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Interculturalidade crítica e educação intercultural1  

Catherine Walsh2  

 
Entendemos interculturalidade como a possibilidade de diálogo entre as culturas. É um projeto político, que
transcende o educativo para pensar na construção de sociedades diferentes […] noutro ordenamento social. 

(Consejo Regional Indígena de Cauca, 2004, p. 18) 

 
Desde os anos 90, a interculturalidade3 tem se convertido num tema da moda. Está presente nas políticas
públicas e nas reformas educativas e constitucionais e é um eixo importante tanto na esfera nacional-institucional
como no âmbito inter/transnacional. Ainda que se possa argumentar que esta atenção é efeito e resultado das
lutas dos movimentos sociais-político-ancestrais e suas demandas por reconhecimento, direitos e transformação
social, também pode ser vista, por um outro ângulo, a partir de uma perspectiva que a liga aos desenhos globais
do poder, capital e mercado. 

Este texto pretende explorar estes múltiplos sentidos e usos da interculturalidade, com ênfase especial no
campo educativo, para fazer, assim, distinção entre uma interculturalidade que é funcional ao sistema dominante e
outra, concebida como projeto político de descolonização, transformação e criação. Argumentarei que a
educação intercultural, em si, somente terá significado, impacto e valor quando for assumida de maneira crítica,
como ato pedagógico-político que procura intervir na refundação da sociedade, como dizia Paulo Freire (2004: 18)
e, assim, na refundação de suas estruturas, que racializam, inferiorizam e desumanizam. 

O presente trabalho está organizado em três partes. A primeira tem como foco a compreensão da
interculturalidade e suas múltiplas fronteiras, vistas a partir de três perspectivas distintas. A segunda parte faz uma
trajetória do uso da interculturalidade na educação e políticas educativas, a partir da educação intercultural
bilíngue e das reformas multiculturalistas dos 90 até as novas políticas emergentes da educação intercultural do
século XXI, incluindo as que, por um lado, representam o projeto neoliberal e, por outro, aliam a refundação
educativa com a refundação estatal. Finalmente, a terceira e última parte intenta aprofundar o entendimento da
interculturalidade crítica como projeto político-social-epistêmico-ético e como pedagogia descolonial, dando
pistas para uma práxis distinta. 

1
Tradução não solicitada e não autorizada. Realizada para uso didático por Herlon Bezerra (IF Sertão PE/GMEPEIS Sertões). 
2
Catherine Walsh é professora principal e diretora do doutorado em Estudios Culturales Latinoamericanos de la Universidad
Andina Simón Bolívar, sede Equador, onde também dirige o Taller Intercultural e o Fondo Documental Afro Andino. Tem uma
longa trajetória de assessoria aos movimentos indígenas e afrodescendentes na América Latina, em especial na região
andina. Seu trabalho está focado principalmente no projeto político, epistêmico e ético da interculturalidade crítica e em
assuntos da descolonialidade. 
3
Este artigo é uma ampliação da exposição apresentada no Seminario “Interculturalidad y Educación Intercultural”, organizado
pelo Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, La Paz, 9-11 de marzo de 2009. 
1. Para uma compreensão da interculturalidade 

A partir dos anos 90 existe na América Latina uma nova atenção à diversidade étnico-cultural, uma
atenção que parte dos reconhecimentos jurídicos e de uma necessidade cada vez maior de promover relações
positivas entre distintos grupos culturais, de confrontar a discriminação, o racismo e a exclusão, de formar
cidadãos conscientes das diferenças e capazes de trabalhar conjuntamente no desenvolvimento do país e na
construção de uma sociedade justa, equitativa, igualitária e plural. A interculturalidade se inscreve neste esforço. 

Porém, por ser este um termo da moda, usado numa variedade de contextos e com interesses
sociopolíticos por vezes opostos, a compreensão de seu conceito muitas vezes fica muito larga e difusa. Como
síntese, podemos explicar o uso e sentido contemporâneo e conjuntural da interculturalidade a partir de três
perspectivas distintas. 

A primeira perspectiva é aquela que entendemos como relacional, e que faz referência da forma mais
básica e geral ao contato e intercâmbio entre culturas, isto é, entre pessoas, práticas, saberes, valores e tradições
culturais distintas, as quais poderiam dar-se em condições de igualdade ou desigualdade. Desta maneira, se
assume que a interculturalidade é algo que sempre existiu na América Latina pois sempre existiu aqui o contato e a
relação entre os povos indígenas e afrodescendentes, por exemplo, e a sociedade branco-mestiça crioula, do que
poderia ser conhecida a evidência na própria mestiçagem, nos sincretismos e nas transculturações que são parte
central da historia e “natureza” latino-americana-caribenha4 . 

Não obstante, o problema com esta perspectiva é que, tipicamente, oculta ou minimiza a conflitividade e
os contextos de poder, dominação e colonialidade contínua em que se leva a cabo a relação5 . Da mesma forma,
limita a interculturalidade ao contato e à relação – muitas vezes somente individual –, encobrindo ou deixando de
lado as estruturas da sociedade - sociais, políticas, econômicas e também epistêmicas - que põem a diferença
cultural em termos de superioridade e inferioridade. Por isso mesmo, é necessário problematizar e ampliar a
perspectiva relacional, considerando duas perspectivas adicionais, que dão contexto e sentido ao uso da palavra e
conceito de interculturalidade na conjuntura atual, evidenciando assim seus significados, usos, intencionalidades e
implicações sociais e políticas. 

