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O conceito e a vida1

Georges Canguilhem

I
Interrogar-se sobre as relações entre o conceito e a vida é, se não o especificamos
de antemão, engajar-se em tratar ao menos duas questões, se entendermos por vida a
organização universal da matéria, o que Brachet chamava “a criação das formas”, ou a
experiência de um vivente singular, o homem, consciência da vida. Por vida, pode-se
entender o particípio presente ou o particípio passado do verbo viver, o vivente [vivant]
ou o vivido [vécu]. A segunda acepção é, para mim, comandada pela primeira, que é
mais fundamental. É somente no sentido segundo o qual a vida é a forma e o poder do
vivente que eu gostaria de tratar as relações entre o conceito e a vida.
Pode o conceito, e como, nos prover o acesso à vida? A natureza e o valor do
conceito estão aqui em questão, tanto quanto a natureza e o sentido da vida. Procedemos
nós, no conhecimento da vida, da inteligência à vida, ou vamos da vida à inteligência?
No primeiro caso, como a inteligência se encontra com a vida? No segundo caso, como
pode ela se subtrair à vida? E, enfim, se o conceito era a própria vida, seria preciso
perguntar-se se ele está apto ou não a nos prover ele próprio o acesso à inteligência.
Tratarei, primeiramente, das dificuldades históricas da questão. Tratarei, em
seguida, da maneira segundo a qual a biologia contemporânea poderia nos ajudar a
colocar a questão de modo novo.
* * *
Pode parecer surpreendente que tenhamos nos interrogado sobre as relações
entre o conceito e a vida. A teoria do conceito e a teoria da vida não possuem a mesma
idade, o mesmo autor? E esse mesmo autor não ata uma e outra a uma mesma fonte?
Aristóteles não é ao mesmo tempo o lógico do conceito e o sistematizador dos seres
vivos? Quando Aristóteles, naturalista, busca na comparação das estruturas e dos modos
de reprodução dos animais um método de classificação que permita a constituição de
um sistema segundo o modo escalar, não é isso que fará importante esse modelo na
composição de sua lógica? Se a função de reprodução desempenha um papel tão
eminente na classificação aristotélica, é porque a perpetuação do tipo estrutural, e por

1
Texto de duas aulas dadas em Bruxelas, na École des Sciences philosophiques et religieuses da Faculté
universitaire Saint-Louis, em 23 e 24 de fevereiro de 1966.
conseguinte da conduta, no sentido etológico do termo, é o signo mais nítido da
finalidade e da natureza. Essa natureza do vivente, para Aristóteles, é uma alma. E essa
alma é também a forma do vivente. Ela é ao mesmo tempo sua realidade, a ousia, e sua
difinição, logos. Portanto, o conceito do vivente é afinal, segundo Aristóteles, o próprio
vivente. Há talvez mais do que uma simples correspondência entre o princípio lógico de
não-contradição e a lei biológica de reprodução específica. Porque um ser qualquer não
pode nascer de outro ser qualquer, também não é possível afirmar qualquer coisa de
qualquer coisa. A fixidez da repetição dos seres coage o pensamento à identidade da
asserção. A hierarquia natural das formas no cosmos comanda a hierarquia das
definições no universo lógico. O silogismo conclui pela necessidade em virtude da
hierarquia que faz da espécie dominada pelo gênero um gênero dominante com relação
a uma espécie inferior. O conhecimento é, então, antes o universo pensado na alma do
que a alma pensando o universo. Se a essência de um ser é sua forma natural, isso
conduz ao fato de que os seres, sendo o que eles são, são conhecidos como são e por
aquilo que são. O intelecto se identifica com os inteligíveis. O mundo é inteligível e os
viventes em particular o são, porque o inteligível está no mundo.
Mas uma primeira e grande dificuldade aparece na filosofia aristotélica quanto
às relações entre o conhecer e o ser, entre a inteligência e a vida em particular. Quando
se faz da inteligência uma função de contemplação e de reprodução, se lhe damos um
lugar em meio às formas, ainda que esse lugar seja eminente, situamos, quer dizer
limitamos, o pensamento da ordem a um lugar na ordem universal. Mas como pode o
conhecimento ser ao mesmo tempo espelho e objeto, reflexão e reflexo? A definição do
homem como ζωον λογιχóν, animal racional, se ela é uma definição de naturalista (do
mesmo modo que a definição de Lineu do lobo como canis lúpus ou do pinho marítimo
como pinus marítima), tornam a fazer da ciência, e da ciência da vida como de toda
ciência, uma atividade da própria vida. Somos impelidos a nos perguntar qual é o órgão
dessa atividade, e por conseguinte conduzidos a estimar que a teoria aristotélica do
intelecto ativo, forma pura sem suporte orgânico, opera um descolamento [décollage] da
inteligência e da vida e introduz de fora, θυραθεν diz Aristóteles, como pela porta, no
embrião humano, o poder extranatural ou transcendente de tornar inteligíveis as formas
essenciais que realizam os seres individuais. E assim essa teoria faz da concepção dos
conceitos, ou um caso mais do que humana, ou, ainda que sempre humano, supravital.
Uma segunda dificuldade, que não é senão a primeira tornada manifesta por
meio de uma aplicação ou de uma exemplificação, tende à impossibilidade de dar-se
conta, pela identificação da ciência a uma função biológica, do conhecimento
matemático. Um texto célebre da Metafísica (B, 2, 996, a) diz que as matemáticas não
têm nada a ver com a causa final, o que leva a dizer que há inteligíveis que não são,
propriamente falando, formas, e que a inteligência desses inteligíveis não concerne em
nada a inteligência da vida. Não há portanto modelo matemático do vivente. Se a
natureza é dita por Aristóteles engenhosa, forjadora, modeladora, ela não é, por isso,
assimilável ao demiurgo do Timeu. Uma das mais surpreendentes proposições dessa
filosofia biológica é que a responsabilidade de uma produção técnica não reporta ao
artesão, mas à arte. Não é o médico, é a saúde que cura a doença. É a presença da forma
da saúde na atividade médica que é precisamente a causa da cura. A arte significa a
finalidade não deliberativa de um logos natural. Em um sentido, poderíamos dizer,
meditando sobre o exemplo do médico que não cura porque ele é médico mas porque
ele é habitado e animado pela forma da saúde, a presença do conceito no pensamento,
sob a forma de fim representado como modelo, é um epifenômeno. O antiplatonismo de
Aristóteles é, portanto, também expresso na depreciação dos matemáticos, pois se a vida
for o atributo mesmo de Deus, trata-se antes de depreciar uma disciplina do que de
proibir-lhe o acesso a essa espécie de atividade imanente, pela inteligência da qual, isto
é, pela limitação da qual, o homem pode esperar fazer-se alguma ideia de Deus.
Suponhamo-nos um instante bergsoniano. Essa alusão a um antiplatonismo de
Aristóteles pela proibição feita à inteligência matemática de se introduzir no domínio da
vida, essa proibição nos pareceria não compreender uma certa unidade de inspiração da
filosofia grega, tal como Bergson acreditou aclará-la, expondo-a no capítulo quarto d´A
evolução criadora. Aristóteles, pensa Bergson, chega, em suma, ao ponto de onde
Platão partira: o físico é definido pelo lógico; a ciência é um sistema de conceitos mais
reais do que o mundo percebido; a ciência não é a obra de nossa inteligência, ela é a
geração das coisas.
Cessemos de nos supor bergsonianos para nos espantar com o fato de que
Bergson teria podido, numa mesma condenação de Platão e de Aristóteles, compor uma
certa concepção da vida e uma certa concepção das matemáticas, que ele acreditava
serem ambas fundadas sobre a biologia e sobre as matemáticas de seu tempo, isto é, do
século XIX, enquanto elas estavam, na verdade, ambas atrasadas perante uma revolução
já mais do que começada em biologia e nas matemáticas. Bergson reprova a Aristóteles
a identificação do conceito com a vida na medida em que essa imobilização da vida
contradiz o que ele pensa ser a verdade não-spenceriana do fato da evolução biológica, a
saber: 1º que a vida universal é uma realidade em devir, sob o imperativo de ascensão;
2º que as formas específicas dos seres viventes são apenas a generalização de variações
individuais insensíveis e incessantes, e que, sob a aparência de generalidade estrutural,
generalidade estável, se dissimula a incansável originalidade do devir.
Mas se a cultura de Bergson, autor de A evolução criadora, é considerável, se
essa cultura retém todo o essencial do que o século XIX produziu no domínio da
biologia, se, em 1907, Bergson nos remete a Des Vries e mesmo a Bateson, ele está, no
entanto, muito longe de supor que a teoria mutacionista da evolução já prepara os
espíritos para receber e para assimilar, não a descoberta, mas a redescoberta das leis da
hereditariedade mendeliana, precisamente por Des Vries e Bateson, entre outros.
