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“Hell has disappeared

and nobody notices”1

Aparentemente o Papa Francisco notou e declarou que ele não existe. A frase guarda uma
ambiguidade que vale a pena discutir.

Apesar de muitos acreditarem que a vida pôs morte, nos aguarda com um poderoso
julgamento. Poucos agem para evita-lo. Não existem pecados novos, todos são velhos e já
foram descritos. Portanto é difícil que escapemos de uma pena eterna, junto ao fogo.

A construção de um local para a penitência das faltas humanas, principalmente dentro do


catolicismo , nasceu desde sua origem. O inferno é um amalgama de diversas visões de outras
religiões que os judeus fundiram e que acabaram sendo transferidas para o imaginário cristão.
É curioso notar que o judaísmo nunca propagou muito a ideia de punição eterna. O inferno
dura pouco para os adeptos do judaísmo. Uma semana! As almas que pronunciarem as
palavras sagradas - o nome de Deus, tem sua absolvição e os que não fizerem, simplesmente
desaparecem. Esta é de certa maneira visão do Papa. Ela está entre as doutrinas com as quais
a Igreja já dialogou e se debateu.

Um poeta no século XIV, construiu a mais impressionante visão do Inferno até então. E de tão
poderosa entrou de imediato, fortemente, no imaginário cristão. Dispostos em três cantos a
Comédia, com o seu Inferno, Purgatório e Paraiso, traça a busca da redenção do poeta(e, por
conseguinte a da humanidade) passando por três reinos do além. O caráter imagético do
poema foi calculado metodicamente pelo poeta, Dante Alighieri, que durante 14 anos
escreveu sua odisseia pelos três reinos, acompanhado de seu guia e mentor, Virgílio. O poema
composto de 14.322 linhas de verso, combinadas em tercetos, é uma das obras primas da
literatura ocidental.

Sua influência sobre as religiões, nas concepções de inferno, é inegável. Matemáticos,


arquitetos e pintores, entre outros, se debruçaram sobre a obra, aprofundando e trazendo
novas visões sobre o poema.

Antônio Manetti (1423 –1497) foi um intelectual de Florença, mais conhecido pela sua
biografia do mais famoso arquiteto da Renascença, Brunelleschi. Mas ele era também um
estudioso da obra de Dante, e sobre ela ele escreveu um texto, jamais publicado, sobre “A
localização, forma e tamanho do Inferno. Considerado um dos fundadores do estudo da
cosmologia Danteana2. Com base nas informações contidas na Comédia, montou uma
expressiva visualização de como seria topograficamente este local. Publicado como um
comentário do ,igualmente, um humanista florentino Cristoforo Landino(1424-1498) reportou
estes comentários e cálculos numa edição da Comédia em 1481 e 1506.

Dante nunca nominou sua Comédia, divina. É bom lembrar, que o século XIV é o prenuncio do
Renascimento, portanto a redescoberta da cultura grego romana, ira influenciar todos os
segmentos da atividade humana. No teatro grego, tudo que começa bem e termina mal, é uma

1
“o inferno desapareceu e ninguém notou” frase do historiador Marin Martin

2
https://www3.nd.edu/~italnet/dante/text/Hell.html site visitado em 06/05/2018
tragédia. Aquilo que começa mal e termina, bem uma comédia!3 Será o poeta e escritor
Boccacio que fará isso, ao dizer que esta obra, em função de sua importância, era Divina!

Quando Dante construiu sua visão de Inferno, ele criou um texto voltado a imagem. O poema
neste momento, não era lido da forma silenciosa, como lemos hoje. Ele era voltado a leitura
pública, por oradores especializados. Dante construiu seu poema em especial, o Inferno de
maneira como os roteiristas fazem com seus roteiros fazem hoje. Voltados a construção da
Imagem.

Em 1587, um jovem candidato a professor de matemática, é convidado para duas palestras na


Academia Florentina, importante centro de irradiação intelectual na Renascença. Este jovem
foi chamado para dirimir uma disputa entre dois intelectuais, sobre suas visões sobre Dante.
Uma era o florentino Antônio Manetti e o outro , Alessandro Vellutello, literato da cidade de
Luca, as duas visões se contraditavam e era preciso, para o orgulho de Florença, que as
dúvidas fossem eliminadas e que o florentino ganhasse a disputa.

O Inferno criado pelo poeta é um cone invertido cujo centro passa por Jerusalém e seu vértice
se encontra no centro da terra. Ele foi formado a partir da queda de Lúcifer, de acordo com o
velho Testamento, abatido em sua luta contra o anjo Miguel.

O jovem que fez duas palestras era Galileu Galilei, o título completo da palestra era “ Duas
aulas lidas ante a Academia de Florença a respeito da forma, do local e do tamanho do Inferno
de Dante”4 (MANGUEL, 2016).