A nossa segunda perspectiva de interculturalidade podemos denominar funcional, seguindo as sugestões


do filósofo peruano Fidel Tubino (2005). Aqui, a perspectiva de interculturalidade se enraíza no reconhecimento da
diversidade e diferença culturais, visando a inclusão desta no interior da estrutura social estabelecida. A partir
desta perspectiva - que busca promover o diálogo, a convivência e a tolerância –, a interculturalidade é “funcional”
ao sistema existente, não toca as causas da assimetria e desigualdade sociais e culturais, tampouco “questiona as

4
Desnaturalizar esta mestiçagem (ou a “crioulização”) é particularmente importante no Caribe, onde a suposta “democracia
racial” (caso da República Dominicana e da costa caribenha colombiana, similar ao Brasil) e a transculturação cubana
(incluindo o “sincretismo” religioso) têm negado até hoje o racismo e as práticas de racialização, como também a diferença
vivida pelos filhos da diáspora africana. 
5
O fato de que a dominação racial-relacional tenha sido parte chave da construção da identidade nacional e, às vezes, até
tomada como patrimônio nacional evidencia o problema. Um exemplo, entre muitos outros, é o da Colômbia, com os esforços
do ex-presidente liberal colombiano Alfonso López Michelsen por criar a noção de uma Colômbia tropical e sensual a partir
das imagens das relações sexuais das elites regionais costeiras com suas empregadas negras ou mulatas, imagens
reproduzidas e elogiadasa nos vallenatos (Figueroa, 2009). 
regras do jogo”, por isso “é perfeitamente compatível com a lógica do modelo neoliberal existente” (Tubino,
2005).  

Isto faz parte do que vários autores têm definido como “a nova lógica multicultural do capitalismo global”,
uma lógica que reconhece a diferença, sustentando sua produção e administração dentro da ordem nacional,
neutralizando-a e esvaziando de seu significado efetivo, tornando-a funcional a esta ordem e, assim, aos ditames
do sistema-mundo e à expansão do neoliberalismo (Muyolema, 1998). Neste sentido, o reconhecimento e o
respeito à diversidade cultural se converteram em uma nova estratégia de dominação, que aponta não para a
criação de sociedades mais equitativas e igualitárias, mas ao controle do conflito étnico e à conservação da
estabilidade social com a finalidade de impulsionar os imperativos econômicos do modelo (neoliberalizado) de
acumulação capitalista, agora “incluindo” os grupos historicamente excluídos em seu interior. Sem dúvida, como
discutiremos adiante, a onda de re-formas6 educativas e constitucionais dos anos 90 – as quais reconhecem o
caráter multiétnico e plurilinguístico dos países e introduzem políticas específicas para os indígenas e
afrodescendentes – são parte desta lógica multiculturalista e funcional. 

A terceira perspectiva – a que assumimos aqui – é a da interculturalidade crítica. Com esta perspectiva, não
partimos do problema da diversidade ou diferença em si, mas do problema estrutural-colonial-racial. Isto é, de um
reconhecimento de que a diferença se constrói dentro de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e
hierarquizado, com os brancos e “branqueados” em cima e os povos indígenas e afrodescendentes nos andares
inferiores. A partir desta posição, a interculturalidade passa a ser entendida como uma ferramenta, como um
processo e projeto que se constrói a partir das gentes – e como demanda da subalternidade –, em contraste à
funcional, que se exerce a partir de cima. Aponta e requer a transformação das estruturas, instituições e relações
sociais, e a construção de condições de estar, ser, pensar, conhecer, aprender, sentir e viver distintas. 

A interculturalidade entendida criticamente ainda não existe, é algo por construir. Por isso, se entende
como uma estratégia, ação e processo permanentes de relação e negociação entre, em condições de respeito,
legitimidade, simetria, equidade e igualdade. Porém, ainda mais importantes, é seu entendimento, construção e
posicionamento como projeto político, social, ético e epistémico - de saberes e conhecimentos-, que afirma a
necessidade de mudar não só as relações, mas também as estruturas, condições e dispositivos de poder que
mantêm a desigualdade, inferiorização, racialização e discriminação. 

Por tanto, seu projeto não é simplesmente reconhecer, tolerar ou incorporar o diferente dentro da matriz e
estruturas estabelecidas. Pelo contrário, é implodir – a partir da diferença - as estruturas coloniais do poder como
desafio, proposta, processo e projeto; é re-conceitualizar e re-fundar estruturas sociais, epistêmicas e de
existências que põem em cena e em relação equitativa lógicas, práticas e modos culturais diversos de pensar,
atuar e viver. Por isso, o foco problemático da interculturalidade não reside somente nas populações indígenas e
afrodescendentes, mas em todos os setores da sociedade, inclusive no dos branco-mestiços ocidentalizados
(Rivera, 1999). 

E é por isso mesmo que a interculturalidade deve ser entendida como desígnio e proposta de sociedade,

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Pôr as “-” é enfatizar que mais que oferecer mudanças substanciais, as modificações constitucionais e de políticas
educativas não fizeram mais que re-formular (ou reformar) o mesmo. 
como projeto político, social, epistêmico e ético dirigido à transformação estrutural e sócio-histórica, assentado
na construção entre todos de uma sociedade radicalmente diferente. Uma transformação e construção que não se
detém no enunciado, no discurso ou na pura imaginação; pelo contrário, requer agir em cada instância social,
política, educativa e humana. Porém, antes de explorar com um pouco mais de profundidade a interculturalidade
como projeto político e de sociedade, vejamos os antecedentes passados e presentes do termo e conceito no
campo educativo. 

2. Interculturalidade, educação intercultural e políticas educativas 

Desde seus momentos iniciais, a interculturalidade tem significado uma luta na qual estão em permanente
disputa assuntos como identificação cultural, direito e diferença, autonomia e nação. Não é de se estranhar, nesse
sentido, que um dos espaços centrais desta luta seja a educação, como instituição política, social e cultural:
espaço de construção e reprodução de valores, atitudes e identidades e do poder histórico-hegemónico do
Estado. Por isso mesmo, o entendimento de que a interculturalidade seja eixo e dever educativo é substancial.
Sem dúvida, a genealogia de seu uso no campo da educação está marcada por uma série de motivos, tensões e
disputas. A seguir exploramos seu uso, desenvolvimento e significação em três momentos: a educação
intercultural bilíngue, as reformas educativas dos anos 90 e as políticas educativas emergentes do século XXI. 