Bergson escreve A evolução criadora no momento em que a teoria cromossômica da
hereditariedade vem apoiar-se sobre novos fatos experimentais e pela elaboração de
novos conceitos, a crença na estabilidade das estruturas produzidas pela geração. Que
entendamos pelo termo genética a ciência do devir, ou a ciência da geração, isso é
sempre porque é uma ciência antibergsoniana e porque ela dá conta da formação das
formas viventes pela presença, na matéria, do que chamamos hoje uma informação, pela
qual o conceito nos fornece, é necessário dizê-lo, um modelo melhor que o inspira.
Bergson reprova a Platão ter erigido as essências matemáticas em realidade absolutas,
ter seguido a tendência da inteligência que conduz à geometria, isto é, ao espaço, à
extensão, à divisão e à medida, com essa consequência de confundir o que dura com o
que se mede, o que vive com o que se repete, e de ter proposto à posteridade a exatidão
e o rigor como normas da ciência. Mas, ainda que ele fosse inicialmente matemático,
Bergson, menos informado nas matemáticas do que ele o era em biologia, denuncia a
incapacidade das matemáticas de exprimir a qualidade, a alteração e o devir, na época
em que a geometria acaba de desligar seu destino daquele de uma métrica, em que a
ciência das situações e das formas realiza a revolução começada com a geometria
descritiva de Monge e a geometria projetiva de Poncelet, na época em que o espaço se
purifica de sua relação milenar e apenas histórica, portanto contingente, com a técnica
da medida, em suma, na época em que a matemática cessa de ter por um modelo
eternamente válido a geometria do homo faber.
Por consequência, na medida em que a incompatibilidade entre o conceito e a
vida é um tema filosófico que com frequência é jogado [est joué] com o que se pode
chamar o acompanhamento bergsoniano, não parece inútil fazer, desde logo, algumas
reservas sobre a justeza de som do instrumento utilizado. Convenhamos que o estado da
biologia, e o estado das matemáticas, e o estado das relações entre matemáticas e
biologia, não permite hoje uma condenação da concepção aristotélica da vida tão
peremptória quanto pudéramos crê-la no início do século.
No entanto, uma dificuldade do aristotelismo subsistiu concernente ao estatuto
ontológico e gnoseológico da individualidade num conhecimento da vida à base de
conceitos. Se o indivíduo é uma realidade ontológica e não apenas a imperfeição da
realização do conceito, qual condução atribuir à ordem dos seres representados na
classificação por gêneros e espécies? Se o conceito preside ontologicamente a
concepção do ser vivo, a qual modo de conhecimento o indivíduo é suscetível? Um
sistema de formas vivas, se está fundado no ser, tem por correlato o indivíduo inefável.
Mas um plural ontológico de indivíduos, se é dado, tem por correlato o conceito como
ficção. Ou é o universal que faz do individual um vivente e um tal vivente, e a
singularidade é para a vida o que uma exceção é para a regra: ela a confirma, quer dizer,
revela-lhe o fato e o direito, porque é pela regra e contra a regra que a singularidade
aparece, e, podemos quase dizer, explode. Ou é o individual que presta sua cor, seus pés
e sua carne a esse abstrato fantasmático que se chama o universal, por culpa de quem a
universalidade seria para a vida uma maneira de falar dela, quer dizer exatamente, de
não dizer nada dela. Esse conflito de pretensões a estar entre o individual e o universal
concerne a todas as figuras da vida: ao vegetal como ao animal, à função como à forma,
à doença como ao temperamento. É preciso que haja homogeneidade entre todas as
aproximações da vida. Se existem espécies de viventes, existem espécies de doenças dos
viventes; se não existem mais do que indivíduos, não existe mais do que doenças. Se
uma lógica é imanente à vida, todo conhecimento da vida e de seus passos, quer sejam
eles normais ou patológicos, deve se dar por tarefa encontrar essa lógica. A natureza é
então um quadro latente de relações cuja permanência está a descobrir, mas que, uma
vez descoberta, confere às abordagens da determinação, pelo naturalista, ou do
diagnóstico, pelo médico, uma tranquilizadora garantia. Em duas de suas obras, História
da loucura e Nascimento da clínica, Michel Foucault estabeleceu luminosamente em
que os métodos da botânica forneceram aos médicos do século XIX o modelo de suas
nosologias. “A racionalidade do que ameaça a vida”, escreve ele, “é idêntica à
racionalidade da própria vida”. Mas, diremos nós, há racionalidades e racionalidades.
Sabemos bem da importância para a filosofia, para a teologia e para a política da Idade
Média, da questão dos universais. Trata-se de uma questão que não será abordada aqui,
mas contornada e retida apenas por meio de algumas considerações sobre o
nominalismo na filosofia moderna, nos séculos XVII e XVIII.
Os argumentos do nominalismo são variados mas permanentes. Se não são os
mesmos para todos, porque todos os nominalistas de Ockham a Hume, passando por
Duns Scot, Hobbes, Locke e Condillac não fazem de seu nominalismo a mesma arma de
um mesmo combate, alguns desses argumentos se apresentam, no entanto, como
invariantes, o que não é tão paradoxal em razão da intenção comum de ter o universal
por um certo uso das coisas singulares, e não por uma natureza das coisas. Que digamos
os universais suposições (quer dizer posições de substituição) como Ockham,
imposições arbitrárias como Hobbes, representações instituídas como signos, à
maneira de Locke, os conceitos aparecem como um tratamento humano, quer dizer,
factício e tendencioso, da experiência. Dizemos: humano, porque não sabemos se temos
o direito de dizer: intelectual. Não basta dizer que o espírito é uma tabula rasa, para ter o
direito de dizer, convertendo a proposição, que uma tabula rasa é um espírito. Mas essa
latitude indefinida de conveniência comum aos seres singulares, onde os nominalistas
veem o equivalente autêntico do universal, não é uma máscara de falsa simplicidade,
dissimulando uma armadilha, a armadilha da semelhança? A ideia geral segundo Locke
é um nome (significante) geral, quer dizer o significante de uma mesma qualidade
indeterminada quanto às circunstâncias de sua percepção, a qual qualidade idêntica é
pensada por abstração, isto é, por “consideração do comum separado do particular”. E
desde logo é válido como a representação de todas as ideias particulares de mesma
espécie. Se, contrariamente a Locke, Hume situa no princípio da generalização não
apenas um poder de reprodução memorial, mas um poder livre de transpor a ordem
segundo a qual as impressões foram recolhidas, um poder próprio à imaginação, de
infidelidade com respeito às lições da experiência, não obstante, segundo ele a
semelhança das ideias induz a imaginação ao hábito, isto é, à uniformidade de um certo
ataco do meio pelo ser humano. No hábito, são, de algum modo, telescopadas todas as
experiências singulares das quais basta que uma seja evocada para um nome para que,
aplicando-se a ideia individual para além de si mesma, cedamos à ilusão da
generalidade.
Vê-se rapidamente o desconforto de toda posição nominalista concernente às
relações entre o conceito e a vida. Ela volta a dar-se, de partida, a semelhança, a menos
mínima, do diverso como uma propriedade do próprio diverso, a fim de poder construir
o conceito em sua função de suplente à ausência de essências universais. De modo que
todos esses autores do século XVIII, do qual podemos dizer que foram dos empiristas,
quanto ao conteúdo do conhecimento, e dos sensualistas, quanto à origem de suas
formas, não fizeram, no fundo, mais do que dar ao aristotelismo uma réplica invertida,
pois eles se esforçaram para buscar conhecê-lo em meio ao conhecido, para fazer o
conhecimento da vida interior à ordem da vida. O vivente humano é, segundo eles,
dotado de um poder (que ademais também se poderia ter por medida de uma
impotência) fingir classes e por conseguinte uma distribuição ordenada dos seres, mas à
condição de que esses seres tragam eles mesmos, em si mesmos, características comuns,
traços repetidos. Como se pode falar de natureza ou de naturezas quando se é
nominalista? Simplesmente, fazendo como Hume, invocando uma natureza humana, o
que volta a admitir ao menos uma uniformidade dos homens, ainda que se tenha, como
ele, essa natureza por inventiva, artificiosa, isto é, especificamente capaz de convenções
deliberadas. Ao fazê-lo, o que fazemos? Praticamos um corte no sistema dos viventes,
pois definimos a natureza do um pelo artifício, pela possibilidade de convir, em vez de
exprimir a natureza. E, por conseguinte, em Locke ou Hume, como em Aristóteles, a
questão da concepção dos conceitos recebe uma solução que vem romper o projeto de
naturalizar o conhecimento da natureza.
Notou-se, com muita frequência, que a controvérsia que dividiu, no século
XVIII, os naturalistas sistemáticos partidários do método e partidários do sistema,
ressuscitava em suma a querela dos universais. Buffon reprovava a Lineu o artifício de
seu sistema de classificação botânica a base de características sexuais. Quanto a este,
tinha começada sua História dos animais condenando indiferentemente os métodos e os
sistemas, isto é, as classificações ditas naturalistas e as classificações ditas artificiais.
