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Universidade Federal da Bahia

Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade

Retomando a identidade – a rádio Kiriri FM como instrumento de produção e preservação da


cultura e identidade indígena no norte da Bahia.
José Balbino de Santana Junior

Artigo apresentado como requisito parcial


da disciplina Cultura e Identidade, do Pós-
Cult, sob orientação da professora Marilda
Santana.

Salvador
2017

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RESUMO

Este artigo trata da implementação, desenvolvimento e manutenção da Rádio Kiriri FM, rádio livre
instalada na aldeia Kiriri de Mirandela, município de Banzaê, Bahia. Sua intenção é analisá-la – sob
à luz dos atuais questionamentos das teorias das ciências humanas – como projeto de suporte ao
processo de retomada territorial integrado ao restabelecimento e preservação de aspectos
identitários da cultura indígena Kiriri.

Palavras chave: cultura, kiriri, rádio, glissant, hall.

O indígena na história oficial brasileira

Para pensar nas identidades indígenas no Brasil é interessante reconhecer a medida forçada,
a inferência sobretudo estatal, com o apoio de diversas áreas da produção intelectual brasileira, na
construção de uma ideia de “índio” que também desse suporte à concepção de uma identidade
nacional para o país. Esses movimentos são mais evidentes a partir do Estado Novo, onde o Estado
brasileiro assume declaradamente a iniciativa de reforço da ideia de estado-nação baseado em mitos
que analisaremos um pouco mais a frente nesta escrita. Nesse primeiro momento, contudo, é valioso
o esforço em reconhecer as primeiras ideias sobre as comunidades indígenas que vigoraram no
Brasil.
Durante muito tempo a história brasileira vem sendo documentada sem a presença da autoria
indígena. As primeiras propostas de sistematização da história do Brasil não consideraram, em
nenhuma medida, a possibilidade de inclusão da história das comunidades indígenas como elemento
vivo e fundamental do que é a história desse país. A colonização portuguesa terminou por
determinar como parâmetro principal da escrita da história do Brasil o processo civilizatório
europeu, sua característica matemática sua herança física no tratamento da vida humana e o registro
escrito como grande materializador de tudo isso. É a partir dessa lógica que começa a total exclusão
das comunidades indígenas como autoras (da) na história brasileira, sendo-lhes reservadas posições
bem demarcadas: povo sem história e sem futuro, reduzidos à “meros objetos de ciência que,
quando muito, podiam lançar alguma luz sobre as origens da história da humanidade, como fósseis
vivos de uma época remota.”(MONTEIRO, 2001, p.3)
Foi destinado ao indígena brasileiro portanto o tratamento via antropologia, que
frequentemente essencializou essas comunidades atribuindo-lhes estagnação no tempo e no espaço,

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determinando um estereótipo, e congelando até mesmo a possibilidade de transformação de suas
práticas sociais, ou de sua cultura. A ideia de que o indio deixa de ser indio quando se relaciona
com a cultura ocidental ainda é muito forte e presente no senso comum brasileiro.

O índio do estado novo: o plano da identidade nacional

Durante a era Vargas, entretanto, esse cenário ganha novos elementos. A ideia do
fortalecimento do nacionalismo e o parto de um estado-nação, aliado a um movimento continental
de reconhecimento da contribuição indígena transforma o discurso hegemônico e, apesar de
continuar ausente como autor de uma história de formação do Brasil, o índio adquire relevância
dentro do contexto de formação da identidade nacional. O dia do índio, a vasta literatura produzida
sobre a participação indígena na formação da identidade brasileira produzida com endosso ou
reconhecimento (tácito) do Estado brasileiro, passam a alterar, em certa medida, a lógica
eurocêntrica predominante nos discursos oficiais proferidos sobre as comunidades indígenas.
Fundamental é perceber que não há aqui qualquer indício um movimento de reparação ou
democratização com o reconhecimento do índio como componente da identidade nacional. O
contexto exterior ao Brasil não oferecia, nem de longe, posição confortável diante das teorias
sociais estabelecidas na Europa àquela época, colocando o país e sua elite em zona de risco, por ser
impossível sustentar um discurso de branquitude e pureza européia. Aqui, serviu o índio como
instrumento de uma possível exaltação à identidade brasileira, sem que isto representasse, de fato,
qualquer tipo de inclusão dessas comunidades num estado de democracia. Nos auxilia nesse
entendimento a pesquisa realizada por Seth Garfield, que trata da visão institucional da época
revelada pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI):

