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23/07/2018 Goa e o general Vassalo e Silva | PÚBLICO

Goa e o general Vassalo e


Silva

Li com toda a atenção o artigo do arquitecto


Nuno Vassalo e Silva sobre seu avô, o
general Manuel Vassalo e Silva, último
governador do Estado Português da Índia -
Goa, para abreviar. Passaram agora os 40
anos da invasão indiana e, talvez por isso,
veio a terreiro o sr. arquitecto exaltar a
figura de seu avô. Só lhe fica bem. O pior é
que o artigo não se limita à recordação
saudosa que o neto terá de seu avô e entra
por terrenos ainda resvaladiços,
principalmente porque pouco estudados,
resultando numa tentativa de
desculpabilização do militar, e é a acção
militar do general, não a sua figura humana,
que é preciso colocar, sob o ponto de vista da
História, nos seus devidos termos. Haverá
que fazer três perguntas, muitos simples mas
de respostas extremamente complexas:1) O
general podia ou não podia resistir? 2) O
general disse a Lisboa que ia render-se por
falta de condições de resistência? 3) O
general devia ou não devia resistir? Vamos
aos porquês.1) O general não tinha quaisquer
condições para resistir. Por culpa, em
primeiro lugar, do Governo central. As forças
militares estacionadas em Goa, Damão e Diu
passaram em 1960 de 12 mil para 3 mil

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homens. O mais importante não era isso -


pois, como muito bem se sabe, a União
Indiana podia sempre multiplicar por dez os
seus efectivos relativamente aos
portugueses. O importante era não existir
um plano de defesa para esses 3 mil homens,
plano que nunca foi feito, pois o próprio
Salazar nunca o autorizou. Por quê? Talvez
por motivos financeiros, talvez pela
convicção de que nada adiantaria ter muita
gente em tão exíguo território, talvez,
principalmente, por estar convencido de que
a invasão não se daria (o próprio embaixador
dos Estados Unidos em Nova Deli,
Galbraight, ainda na véspera mandava um
telegrama para Washington manifestando-se
convencido de que Nehru não ousaria
avançar). Em Janeiro de 1960, o ministro da
Presidência, Pedro Theotónio Pereira, em
visita oficial a Goa, afirmou num posto de
fronteira, perante várias dezenas de oficiais:
"Meus senhores, o problema de Goa está
resolvido. O que é preciso agora é
desenvolver esta parcela de Portugal." O
espírito era este (e permitiu a elaboração do
plano de melhoramentos para o quadriénio
1959-1962, em que se insere o resgate, em
Março de 1961, do Caminho de Ferro de
Mormugão, "valiosíssima contribuição para
a economia do Estado da Índia", nas palavra
do diploma publicado no "Diário do
Governo". Fosse como fosse, o general, como
comandante-chefe, sabia que não tinha
meios para fazer frente a uma invasão.
Segundo José Freire Antunes - que não
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indica a fonte -, "solicitou várias vezes um


aumento dos efectivos e dos meios
materiais". Não os obteve, como se sabe.
Então que fez?2) A resposta óbvia é:
demitiu-se. Demitiu-se? Nada disso. A mim
próprio afirmou, em Janeiro de 1960, numa
entrevista que me concedeu no Palácio do
Hidalcão: "Quando para aqui vim, o senhor
presidente do Conselho disse-me: Vá, senhor
brigadeiro, vá e se for necessário fique. E nós
cá estamos." Não faltam outras afirmações
bélicas já bem próximo da invasão. Por
exemplo: em 10 de Dezembro de 1961, numa
entrevista pelo telefone ao "Diário Popular",
de Lisboa, o chefe de gabinete de Vassalo e
Silva, capitão Carvalho Figueira, afirmava:
"O moral é excelente em todo o território;
civis e militares estão estreitamente unidos
para o que der e vier. Nós mantemo-nos
preparados para tudo. Para tudo!" No dia 13,
o "Diário da Noite", de Pangim, publicava
uma nota oficiosa do Governo-Geral, na qual
se anunciava a decisão de se evacuar
mulheres e crianças, "para que a actuação
das forças armadas encarregadas da defesa
do território se possa fazer com a maior
liberdade possível de movimentos, como
convém numa luta que deve revestir-se da
maior dureza". Por outro lado, num artigo
publicado no jornal goês "O Heraldo" em 18
de Janeiro de 1975, o advogado Bruto da
Costa contou que o governador-geral,
"entrevistado pelos jornalistas" goeses,
afirmara: "Lutaremos com todas as forças ao
nosso dispor e com a consciência clara de
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uma desproporção numérica, recordando a