Buffon sustentava que na natureza só existem indivíduos e que os gêneros e as espécies
são produtos da imaginação humana. Por conseguinte, a ordem à qual Buffon se dobra,
nos primeiros capítulos de sua História natural, é uma ordem toda pragmática que é
fundada sobre as relações de utilidade e de familiaridade do animal ao homem. É assim
que se vê Buffon classificar os animais primeiramente em domésticos e em selvagens,
em animais da Europa e em animais do Novo Continente, quer dizer, efetivamente,
segundo a docilidade e a proximidade que são naturalmente relações com um termo
humano e que não têm nada a ver com a ordem dos viventes entre si, separadamente do
naturalista que a estuda. Contudo, devemos nos guardar de concluir, concernindo a
Lineu e Buffon, ao alinhamento de sua sistemática natural sobre sua filosofia. Pois
Buffon mais tarde, quando veio a estudar os macacos e os pássaros, delineio, também
ele, uma tábua das espécies, tentando caracterizá-las pelo maior número de
características e calcando em suma a flexibilidade de seu método sobre a riqueza de seu
objeto. De sorte que Buffon, nominalista quanto à natureza e ao valor dos conceitos, se
comporte como alguém que pretenderia escrever sob o ditado da própria natureza. E
Lineu, ao contrário, cuja pretensão inicial em reproduzir a própria ordem da natureza e o
plano eterno da criação não realiza nenhuma dúvida, se preocupa muito pouco em
buscar, por um método natural, fazer aparecer um parentesco dos seres fundado sobre
todas as características. Ele escolhe, de uma vez por todas, uma característica que crê
essencial à planta, a frutificação, a fim de determinar os gêneros, e ele a utiliza
exclusivamente, quer dizer artificialmente, e ele o sabe. O sistema era, para Lineu, um
meio de dominar uma variedade de formas à exuberância da qual ele era
extraordinariamente sensível.
A significação dessas discordâncias entre as técnicas científicas do naturalista e
a filosofia explícita ou implícita que as sustenta e melhor esclarecida, segundo o parece,
pela filosofia do que pela história das ciências. Um texto magistral de Kant o comprova.
Esse texto está situado no Apêndice à Dialética transcendental da Crítica da razão pura:
sobre o uso regulador das ideias da razão pura. Kant introduz nesse texto a imagem de
horizonte lógico para dar cota do caráter regulador e não constitutivo dos princípios
racionais de homogeneidade do diverso segundo os gêneros, e de variedade do
homogêneo segundo as espécies. O horizonte lógico, segundo Kant, é a circunscrição de
um território por um ponto de vista conceitual. O conceito, diz Kant, é um ponto de
vista. No interior de um tal horizonte, há uma multidão indefinida de pontos de vista, a
partir do que se abre uma multidão de horizontes de menor abertura. Um horizonte não
se decompõe senão em horizontes, do mesmo modo que um conceito não se analisa
senão em conceitos. Dizer que um horizonte não se decompõe em pontos sem
circunscrição quer dizer que as espécies podem se dividir em subespécies, mas nunca
em indivíduos, pois conhecer é conhecer por conceitos e o entendimento não conhece
nada apenas pela intuição.
Essa imagem de horizonte lógico, essa definição do conceito dos naturalistas
como ponto de vista de circunscrição não é um retorno a um nominalismo, não é a
legitimação do conceito por seu valor pragmático como procedimento de economia de
pensamento. A razão, segundo Kant, prescreve ela mesma esse procedimento, e
prescrevê-la é proscrever a ideia de uma natureza onde não apareceria nenhuma
semelhança, pois nessa eventualidade a lei lógica das espécies e o próprio entendimento
seriam simultaneamente aniquilados. (Temos a ocasião de retornar a um texto análogo,
aquele das três sínteses na Dedução dos conceitos puros do entendimento, na primeira
edição da Crítica da razão pura). A razão se faz, portanto, sobre o terreno em que o
conhecimento da vida persegue sua tarefa heurística de determinação e de classificação
das espécies, a intérprete das exigências do entendimento. Essas exigências definem
uma estrutura transcendental do conhecimento. Assim, pareceria que teríamos rompido
o círculo em que se fecham todas as teorias naturalistas do conhecimento. A concepção
dos conceitos não pode ser um conceito em meio aos conceitos. E, portanto, o corte que
não poderia evitar o aristotelismo e o nominalismo dos empiristas se encontra aqui
fundado, justificado e exaltado.
Mas se ganhamos a legitimação de uma possibilidade, a do conhecimento por
conceitos, não teríamos perdido a certeza de que, em meio aos objetos do conhecimento,
encontra-se do qual a existência é a necessária manifestação da realidade de conceitos
concretamente ativos? Dito de outro modo, não teríamos perdido a certeza de que, em
meio aos objetos do conhecimento o que se encontram, na verdade, são os seres vivos?
A lógica aristotélica recebia, do fato de que as formas do raciocínio imitavam a
hierarquia das formas vivas, uma garantia de correspondência entre a lógica e a vida. A
lógica transcendental não chega, em sua constituição a priori da natureza como sistema
de leis físicas, a constituir, de fato, a natureza como o teatro dos organismos vivos.
Compreendemos melhor as pesquisas do naturalista, mas não chegamos a compreender
as abordagens da natureza. Compreendemos melhor o conceito de causalidade, mas não
compreendemos a causalidade do conceito. A Crítica do juízo se esforça em dar um
sentido a essa limitação que o entendimento tem [subit] como um fato. Um ser
organizado é um ser que reproduz sua organização, que se forma e que se dá a réplica,
conforme a um tipo, e cuja estrutura teleológica, onde as partes estão em relação entre
elas sob o controle do todo, testemunha da causalidade nãomecânica do conceito. Desse
tipo de causalidade não temos nenhum conhecimento a priori. Essas forças que são
formas e essas formas que são forças são da natureza, estão na natureza, mas não o
sabemos pelo entendimento, nós o constatamos pela experiência. É por isso que a ideia
de fim natural que é a ideia mesma de um organismo se construindo a si mesmo, não é
em Kant uma categoria mas uma ideia reguladora cuja aplicação só pode se fazer por
máximas. Sem dúvida, a arte nos fornece uma analogia para julgar do modo de
produção da natureza. Mas não temos o direito de esperar poder nos situar no ponto de
vista de um intelecto arquetípico, para o qual o conceito seria também intuição, quer
dizer, doador porque produtor de seu objeto, para quem o conceito seria ao mesmo
tempo conhecimento e, para falar como Leibniz, originação radical dos seres. Se Kant
tem as belas-artes pelas artes do gênio, se ele considera que o gênio é a natureza dando
sua lei à arte, ele se proíbe, no entanto, de se situar dogmaticamente num ponto de vista
semelhante – no ponto de vista do gênio – para apreender o segredo do operari da
natureza. Em resumo, Kant não admite a identificação entre horizonte lógico dos
naturalistas e o que se poderia chamar o horizonte poiético da natureza naturante.
Mas um filósofo como Hegel não recusou o que Kant se proibiu. Na
Fenomenologia do espírito, tanto quanto na Realphilosophie de Iena ou na
Propedêutica de Nuremberg, o conceito e a vida são identificados. “A vida, diz Hegel, é
a unidade imediata do conceito à sua realidade, sem que esse conceito aí se distinga”. A
vida, diz ele ainda, é um automovimento de realização segundo um triplo processo, e
aqui Hegel só faz, em suma, repreender as análises de Kant na Crítica do juízo
teleológico. Esse triplo processo é: a estruturação do próprio indivíduo; sua
autoconservação com respeito à sua natureza inorgânica; a conservação da espécie. A
autoconservação é a atividade do produto produtor. “Produzir-se apenas”, diz a
Propedêutica de Hegel, “o que já está aí”. Fórmula aristotélica se alguma vez a houve
[Formule aristotelicienne s´il en fut]. O ato é anterior à potência. Comentando uma
passagem análoga da Fenomenologi, Jean Hyppolite escreve: “O que o orgânico atinge
em sua operação é ele mesmo. Entre o que ele é e o que ele busca, não há mais do que a
aparência de uma diferença e assim ele é conceito em si mesmo”. Em um sentido,
portanto, o vivente contém em si mesmo a vida como totalidade e a vida em sua
totalidade. A vida como totalidade, em razão do fato de que seu começo é fim, que sua
estrutura é teleológica ou conceitual. E a vida em sua totalidade, visto que é produto de
um produtor e produtor de um produto, o indivíduo contém o universal.
Por banal que seja essa ideia entre os românticos alemães e entre os filósofos da
natureza, ela toma, em Hegel, uma força e uma condução novas, na medida em que o
movimento da vida trai – trai porque tenta traduzir – a infinidade da vida que, ao se
elevar no homem à consciência de si, inaugura a vida espiritual. Mas não poderíamos
concluir, sob pena de errar, pela recorrência da vida espiritual à vida biológica, pois a
multidão das espécies faz obstáculo à universalidade da vida. A justaposição dos
conceitos específicos, as modificações que suas relações com os meios submetem ao
indivíduo, impedem a vida de tomar ela mesma consciência de sua unidade, de refletir
sua identidade e, por conseguinte, de viver por si e de ter, propriamente falando, uma
história.