2.1. A educação intercultural bilíngue 

É a partir dos anos 80, com a educação intercultural bilíngue (EIB), que a interculturalidade começa a ser
entendida na América Latina em suas relações com as políticas educativas promovidas pelos povos indígenas, as
ONG’s e/ou o Estado. Na reunião regional de especialistas sobre educação bilíngue (México, 1982), se enfatizou a
necessidade de estabelecer políticas nacionais de plurilinguismo e multietnicidade, propondo, entre outras coisas,
a oficialização nacional ou regional das línguas indígenas e políticas educativas globais. Acordou-se ainda
recomendar a mudança da denominação até então utilizada de “educação bilíngue bicultural” para “educação
intercultural bilíngue”, reconhecendo que uma coletividade humana nunca chega a ser bicultural devido ao carácter
global e integrador da cultura, e a seu caráter histórico e dinâmico, sempre capaz de incluir novas formas e
conteúdos à medida que novas condições de vida e necessidades o requeiram (Instituto Indigenista Americano,
1982)7 . A adoção do termo intercultural - utilizado primeiro nos países andinos – foi assumida não como dever de
toda a sociedade, mas como reflexo da condição cultural do mundo indígena, “preparando o educando para atuar
num contexto pluricultural marcado pela discriminação das etnias indígenas” (Chodi, 1990: 473). 

Desde então o termo intercultural começou a assumir, no campo educativo, um sentido duplo. Por um

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Não obstante, a utilização do intercultural também tem outros referentes. No Equador, o Estado o utilizou na reforma
constitucional de 1983, onde se dispõe que “Nos sistemas de educação que se desenvolvam nas zonas de predominante
população indígena, se utilize como língua principal de educação o quéchua ou a língua da cultura respectiva e o castelhano
como língua de relação intercultural”. Com esta incorporação se estabelece uma das primeiras políticas educativas sobre “o
intercultural”, uma política con sentido singular e unidirecional: de indígenas para a sociedade branco-mestiça e não o
vice-versa, nem tampouco entre os distintos povos e nacionalidades originárias. 
lado, um sentido político-reivindicativo, por estar concebido a partir da luta indígena e com a finalidade de
enfrentar a exclusão e impulsionar uma educação linguisticamente “própria” e culturalmente apropriada. Tal
conceitualização partia do problema histórico e persistente da matriz colonial de poder e de exclusão,
subalternização e extermínio – de identidade, línguas, saberes, cosmovisão, lógicas e sistemas de vida - que tem
propagado. E, assim, buscava a inclusão dos “diferentes” sob seus próprios termos. 

Ao mesmo tempo, todavia, o intercultural foi assumindo um sentido socioestatal de burocratização. Ao


legalizar a EIB como “direito étnico e coletivo” e como programa educativo para indígenas - algo que se deu na
maioria dos países latino-americanos com populações indígenas nos anos 80 e 908 (respaldado pela assinatura
do Convênio 169 da OIT) -, o intercultural chegou a ser parte do aparato de controle e da política educativa estatal9 .
Para muitas organizações e comunidades indígenas, esta oficialização tem representado um faca de dois gumes:
por um lado, o reconhecimento merecido e, por outro, o debilitamento do próprio – com seu sentido comunitário,
sociopolítico e ancestral – e a instalação de mecanismos de regulação10 .  

Neste sentido, é importante lembrar que a gestão comunitária não é o único antecedente da EIB. Também
responde a uma forte influência de ONG’s (especialmente a alemã GTZ), igrejas (em particular o Instituto Linguístico
de Verão) e outros organismos nacionais e internacionais (Banco Mundial, AID, UNICEF, etc.), muitos deles com
interesses aliados, pública o privadamente, aos do Estado, e com fins sociopolíticos e culturais muito distintos aos
das comunidades e organizações indígenas11 . 

Dentro da EIB, o “intercultural” tem sido entendido principalmente nos termos linguísticos e com uma só
direcionalidade: da língua indígena para a língua “nacional”. E é esta direcionalidade a que tem lhe dado um
sentido de transição: o “intercultural” é entendido como o relacionamento que os alunos indígenas devem ter
com a sociedade dominante e não vice-versa. 

Este conceito, prática e maneira de nomear a “EIB” está praticamente generalizado. O caso distinto é a
Colômbia onde, sob a normativa de “etnoeducação” (primeiro indígena e logo estendida aos afrocolombianos),
entendida como “educação para grupos étnicos, a que se oferece a grupos ou comunidades que integram a
nacionalidade e que possuem una cultura, língua, tradições e leis próprias e nativas”, se faz basicamente o
mesmo. 

Em ambos os casos, a EIB e a etnoeducação, a partir de sua oficialização, pretendem responder ao

8
Caso contrário é o do Panamá, que cria a Dirección Nacional de Educación Bilingüe em 30 de agosto de 2007, estabelecendo
“programas de educação e promoção para os grupos indígenas” e, adicionalmente, garante “o desenvolvimento da Educação
Intercultural Bilíngue em todos os níveis e modalidades do sistema educativo, para garantir que os povos culturalmente
diferenciados desenvolvam uma educação de qualidade, com equidade, eliminando a exclusão e marginalidade mediante
um processo de educação intercultural” (Ministerio de Educación, Decreto Ejecutivo 274, 31 de agosto de 2007). 
9
Esta incorporação ao Estado tem sido diferente no caso equatoriano. Com a oficialização da Dirección Nacional de Educación
Intercultural Bilingüe (DINEIB) en 1988, se estabeleceu uma cogestão na qual as organizações indígenas nomeiam os
funcionários e mantêm sua autonomia em relação ao Ministério da Educação relativamente à administração da EIB, dentro de
um sistema bifurcado: a EIB e a educação “hispana”. Não obstante, e apesar de sua base jurídica, a EIB no Equador, como em
outros países, acaba por ser marginalizada frente à contínua hegemonia cultural e educativa, situação que se complicou
ainda mais no contexto neoliberal, no qual a responsabilidade estatal tem favorecido a privatização e a descentralização.  
10
Ver, por exemplo, CRIC 2004. 
11
Em ocasiões anteriores, analisei esta problemática. Ver: Walsh, 1994; 2000.  
problema étnico e de desunificação e desigualdade ante a lei. Participam da democratização, modernização e
desenvolvimento dos estados latino-americanos dentro de una política emergente de coexistência, inclusão e
gestão da diversidade12 . 

