossa
singularidade cultural e modernidade periférica. Se há uma hipótese por
trás desta discussão das genealogias é a de que a modernidade, ao se
renovar nos países periféricos, em especial no caso brasileiro, está se
reescrevendo, tornando-se mais complexa e inclusiva, menos teleológica
e unidimensional. As traduções culturais reinventam modelos originais:
ao mesmo tempo em que se pleiteava a universalidade modernista, se
afirmava a singularidade de uma formação moderna heterogênea.
A crise pós-moderna é mais um capítulo deste processo em que ela (a
modernidade) redefine seus limites e suas reverberações políticas. No

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caso brasileiro, em que esta crise atualiza um receituário que já estava


inscrito na sua formação desenraizada e multiétnica, as possibilidades de
repotencialização da aventura moderna, na constante invenção de si
junto ao outro, são menos recalcadas historicamente. Para além do fim
da história, da arte e dos museus, o que vemos é uma reavaliação do que
se compreende como sendo história, arte e museu. A história se des-
totaliza, a arte se diversifica e os museus se democratizam – para o bem
ou para o mal. “Na realidade, o mundo está repleto de modernidades e
de artistas que jamais consideraram o modernismo como uma
propriedade ocidental, mas como uma linguagem aberta e apta a ser
transformada. A história pode assim ser reescrita como um conjunto de
traduções culturais em vez de um movimento universal situado no
interior de uma cultura, de uma história, de um espaço, com uma
cronologia única e tendo relações políticas e culturais dadas” (Hall,
2001).

Texte intégral
1 Falar no plural – genealogias do contemporâneo – pretende
ressaltar a falência de uma narrativa evolutiva e totalizadora
que determinaria o que se entende por arte contemporânea.
Há vários movimentos entrelaçados ligando o(s) moderno(s)
e a produção artística atual. A multiplicação do moderno e
suas reverberações no contemporâneo convergem em
direção a uma mesma tonalidade afetiva: o estranhamento
diante do estado de coisas presente; uma sensação, que é
vital e criativa, jamais imobilizadora, de não sentir-se em
casa no mundo. Desta sensação nasce uma disponibilidade
para o novo e o comum. Repetindo Foucault, o enfoque
genealógico recusa a unidade do relato histórico e “busca
assinalar a singularidade dos acontecimentos fora de
qualquer finalidade monótona” (Foucault, 2008, p. 260).
2 Entretanto, para além do tempo, há sempre um espaço a
partir do qual os acontecimentos assumem sua
singularidade. Neste caso, trata-se de perceber o modo pelo
qual o Brasil se faz contemporâneo. Fundamental sublinhar
que, seja qual for esta pergunta, pela singularidade
brasileira, ela não se pretende retomada nacionalista de uma
autenticidade local. A singularidade deve ser conquistada,
jamais resgatada; é um tornar-se e não uma identidade fixa.
A forma como o Brasil se deixa revelar na arte brasileira vai
ser sempre uma questão, um problema, um desafio; vai
escorregar e não se deixar objetivar. Seja como for, agindo
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no interior de um sistema globalizado e com forças


niveladoras, cabe perceber que “o mundo não pode mais ser
estruturado apenas em termos de centro e periferia;
coexistem inúmeros centros interessantes, que se
relacionam entre si não obstante suas diferenças” (Hall,
2001, p. 21).
3 A presença da arte brasileira no circuito internacional
cresceu consideravelmente nas últimas décadas. Para além
de um tardio reconhecimento da sua qualidade, isto reflete
um reposicionamento do Brasil na geopolítica mundial.
Muitas razões podem explicar isso: consolidação de nossa
democracia, crescimento econômico acompanhado de uma
melhor distribuição de renda, redefinição de relações de
poder entre os centros e as periferias, crise de modelos
ideológicos em um mundo pós-colonial e pós-guerra fria.
Além disso, o sentimento de crise disseminado nas
sociedades avançadas do Ocidente e sua dificuldade em lidar
com outros modelos de sociedade nos fazem rever as
expectativas em relação ao que vislumbrar como
possibilidades de desenvolvimento civilizatório. Tudo isso
combinado, abrem-se perspectivas para o fortalecimento de
processos de modernização não canônicos desenvolvidos
fora do eixo Europa – América do Norte. Em que medida
tais processos, pensados tantas vezes como anacrônicos,
podem ser capazes de multiplicar os caminhos do moderno
no seio de nossa contemporaneidade? Não se trata de
defender uma permanência da modernidade tal qual
concebida originalmente, dominada pelo ideário historicista
e progressista, fundado em um programa único que serviria
universalmente para medir os níveis de progresso e de
desenvolvimento artístico e civilizatório. Apesar da
descrença, cabe perguntar sobre o que esperar da arte, da
política e do futuro, de modo a não nos deixarmos absorver
por um niilismo generalizado. O que interessa é poder
revisitar uma demanda crítica inerente às linguagens
modernas e o modo pelo qual elas atuam frente a uma
realidade em processo constante de transformação. Pensar o
vínculo entre singularidades locais e multiplicação de
modelos.