Com sua esmagadora população inter-racial, o Brasil não poderia abraçar com
credibilidade uma ideologia que depreciasse todos os não-europeus. Os brasileiros
não-brancos deveriam não só ser defendidos mas aceitos. O SPI afirmava que, ao
se falar de raça, "inferior" era sinônimo de "atrasado", substituindo assim a noção
de inferioridade racial inerente pela de aperfeiçoamento racial. Defendendo a
estirpe do índio brasileiro, o SPI apontou: "A alma indígena está sujeita às mesmas
paixões a que está sujeita a alma européia, mostrando, porém, superioridade na
temperança, na energia paciente e até, digamos a verdade, na justiça e na caridade"
(Garfield, 2000).

São ideias completamente adequadas a concepção de Benedict Anderson (1983) quando


entende que a identidade nacional é uma “comunidade imaginada”. A partir dessa assertiva
percebemos que a constituição de uma identidade nacional está baseada “não apenas em instituições
culturais, mas também em símbolos e representações” (HALL, 2005. p. 50), ou seja, a ideia –

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produzida oficialmente – de “indio” naquele momento serviu também para compor o embrião do
que viria a se consolidar como identidade nacional brasileira.
Essa idealização do índio, contudo, escondia também a velha ideia de miscigenação ou
branqueamento dessas comunidades. Através do reconhecimento do elemento indígena como
constituinte oficial de uma identidade nacional, se tornava também mais viável a assimilação dessas
comunidades, obviamente sob uma perspectiva do embranquecimento, tendo a miscigenação como
princípio de produção de uma identidade fundamentalmente branca. A ambiguidade desse projeto é
revelada por movimentações básicas, como, por exemplo, a total ausência da história dessas
comunidades na elaboração de uma história oficial brasileira, e pelo fato de sua colaboração ser
reconhecida sobretudo a partir de atos consonantes com o processo civilizatório proposto e
referenciado pelo colonizador europeu.

Identidade nacional, práticas globais e supressão do local: quem pode (e como) contar sua
própria história.

Notamos, a partir do exemplo brasileiro, a forma geral como as identidades nacionais podem
se constituir: elas suplantam as diferenças dos indivíduos e das comunidades a que pertencem em
processos, geralmente violentos de unificação identitária. A desconsideração de aspectos como
classe, gênero e raça – termo que, cientificamente no campo biológico já é desacreditado, mas
socialmente continua a produzir efeitos – é a força motriz da produção de conflitos, “do jogo de
poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas” (HALL, 2005
p. 65), e impossibilita a constituição pacífica de uma identidade que abarque tantos entes distintos.
Essa breve análise do tratamento oficial dedicado às comunidades indígenas nos ajuda
também a entender o desenrolar de auto-produção, preservação e profusão dessa, ou melhor, dessas
identidades indígenas, movimento recente mas que descende obviamente de uma ampla resistência
implementada por essas comunidades em várias partes do país. Hoje reconhecemos que, a partir da
atitude própria de um movimento indígena organizado que se fortalece a partir da década de 1970, a
partir prioritariamente de lutas por reconhecimento de seus territórios, surgem novas abordagens
práticas e formulações teóricas que abrem espaço inclusive para a teorização da cultura de autoria
indígena, que faz uso de uma cosmovisão própria e autêntica para ler e escrever o Brasil e o mundo.
A produção da identidade Kiriri se insere nesse contexto. A ideia de um território Kiriri se
desenvolve desde o final do século XVIII, período em que a comunidade recebe uma doação da
coroa portuguesa de uma área de aproximadamente 12.320 hectares. Com um amplo histórico de
conflitos na área envolvendo posseiros, a tutela estatal e fazendeiros os indígenas conseguem a