A participação de um dos maiores intelectuais e cientista do século XVI nos leva a uma questão
interessante: por que a ciência deveria se envolver com as questões religiosa, que são frutos
de intensos debates até hoje, e por que está deveria ser uma questão “cientifica” uma vez que
pertence mais ao campo de literatura e da ficção?

Toda vez que anuncio o tema de meu doutorando, “Uma nova topografia para o Inferno de
Dante, sempre percebo naqueles vindo das ciências puras (ditas matemáticas, física,
estatística) um certo olhar de desprezo e ironia.

A ciência é em princípio a produção de conhecimento. Ela sequer, num primeiro momento,


tem a pretensão de ver sua utilidade validada(os cálculos quânticos permaneceram durante
décadas sem se saber sua real utilidade). Esse conhecimento pode ser produzido em qualquer
área de interesse humano. Mas de que maneira o Inferno pode produzir conhecimento?

Em primeiro lugar, o poema é literatura, em seguida ele, concentra o conhecimento anterior


seja na fica, na cosmologia e na astrologia, além disso adentrou na mitologia e na religião
medieval, ao deu luz ao mais temeroso argumento da Igreja; o medo!

A condução de uma política de coerção e controle das massas, para aquilo que ela chamava de
correta conduta cristã.

3
Prof. Dr. Paulo Franchetti, em conversa com este pesquisador.

4
Mais informações MANGUEL, Alberto. Uma História Natural da Curiosidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.
No caso específico de Galileu ele
precisou fazer cálculos sobra a
calota que recobria o inferno para
isto utilizou conhecimentos
trazidos a pouco5,para o Ocidente.
E o que é mais importante; ele
errou!

Galileu procurou provar que os


cálculos de Antônio Manetti
estavam corretos e que a cúpula
deste cone era suficiente para
suportar o peso próprio.(veja
fig.1). Ele deu ganho de causa a
Manetti em detrimento ao
argumento de Vellutello.
Entretanto n nunca mais ele
comentou essas palestras e a nem
própria academia as registrou6. O
próprio Galileu deve ter percebido
que havia cometido um grande
erro. Nunca se saberá ao certo,
quanto tempo depois ele
percebeu seu engano. O que é
certo que 50 anos depois ele
publicara um livro chamado
“Discurso sobre duas novas Ciências” onde ele apresenta a base para uma teoria da resistência
dos materiais onde estava embutida a Lei do quadrado-cubo. Exatamente a lei que ele feriu ao
defender Manetti.

A descrição da obra de Galileu, Manetti e Vellutello, serve para mostrar que a partir de um
elemento de ficção pode advir conhecimento é ciência.

Outra forma de se ver o inferno, é a tese desenvolvida pelos historiadores Leopold von Ranke
(1795 – 1886) e Johann Gustav Droysen (1808 – 1884), que juntos são considerados os pais da
moderna historiografia, “Wie es eigentlich gewesen” (o que realmente aconteceu) .

“A evidência histórica nunca pode ser suficientemente clara para sabermos


o que realmente aconteceu (Wie es eigentlich gewesen), mas a evidência
sobre o que as pessoas acreditavam ter acontecido é relativamente clara. O
conceito – o que as pessoas acreditavam que aconteceu – é mais

5
Além do desenvolvimento de seus próprios cálculos ele utilizou referencias eruditas de Arquimedes e
Euclides, que ainda não eram de domínio público, poucos tinham tido acesso as traduções recentes.

6
Em 1850, o erudito Octavo Gicli localizou um manuscrito, sobre as leituras. Aparentemente Bacio Va
lori, que foi cônsul na Academia, guardou duas copias e uma, originalmente, escrita por Galileu.
(MANGUEL, 2016) e (PETERSON, 2011)
importante que o que realmente aconteceu, porque as pessoas agem sobre
o que elas acreditavam ser verdadeiro”7

Assim como eles fizeram no passado, podemos fazer hoje, o que pode provocar um grande
estranhamento, por suas imensas dimensões localização e forma.

Como foi dito o Inferno é um cone e sua origem é a queda de Lucifer8, os professores Elzo e
Maurizio da Universidade Estadual de São Paulo, fizeram exatamente isto, como se fosse
verdadeiro e calcularam a velocidade de queda do Diabo, para fazer os cálculos que dariam a
quantidade de energia suficiente para se criar um inferno na dimensões colocadas por Dante
Galileo e Manetti. O Intuito dos professores não é mostrar que o Inferno existe ou não, mas
entender o quanto de ciência é possível utilizar “se fosse verdade”. Isto nos leva ao limite
desta questão, a ciência não importa o qual veraz pode ser seu assunto, o que importa é
quanto de conhecimento podemos extrair dai.

O inferno possui a dimensão mostrada na fig.2. sua capacidade é de

7
RUSSEL Jeffrey Burton, “O Diabo – Percepções do mal da Antiguidade”.

8
Veja mais em DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7941.2016v33n3p1047 A gênese do Inferno e do
Purgatório na Divina Comédia de Dante: uma ponte possível entre Física e Literatura. Elso Drigo e
Maurizio Babini

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