Em todo caso é preciso opor a Hegel a questão de saber como, se é verdade que
conceito e realidade coincidem imediatamente na vida, é possível no nível da ciência
um conhecimento da vida pelos conceitos. A resposta é, evidentemente, que o
conhecimento só pode se organizar por si mesmo pela vida própria do conceito. “Eu
ponho, diz Hegel, no automovimento do conceito, aquilo pelo que a ciência existe”.
Comentando uma passagem da Fenomenologia: “O conhecimento científico exige que
nos abandonemos à vida do objeto ou, o que significa a mesma coisa, que tenhamos
presente e que exprimamos a necessidade interior desse objeto”2, uma outra passagem
contém uma fórmula admirável: “Os pensamentos verdadeiros e a penetração científica
só podem ganhar pelo trabalho do conceito. Só o conceito pode produzir a
universalidade do saber”3.
Tratando-se do organismo, aproximaremos essa tese hegeliana da posição de
Kurt Goldstein, o autor da obra A estrutura do organismo. “A biologia”, diz Goldstein,
“lida com indivíduos que existem e tendem a existir, quer dizer, a realizar sua
capacidade do melhor possível num dado meio. As performances do organismo em vida
só são compreensíveis segundo sua relação com essa tendência fundamental, quer dizer,
apenas como expressão do processo de autorrealização do organismo”. E ele acrescenta:
“Nós somos capazes de atingir esse fim graças a uma atividade criadora, a uma
abordagem que é essencialmente aparentada à atividade pela qual o organismo compõe
com o mundo ambiente de maneira a poder se realizar a si mesmo, quer dizer, existir”4.
Essa profissão de fé de um biologista suscitou da parte de Raymond Ruyer críticas
bastante incisivas e, que para além de Goldstein, poderíamos aplicar com rigor a Hegel.
Ruyer escreve: “Fazer biologia não é sinônimo de viver. Compreendemos bem que o
modo atual – diz ele visando Goldstein e os goldsteinianos – é aproximar antes a
biologia teórica da vida do que a vida da biologia teórica. Para perceber uma melodia,
como para contá-la, é verdade que é preciso em um sentido vivê-la por si mesmo, mas
não exageremos nada. Escutar cantar e entrar num coro, permanecem duas operações
distintas”5. Dito de outro modo, identificar o conhecimento da vida com o fato de viver

2
Phénoménologie de l´Esprit, trad. Hyppolite, I, p. 47.
3
Ibid., p. 60.
4
Notas sobre o problema epistemológico da biologia (Congresso internacional de filosofia das ciências,
I, Paris, Hermann, 1951, p. 142).
5
Néo-finalisme, p. 217.
o conceito do vivente é garantir asseguradamente que a vida será o conteúdo do
conhecer, mas é renunciar ao conceito de conhecer enquanto ele é o conceito do
conceito. A ciência da vida reencontra a natureza naturante, mas nela se perde enquanto
conhecimento conhecente, enquanto conhecimento em posse de seu próprio conceito.
Vê-se, portanto, que a diferença de uma filosofia como essa de Hegel com
aquela de Kant [en amont – rio acima], e aquela de Bergson [en aval – rio abaixo]. Kant
teria dito que podemos compreender o vivente como se sua organização fosse a
atividade circular do conceito. Hegel diz: “A vida é a realidade imediata do conceito”.
Ele também diz: “A vida não é histórica”. Bergson dirá que a vida é duração,
consciência, que ela é, à sua maneira, história. Uma filosofia do orgânico à maneira
hegeliana nunca seduziu muito os filósofos de cultura francesa. Kant lhes pareceu com
frequência mais fiel ao método efetiva e modestamente praticado pelos naturalistas e
pelos biólogos. Bergson pareceu mais fiel ao fato da evolução biológica, do qual seria
difícil encontrar em Hegel, apesar de algumas imagens, um pressentimento autêntico.
E, no entanto, hoje podemos colocar a questão de saber se o que os biólogos
sabem e ensinam concernindo à estrutura, à reprodução e à hereditariedade da matéria
vivente, à escala celular e macromolecular, não autorizaria uma concepção das relações
da vida e do conceito mais próxima daquela de Hegel que daquela de Kant e, em todo
caso, que daquela de Bergson.

II
Henri Bergson não se demonstrou menos severo quanto aos sucessores
imediatos de Kant do que quanto ao próprio Kant, reprovando-os, como a este, o
desconhecimento da duração criadora da vida. “A duração real, diz Bergson em A
evolução criadora, é aquela em que cada forma deriva das formas anteriores, no
momento em que acrescenta algo, e se explica por elas na medida em que ela pode se
explicar”. É evidente que uma filosofia da vida assim concebida não pode ser uma
filosofia do conceito pois a gênese das formas viventes não é um desenvolvimento
acabado, não é uma derivação integral no conceito e só pode ser apreendida por uma
intuição. Não há fechamento sobre si mesma da operação de organização, o fim não
coincide com o começo.
Uma tal filosofia deve então dar conta de seus conceitos, que não são a vida, que
não fazem a vida. O conceito é, na filosofia de Bergson, o cumprimento de uma tática
da vida em sua relação com o meio. O conceito e a ferramenta são mediações entre o
organismo e seu entorno. Bergson tratou sucessivamente da questão do conceito no
terceiro capítulo de Matéria e memória, em A evolução criadora e na segunda parte da
introdução a O pensamento e o movente. Mas há uma diferença capital, sobre a qual não
poderíamos, ao que parece, insistir muito, entre o primeiro texto e o terceiro, entre a
teoria das ideias gerais, tal como exposta em Matéria e memória, e a teoria das ideias
gerais tal como exposta em O pensamento e o movente. É a passagem da ideia de
semelhança como identidade de reação orgânica à ideia de semelhança como identidade
de natureza das coisas.
Bergson admite, na passagem concernente às ideias gerais em O pensamento e o
movente, que existem ideias gerais naturais que servem de modelo às outras. Dito de
outro modo, Bergson admito que há semelhanças essenciais, generalidades objetivas
que são inerentes à própria realidade. Em Matéria e memória, a questão da ideia geral
se encontra limitada à percepção das semelhanças. Bergson explica que todas as
dificuldades concernentes aos universais tendem a um círculo. Para generalizar é
preciso, primeiramente, abstrair, mas para abstrair, é preciso já generalizar. Um
postulado é comum a essas teorias adversas, é o de que a percepção começa pelo
individual ou pelo singular. Bergson contesta esse postulado. Ele mostra que a
percepção das diferenças é um luxo e que a representação das ideias gerais é uma
sofisticação. Por conseguinte, ele vai se situar numa equidistância entre essas duas
preciosidades e se instalar na atitude necessitada do vivente afrontado às dificuldades da
vida. Ele vai se instalar sobre o terreno do pragmático e mostrar que começamos por um
sentimento inicial donde a percepção do incomparável e a concepção do geral vão
nascer por dissociação. Esse sentimento inicial é um sentimento confuso de qualidades
marcantes ou de semelhanças. Sabemos bem como Bergson, ao reduzir a percepção à
sua função utilitária, mostra que as coisas são apreendidas com relação às necessidades,
e que a necessidade, por não ter que fazer diferenças de partida, na medida em que é
necessária a identidade de apreensão, visa as semelhanças. Então, o discernimento do
útil nos limita à percepção das generalidades. Encontramos uma palavra famosa em
Matéria e memória: “É a erva em geral que atrai o herbívoro”. Entendamos por isso que
a semelhança age de fora, como uma força, e provoca reações idênticas. A reação inicial
é concebida aqui à imagem de uma reação química e do mineral à planta, da planta aos
mais simples seres conscientes, esse procedimento de generalização é descrito por
Bergson. A explicação é aqui simplesmente fisiológica. Bergson utiliza em alguma
medida para a construção de sua teoria da ideia geral a função reflexa do sistema
nervoso, quer dizer, a identidade de reação por excitações variáveis. A estabilidade da
atitude é o hábito. A generalização é, portanto, em Matéria e memória, o hábito
remontando da esfera dos movimentos à esfera do pensamento. O gênero é esboçado
mecanicamente pelo hábito, e a reflexão sobre essa operação nos conduz à ideia geral de
gênero.