2.2. As re-formas dos anos 90 

Nos anos 90, esta política emergente conseguiu consolidar-se em praticamente todos os países
latino-americanos dentro de suas re-formas constitucionais. Com o reconhecimento do caráter multiétnico e
pluricultural da população e da existência de identidades étnico-culturais, e ao outorgar sua proteção e igualdade
ante a lei, se iniciou uma nova fase político-social, conhecida como constitucionalismo multicultural ou
multiculturalismo constitucionalista. Efetivamente, tais mudanças foram resultado das demandas e lutas dos
movimentos sociais - particularmente dos movimentos indígenas –, tanto nacional como internacionalmente, no
campo de seus direitos. Não obstante, também devem ser vistos como constitutivos dos desígnios do projeto
neoliberal que, ao início dos anos 90, tomou força na América Latina: “incluir” a todos, abarcando os setores
historicamente excluídos, dentro do mercado - assegurando, com esta inclusão dos “excluídos”, seu
apaziguamento –, tem sido uma estratégia chave de seu projeto. 

As re-formas educativas dos 90 foram parte desta nova onda multiculturalista de corte neoliberal. Apesar
de seu impulso vir de demandas sociais por uma educação diferenciada, que poderia elevar a qualidade educativa
e responder, entre outras coisas, ao étnico e diverso no âmbito nacional, estas re-formas - tanto em sua prática
como em sua conceitualização se esforçaram mais por adequar a educação às exigências da modernização e do
desenvolvimento que por interculturalizar o sistema educativo. E ainda que a interculturalidade aparece como eixo
transversal ou marco para introduzir a diversidade e o reconhecimento do “outro” nestas re-formas, sua
intencionalidade não tem sido refundar ou repensar os sistemas educativos, mas adicionar e acomodar um
discurso da diversidade e interculturalidade - entendida como convivência, tolerância, respeito e reconhecimento
da diferença cultural – sem maior mudanças13 . 

Este problema pode ser observado, entre outros âmbitos, na produção de textos escolares, na formação
de professores e nos currículos usados nas escolas. Sob o pretexto da “interculturalidade”, as editoras de livros
escolares assumem uma política de representação que, enquanto incorpora imagens de indígenas e negros,
reforça estereótipos e processos coloniais de racialização (Granda, 2004). Na formação docente, a discussão
sobre interculturalidade se encontra em general limitada ao tratamento antropológico da tradição folclórica. Na

12
Claro está que, por esta mesma definição de ser parte da educação “étnica”, a interculturalidade, dentro do marco que
acabamos de descrever, tem sido limitada aos países com populações etnicamente definidas, isto é e em maior medida,
populações indígenas. Neste sentido, a interculturalidade não tem feito parte – até o momento – dos debates educativos no
Caribe, por não ter uma população indígena claramente identificada e por negar tipicamente a existência de uma diferença
afro. 
13
Tal foi o caso da Reforma Educativa de 1996 no Equador, na qual a identificação da interculturalidade como eixo transversal
limitou a ser principalmente um enunciado, e da Reforma Educativa de 1994 na Bolívia, que dispunha a incorporação do
enfoque intercultural e a modalidade bilíngue, que não se cumpriu. 
classe, a aplicação é, no máximo, marginal14 . 

2.3. As políticas educativas emergentes no século XXI 

Dentro das políticas educativas emergentes no século XXI, podemos testemunhar dois distintos eixos de
mudança. O primeiro se encontra nos vínculos crescentes entre educação e “desenvolvimento humano integral”,
reflexo, segundo minha forma de ver, de um interculturalismo funcional já amadurecido. 

Com base nos trabalhos de Max Neef e Amartya Sen, entre outros (adotado pela ONU, UNESCO e a maioria
dos Ministérios de Educação e Cultura latino-americanos), o “desenvolvimento humano integral” responde à
necessidade de um desenvolvimento mais humano em contextos de crise, nos quais cada indivíduo contribui para
o desenvolvimento social do Estado, Nación e sociedade. Sua meta principal é melhorar a qualidade de vida e o
nível de bem-estar do ser humano em escala individual e social, potencializando a equidade, o protagonismo, a
democracia, a proteção dos recursos naturais e o respeito à diversidade étnico-cultural. Aqui, o bem-estar é
entendido segundo duas categorias: a ontológica - ser, ter, fazer, estar -, e a axiológica - subsistência, proteção,
afeto, entendimento, lazer, participação e criação -. Chegar a este bem-estar depende dos indivíduos, não da
sociedade em si nem tampouco de uma mudança da estruturação social. Depende da maneira como as pessoas
tomam controle de suas vidas. Assim, sua idéia central é que cada indivíduo contribui para o desenvolvimento da
sociedade, e que os indivíduos podem chegar a superar o problema do desenvolvimento limitado. 

É a partir desta perspectiva que se argumenta pela necessidade da inclusão - de indivíduos dos grupos
historicamente excluídos - como mecanismo para avançar na direção da coesão social. Tal perspectiva se
evidencia nas recentes mudanças na política da UNESCO, agora dirigida à gestão da diversidade para que não seja
fonte de ameaça e insegurança. Também participa das novas políticas e iniciativas do PNUD, BID e EUROsociAL -
este último representa uma aliança entre a Comissão Europeia, o BID, o PNUD e a CEPAL, com apoio do BM e FMI,
focada em avançar e assegurar a coesão social por meio da inclusão 15 . Enquanto tais esforços pretendem
promover a interculturalidade, sua preocupação é a “radicalização de imaginários étnicos” e da necessidade -
social, política e económica - de estabelecer um novo “sentido comum”, compatível com o mercado16 . A
interculturalidade aqui é funcional não só ao sistema, mas também ao bem-estar individual, ao sentido de
pertença dos indivíduos a um projeto comum, e à modernização, globalização e competitividade de “nossa cultura
ocidental”, já assumida como cultura própria latino-americana. 