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4 Tomando estas interrogações sobre o que resta de atual no


moderno e de singular no Brasil é que podemos começar a
lidar com arte brasileira. Em que medida a arte brasileira
nos ajuda a lidar com o Brasil? Em um mundo globalizado,
no qual o contato e a contaminação entre as culturas se
mostram disseminados e irreversíveis, será que ainda
interessa pensar o que seria singular a cada formação
cultural? Será que um artista nascido no Brasil e vivendo em
Berlim ou Londres se pensa como artista brasileiro? Será
que ainda existe algum resíduo no presente da sensibilidade
modernista que de Paris viu nascer um impulso de
brasilidade? Será que, para além de qualquer
intencionalidade ou objetividade, poderíamos pensar ou
discutir especificidades locais? Uma sensibilidade, um
corpo, formas de vida singulares? Tudo isso, todavia, só
interessa na medida em que possa incorporar a diferença e a
alteridade, deslocando-as, sempre com atritos inevitáveis,
para um território comum, para um horizonte de
compartilhamento universal1.
5 Além disso, o Brasil são muitos e esta multiplicidade é parte
decisiva de nossa formação sem origem. Da diversidade
vivemos. De certo modo, forçando intencionalmente a
interpretação, dizer que o Brasil são muitos significa
atualizar o mote de Mario Pedrosa de que estávamos
condenados ao moderno. Ser moderno, neste caso, é uma
aposta em um processo de construção continuada de si,
aberto a contaminações advindas do exterior. Do mesmo
modo que nossa singularidade deve remeter à nossa inserção
global, esta condenação deve desdobrar-se em uma espécie
de liberação. Desde o começo, sem um modelo de origem,
sem identidades fixas, abertos às trocas étnicas e
civilizacionais, nossa liberdade foi nossa experimentação.
6 Como salientou o crítico Paulo Emílio Salles Gomes a
respeito do Brasil e sua formação complexa e híbrida: “não
somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos
de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A
penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética
rarefeita entre o não ser e o ser outro” (Gomes, 1980, p. 88).
Talvez devêssemos nos apropriar aqui, para seguir nas
diferenciações, da categoria criada por Darcy Ribeiro, os
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povos novos, para distingui-los, na própria América Latina,


dos povos testemunho e dos povos transplantados (Ribeiro,
2007). O novo aí aponta para um processo de hibridação
cultural que misturou, sem desconsiderar a violência e a
opressão, a matriz cultural europeia às matrizes ameríndia e
africana. Gilberto Freire foi taxativo neste aspecto: “a
aventura brasileira de miscigenação é uma das grandes
aventuras modernas (moderno no amplo sentido histórico)”
(Freire, apud Larreta e Gucci, 2007, p. 397-398). Não se
quer abafar, com estas leituras, os conflitos de nossa
formação colonial e de nossa problemática sociabilidade.
Mestiçagem não significa democracia racial.
7 Destaca-se, portanto, nesta leitura de nossa formação como
país novo, a relação entre miscigenação e modernidade,
entre experimentação e modernidade. Indo um pouco mais
longe e misturando os próprios conceitos de Pedrosa,
podemos enxergar uma imbricação entre nossa condenação
ao moderno e aquilo que o mesmo autor denominaria,
posteriormente, de nossa pós-modernidade. Seguindo essa
espécie de mestiçagem das temporalidades históricas, nossa
abertura às trocas culturais e a dimensão não orgânica deste
processo seriam, juntas, aquilo que nos condenava ao
moderno e nos fazia ser simultaneamente pós-modernos.
Esta compreensão de que estaríamos entrando na pós-
modernidade surgiu quando Pedrosa enfrentou crîtica e
criativamente a fase pós-parangolé da poética de Oiticica
(Pedrosa, 1981, p. 205-210). Nossa modernidade, que nasceu
da intervenção construtiva aberta às trocas culturais, de um
barroco que chega a um mundo sem tradição e que se
reinventa nas mãos de um artesão mulato, vai se
transformar em pós-moderna em uma época pós-industrial e
de comunicação de massas. A ênfase, agora, passa a ser na
contaminação entre alta cultura e cultura popular, entre
arte, comunicação e participação. Citando Pedrosa:
“chegamos ao fim do que se chamou arte moderna (...)
estamos agora em outro ciclo, que não é mais puramente
artístico, mas cultural (...) os valores propriamente plásticos
tendem a ser absorvidos na plasticidade das estruturas
perceptivas e situacionais” (Pedrosa, 1981, p. 205-206).