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demarcação das terras no início da década de 80. Entretanto essa demarcação não representou o
exercício do direito ao território que só viria a se consubstanciar em meados da década de 90 com o
processo de retomada, onde os Kiriri expulsam os não-indígenas do seu território, passando a
ocupar o espaço, transformado por posseiros e colonos, que implementaram suas formas de
construção e organização espacial.
O período de estabelecimento do povo Kiriri em seu território coincide com amplas
transformações mundiais que se relacionam diretamente com o estabelecimento também das
identidades culturais. A globalização como fenômeno intensificado pela profusão dos meios de
comunicação mundiais, sobretudo a internet e seu interacionismo transforma totalmente os
contextos locais produzindo a chance dos indivíduos transitarem entre identidades na medida em
que caminham por um mundo onde distâncias espaciais e temporais entram em colapso. É dada a
largada a uma ampla politização da subjetividade e, nesse sentido, é interessante perceber também
como reagem algumas comunidades a esta ampla abertura cultural possibilitada sobretudo pelos
novos meios de comunicação. São eles os responsáveis pela ampliação do acesso à novas imagens,
personagens e condutas. Como nos subsidia Stuart Hall:

As pessoas que moram em aldeias pequenas, aparentemente remotas, em países


pobres, do “Terceiro Mundo”, podem receber, na privacidade de suas casas, as
mensagens e imagens das culturas ricas, consumistas, do Ocidente, fornecidas
através de aparelhos de TV ou de rádios portáteis, que as prendem à “aldeia global”
das novas redes de comunicação. (HALL, 2005. p.74)

A desestabilização da influência de espaço e tempo na vida das pessoas transforma seu


repertório e o acesso às representações. A grande variedade de visões e o contato com experiências
que, em outro (antigo) mundo eram completamente distantes, passam a influenciar o imaginário de
muita gente, inclusive pessoas que estavam isoladas em suas comunidades, inseridas em sistemas de
representação e formulação simbólica mais restrito.
Para comunidades tradicionais esse movimento representou a possibilidade também do
amplo reconhecimento de lutas, numa esfera maior do que suas vivências localizadas. Para o
“índio” brasileiro, foi por demais importante reconhecer outras comunidades autóctones espalhadas
no mundo, e sua luta motivada, em geral, pelas mesmas razões que sempre lutaram aqui no Brasil:
reconhecimento da cultura e território. E, apesar de um movimento de instauração de uma
homogeneização cultural fundada no exercício, ou, porque não dizer, de uma cultura do consumo,
essas comunidades conseguiram identificar um processo de resistência em vigência em todo mundo,
que as aproximou e difundiu uma ideia de poder deter ou criar seus próprios mecanismos de
produção de representações, totalmente favorecida pela inserção do digital como ferramenta de

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produção de conteúdo.
Esse nos parece um ponto crucial na pesquisa, o surgimento do/a indígena produtor/a de
conteúdo, ou, pelo menos, produtor/a de uma ideia sobre si próprio/a, e detentor/a de meios de
publicação e espalhamento dessas ideias, e, no atual contexto brasileiro, a rádio livre vem se
confirmando como uma das principais ferramentas de comunidades, tradicionais ou não, para a
profusão de ideias, formulação de símbolos e afirmação de auto-representações.

Rádio indígena Kiriri, experimento de mídia livre

Desde a década de 30, o país experimenta transmissões de rádio não-oficiais, contudo, o