Em Matéria e memória há, portanto, uma fonte, uma única fonte, da ideia geral
de gênero. Mas em O pensamento e o movente, somos advertidos desde o início de que
há muitas fontes da ideia geral. Donde essa fórmula, num sentido irônico: “Ao tratar das
ideias gerais, não se pode generalizar”. Recordando, primeiramente, as conclusões do
estudo de Matéria e memória, Bergson explica que a psicologia deve ser funcional, que
a percepção das generalidades notadamente tem uma significação vital. “A biologia
fornece à psicologia um fio que ela jamais deveria largar”. – Notemos que aqui Bergson
diz biologia e não apenas fisiologia. O problema de Matéria e memória era primeira e
essencialmente o problema da conservação das lembranças, e o corpo era então
estudado como uma estrutura cujo sistema nervoso assegura, ou é suposto assegurar, o
funcionamento. Por conseguinte, em Matéria e memória, a explicação da ideia geral
fazia apelo a dados clínicos ou fisiológicos que podemos dizer de neurologia. Em O
pensamento e o movente, lida-se, ao contrário, com considerações de biologia geral. E
então Bergson explica que isso não é mais apenas o organismo completo, o organismo
macroscópico, que generaliza. Tudo o que é vivo, a célula, o tecido, generaliza. Viver,
em qualquer escala que seja, é escolher e é negligenciar. Bergson se refere então à
assimilação, tomando-a em toda sua ambiguidade semântica. A assimilação é por um
lado a redução do alimento, quer dizer, do que fornece o meio inerte ou vivo, à
substância do animal que se alimenta. Mas a assimilação é também a maneira de tratar
indistintamente, indiferentemente, o que se assimila. A diferença é entre o que é retido e
o que é rejeitado. Há, portanto, no homem uma generalização impossível, quer dizer, o
reconhecimento de que tudo é diverso, e a generalização inútil, quer dizer, o
reconhecimento de que tudo é idêntico.
Só em O pensamento e o movente aparece um problema que não se colocava em
Matéria e memória. O problema é enunciado do seguinte modo: Como ideias gerais que
servem de modelos às outras são possíveis? Dito de outro modo, para que o vivente
humano possa acabar esse trabalho reflexivo de generalização de uma generalidade de
início quase instintivamente percebida, é preciso que um pretexto, que uma ocasião seja
dada nas próprias coisas. Quer dizer que é preciso buscar as raízes reais de uma
operação que só era justificada em Matéria e memória por seu sucesso vital. “Em meio
a essas semelhanças, diz Bergson em O pensamento e o movente, há quem tenda ao
fundo das coisas”. É então aqui que vemos colocado um problema: aquele das
generalidades inerentes à própria realidade. Eis ultrapassada a fórmula de Matéria e
memória: “É a erva em geral que atrai o herbívoro”. Certamente, há a erva em geral,
mas há o herbívoro, quer dizer que há espécies vivas. Em Matéria e memória, lidava-se
com um fato de fisiologia pura e simples, mas em O pensamento e o movente lida-se
com um fato de biologia geral. E em vez de explicar pela estrutura, como se fazia em
Matéria e memória, é preciso explicar a estrutura: há herbívoros. E Bergson vai
desenvolver a distinção que ele estabelece entre três grupos de semelhança: a
semelhança vital, a semelhança física e a semelhança tecnológica. A semelhança entre
formas biológicas, a semelhança entre elementos, no sentido físico-químico do termo, e
a semelhança entre instrumentos ou ferramentas. Eis porque é preciso confessar que
entre Matéria e memória e O pensamento e o movente se produziu uma mudança radical
que transforma totalmente esse problema da percepção da ideia geral.
Bergson finalmente encontra aqui uma dificuldade que não é sem relação com
aquela que Kant tinha enfrentado de frente na explicação que propunha a Analítica
transcendental, da representação do diverso intuitivo na unidade do conceito. É o que a
Dedução dos conceitos puros do entendimento na primeira edição de 1781 da Crítica da
razão pura desenvolve sob o nome das três sínteses: a síntese da apreensão do diverso
na intuição; a síntese da reprodução na imaginação e a síntese da recognição no
conceito. É na análise, no sentido reflexivo do termo, desse procedimento de síntese de
reprodução na imaginação que Kant cita a famosa passagem sobre o cinabre: “Se o
cinabre6 é às vezes vermelho, às vezes negro, às vezes pesado, às vezes leve; se um
homem se transformava às vezes num animal e às vezes num outro; se num longo dia a
terra era coberta às vezes de frutos, às vezes de gelo e neve, minha imaginação empírica
não encontraria ocasião de receber no pensamento o pesado cinabre com a
representação da cor vermelha”.
Em suma, esse encontro, que não me parece fortuito, essa recuperação das
dificuldades em Kant e em Bergson, no seio de duas problemáticas bem diferentes, me
parece confirmar a resistência da coisa, não ao conhecimento, mas a uma teria do
conhecimento que procede do conhecimento à coisa. É, em Kant, o limite da revolução

6
O cinabre é um mineral de mercúrio.
copernicana. A revolução copernicana é inoperante quando não há mais identidade entre
as condições da experiência e as condições de possibilidade da experiência. Então, a
reciprocidade das perspectivas não se desempenha mais e não é mais equivalente dizer
que damos conta das mesmas aparências, supondo às vezes que nosso conhecimento se
regre sobre o objeto, às vezes que o objeto se rere sobre nosso conhecimento. Pois há no
conhecimento da vida um centro de referência não decisório, um centro de referência
que poderíamos dizer absoluto. O vivente é precisamente um centro de referência. Não
é porque eu sou pensante, não é porque eu sou sujeito, no sentido transcendental do
termo, é porque sou vivente que eu devo buscar na vida a referência da vida. Em suma,
Bergson é levado a fundar a concepção biológica do conceito sobre a realidade dos
conceitos em biologia. A erva, o herbívoro, não é o encontro de dois devires
imprevisíveis, é uma relação de reinos, de gêneros e de espécies.
Bergson, no texto de O pensamento e o movente concernindo a ideia geral, diz, a
propósito dessa semelhança vital (que ele não se guarda de assimilar à semelhança no
sentido físico ou à semelhança no sentido instrumental, o que lhe justifica dizer que há
muitas fontes da generalidade): “A vida trabalha como se ela quisesse reproduzir o
idêntico”. Finalmente, Bergson parece retornar a um “como se” de aparência kantiana.
E, no entanto, a diferença é considerável. Pois o “als ob” kantiano, o “como se” era a
expressão de uma prudência fundada sobre a análise reflexiva ou crítica das condições
do conhecimento. A Analítica transcendental havia exposto as condições de
possibilidade do conhecimento de uma natureza em geral e encontrava um limite no fato
de que a vida não é apenas natureza no sentido de natureza naturada mas natureza no
sentido de natureza naturante. Em vez de que o “como se” bergsoniano seja a expressão
de um tipo de conivência entre a vida e o conhecimento da vida, Kant dizia: podemos
tratar da vida como se ela trabalhasse por conceitos sem representação de conceitos.
Bergson diz: a vida trabalha como se ao criar seres que se assemelham, ela imitasse
conceitos. Podemos, e também me parece que se deve perguntar como a vida se
encontra disposta a esboçar em seus produtos o que um de seus produtos, o homem,
perceberá, devida e indevidamente ao mesmo tempo, como um convite da vida à
conceitualização da vida pelo homem.
A explicação dessa ilusão passa pela teoria bergsoniana da individuação. Se a
vida esboça o conceito ao produzir indivíduos a semelhança específica, é em razão de
sua relação com a matéria. Está aí uma das dificuldades principais da filosofia
bergsoniana. Pois Bergson diz que a vida teria podido não se individualizar, teria podido
não se precisar nos organismos. Ela poderia, segundo sua própria expressão,
“permanecer vaga e felpuda [floue]”. “Por que o elã único, diz ele, não seria impresso a
um corpo único que tivesse evoluído indefinidamente?”. Em vez disso, na verdade, é a
matéria que divide, que diversifica, que dispersa, que multiplica a vida e a coage em
certa medida a decair na cisão para consigo mesma. Aí está o fundamento da repetição
vital: a matéria enumera a vida e a impele à especificação, quer dizer, a uma imitação da
identidade. Em si mesma, a vida é elã, quer dizer, ultrapassamento de toda posição,
transformação incessante. A hereditariedade biológica, diz Bergson, é a transmissão de
um elã. Compreendemos então por que nessa expressão curiosa: “A vida trabalha como
se”, o termo trabalho é tão importante, ele mesmo, do que os termos “como se”. O
trabalho é a organização da matéria pela vida, a aplicação da vida ao obstáculo da
matéria. O trabalho da vida é sem dúvida um trabalho no sentido antitecnológico, mas
não há corte afinal em Bergson entre o trabalho antitecnológico e o trabalho
propriamente tecnológico que é aquele do homem utilizando ferramentas para atacar o
meio. A semelhança por especificação se prolonga na invenção humana do conceito que
se unifica com a invenção humana da ferramenta: conceito e ferramenta são ambos
mediações. E, sem dúvida, a erva em geral atrai o herbívoro, mas poderíamos dizer que
a erva em geral atrai também o homem portador de um falso, o homem que, tendo
domesticado alguns herbívoros, ceifa os prados e não diferencia entre as ervas, para
assegurar a seus herbívoros domésticos sua ração de erva em geral.
Em suma, para adotar, seguindo Bergson, uma concepção das relações entre o
conceito e a vida que deva inscrever na própria vida a condição de possibilidade da
conceitualização da vida pelo conhecimento humano, é preciso subscrever a uma
proposição do bergsonismo que é ao mesmo tempo capital e opaca. Vladimir
Jankélévitch diz que a proposição secretamente mais importante do bersognismo é a
seguinte: “O elã é finito e está foi dado de uma vez por todas. Ele não pode superar
todos os obstáculos”. O que pode significar isso, senão primeiramente que o obstáculo
ao elã é contemporâneo de si mesmo. Que, por consequência, a matéria, considerada
como o introduzir nesse elã, ao dispersá-lo, o repouso, a distensão e, por fim, a
extensão, isto é, ao final, o espaço e a geometria, essa matéria seria isso
originariamente. Então, monismo de substância, dualismo de tendências, todas as
interpretações são possíveis dessa dificuldade.