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8 Abandonada a perspectiva formalista e progressista do


ideário moderno, a obra de Oiticica – assim como a de
Lygia Clark a sua maneira e a de vários outros artistas que
viriam a constituir uma “Nova objetividade brasileira” – iria
apropriar-se de uma materialidade cultural externa às
especificidades dos meios expressivos próprios a cada
linguagem artística, de modo a ganhar envergadura política
e consistência crítica. A pureza tornara-se mito, como escrito
no penetrável Tropicália.
9 Isso, todavia, não iria acontecer – como o próprio Oiticica
ressalta em seu texto-manifesto no catálogo da exposição de
1967 intitulada “Nova objetividade brasileira” –
negligenciando-se uma vontade construtiva geral e sem
abandono de uma experimentação frente às formas de ver e
de dizer convencionais. A contaminação da arte pela energia
popular articularia a desconstrução de uma unidade formal
(a especificidade dos meios expressivos) e a construção de
uma heterogeneidade cultural (a vontade de interferir dentro
de um contexto específico, que pode ser tanto político como
artístico). Esta combinação de desconstrução e construção,
de experimentação criativa e contaminação antropofágica
era também nossa marca de formação e, segundo Pedrosa, o
que nos condenava ao moderno.
10 O que muda de um contexto moderno para um pós-moderno
é a própria compreensão do que seja o novo. No primeiro
caso, havia um ideário determinando o que significava ser
moderno e que uniformizava um desejo utópico de atingi-lo.
Era a criação de algo original, uma nova substância social
determinada por subjetividades seguras de sua racionalidade
construtiva. No caso pós-moderno ou contemporâneo,
destituído de uma pretensão utópica, comprometido com a
habitação do presente na sua diversidade conflituosa, o novo
nasce de um deslocamento e de articulações que criam novas
relações, sempre precárias, a partir de subjetividades que se
sabem plurais e instáveis. Não surge uma nova substância,
mas novas relações que reinventam o modo de ser das
coisas. A singularidade brasileira, sem nenhuma afirmação
nacionalista, constituiu-se originariamente no bojo deste
processo de relações e articulações onde se combinam
vontade construtiva e hibridação. Se antes, na formação
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moderna, buscávamos acelerar o passo civilizatório pela


apropriação do outro e pela mistura de referências, na
quebra pós-moderna, o que acontece é uma guinada cultural
na qual a arte se renova pela confluência de linguagens, pelo
equacionamento do erudito e do popular. Nos dois
momentos, guardadas as diferenças em relação às
expectativas de futuro, viveu-se no Brasil uma
experimentação cultural que se sabia ao mesmo tempo
precária e original. Resumindo: nossa modernidade é
contemporânea de nossa pós-modernidade.
11 É importante salientar que esta interseção do moderno e do
pós-moderno não pretende igualar momentos históricos
com perspectivas diferentes em relação ao que se poderia
esperar da arte, do futuro e do modo como se daria nossa
inserção civilizatória. Como salientou Flora Sussekind, se as
ideias de uma devoração e uma reinvenção sistemática dos
aportes estrangeiros, de um entrecruzamento sincrético de
perspectivas, linguagens e ritmos temporais distintos e de
um tensionamento e um trânsito constantes (e vistos como
constitutivos do processo cultural brasileiro) entre “alta
cultura” e “mau gosto”, cultura letrada e tradições orais,
entre nacional e estrangeiro, arcaico e moderno, entre
atualização e revisão de “componentes recalcadas da
nacionalidade” aproximam o grupo da tropicália do primeiro
modernismo brasileiro, era igualmente evidente a diferença
contextual entre esses dois momentos de invocação de uma
estratégia antropofágica. Ou, como diria Caetano Veloso,
“entre a experiência modernista dos anos 20” e os “embates
televisivos e fonomecânicos dos anos 60” (Sussekind, 2007,
p. 36-37).
12 Mais adiante, a autora ressalta que um dos pontos principais
da diferença entre estes dois momentos seria que o
modernismo ainda estava atravessado por uma veia otimista
em relação à ideia de país novo. O desaparecimento desta
ideia não faz sucumbir, como já tentamos apontar, a
possibilidade do novo, mas ele se dá junto ao velho e será
sempre instável e precário.
13 A arte brasileira dos últimos cinquenta anos parece
interessante justamente na medida em que desdobra esta
tensão entre moderno e pós-moderno, entre a preocupação
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plástica inerente à constituição crítica e diacrônica da forma