movimento de rádios livres, de maneira organizada começa a ganhar corpo na década de 70,
fortalecendo-se durante os anos 80. Mauro Sá Rêgo Costa nos amplia esta compreensão quando diz
que “o movimento no Brasil inspirou-se nos movimentos na Itália (anos 70) e na França (anos 80),
como projeto de ampliar a comunicação democrática e sair do controle principalmente comercial,
com que esta mídia estava organizada no país”. (COSTA, 2012, p.03). Apesar do grande potencial
popular esse movimento permaneceu durante muito tempo dentro de universidades, tendo como
representantes unidades como a Rádio Muda de Campinas (sediada na Unicamp) ou a Rádio
Interferência (UFRJ – RJ).
No ano de 2012 demos os primeiros passos na direção da constituição de uma rádio livre
indígena, a Kiriri FM. Através do programa BNB de cultura foi financiada a primeira edição de
oficinas e aquisição de equipamento para a rádio, que fora instalada no centro da aldeia, num espaço
destinado a implementação do ponto de cultura da Comunidade Kiriri. Na época, algumas questões
saltavam: o que levava (e até hoje ainda leva) uma parcela significativa daquela comunidade
considerar a implementação de uma rádio própria? Que série de acontecimentos em sua história,
que elementos de sua tradição os moveu em direção à um veículo de comunicação popular e livre?
Que aspectos daquela etnia estariam implícitos a partir da fundação da rádio em sua produção e
programação? Hoje é possível perceber que boa parte dessas questões relacionam-se com a
produção auto-referenciada de um representação e de um universo simbólico Kiriri.
A opção pela Rádio Kiriri FM como mecanismo de preservação de sua cultura ganha
relevância num universo onde os processos formais de produção científica são penetrados pelo uso
de tecnologias da comunicação e informação e, literalmente, possibilitam a expressão de novas
visões o e o registro de novos discursos de uma maneira menos dura sobre a qual foi erigido
historicamente o conhecimento científico no campo das ciências sociais.
Em 2012 iniciamos o projeto Rádio Kiriri FM, na aldeia de Mirandela, município de

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Banzaê, Bahia. A ideia inicial era implementar uma rádio indígena onde membros da comunidade
Kiriri fossem habilitados a compreender tanto o processo técnico de montagem, produção de
programas, gravação e veiculação dos mesmos, como promover a reflexão a cerca de temas como
identidade, preservação cultural, desenvolvimento, dentro da própria perspectiva indígena
transformando-os em conteúdo daquela produção. Já a partir das primeiras atividades percebi o
quão vasto e complexo era o tratamento daqueles temas. Aquelas pessoas, seus corpos, sua história,
a história dos que se foram na luta pelo território. Tudo ali, amalgamado, recalcado. A identidade
em reconstituição, a vontade de preservar os costumes dialogando e, muitas vezes, se chocando com
a modernidade do contato com “os brancos”. Grande desafio era transformar aquele contato
conosco, equipe de implementação da rádio, num mecanismo que atendesse também a expectativa
da comunidade de uso do veículo para manutenção e espalhamento de seus costumes.
De início vieram as questões identitárias, e, nesse sentido nos ajudou muito o pensamento do
poeta e teórico martinicano Édouard Glissant. Glissant, que, em seu capítulo cultura e identidade
nos oferece uma visão crítica a cerca da constituição de comunidades no mundo referenciado
inicialmente pelo paradigma sobre o pensamento humano trabalhado por Deleuze e Guattari em seu
livro “Mil platôs”: pensamento de raiz única e pensamento rizomático. Glissant, atrela esses
princípios à uma perspectiva sobre comunidade humanas vinculando o pensamento de raiz única à
comunidades que classifica como atávicas, e o pensamento rizomático às comunidades compósitas.
Partindo desses conceitos, Glissant apresenta a comunidade atávica como aquela onde um
pensamento (e sua consequente expressão comportamental) mais fechado é preponderante. Segundo
ele, este tipo de comunidade se propõe à busca de uma raiz única, privando-se da relação com
outros grupos, outras comunidades no processo de construção de sua identidade. Para ele, essas
comunidades fundamentam seu processo identitário em mitos fundadores que atuam a partir da
ideia de gênese-filiação que cria a legitimidade ou justifica a ocupação-posse de um espaço que a
partir dessa legitimação torna-se território. É o mito fundador que estabelece aquela comunidade
num determinado espaço e pode também justificar sua expansão quando cria a posição da
comunidade no mundo, seu estabelecimento perante o que há. Ainda nesse caminho, Glissant trata a
questão da produção da história nas comunidades atávicas como algo intrinsecamente ligado à
produção de documentos, de uma literatura épica que determina a construção autoreferenciada de
uma identidade naquele e para aquele grupo.
O contraponto à comunidade atávica, para Glissant, é a comunidade compósita. Ela está
atrelada a uma maneira rizomática de pensar e agir, ou seja, enquanto o atavismo de certos grupos
objetivam a profundidade, esquivando-se do que há ao seu redor, dentro do processo de construção
identitária, as comunidades compósitas se estabelecem nas relações ao invés da gênese. Neste