Certamente, por essa teoria compreendemos bem que a especificação é um
limite, compreendemos que a vida seja capaz de depor as espécies que ela ultrapassa.
Mas, então, não compreendemos por que esse processo de especificação se encontra
depreciado, se é verdade que uma de suas condições, a matéria, tensa pelo negativo da
outra condição, a vida, é tão originária quanto a própria vida. Compreendemos bem que
o vivente prefere a vida à morte, mas não chegamos a seguir até o fim uma filosofia
biológica que subestima o fato de que é apenas pela manutenção ativa de uma forma, e
de uma forma específica, que todo vivente impele, ainda que precariamente, é verdade,
a matéria a retardar mas não a interromper sua queda, e a energia sua degradação. É
possível que, como o diz Bergson, a hereditariedade seja a transmissão de um elã. É
certo, em todo caso, que esse elã transporte, e transporte em alguma medida ao
imperativo, um a priori morfogenético.
Sob essa relação é instrutivo – não apenas do ponto de vista histórico, mas do
próprio ponto de vista da inteligência filosófica de nosso problema – comparar com a
concepção bergsoniana, uma teoria das relações da forma e da vida que Bergson
conhecia bem e da qual ele utilizou ao menos (ele apenas reportou-se ao Discurso de
1913 em honra do centenário do nascimento de Claude Bernard) as conclusões
epistemológicas que essa teoria sugeria a seu autor. Quero dizer os cursos de Claude
Bernard reunidos sob o título: Aulas sobre os fenômenos da vida comuns aos animais e
aos vegetais, que apareceram em 1878, o ano mesmo da morte de Claude Bernard. Obra
fundamental a menos em sua primeira parte, porque ela é a única da qual temos a
segurança de que se Claude Bernard não a escreveu integralmente, se trata-se de um
curso tomado em estenografia por seus alunos, ele ao menos as reviu, pois ele morreu
corrigindo as provas dessa obra. Obra sem a qual alguns textos de Claude Bernard, mais
clássicos, tais como a Introdução ao estudo da medicina experimental, do qual
celebramos o ano passado o centenário, e a Relação sobre a marcha e o progresso da
fisiologia geral na França de 1867, não podem ser seriamente comentados. As
considerações de Claude Bernard são dadas por ele para uma teoria científica de
fisiologia geral. Mas seu interesse vem precisamente de que Claude Bernard não separa
o estudo das funções daquele das estruturas e de que, na época de Claude Bernard, a
única estrutura que foi tida como comum aos animais e aos vegetais, a estrutura ao nível
da qual devia doravante se situar o estudo da vida, era a estrutura celular. Claude
Bernard não separa, portanto, o estudo das funções do estudo das estruturas e não separa
o estudo das estruturas do estuda da gênese das estruturas. De modo que essa teoria de
fisiologia geral se encontra sustentada constantemente por referências permanentes à
embriologia que, desde os trabalhos de von Baer, foi para os biologistas do século XIX
uma ciência-piloto, fornecendo às outras disciplinas uma provisão de conceitos e de
métodos.
Segundo Claude Bernard, o que ele mesmo chama sua concepção fundamental
da vida se encontra em dois aforismos. Um é o seguinte: a vida é a morte. O outro: a
vida é a criação. Durante muito tempo considerou-se que foi pela primeira vez na
Introdução ao estudo da medicina experimental que Claude Bernard teria dito: a vida é
a criação. Faríamos, então, remontar a essa proposição de 1865. Mas desde a
publicação pelos cuidados do Doutor Grmek do Caderno de notas de Claude Bernard,
podemos fazer remontar bem longe e perto de dez anos antes a fórmula: a vida é a
criação. Pois é já perto do fim de 1856, ou no início de 1857, que se encontram no
Caderno essas duas proposições: a vida é uma criação, e a seguinte: “a evolução é um
criação”. Para Claude Bernard, a palavra evolução não tem de modo algum o mesmo
sentido que tomou hoje depois da biologia transformista. Para Claude Bernard, a
evolução significa exatamente desenvolvimento. Então, por evolução, é preciso
entender em Claude Bernard a ontogênese, a passagem do germe e do embrião à forma
adulta. A evolução é o movimento da vida na estruturação e na manutenção de uma
forma individual. Por conseguinte, ao dizer que a evolução é uma criação, Claude
Bernard não diz outra coisa do que isso: a vida é uma criação, pois, precisamente, o que
caracteriza a vida é essa conquista progressiva de uma forma acabada, a partir de
premissas das quais se trata de determinar a natureza e a forma.
Assim concebida, a vida não é um princípio vital, no sentido que lhe dava então
a escola de Montpellier, mas ela não é mais a resultante ou a propriedade de uma
composição físico-química, no sentido dos positivistas. A fisiologia geral de Claude
Bernard é, em primeiro lugar, um organogênio, e a concepção fundamental da vida deve
resolver, ou ao menos, deve colocar corretamente um problema que a biologia
positivista contornava, que a biologia materialista, no sentido mecanicista do termo,
resolvia por uma confusão de conceitos. Esse problema é o seguinte: em que consiste a
organização de um organismo? Essa questão tinha obsedado os naturalistas do século
XVIII. Não é, com efeito, uma questão que seja fácil de resolver pela utilização de
modelos mecânicos. E é tão verdadeiro que as teorias da pré-formação, as teorias
segundo as quais a constituição progressiva de um indivíduo adulto a partir de um
germe é apenas o engrandecimento de uma miniatura contida no germe, teorias que se
prolongam logicamente em teoria do intertravamento [emboîtement] dos germes,
reenviam à origem, quer dizer, ao Criador, o fato da organização. O advento da
embriologia como ciência fundamental no século XIX permitiu recolocar esse problema
da organização. Para Claude Bernard, a existência dessa questão e o obstáculo que ela
delineia frente às possibilidades de explicação fornecidas pela física e pela química,
garantem ao estudo da vida, à fisiologia geral, sua especificidade científica.
Uma parte do sucesso da Introdução ao estudo da medicina experimental à
época é que ela pareceu fornecer a muitos dos argumentos contra um certo materialismo
em biologia e, portanto, contra o materialismo filosófico. Claude Bernard se alistou. Na
realidade, ele sempre teve pouco cuidado em saber a quem e a que ele fornecia ou não
fornecia argumentos. Ele estava possuído por uma ideia, e essa ideia é a de que o ser
vivo organizado é a manifestação temporariamente perpetuada de uma ideia diretora de
sua evolução. As condições físico-químicas não explicam, por si próprias, a forma
específica de sua composição segundo tal ou tal organismo. Nas Lições sobre os
fenômenos da vida, essa tese é longamente desenvolvida. “Eu diria, por minha parte,
escreve ele, que a concepção à qual me conduziu minha experiência… Eu considero que
há necessariamente no ser vivo duas ordens de fenômenos: os fenômenos de criação
vital ou de síntese organizadora; os fenômenos de morte ou de destruição orgânica… O
primeiro desses dois fenômenos é o único sem análogo direto, ele é particular, especial
ao ser vivo; essa síntese evolutiva é o que há de verdadeiramente vital”. Por
conseguinte, para Claude Bernard, o organismo que funciona é um organismo que se
destrói. O funcionamento do órgão é um fenômeno físico-químico, é a morte. Esse
fenômeno, podemos apreendê-lo, podemos compreendê-lo, caracterizá-lo, e é essa
morte que somos conduzidos a chamar, ilusoriamente, a vida. Inversamente, a criação
orgânica, a organização são atos plásticos de reconstituição sintética das substâncias que
o funcionamento do organismo deve dispensar. Essa criação orgânica é síntese química,
constituição do protoplasma, e síntese morfológica, reunião dos princípios imediatos da
matéria viva em um mundo particular. Molde, era a expressão da qual se servia Buffon
(“o molde interior”) para explicar que através desse turbilhão incessante que é a vida,
persiste uma forma específica.
À primeira vista, poderíamos pensar que Claude Bernard separa aqui duas
espécies de síntese que a bioquímica contemporânea reuniu, e que ele desconhecia a
natureza estruturada do criptoplasma. Ora, não é possível hoje pensar com Claude
Bernard que “em seu grau mais simples, desprovida dos acessórios que a mascaram na
maior parte dos seres, a vida, contrariamente ao pensamento de Aristóteles, é
independente de toda forma específica. Ela reside numa substância definida por sua
composição e não por sua figura: o protoplasma”.