e a contaminação sincrônica de uma materialidade cultural.
A matriz construtiva, nosso mergulho moderno na década de
1950, manteve-se presente junto à torção cultural-
experimental que se seguiu aos parangolés e penetráveis de
Oiticica, aos bichos e trepantes de Clark, aos livros da
criação, balés e poemas-luz de Pape, ao cubo-cor de Carvão,
chegando aos flans de Antonio Manuel, aos ônibus e gibis de
Raymundo Colares e às instalações de Cildo Meireles. Os
processos de formalização, cada um a sua maneira, foram
revelando, mesmo que não intencionalmente, a
singularidade de uma cultura local. É possível que haja uma
relação direta entre a afirmação de elementos locais em uma
poética e sua universalização, dando a uma linguagem
comum, própria ao contemporâneo, uma entonação
singular.
14 Esta atenção para o particular, para a diferença, só interessa
quando se assume uma linguagem cujo repertório e
estrutura buscam se universalizar. No processo de afirmação
de si (de uma cultura) vai se abrindo um diálogo e uma
interseção com os outros. Diálogo que não necessariamente
significa compreensão, entendimento, harmonia, mas
adversidade e diversidade dentro de um território comum de
troca e enfrentamento. Seria o caso de se repensar, por
exemplo, os elos e as diferenças entre os desdobramentos do
neoconcretismo e do tropicalismo junto ao pop, ao novo
realismo francês, à povera italiana e ao minimalismo
americano; mais do que isso, seria fundamental abrir-se a
discussão teórica para as articulações entre o “não-objeto”
(Gullar), o “objeto-específico” (Judd) e a “antiforma”
(Morris). Neste diálogo, entretanto, virão à tona diferenças
extraídas de contextos culturais específicos e assim trazendo
à luz a rediscussão do Brasil na arte brasileira que se assume
universal.
15 Procurarei aqui sublinhar, para caracterizar esta dialética
entre moderno e pós-moderno, entre universal e brasileiro,
quatro vetores conceituais a partir dos quais se pode pensar
a arte brasileira desde os anos 1920 até o presente. Eles não
são os únicos e nem pretendem reduzir toda a arte produzida
no Brasil ao seu quadro de referência. São tópicos que
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percebo relevantes no interior de nossa produção e que


vieram se atualizando e se transformando desde o
modernismo. Estes quatro vetores foram surgindo a partir
da minha re-montagem da exposição permanente do museu
misturando a coleção do MAM com a coleção em comodato
de Gilberto Chateaubriand.
16 É bom frisar que as exposições em museus brasileiros lidam
com algumas questões específicas à nossa fragilidade
institucional, a saber: a ausência de coleções públicas
abrangentes, a falta de uma história da arte consolidada, de
um debate crítico oxigenado, enfim, impõe-se o
enfrentamento de carências monumentais. Neste aspecto, a
tarefa da curadoria caminha conjugada às estratégias
educativas, tendo em vista a reconfiguração da dimensão
pública da arte.
17 O primeiro partido conceitual da curadoria foi o de quebrar
o eixo cronológico com que normalmente se tratava nos
museus a história da arte brasileira do modernismo dos anos
1920 até a arte contemporânea. Esta opção vinha articulada
à visão de uma modernidade brasileira contemporânea da
sua crítica pós-moderna, na qual culturas e temporalidades
embaralhavam-se em nossos processos de subjetivação e na
constituição de nossa sociabilidade. Como disse o artista
Carlos Vergara a partir de seu work in progress dentro das
Missões Jesuíticas do Rio Grande do Sul, houve ali, no
século , um deslocamento/salto radical que foi do
paleolítico ao barroco. A singularidade inerente a este salto e
suas consequências coloniais e pós-coloniais mantém-se e é
abordada no primeiro segmento da exposição, intitulado
“Brasil: visões e vertigens”. Somos recebidos na exposição
por Tarsila do Amaral e Claudia Andujar, tendo ao fundo
mestre Didi e a pequena obra de Wesley Duke Lee intitulada
Ontem é sempre hoje. A questão do Brasil fica aí em
evidência no que ela tem de moderno, anacrônico, lírico e
polifônico. A pulsação cromática do Vendedor de frutas da
Tarsila, com sua frontalidade, sua geometria, sua
luminosidade tropical, contrasta com a melancolia quase
trágica da índia grávida que se vê órfã de seus mitos de
origem. O tótem-escultura de mestre Didi lembra-nos de que
nossas referências são muitas e que elas se reinventam no
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cruzamento temporal que faz do “ontem sempre hoje”,