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sentido percebe-se um movimento de expansão e atenção multi-lateral, esses grupos voltam-se para
o que há ao seu redor e um sentido grande de incorporação nos indica a miscigenação, diversidade e
valorização da intersubjetividade, no processo de formação da identidade. Nas palavras do próprio
Glissant:
Quando abordei essa questão, eu me baseei na distinção, feita por Deleuze e
Guattari, em um dos capítulos de Mil Platôs (que foi publicado primeiramente em
formato de bolso, intitulado Rizomas), assinalam essa diferença. Esses autores
propõem, do ponto de vista do funcionamento do pensamento, o pensamento da
raiz e o pensamento do rizoma. A raiz única é aquela que mata à sua volta,
enquanto o rizoma é a raiz que vai ao encontro de outras raízes. Apliquei essa
imagem ao princípio de identidade, e o fiz também em função de uma
“categorização das culturas” que me é própria, uma divisão das culturas em
culturas atávicas e culturas compósitas. (GLISSANT, 2005 p. 71)

Dentro desse processo Glissant nos traz outro conceito chave: o rastro-resíduo. Partindo
desta ideia o autor nos revela a existência de nuances ou elementos ancestrais do nosso imaginário
que, por motivos diversos, não se expressam de maneira direta, mas permeiam e se revelam em
nosso cotidiano de ações de maneira involuntária, influenciando a construção do ser e suas relações.
Édouard Glissant demonstra o desejo de que se abra espaço para esse elemento recalcado das
identidades, para que se produza o efeito de uma construção identitária complexa já que o recalque,
o fechamento e o ocultamento do rastro-resíduo se dá, muitas vezes por uma histórica pressão social
discriminatória e opressora. Poeticamente Glissant nos fala sobre o efeito do rastro-resíduo em
nossas identidades, em nossas vidas:
O rastro / resíduo está para a estrada assim como a revolta para a injunção, e a
jubilação para o garrote. Ele não é uma mancha de terra, um balbucio de floresta,
mas a inclinação completamente orgânica para uma outra maneira de ser e de
conhecer; é a forma que é passagem para esse conhecimento. Não seguimos o
rastro / resíduo para desembocar em confortáveis caminhos; ele devota-se à sua
verdade que é a de explodir, de desagregar em tudo a sedutora norma.
(GLISSANT, 2005, p. 83)

A apresentação das classificações desenvolvidas por Glissant nos provoca quando pensamos
nos movimentos da comunidade Kiriri, da aldeia Mirandela em direção a constituição de uma rádio
própria. Partindo de um primeiro olhar, poderíamos pensar essa comunidade como uma comunidade
atávica, levando em consideração inicialmente o seu processo de estabelecimento num território,
processo conflituoso, e que, dentro da perspectiva ou, porque não dizer, dentro da cosmovisão
indígena Kiriri, é produzido sim a partir de mitos fundadores, que fincam as raízes daquele povo
naquele espaço.
Seu anseio pela preservação cultural, a ideia de retorno às raízes, frente ao seu
desenvolvimento histórico também nos apresenta um enquadramento atávico. Kiriris que se casam