O segundo eixo de mudança se define dentro das novas políticas que tratam de proteger uma educação
universal, única e diversa para alcançar a igualdade e incorporar plenamente a diversidade. Assim, em vários países
da região se inicia o estabelecimento de leis para criar um sistema denominado “Educação Intercultural”. México

14
Ver: Vélez, 2006. 
15
Como os documentos da EUROsociAL indicam, “a incorporação da coesão social na agenda da América Latina é produto do
diálogo com a Europa, adequando o conceito à realidade latino-americana a partir da academia, organismos internacionais e
governos nacionais”. 
16
Ver: PNUD, 2007. 
foi um dos primeiros a preconizar, em 2001, um novo modelo educativo a partir da educação básica até a
universidade, no qual se estude e se privilegie a interculturalidade. A criação de universidades interculturais, por
parte dos Estados Mexicanos desde 2003, é parte de tal iniciativa. Sem dúvida, em sua conceituação, podemos
testemunhar a contínua associação do intercultural com o indígena. 

Segundo seu decreto de criação (10 de dezembro de 2003), as universidades interculturais mexicanas têm
a função de “elaborar programas de educação superior e formar profissionais comprometidos com a valorização,
estudos, investigação e ensino das línguas e culturas indígenas”. Isto é, são universidades pensadas para indígenas
e para abordar temas indígenas. A questão então é por que não chama-las “indígenas” em vez de “interculturais”17 .
Ao que parece, a compreensão do intercultural ainda segue centrada no indígena; ainda que exista o
reconhecimento de que a educação intercultural é para todos, sua proposta facilmente termina sendo pouco mais
que a incorporação de assuntos relacionados à diversidade linguística e cultural. 

Pensar a educação intercultural como processo de estudo e aprendizagem inter-epistêmicos, ainda parece
estar longe, na maioria dos países, de uma nova prática e política educativas. Enquanto esforços como a Cátedra
de Estudios Afrocolombianos - que pretende tornar obrigatório o estudo sobre o afrocolombiano em todas as
escolas colombianas – poderiam ser vistos como avanços, sua incorporação – ainda muito limitada em nível
nacional - se dá como matéria “étnica” e não como base para pensar “com” os conhecimentos, as histórias,
memórias e atualidades da Colômbia de descendência africana. Inclusive em Venezuela, onde desde 2007 se abriu
uma discussão sobre o desenho curricular bolivariano - considerando tanto os povos indígenas como os
afrovenezuelanos (que perfazem aproximadamente 30% da população) -, a educação intercultural se mantém
somente como subsistema e como eixo integrador. A educação intercultural “atende a educação integral dos
povos e comunidades indígenas e afrodescendentes a partir dos contextos de coexistência, de convivência
cultural, tendo como ponto de partida a educação específica” (Díaz, 2009a) 18 . E ainda que este passo – histórico no
caso venezuelano e parte da Constitución de 199919 - é fundamental, também é necessário estender o intercultural
ao contexto do repensar, refundar e descolonizar o “nacional”, algo que ainda não acontece. 

Talvez Bolívia e Equador representem casos distintos em função de suas propostas, que giram em torno
da transformação, refundação e descolonização do sistema. Assim pretendem procurar a concepção e prática dos
princípios de interculturalidade e plurinacionalidade no sistema educativo nacional, encorajar a descolonização

17
Vale a pena mencionar a diferença entre a conceitualização destas Universidades Interculturales en México, e as das três
Universidades Indígenas (aymara, quéchua, e guarani), decretadas pelo governo de Evo Morales em Bolívia ao final de 2008
e que já estão sendo implementadas em 2009. Enquanto as mexicanas reproduzem a mesma lógica oficial e cultural da EIB,
as bolivianas formam parte de um projeto sociopolítico-epistêmico-civilizatório-ancestral. 
18
Também ver: Díaz, 2009b. A aproximação de Díaz ao conceito de educação intercultural em Venezuela é útil: “é o tipo de
educação que se encarrega de transmitir os conhecimentos, valores ancestrais, expressões culturais, idioma, cosmovisão e
práticas pedagógicas dos povos e comunidades indígenas e afrodescendentes, propiciando o reconhecimento e
fortalecimento da cultura própria, na convivência e respeito à diversidade cultural. Eliminando o racismo e qualquer tipo de
discriminação”. 
19
“…as culturas populares constitutivas da venezolanidade gozam de atenção especial, reconhecendo-se e respeitando-se
a interculturalidade sob o princípio da igualdade das culturas. A lei estabelecerá incentivos e estímulos para as pessoas,
instituições e comunidades que promoverem, apoiarem, desenvolverem ou financiarem planos, programas e atividades
culturais no país, assim como a cultura venezuelana no exterior. O Estado garantirá aos trabalhadores e trabalhadoras
culturais sua incorporação ao sistema de seguridade social, que lhes permita uma vida digna, reconhecendo as
particularidades de seu fazer cultural, em conformidade com a lei…” (Constitución de la República Bolivariana de Venezuela,
1999, Art. 100). 
educativa e definir uma política nacional de educação que pretende acabar com o problema estrutural da diferença
e desigualdade como problema, para assim construir uma sociedade mais equitativa e justa. Dentro de tal esforço,
se entendem a transformação educativa e a transformação estatal como processos de refundação, clara e
necessariamente interdependentes 20 . Nestes termos, Bolívia declara, em sua nova Constitución de 2009, o caráter
“intracultural, intercultural e plurilíngue de todo o sistema educativo” (Art. 78: 2), sua fundamentação “aberta,
humanista, científica, técnica e tecnológica, produtiva, territorial, teórica e prática, libertadora e revolucionária,
crítica e solidária” (Art. 78: 3), e sua contribuição ao “fortalecimento da unidade e identidade de todas e todos
como parte do Estado Plurinacional, assim como a identidade e desenvolvimento cultural dos membros de cada
nação ou povo indígena originário campesino, e o entendimento e enriquecimento intercultural dentro do Estado”
(Art. 80: 2). O projeto de Ley de Educación Avelino Siñani y Elizardo Pérez assente as bases e pautas para esta
descolonização e refundação educativa. 