criando uma espécie de agonia do presente que se inscreve
em nossos corpos e em nossa sociabilidade caótica.
18 Abordar esta dimensão antropológica a partir de obras tão
distintas entre si não pretende reduzi-las a qualquer tipo de
descrição temática, esquecendo a potência significante
inerente às obras e sua capacidade de ressignificação.
Entretanto, garantidas outras possibilidades interpretativas,
vemos esta questão sobre o Brasil presente ao menos como
latência, palpitando no interior das obras apresentadas neste
módulo. Mesmo artistas “estrangeiros” cujas obras se
desenvolveram no Brasil, como Lasar Segall e Artur Barrio,
acabam incorporando materiais e aspectos formais que nos
fazem aproximá-los, seja como visão seja como vertigem,
desta fluida identidade brasileira. O primeiro
autorretratando-se como um típico mulato; o outro, em um
desenho, vai rasurar sua identidade de estrangeiro com pó
de café. Em vários momentos, nossa herança africana e
ameríndia perpassa e se mistura aos procedimentos formais
e figurativos – em Anita Malfati, Di Cavalcanti, Carlos
Vergara, Antonio Manuel, Panceti, Mario Cravo Neto, entre
outros. Em cada um deles, fica evidente tratar-se de artistas
que produzem a partir de uma história e de um território
específicos, que se apropriam de um vocabulário plástico
moderno que aspira a uma possível universalidade, ou seja, a
uma troca aberta e comum própria a um mundo globalizado.
19 O segundo módulo, “Cidades partidas: conflitos e afetos”,
assume um vetor conceitual mais sociológico, a saber: a
cumplicidade entre a nossa informalidade (o mito do
homem cordial) e nossas injustiças brutais, criando uma
sociedade marcada pela negociação constante de conflitos e
afetos. Uma página do historiador Luis Felipe de Alencastro
a partir de uma fotografia do século serviu aqui de
inspiração. Nela, uma escrava e um menino branco pousam
para a câmera revelando uma intimidade física e uma
distância social que marcam grande parte de nossa história.
Conviver com estes paradoxos faz parte de nossa
sociabilidade, sendo impossível para a história da arte não
assumi-los em vários de seus momentos.

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20 É bom frisar que todos estes quatro segmentos combinam