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com não indígenas, por exemplo, não podem residir nas aldeias. Todos são incentivados a usar
trajes tradicionais kiriri no cotidiano da aldeia e o trabalho comunitário é obrigação durante a
jornada semanal de todos os adultos. Percebemos também, na própria ideia de criação e
desenvolvimento de uma rádio indígena – a ideia parte da própria comunidade, que se liga a um
grupo de pessoas de fora para viabilizar o projeto – um movimento compósito com finalidades
atávicas: busca de sua raiz e preservação da cultura num estado anterior, sensação e sentido de
retorno na construção da ideia-projeto. Ora, não nos parece portanto tão tranquilas as classificações
propostas por Glissant, no momento em que reconhecemos que determinadas comunidades podem
sim revelar em seu processo de construção identitária, movimentos atávicos e compósitos (por
vezes simultâneos!), numa jornada onde a contradição muitas vezes foi a chave da sobrevivência de
um povo tradicional.
Por fim, Glissant nos traz o conceito de mundo-caos de uma maneira otimista: para ele, a
presença de culturas atávicas, singulares, em um território (em disputa ou como vizinhos) não pode
representar mais a necessidade de um conflito estabelecedor de preponderância de uma sobre a
outra. Sua reflexão nos indica também a necessidade de uma nova construção da historicidade
desses grupos, de uma nova literatura épica, que seja capaz de dialogar com as diferentes matrizes
identitárias sem que se torne um instrumento de essencialização 1 do vizinho. Nesse sentido, propõe
o direito à manifestação dos rastros-resíduos e a valorização de um mundo complexo, caótico,
fundado nas relações e que considere muito mais o “estar sendo” do que o “ser” - que assuma como
impossível a padronização e a totalidade no que diz respeito ao universo das identidades.
Mais uma vez os estudos sobre a Rádio Kiriri FM são tocados pelo pensamento de Glissant.
A busca pela raiz da identidade construída numa história de conflito é propriamente um processo de
reorganização cultural-identitária, e o investimento num veículo de comunicação como o rádio
pode, de certa forma, ser compreendido como a construção de uma nova literatura épica. Se
expandirmos a noção da produção de texto e compreendermos a produção radiofônica também
como um texto a ser lido podemos ativar a leitura de um texto altamente complexo, diverso, que
insere elementos do imaginário indígena e exteriores, um texto que sugere o mundo-caos
apresentado por Glissant.

Por leituras da diversidade, repletas de respeito

Encerro este artigo reconhecendo os limites dessa escrita entendendo as impossibilidades

1 Aqui refiro-me ao conceito de essencialização trabalhado por Edward Said em sua obra Orientalismo.

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que a própria posição de pesquisador me apresenta. Nesse sentido é importante acreditar na
presença, como coloca Donna Haraway (1995), como elemento fundamental na leitura e no
estabelecimento de visões de mundo. Ao propor uma leitura baseada na presença, e não no
relativismo nos lançamos com todo nosso repertório, com toda a construção que nos antecede à
compreensão do mundo, com a inferência de nossas questões sem a lacuna da dúvida, sem a frieza
da falta de posicionamento que o relativismo por vezes nos indica. Reconhecendo a força das
palavras e a performatividade dos discursos, me proponho, durante a produção desse artigo, a
observar características do processo de formação e desenvolvimento da Rádio Kiriri FM do lugar de
colaborador direto, e, ao mesmo tempo, do lugar de pesquisador comprometido com o retorno
àquela comunidade, partindo da premissa de que “a cie ncia e um texto contesta vel e um campo de
poder; o conteu do e a forma” (HARAWAY, 1995. p.11), daí a importância da produção de artigos,
textos, como esse.
A possibilidade de contar a própria história, de produzir suas próprias representações nos
parece portanto a grande questão abordada aqui. De maneira geral, é importante reconhecermos o
valor de uma representação produzida, compartilhada, dentro de um círculo de segurança, a partir
da presença de quem atua e participa das questões da própria comunidade. Apreender a força das
palavras, que nesse caso se debruçam no papel, será fundamental na desconstrução de
essencializações que insistem em se propagar, mantendo à margem, à sombra do positivismo e
objetividade do mundo ocidental, visões de mundo e maneiras de existir que ainda têm muito a nos
dizer sobre o que é e o que pode ser a humanidade.
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BIBLIOGRAFIA

GLISSANT, Édouard. Introdução à uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJF, 2005

HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

GARFIELD, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-nação na era
Vargas. Revista da História Brasileira. Versão Online. São Paulo: Associação Nacional de História,
2000.

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MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e historiadores. Estudos de história indígena e do
indigenismo. 2001

MACHADO, Arlindo; MAGRI, Caio; MASAGAO, Marcelo. Rádios Livres a reforma agrária no
ar.São Paulo, Brasiliense, 1986.

HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para ofeminismo e o privilégio da


perspectiva parcial”. (trad. Mariza Corrêa) In:Cadernos Pagu (5) 1995.

COSTA, Mauro Sá; HERMAN JR, Wallace. Rádios livres, rádios comunitárias, outras formas de
fazer rádio e política. Revista Lugar comum, n. 17, 2012.

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