célebre frase de Francisco I - 'tudo podemos
perder, excepto a honra '- e esta honra é Goa
continuar portuguesa." Era a mesma ideia
transmitida ao prof. Adriano Moreira no
telefonema que este lhe fez do gabinete de
Salazar em 17 de Dezembro de 1961 e que o
embaixador Franco Nogueira relata:
"Estamos aqui sobre um vulcão, senhor
ministro. Tenham o Governo e V. Exa. a
certeza, porém, de que tudo se pode perder
menos a honra de Portugal."3) Perante tudo
o que ficou para trás, pergunta-se: devia ou
não devia o governador-geral resistir? A
resposta só pode ser afirmativa e recorde-se
que só em Goa não se combateu. Em Damão
e em Diu, os militares portugueses deram
batalha até onde puderam e renderam-se
com honra. A Marinha bateu-se
denodadamente. Oliveira e Carmo sacrificou
a vida. Cunha Aragão, o comandante do
"Afonso de Albuquerque", um velho aviso
cujos canhões não tinham sequer alcance
para incomodar os navios indianos, reuniu
os seus oficiais para os informar de que ia
levantar ferro e dar batalha, mas não sob a
égide de Salazar, cujo retrato atirou pela
borda fora. A História não pediria tanto a
Vassalo e Silva, mas o general talvez também
não precisasse de ir dizer ao "Século
Ilustrado" que ao celebrérrimo telegrama de
Salazar pedindo uma resistência de oito dias
e o sacrifício de todos se fosse necessário -
pedido que só fica mal a Salazar - respondera
"que não pensasse nisso, só por milagre"; e
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acrescentou: "usei o termo milagre". Isto só


fica mal a Vassalo e Silva, pois não há rasto
de tal telegrama, que, aliás, contraria tudo o
que ele disse até ao dia da invasão e nunca
desmentiu. Considera o arquitecto Vassalo e
Silva que a História já fez o julgamento de
seu avô. Creio que se está muito longe disso.
Até porque faltam ainda muitos elementos.
Para não falar dos inexplorados arquivos
indianos, recordo os depoimentos dos
militares que a invasão encontrou em Goa -
cuja leitura, em 1992, a 30 anos da invasão,
me foi recusada pelas chefias militares
(embora, ao que parece, já seja possível),
bem como o caso de dois telegramas
enviados de Carachi pela Embaixada de
Portugal, em fins de Dezembro de 1961, com
os depoimentos de um jornalista brasileiro,
Leopoldo de Melo, do "Diário Carioca", e de
um fotógrafo holandês, Van Cam, da agência
UPI, que ainda não foram dados a conhecer
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de
Portugal (MNE). Esses telegramas não se
encontram publicados nos "Vinte Anos de
Defesa do Estado da Índia" por terem sido
então considerados inconvenientes para o
prestígio do Exército que se batia em África.
Em 1986 solicitei ao secretário-geral do
MNE autorização para os publicar mas foi-
me respondido que a transcrição só poderia
ser parcial e mesmo assim só publicável
depois de apreciado o texto pelo ministério.
A censura em todo o seu esplendor. E por
quê? Porque esses telegramas - se a memória
não me falha - descrevem cruamente, e a
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quente, o que foi o comportamento do


exército em Goa. O mesmo exército que se
bateu em Damão e em Diu. Donde viria a
diferença? Por fim, um esclarecimento ao
arquitecto Vassalo e Silva: seu avô não foi
detido com sua avó. A senhora D. Maria
Fernanda Vassalo e Silva, que regressou a
Portugal a 31 de Dezembro de 1961, esteve
primeiro num convento em Caranzalem e
depois refugiou-se em casa do secretário-
geral de Goa, o dr. Abel Colaço, que não
informou os indianos e por isso bastos
aborrecimentos teve com eles. Como depois
os teve em Portugal por causa da mania
persecutória do Governo de Lisboa. Isto,
porém, é outra história.*diplomata
reformado

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