artistas e pontos de articulação entre si. Assim, Cara de
cavalo de Oiticica ou Lindonéia de Gerchmann poderiam
tanto pertencer a este segundo segmento, como também ao
primeiro. Afinal, a nossa formação cultural, nossa identidade
posta em questão, remete também para a nossa
sociabilidade, ao modo pelo qual nos organizamos
socialmente. A proximidade física dos corpos, característica
intrínseca ao processo de miscigenação, reflete-se em nossa
dificuldade em assumirmos a impessoalidade característica
aos mecanismos de modernização social. Na obra de
Oiticica, por exemplo, isso se mostra através das dobras que
articulam o dentro e o fora, a interioridade e a exterioridade.
Nas gravuras de Goeldi os nos flans de Antonio Manuel, o
embate entre o indivíduo e a norma, o eu e o mundo,
aparecem constantemente e são um leitmotiv constantes.
21 Neste mesmo módulo, vemos o carnaval, o samba e as festas
da tradição afro-brasileiras presentes através de obras de
Segall (mangue), Portinari (Iemanjá), Alair Gomes (blocos
de carnaval) e Luiz Alphonsus (mesa de bar). Em cada um
deles, os conflitos e os afetos de nossa sociabilidade
evidenciam-se e complementam-se de modo ora mais
afirmativo ora mais atritivo. A praia é outro momento
recorrente na construção de um corpo e de uma
sociabilidade singulares. A sua presença cotidiana revela
aspectos tanto de nossa convivência social como das
narrativas subjacentes à ambígua vivência dos nossos
corpos. Há um trabalho emblemático de Glauco Rodrigues
que faz a passagem entre este segundo módulo e o terceiro,
intitulado “Corpos híbridos: identidades em trânsito”. Nesta
pintura, um São Sebastião está flechado na praia ao lado de
quatro jovens deitados na areia e de um vendedor negro de
mate que está ali trabalhando. Há também na pintura um
texto irônico explicitando nossos conflitos raciais e sociais
que se refere a um suposto estudo acadêmico de um
professor norte-americano. A ironia é precisa e revela muito
de nossa complexa sociabilidade. As cores são chapadas e
diretas assim como a imagem. Mito e realidade se misturam,
assim como a dor e o prazer inscritos nos corpos, na
convivência social e nos códigos culturais.
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22 Neste terceiro módulo da curadoria, pretende-se mais


especificamente perceber como a questão do corpo foi
tratada pela arte de modo complexo, recorrente e sem
repetir clichês hedonistas que se tornaram lugar comum
para tratar da cultura brasileira. De Flavio de Carvalho e
Maria Martins vindo até Tunga e Anna Maria Maiolino, o
corpo aparece como sensualidade orgânica, mas como lugar
de tensão ao mesmo tempo erótica e política, onde se
manifestam identidades monstruosas e em constante
transformação. Talvez seja neste trato do corpo que o flerte
surrealista se faz presente: como estranhamento e como
erotismo. Em Maria Martins e Tunga, o orgânico e o
inorgânico se misturam, trazendo para o corpo um
imaginário em que tudo é processo, fragmento, delírio e
metamorfose. Já nos desenhos de Flavio de Carvalho
e Barrio, assim como nas fotografias de Iole de Freitas, o
corpo é dilaceramento e expressão. O que se pretende neste
módulo é assumir a dimensão política e contemporânea do
corpo como campo de batalha e estratégia de invenção
subjetiva. De certo modo, é uma discussão que foi se
radicalizando, pondo em evidência o conflito entre a
exploração sensorial e os entraves morais de uma cultura
com hábitos marcadamente conservadores.
23 Por fim, em um quarto módulo, tratamos da questão de
nossa herança construtiva. Intitulado “Respirações
geométricas”, procurou-se reunir desde o momento concreto
na década de 1950, nosso segundo momento modernista, até
os desdobramentos experimentais da década de 1970, em
que se irmanam estratégias participativas e conceituais. O
que se mantém neste deslocamento experimental é uma
tendência lírica constituída pela respiração tonal da cor que
começou em Volpi e se desdobrou em Carvão, Oiticica e Ione
Saldanha.
24 A necessidade formal que surge na arte brasileira no início
dos anos 1950 coincide com nossa guinada institucional, na
qual a modernidade deixava de ser uma ideia para se tornar
um dispositivo ao mesmo tempo produtivo e utópico
(Campofiorito, 1989, p. 40). Já foi dito que, no momento de
construção de Brasília, a utopia era mais verdadeira que a
realidade. Ao serem criados os museus de Arte Moderna do
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Rio e de São Paulo (1948), a Bienal (1951) e a nova capital