De forma similar, a nova Constitución de Ecuador, aprovada em referendum popular em setembro de


2008, identifica a nova educação como “participativa, obrigatória, intercultural, democrática, inclusiva e diversa, de
qualidade e calidez [e que] promoverá a equidade de gênero, a justiça, solidariedade […] e o senso crítico […]”
(Art. 27). E ainda que não tenha a profundidade de mudanças que tem a boliviana, pretende construir  

O sistema nacional de educação terá como finalidade o desenvolvimento de capacidades e


potencialidades individuais e coletivas […] que possibilitem o aprendizado, e a geração e utilização de
conhecimentos, técnicas, saberes, artes e cultura [que] integrará uma visão intercultural em acordo
com a diversidade geográfica, cultural e linguística do país, e o respeito aos direitos das comunidades,
povos e nacionalidades. (Art. 343)21  

Mas talvez o melhor exemplo de seu esforço de “interculturalizar”, tem relação com os saberes e
conhecimentos. Ao reconhecer que a ciência e o conhecimento não são singulares e únicos, e identificar os
conhecimentos ancestrais como conhecimentos científicos e tecnológicos, relevantes e necessários para todos, a
constituição equatoriana estende a interculturalidade ao campo epistêmico. Além disso, realiza uma mudança de

20
De fato, a presença dos povos indígenas frente aos governos na história recente (e a presença ainda de maneira distinta
dos povos afro), tem politizado a diferença étnico-cultural-colonial, situando-a não como problema étnico mas como
problemática da sociedade nacional. É nesta politização que a interculturalidade vem assumindo significados e enfoques
para além da educação, mesmo que apontem para a transformação radical da sociedade e suas estruturas e instituições
“nacionais”, incluindo o próprio Estado. 
21
De maneira preocupante e contraditória, esta mesma noção de “um sistema nacional” tem sido usada pelo Presidente de
la República del Ecuador ao eliminar o status de autonomia que manejava DINEIB, mencionado anteriormente. O argumento,
apresentado num boletim do Ministerio de Educación, é que “a educação pública equatoriana deve estar livre de toda
ingerência corporativista, seja de movimentos políticos, de grêmios ou de organizações étnicas de diversas naturezas, que se
arrogam a representação do conjunto da sociedade. […] Desta maneira a DINEIB deixará de atuar isolada e de responder aos
interesses políticos de uma cúpula de dirigentes indígenas, que não mais poderá, segundo o velho esquema corporativista,
impor autoridades nem visões políticas racistas e tendenciosas, nem utilizar o espaço educativo para suas tarefas de
doutrinamento” (Ministerio de Educación, febrero de 2009). O problema aqui não está na criação de um novo sistema
educativo intercultural, mas em usar este sistema como razão para desacreditar as organizações indígenas e retirar-lhes o
poder (conquistado em luta) de definir seus processos educativos. Sugerir que o problema está no fato destes processos
difundirem “uma visão racista do país ignorando por completo a existência do mundo mestiço”, é elevar novamente um
Estado monocultural e uninacional. 
lógica que supera o monismo na definição de “ciência” e “conhecimento”, relacionando os conhecimentos com a
vida mesma, não com o bem-estar individual mas com o “bem viver”: “Será responsabilidade do Estado […]
potencializar os saberes ancestrais para assim contribuir com a realização do bem viver, o sumak kawsay” (Art.
387). 

Sem idealizar os processos emergentes na Bolívia e Equador - processos que, de fato, têm seus problemas
e contradições -, vale a pena destacar a diferença que marcam com as re-formas anteriores de ambos países e
com as políticas educativas vigentes na região, e as possibilidades que oferecem para fazer avançar apostas,
processos e projetos de interculturalidade crítica. Uma interculturalidade crítica com um afã descolonial.  

3. Interculturalidade crítica e práxis descolonial 

Como vimos argumentando, o enfoque e a prática decorrentes da interculturalidade crítica não são
funcionais ao modelo societal vigente, mas em verdade questionadores sérios dele. Enquanto a interculturalidade
funcional assume a diversidade cultural como eixo central, apontando seu reconhecimento e inclusão dentro da
sociedade e Estado nacionais (uni-nacionais por prática e concepção) e deixando de fora os dispositivos e
padrões de poder institucional-estrutural – os que mantêm a desigualdade -, a interculturalidade crítica parte do
problema do poder, seu padrão de racialização e a diferença que tem sido construída em função dele. O
interculturalismo funcional responde a e parte dos interesses e necessidades das instituições sociais dominantes;
a interculturalidade crítica, pelo contrário, é uma construção de e a partir das gentes que têm sofrido um histórico
de submissão e subalternização. 

Esta construção “a partir de baixo” se evidencia de maneira particular no contexto equatoriano, no qual a
interculturalidade é conceito, aposta e projeto cunhado e significado pelo movimento indígena, e princípio
ideológico de seu projeto político que - desde os anos 90 – vem tocando a transformação radical das estruturas,
instituições e relações existentes. O fato de que seu sentido provenha deste movimento, pensado não somente
para ele mas para o conjunto da sociedade é significativo, tanto pela diferença que marca com o projeto
hegemônico dominante e sua ideia de que os indígenas só se preocupam consigo mesmos, como pela aposta,
proposta e projeto distintos que sugerem. São eles que ampliam e reúnem “em aliança” setores que, de igual
forma, buscam alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela
transformação social como pela criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes. Pensada desta
maneira, a interculturalidade crítica não é um processo ou projeto étnico, nem tampouco um projeto da diferença
em si. Melhor, como argumenta Adolfo Albán (2008), é um projeto que aponta à re-existência e à vida mesma, em
direção a um imaginário “outro” e um agenciamento “outro” de con-vivência - de viver “com”- e de sociedade.  