A bioquímica contemporânea repousa hoje, ao contrário, sobre o princípio de
que não há composição, mesmo ao nível químico, sem figura e sem estrutura. Apenas,
haveria como escusar Claude Bernard, e seu erro não seria assim tão total quanto
pudéssemos pensá-lo? Não é ele quem declara um pouco além: “O protoplasma, tão
elementar quanto ele seja, não é ainda uma substância puramente química, um simples
princípio imediato da química, ele tem uma origem que nos escapa, ele é a continuação
do protoplasma de um ancestral”. O que quer dizer: há uma estrutura e essa estrutura é
hereditária. “O próprio protoplasma, diz ele, é uma substância atávica que não vemos
nascer, mas que vemos simplesmente continuar”. Se então não esquecemos que sob o
nome de evolução, Claude Bernard entende a lei que determina a direção fixa de uma
mudança incessante, que essa única lei domina as manifestações da vida que começa e
aquelas da vida que se mantém, que ele não concebe diferença entre a nutrição e a
evolução, então não podemos sustentar que Claude Bernard não foi até o fim da
separação da matéria e da forma, da síntese química e da síntese morfológica, e que ele,
ao menos, supôs que na vida do protoplasma a substituição dos componentes químicos
se opera seguindo um imperativo estrutural? Essa estrutura, ele a tem por um fato
diferente daqueles que o conhecimento de um determinismo de tipo físico-químico dá o
meio de reproduzir a vontade. Essa estrutura é, para retomar seus próprios termos: “A
manifestação aqui e agora de uma impulsão primitiva, de uma ação primitiva e de um
registro [consigne], que a natureza repete após tê-la regulado de antemão”.
Claude Bernard parece ter pressentido que a hereditariedade biológica consiste
na transmissão de alguma coisa que se chama hoje uma informação codificada.
Semanticamente, ele não está longe de um registro [consigne] a um código. Seria, no
entanto, incorreto concluir disso que a analogia – a analogia semântica – recobre um
parentesco real de conceitos. Por uma razão que tende a um sincronismo. Ao mesmo
tempo que parece a Introdução ao estudo da medicina experimental, em 1865, um
monge obscuro, que jamais conhecerá em sua vida a celebridade que não negociou com
Claude Bernard, Grégor Mendel, dez aparecer suas Pesquisas sobre algumas
experiências de hibridação. Não podemos emprestar a Claude Bernard conceitos
análogos aos que hoje estão em curso na teoria da hereditariedade, porque o próprio
conceito de hereditariedade é um conceito totalmente novo com relação à ideia que
Claude Bernard poderia se fazer da geração e da evolução. Portanto, não cedamos à
tentação de assimilar termos separados de seu contexto. E, no entanto, pode-se sustentar
que existe entre o conceito bernardiano de registro [consigne] de evolução e os
conceitos atuais de código genético e de mensagem genética uma afinidade de função.
Essa afinidade repousa sobre sua relação comum ao conceito de informação. Se a
informação genética é definida: o programa codificado da síntese das proteínas, então
não se pode sustentar que os termos seguintes, que são todos de Claude Bernard, e não
por uma vez e ao acaso mas constantemente utilizados em sua obra, registro [consigne],
ideia diretora, intenção [dessein] vital, pré-ordenamento vital, plano vital, sentido dos
fenômenos…, são tentativas para definir, na ausência do conceito adequado, e por
convergência de metáforas, um fato biológico que é, de certo modo, apontado, antes
mesmo de ser atingido?
Em suma, Claude Bernard utilizou dos conceitos aproximados dos de
informação, no sentido psicológico do termo, para dar conta de um fato hoje
interpretado por conceitos de informação, no sentido físico do termo. E é a razão, a meu
ver geralmente mal percebida, pela qual Claude Bernard se defende perante as duas
frentes da biologia da sua época. Porque ele utiliza dos conceitos de origem psicológica,
como ideia diretora, registro [consigne], intenção [dessein] etc…, ele se sente
eventualmente suspeito de vitalismo e ele se defende disso, pois o que ele pensa sobre
isso é numa certa estrutura da matéria, numa estrutura na matéria. Mas porque ele
pensa, por outro lado, que as leis da física e as leis da química só explicam degradações,
e são impotentes para dar conta da estruturação da matéria, então ele deve se defender
de ser materialista. Donde o sentido de uma passagem como esta, emprestada à Relação
sobre os progressos e a marcha da fisiologia geral em 1867: “Se condições materiais
especiais são necessárias para dar nascimento a fenômenos de nutrição ou de evolução
determinada, não é se deve crer, por isso, que é a matéria que engendrou a lei de ordem
e de sucessão que dá o sentido ou a relação dos fenômenos 7, o que seria recair no erro
grosseiro dos materialistas”. E essa outra passagem emprestada às Lições sobre os
fenômenos da vida: “Não é um encontro fortuito de fenômenos físico-químicos que
constrói cada ser sobre um plano e seguindo um desenho fixo e previsto de antemão e
suscita a admirável subordinação e o harmonioso concerto dos atos da vida”. A
construção, a crença, o renovação regulada, a autorregeneração da máquina viva não é
um encontro fortuito. O caráter fundamental da vida, a evolução segundo Claude

7
Sublinhado por nós.
Bernard, é o inverso da evolução segundo os físicos, quer dizer, a sucessão de estados
de um sistema isolado e regido pelo princípio de Carnot-Clausius. Os bioquímicos de
hoje dizem que a individualidade orgânica, inalterada enquanto sistema em equilíbrio
dinâmico, exprime a tendência geral da vida em retardar a crença da entropia, em
resistir à evolução rumo ao mais provável estado de uniformidade na desordem.
Retornemos agora sobre essa expressão inteiramente espantosa, tratando-se de
um biologista que todo o mundo conhece como pouco suspeito de complacência pela
utilização de conceitos e de modelos matemáticos em biologia: “A lei de ordem e de
sucessão que dá o sentido ou a relação dos fenômenos”. Eis uma fórmula quase
leibniziana muito próxima da definição dada por Leibniz da substância individual: “Lex
seriei suarum operationum”, lei da série no sentido matemático do termo, lei da série de
suas operações. Essa definição quase formal, logicamente falando, da forma hereditária,
biologicamente falando, não está a aproximar da descoberta fundamental em biologia
molecular da estrutura da molécula de ácido desoxidorribonucleico constituindo o
essencial dos cromossomos, veículos do patrimônio hereditário, veículos cujo próprio
número é um caráter específico hereditário?
Em 1954, Wattson e Crick, que receberam oito anos mais tarde por isso o
Prêmio Nobel, estabeleceram que é uma ordem de sucessão de um número finito de
bases ao longo de uma hélice acoplada de fosfatos açucarados que constitui o código de
instrução, de informação, quer dizer, a língua do programa ao qual a célula se conforme
para sintetizar os materiais proteicos dos novas células. Desde então se estabeleceu, e o
Prêmio Nobel recompensou em 1965 essa nova descoberta, que essa síntese se faz por
demanda, quer dizer, em função das informações vindas do meio – meio celular, bem
entendido. De modo que, mudando a escala à qual são estudados os mais característicos
fenômenos da vida, aqueles de estruturação da matéria e aqueles de regulação das
funções, a função de estruturação aí compreendida, a biologia contemporânea mudou
também de linguagem. Ela cessou de utilizar a linguagem e os conceitos da mecânica,
da física e da química clássicas, linguagem à base de conceitos mais ou menos
diretamente formados sobre modelos geométricos. Ela utiliza agora a linguagem da
teoria da linguagem e a da teoria das comunicações. Mensagem, informação, programa,
código, instrução, decodificação, tais são os novos conceitos do conhecimento da vida.
Mas, objetar-se-á, esses conceitos não são afinal metáforas importadas, do
mesmo modo como o eram essas metáforas pela convergência das quais Claude Bernard
buscava suprir a falta de um conceito adequado? Aparentemente sim, mas de fato não.
Pois o que garante a eficácia histórica ou o valor cognitivo de um conceito é sua função
de operador. É, por conseguinte, a possibilidade que ele oferece de desenvolvimento e
de progresso do saber. Eu disse que há uma homogeneidade, e que deve haver
necessariamente homogeneidade, entre todos os métodos de aproximação da vida. Os
conceitos biológicos de Claude Bernard, que ele formou sobre o próprio terreno de sua
prática experimental, para dar conta do que ele havia descoberto de surpreendente e para
o que ele teve de criar um termo aparentemente paradoxal: aquele de secreções internas,
conceito do qual ele é o autor em 1855, esses conceitos de Claude Bernard lhe
permitiram uma concepção da fisiologia que autorizava uma certa concepção da
medicina. O estado patológico poderia aparecer num certo nível de estudo das funções
fisiológicas como uma alteração simplesmente quantitativa, mais ou menos, do estado
normal. Claude Bernard não percebia e não podia perceber – todos os sábios estão no
mesmo caso – que a descoberta casual da qual ele havia forjado um certo número de
conceitos lhe barravam a via para outras descobertas. A glicogênese hepática fornece
um exemplo de secreção interna que não da mesma ordem que a secreção de insulina
pelo pâncreas ou de adrenalina pelo suprarrenal. A função glicogênica do fígado é a
produção de um metabolismo intermediário. Claude Bernard não supunha, portanto, que
pudesse haver secreções internas como o que chamamos pela primeira vez os
mensageiros químicos, pois é para as secreções internas que em biologia utilizamos pela
primeira vez o conceito de mensagem e de mensageiro. Claude Bernard poderia pensar
que sobre sua fisiologia se fundava uma concepção da doença que autorizava uma certa
forma da medicina. Mas a diabete não é uma doença que releva unicamente do fígado e
do sistema nervoso, como Claude Bernard havia acreditado, negligenciando por
consequência o que clínicos haviam, já na época, suspeitado: a participação, a
intervenção de um certo número de outras vísceras, o pâncreas em particular. Com
muito mais razão, a definição da doença como alteração quantitativa de uma função
fisiológica normal não convém para essas doenças que, desde que possuímos delas um
conceito, são descobertas em número crescente, e que dependem da transmissão
hereditária de perturbações de um metabolismo dado. O que um médico inglês, Sir
Archibald Garrod chamou, no início do século XX, “erros inatos do metabolismo”.