(1957) erguida em tempo recorde, percebe-se que um
programa de modernização disseminava-se como projeto
nacional. A arquitetura do próprio MAM (1953), com sua
imponência e escala, é parte constitutiva daquele momento.
A partir daí, surge um imperativo formal que, ao se
disseminar, ganha traços locais, com uma respiração mais
contida, orgânica, sinuosa.
25 O momento do neoconcretismo é exemplar em nossa
tradução de um vocabulário plástico construtivo que vai
assumindo com o tempo uma potência poética singular. As
cores frias e diretas dos neoplásticos e concretistas europeus
ganham aqui uma suavidade tonal estranha ao modelo
original. A presença do gesto, da subjetividade criativa, de
uma pulsão tátil e corporal, além do uso de materiais
precários sem perda do rigor formal são exemplos de como,
no processo de apropriação de uma linguagem artística, se
desloca e se reinventa uma identidade poética que se
pretendia canônica e fixada.
26 Se há uma hipótese curatorial/conceitual por trás dessas
genealogias é a de que a modernidade, ao se renovar nos
países periféricos, em especial no caso brasileiro, está se
reescrevendo, tornando-se mais complexa e inclusiva, menos
teleológica e unidimensional. As traduções culturais
reinventam os modelos originais. A crise pós-moderna é
mais um capítulo deste processo em que ela (a
modernidade) redefine seus limites e suas reverberações
políticas. No caso brasileiro, em que esta crise atualiza um
receituário que já estava inscrito na sua formação
desenraizada e multiétnica, as possibilidades de
repotencialização da aventura moderna, na constante
invenção de si junto ao outro, são menos recalcadas
historicamente. Para além do fim da história, da arte e dos
museus, o que vemos é uma reavaliação do que se
compreende como sendo história, arte e museu. A história se
destotaliza, a arte se diversifica e os museus se
democratizam – para o bem ou para o mal.
Na realidade, o mundo está repleto de modernidades e de
artistas que jamais consideraram o modernismo como uma
propriedade ocidental, mas como uma linguagem aberta e
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apta a ser transformada. A história pode assim ser reescrita


como um conjunto de traduções culturais em vez de um
movimento universal situado no interior de uma cultura, de
uma história, de um espaço, com uma cronologia única e
tendo relações políticas e culturais dadas. (Hall, 2001, p. 19)

27 Foi no intuito desta reescrita do moderno, que se faz sempre


como escrita possível e atual, que se pensaram os quatro
módulos curatoriais/conceituais enquanto genealogias do
contemporâneo. Nosso passado moderno – nos seus
anacronismos, reverberações e desarticulações – mantém-se
inacabado e sujeito ao contato dinamizador da produção
contemporânea. A condição ambivalente do Brasil, dentro e
fora do Ocidente, ao mesmo tempo moderno e pós-moderno
(e, porque não, pré-moderno), deslocando ideias e lugares,
fraturado socialmente e misturado étnica e culturalmente,
acaba por se refletir no modo pelo qual a arte brasileira se
singulariza e interessa dentro do circuito globalizado do
mundo contemporâneo.

Notes
1. Seria interessante lembrarmo-nos aqui da estética kantiana, na qual o
juízo de gosto “isto é belo”, não obstante, pautar-se sempre em um
sentimento subjetivo, teria que se tornar universal, ou seja, ser de
qualquer um. Diferentemente da universalidade objetiva do
conhecimento em que a verdade é, para todos os sujeitos racionais, a
universalidade subjetiva do belo, só se pretende como horizonte de
compartilhamento, como base de uma comunicabilidade comum na qual
qualquer um, não necessariamente todos, irá compartilhar do meu
sentimento. A pretensão de universalidade de determinadas formas
singulares de vida, constituídas a partir de formações culturais
específicas, não irá se converter em modelo de sociabilidade, mas em
exemplo a ser seguido por qualquer um que a sinta como sua.

Auteur

Luiz Camillo Osório


Professor do Departamento de
Filosofia da Pontifícia

https://books.openedition.org/oep/556 14/15
31/12/2018 Arte e vida social - Genealogias do contemporâneo - OpenEdition Press

Universidade Católica do Rio de


Janeiro
© OpenEdition Press, 2016

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Référence électronique du chapitre


OSÓRIO, Luiz Camillo. Genealogias do contemporâneo : Caminhos da
arte brasileira In : Arte e vida social : Pesquisas recentes no Brasil e na
França [en ligne]. Marseille : OpenEdition Press, 2016 (généré le 31
décembre 2018). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/oep/556>. ISBN : 9782821855892. DOI :
10.4000/books.oep.556.

Référence électronique du livre


QUEMIN, Alain (dir.) ; VILLAS BÔAS, Glaucia (dir.). Arte e vida social :
Pesquisas recentes no Brasil e na França. Nouvelle édition [en ligne].
Marseille : OpenEdition Press, 2016 (généré le 31 décembre 2018).
Disponible sur Internet : <http://books.openedition.org/oep/482>.
ISBN : 9782821855892. DOI : 10.4000/books.oep.482.
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https://books.openedition.org/oep/556 15/15

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