Lembrar que a interculturalidade crítica tem suas raízes e antecedentes nas discussões políticas postas em
cena pelos movimentos sociais, sublinha seu sentido contra-hegemônico, sua orientação com relação ao
problema estrutural-colonial-capitalista, e sua ação de transformação e criação. O grupo de trabalho do Foro
Latinoamericano de Políticas Educativas-FLAPE Colombia também faz essa lembrança: 
 

Nesta tradição [dos movimentos sociais], a interculturalidade aparece como parte do discurso político e
reivindicativo de populações afetadas pelo desenvolvimento do capitalismo via despojo da terra, pela
ocupação de seus territórios por colonos portadores de outras tradições e valores culturais, pelo
deslocamento de seus lugares de origem para outros territórios, particularmente as grandes cidades,
onde se estruturam complexos culturais multiétnicos, pluri-regionais, inter-generacionais, de gênero,
de ofício, etc. que apontam desafios difíceis de resolver mediante mecanismos tradicionais da
democracia transformista que caracteriza nosso regime social e político. […] Tem sido a localização
destas lutas [emancipatórias e de resistência dos povos indígenas e afro em América Latina] e de seus
desenvolvimentos nos novos contextos nacionais e internacionais que atualiza a discussão e nos obriga
a precisar seus conteúdos. (Grupo de trabajo FLAPE Colombia, 2005: 2-3) 

Partir do problema estrutural-colonial-racial e dirigir-se à transformação das estruturas, instituições e


relações sociais e à construção de condições radicalmente distintas; a interculturalidade crítica - como prática
política – desenha um caminho muito diferente, que não se limita às esferas políticas, sociais, e culturais, mas que
também se cruza com as do saber, do ser e da vida mesma. Isto é, se preocupa também por/com a exclusão,
negação e subalternização ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados pelas práticas – de
desumanização e subordinação de conhecimentos - que privilegiam a uns em detrimento de outros,
“naturalizando” a diferença e ocultando as desigualdades que se estruturam e mantêm em seu interior. Porém, e
adicionalmente, se preocupa com os seres e saberes de resistência, insurgência e oposição, que persistem apesar
da desumanização e subordinação. 

Assim, seu projeto é necessariamente descolonial. Pretende visibilizar e enfrentar a matriz colonial de
poder -a que Quijano tem nomeado “colonialidade do poder” -, o entrelaçamento histórico entre a ideia de “raça”,
como instrumento de classificação e controle social, e o desenvolvimento do capitalismo mundial (moderno,
colonial, eurocentrado), que se iniciou como parte constitutiva da constituição histórica da América. Como explica
Quijano, “as novas identidades históricas produzidas sobre a base da ideia de raça, foram associadas à natureza
dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho” (2000: 204).  

Esta colonialidade do poder - que ainda perdura – estabeleceu e fixou uma hierarquia racializada: brancos
(europeus), mestiços e, borrando suas diferenças históricas, culturais e linguísticas, “índios” y “negros” como
identidades comuns e negativas. A suposta superioridade “natural” se expressou, como diz Quijano, “numa
operação mental de fundamental importância para todo o padrão de poder mundial, sobretudo em relação às
relações intersubjetivas”; veja-se que as categorias binárias oriente-ocidente, primitivo-civilizado,
irracional-racional, mágico/mítico-científico e tradicional-moderno justificam a superioridade e inferioridade, -
razão e não-razão, humanização e desumanização (colonialidade do ser) -, e supõem o eurocentrismo como
perspectiva hegemônica de conhecimento (colonialidade do saber) (Quijano, 2000: 210-211). É tal operação a que
põe em dúvida, como sugere Césaire, e valor humano destes seres, pessoas que por sua cor e suas raízes
ancestrais, ficam claramente “marcadas” (Césarie, 2006); isto é ao que Maldonado-Torres se refere como “a
desumanização racial na modernidade […], a falta de humanidade nos sujeitos colonizados” que os distancia da
modernidade, da razão e das faculdades cognitivas (Maldonado-Torres, 2007: 133, 144). Como bem disse Bautista,
“O mito racista que inaugura a modernidade, mito que anulou sua pretensão de razão crítica, nunca lhe permitiu
um verdadeiro diálogo com o resto do mundo, apenas o monólogo da razão moderno-ocidental consigo mesma”
(2009)22 .  

Mas também há uma dimensão a mais da colonialidade, pouco considerada e que se enlaça com as
outras três. É a colonialidade cosmológica e da mãe natureza, que tem a ver com a força vital-mágico-espiritual da
existência das comunidades afrodescendentes e originárias-indígenas, ainda presente em muitas sociedades
andinas, mesoamericanas e caribenhas, cada uma com suas particularidades históricas. É a que se fixa na
distinção binária cartesiana entre homem/natureza, categorizando como “não-modernas”, “primitivas” e “pagãs”
as relações espirituais e sagradas que conectam os mundos de cima e de baixo com a terra e com os ancestrais e
orixás como seres vivos. De modo que, pretende soterras as cosmovisões, filosofias, religiosidades, princípios e
sistemas de vida, ou seja, a continuidade civilizatória que não se sustenta simplesmente no ocidental. É esta
dimensão que permite aprofundar o problema existencial ontológico, particularmente dos descendentes africanos,
um problema enraizado não só na desumanização do ser, mas também na negação e destruição de sua
coletividade diaspórico-civilizatória e da filosofia que lhe é própria, como razão e prática de existência. 

Esta matriz quadri-dimensionada da colonialidade evidencia que a diferença, construída e imposta a partir
da colônia até os momentos atuais, não é uma diferença simplesmente assentada sobre a cultura e tampouco é
reflexo de uma dominação enraizada somente em questões de classe, como vem argumentando grande parte da
intelectualidade latino-americana. Mais precisamente, a matriz da colonialidade afirma o lugar central da raça,
racismo e racialização como elementos constitutivos e fundantes das relações de dominação e do capitalismo
mesmo. É neste sentido que falamos da “diferença colonial”, sobre a qual se assenta a modernidade, assim como
a articulação e crescimento do capitalismo global 23 . 

A partir desta perspectiva, a interculturalidade crítica se entende como processo, projeto e estratégia que
intenta construir relações - de saber, ser, poder e da vida mesma - radicalmente distintas. Isto é, utilizando as
categorias de Boaventura de Sousa Santos, um projeto que provoca o questionamento das ausências - de saberes,
tempos, diferenças, etc. – e pensar e trabalhar a partir das emergências que se revelam “através da ampliação
simbólica de pistas ou sinais” da experiência mesma, particularmente a dos movimentos sociais (2005: 172). 