Mas já existe uma medicina cuja eficácia terapêutica confere aos conceitos
biológicos fundamentais da teoria da hereditariedade, interpretada na teoria da
informação, uma garantida de realidade. Por exemplo, a descoberta do erro metabólico
no que se chama, desde os trabalhos de Fölling, a idiotia fenil-pirúvica. Essa descoberta
permite, pela instauração de um certo regime, corrigir esse erro, à condição de que o
tratamento seja indefinidamente prolongado. Se a descoberta pelo Professor Jérôme
Lejeune da anomalia cromossômica, a trissomia 2, não conduziu a uma terapêutica anti-
mongoliana, ela indica, ao menos, sobre qual ponto devem convergir as pesquisas.
Quando se diz, portanto, que a hereditariedade biológica é uma comunicação de
informação, reencontramos, de certa maneira, o aristotelismo do qual partimos. Ao
expor a teoria hegeliana da relação entre o conceito e a vida, pergunto-me se, numa
teoria que tanto se aparentava ao aristotelismo, não arriscaríamos encontrar um meio de
interpretação mais fiel que numa teoria intuitivista como aquela de Bergson para os
fenômenos descobertos pelos biólogos contemporâneos e para as teorias explicativas
que eles propõem acerca deles. Dizer que a hereditariedade biológica é uma
comunicação de informação é, num certo sentido, retornar ao aristotelismo, se é admitir
que há no ser vivo um logos, inscrito, conservado e transmitido. A vida faz, desde
sempre, sem escrita, bem antes da escrita, e sem relação com a escrita, o que a
humanidade buscou pelo desenho, pela gravura, pela escrita e pela imprensa, a saber, a
transmissão de mensagens. E doravante o conhecimento da vida não se assemelha mais
a um retrato da vida, o que ela deveria ser quando o conhecimento da vida era descrição
e classificação das espécies. Ela não se assemelha à arquitetura ou à mecânica, o que ela
era quando era simplesmente anatomia e fisiologia macroscópica. Mas ela se assemelha
à gramática, à semântica e à sintaxe. Para compreender a vida, é preciso empreender,
antes de lê-la, descriptografar a mensagem da vida.
Isso desencadeia muitas consequências de alcance provavelmente
revolucionário, e cuja exposição, não que elas são, mas do que elas estão sendo,
tomaria, na verdade, muitas lições. Definir a vida como um sentido inscrito na matéria é
admitir a existência de um a priori objetivo, de um a priori propriamente material e não
mais apenas formal. Sob essa relação parece-me que se poderia considerar que o estudo
do instinto à maneira de Tinbergen ou de Lorentz, quer dizer, pela evidenciação de
padrões inatos de comportamento, é uma maneira de averiguar a realidade de tais a
priori. Definir a vida como o sentido é obrigar-se a um trabalho de descoberta. Aqui a
invenção experimental só consiste na busca da chave, mas, a chave uma vez encontrada,
o sentido é encontrado e não construído. Os modelos a partir dos quais são buscadas as
significações orgânicas utilizam matemáticas diferentes das matemáticas conhecidas dos
gregos. Para compreender o ser vivo é preciso fazer apelo a uma teoria não métrica do
espaço, quer dizer, a uma ciência da ordem, a uma topologia. Para compreender o ser
vivo à escala à qual nos situamos, é preciso fazer apelo a um cálculo não numérico, a
uma combinatória, é preciso fazer apelo ao cálculo estatístico. Por isso, também há
retorno, de uma certa maneira, a Aristóteles. Aristóteles pensava que as matemáticas
eram inutilizáveis em biologia porque ele não conhecia outra teoria do espaço além da
geometria que Euclides deveria sistematizar dando-lhe o seu nome. Uma forma
biológica, diz Aristóteles, não é um esquema, não é uma forma geométrica. Isso é
verdade. Num organismo considerado em si mesmo, por si mesmo, não há distância, o
todo está em toda parte presente na pseudoparte. O que é próprio ao ser vivo é
precisamente que na medida em que ele é vivo ele não está à distância de si mesmo.
Suas “partes”, o que chamamos ilusoriamente partes, não estão à distância umas das
outras. Pelo intermediário de suas regulações, pelo intermediário do que Claude Bernard
chamava “o meio interior”, é o todo que está a todo momento presente em cada parte.
Por conseguinte, Aristóteles, num certo sentido, não estava errado em dizer que
pela forma biológica, quer dizer, essa forma segundo a finalidade ou o todo, essa forma
indecomponível onde o começo e o fim coincidem, onde o ato domina a potência, uma
certa matemática, aquela que ele conhecia, não nos dá nenhum alívio. E, sobre esse
ponto, Bergson seria menos escusável que Aristóteles de não ter visto que essa
geometria do espaço, que ele tem razão em julgar incompatível com a inteligência da
vida, não é toda a ciência do espaço, porque, precisamente no tempo de Bergson, a
revolução que culminou na dissociação da geometria e da métrica, como nós vimos, já
tinha sido realizada. Bergson viveu numa época em que as matemáticas haviam
rompido com o helenismo. Bergson que reprova, de certo modo, a todos os seus
predecessores por terem importado à filosofia um modelo helênico, não se dá conta de
que ele mesmo continua a julgar as matemáticas em função do modelo helênico das
matemáticas.
Se a ação biológica é produção, transmissão e recepção de informação,
compreende-se como a história da vida é feita, ao mesmo tempo, de conservação e de
novidade. Como explicar o fato da evolução a partir da genética? Nós o sabemos, pelo
mecanismo das mutações. Com frequência, objetamos a essa teoria que as mutações são
muito frequentemente subpatológicas, muito frequentemente letais, quer dizer, que o
mutante vale biologicamente menos do que o ser a partir do qual ele constitui uma
mutação. De fato, é verdade, as mutações são frequentemente monstruosidades. Mas,
sob o olhar da vida, haveria monstruosidades? O que são muitas das formas vias ainda
hoje, e bem vivas, senão monstros normalizados, para retomar uma expressão do
biologista francês Louis Roule. Por conseguinte, se a vida é um sentido, é preciso
admitir que ele pudesse aqui perdido o sentido, arriscado ser uma aberração ou um erro.
Mas a vida suplanta seus erros por outros ensaios, uma vez que um erro da vida é
simplesmente um impasse.
O que é então o conhecimento? Pois é, então, preciso terminar com essa
questão. Eu o disse, se a vida é o conceito, será que o fato de reconhecer que a vida é o
conceito nos dá acesso à inteligência? O que é então o conhecimento? Se a vida é
sentido e conceito, como conceber o conhecer? Um animal – e faço alusão ao estudo do
comportamento instintivo, comportamento estruturado por padrões inatos – é informado
hereditariamente a recolher e a não transmitir apenas algumas informações. Aquelas que
sua estrutura não lhe permite recolher são para ele como se não existissem. É a estrutura
do animal que delineia, no que parece ao homem o meio universal, tantos meios
próprios a cada espécie animal, como Von Uexkull o estabeleceu. Se o homem é
informado do mesmo modo, como explicar a história do conhecimento, que é a história
dos erros e a história das vítimas sobre o erro? É preciso admitir que o homem se tornou
tal como é por mutação, por um erro hereditário? A vida teria chegado, então, por erros,
a esse ser vivo capaz de errar. De fato, o erro humano provavelmente unifica a errância.
O homem se engana porque ele não sabe onde se colocar. O homem se engana quando
ele não se situa no lugar adequado para recolher certa informação que ele busca. Mas
também, é à força de se deslocar que ele recolhe da informação ou ao deslocar, por
todas as espécies de técnicas – e poderíamos dizer que a maior parte das técnicas
científicas retornam a esse processo – os objetos uns com relação aos outros, e o
conjunto com relação a ele. O conhecimento é, portanto, uma busca inquieta da maior
quantidade e da maior variedade de informação. Por conseguinte, ser sujeito do
conhecimento, se o a priori está nas coisas, se o conceito está na vida, é apenas estar
insatisfeito com o sentido encontrado. A subjetividade é então unicamente a
insatisfação. Mas talvez esteja aí a própria vida. A biologia contemporânea, lida de uma
certa maneira, é, de certo modo, uma filosofia da vida.

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