Entender a interculturalidade como processo e projeto dirigido à construção de modos “outros” do poder,
saber, ser e viver, permite ir muito ale dos pressupostos e manifestações atuais da educação intercultural, da
educação intercultural bilíngue ou inclusive da filosofia intercultural. É argumentar não pela simples relação entre
grupos, práticas ou pensamentos culturais, pela incorporação dos tradicionalmente excluídos dentro das
estruturas (educativas, disciplinares ou de pensamento) existentes, ou somente pela criação de programas
“especiais” que permitam que a educação “normal” e “universal” siga perpetuando práticas e pensamentos
racializados e excludentes. 

22
Rafael Bautista, “Bolivia: del Estado colonial al Estado Plurinacional”, documento inédito, La Paz, 25 de janeiro de 2009. 
23
Ver: Mignolo, 2003. 
É assinalar a necessidade de visibilizar, enfrentar e transformar as estruturas e instituições que
posicionaram de modo diferenciado grupos, práticas e pensamentos dentro de uma ordem e lógica que, por sua
vez e ainda, é racial, moderno-ocidental e colonial. Uma ordem em que todos temos sido, de uma forma ou outra,
partícipes. Assumir esta tarefa implica um trabalho de orientação descolonial, voltado ao rompimento das cadeias
que ainda estão nas mentes, como dizia o intelectual afrocolombiano Manuel Zapata Olivella, desescravizar as
mentes, como dizia Malcolm X, e desaprender o aprendido para voltar a aprender, como argumenta o avô do
movimento afroequatoriano Juan García. Um trabalho que procura desafiar e derrubar as estruturas sociais,
políticas e epistêmicas da colonialidade, e alentar novos processos, práticas e estratégias de intervenção para
criticamente ler o mundo, como dizia Freire, e para compreender, (re)aprender e atuar no presente. 

Por isso, a interculturalidade crítica deve ser entendida como uma ferramenta pedagógica, que põe em
questionamento contínuo a racialização, subalternização e inferiorização e seus padrões de poder, torna visíveis
maneiras distintas de ser, viver e saber, e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que
não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e
respeito, mas que também – por sua vez – alentam a criação de modos “outros”24 de pensar, ser, estar, aprender,
ensinar, sonhar e viver, que cruzam fronteiras. A interculturalidade crítica e a descolonialidade, neste sentido, são
projetos, processos e lutas -políticas, sociais, epistêmicas e éticas - que se entrelaçam conceitual e
pedagogicamente, alentando uma força, iniciativa e agência ético-moral que fazem questionar, transtornar,
sacudir, rearmar e construir. Esta força, iniciativa, agência e suas práticas assentam as bases do que eu chamo
pedagogia descolonial25 . 

De fato, estas perspectivas se aliam com as da chamada pedagogia crítica, iniciada por Paulo Freire nos
anos 60 e retomada por muitos educadores e ativistas-intelectuais do mundo até os anos 90, quando se iniciou
seu declínio. Isto coincide com o auge do projeto neoliberal, a quase desaparição de uma agência e projeto da
esquerda, e o conservadorismo crescente das universidades – incluindo das ciências sociais e humanas 26 -, assim
como da instituição de educação em sua totalidade. Mas não ficam simplesmente neste legado, interessando-se,
antes, em estender, ampliar e aprofundar a partir de uma postura descolonial27 . Neste sentido, e diante das
mudanças hoje ocurridas na América Latina e no Caribe, parece essencial tomar seriamente o chamado feito por
Franz Fanon - intelectual afro-martinicano muito importante no pensamento de Freire – a uma “pedagogia para
construir uma nova humanidade questionadora” (Fanon, 1968). 

24
Falar de modos “outros” é tomar distância das formas de pensar, saber, ser e viver inscritas na razão
moderno-ocidental-colonial. Por isso, não se refere a “outros modos”, nem tampouco a “modos alternativos”, mas àqueles
assentados sobre as histórias e experiências da diferença colonial. No início do século VI, como parte da expansão
imperial/colonial nas Américas, estas histórias e experiências marcam uma particularidade do lugar epistêmico - um lugar de
vida -, que recusa a universalidade abstrata. Ver: Mignolo, 2003. 
25
Ver: Walsh, 2008; en prensa: Walsh, 2009. 
26
Ver: Lander, 2005: 35-69. 
27
Suprimir o “s” e nomear descolonial ou de-colonial não é promover um anglicismo. Pelo contrário, é marcar uma distinção
com o significado em castelhano do “des”. Não pretendemos simplesmente desarmar, desfazer ou reverter o colonial, ou
seja, passar de um momento colonial a outro não-colonial, como se fosse possível que os padrões e suas pegadas desistam de
existir. A intenção, portanto, é sublinhar e provocar um posicionamento - uma postura e atitude contínua - de transgredir,
intervenir, in-surgir e incidir. O de-colonial denota, então, un camonho de luta contínuo no qual podemos identificar,
visibilizar e alentar “lugares” de exterioridade e construções alternativas. Ver Walsh, 2009.  
Nos referimos a uma práxis pedagógica crítica, intercultural e descolonial, que pretende pensar não só “a
partir” das lutas dos povos historicamente subalternizados, mas também “com” sujeitos, conhecimentos e modos
distintos de estar, ser e viver, dando um giro à uninacionalidade e monoculturalidade fundantes da empresa
educativa e sua razão moderno-ocidental-capitalista, para dar centralidade à vida e, assim, ao trabalho ainda
incompleto da humanização e descolonização. 

Como dizia Fanon, “A descolonização que se propõe a mudança da ordem do mundo é […] um programa
de desordem absoluta […] um processo histórico […] sugerido por novos homens, uma nova língua, uma nova
humanidade" (1961, 2000: 30-31). Este é o desafio e projeto para que aponta a interculturalidade crítica. Desafio e
projeto que devem provocar uma série de considerações, preocupações e questionamentos diante das atuais
conceitualizações, práticas, e políticas educativas. 

Educar para quê? Com que propósitos e sob que visão de pais e sociedade? Estas perguntas, entre outras,
constituem o contexto deste artigo e da organização deste seminário; assumi-las a partir de uma postura
consciente, de compromisso e de práxis para além dos debates destes dias e dentro do cotidiano é empreender
uma caminhada até novos desígnios históricos e horizontes descoloniais. 

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