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Aarte marcial e o lado espiritual Parte Ha uma ligagdo ou entrelacamento profundos entre a pratica da arte marcial e o desenvolvimento espiritual? Uma resposta positiva a isso é uma constatagio que no traz muita novidade para boa parte dos alunos, praticantes, professores ou mestres. Na verdade, pode-se afirmar, com algum grau de certeza, que muitos iniciaram a pratica por terem lido ou sido informados que as artes marciais eram, também, um caminho espiritual. Mas, talvez, alguns praticantes néo respondam positivamente a essa questo. Ou tenham dividas sobre isso. Pode ser que estejam buscando esse desenvolvimento espiritual e ainda no tenha tido nenhum Vislumbre de alguma convergéncia entre treino marcial e prética espiritual ou pode ser também que estejam esperando algum tipo de evento mégico, fendmeno mistico, milagre ou iluminago scbita Minha prépria opinio é de que os caminhos marcial e espiritual estdo muito entrelacados. Ao iniciarmos 0 treinamento estamos iniciando uma jornada que, possivelmente, comegou muito antes. (© caminho do treinamento é uma “aventura”. Ndo uma aventura no sentido dos romances baratos ou de um bom filme no cinema, € uma aventura no sentido em que repete os passos do que os antropélogos e psicanalistas chamam de “A Jornada do Heréi” Como nos mitos cléssicos ou nos contos de fada, a jornada seguird um roteiro basico cujas variagdes dependerao da personalidade do praticante, da cultura onde esta inserido, seu passado, da arte que escolhe, do mestre que encontra, etc. Apesar das variagSes, para nés que seguimos o caminho hé fases e ciclos (pois podem ser necessérias varias jornadas, dependendo da meta) que so comuns a todos 0s caminhantes. A duracdo exata de cada fase, 0 ritmo e o ntimero de ciclos, os detalhes de cada jornada (ou jornadas) serao diferentes, mas alguns pontos comuns nos conectam. As fases da Jornada. A jornada comeca com “O Chamado”. Em nossas vidas, em algum ponto, por algum motivo, nos sentiremos atraidos pelo caminho marcial. Dos motivos mais fiteis e egoistas aos mais espiritualizados, em algum momento sentiremos a motivagio de comecar. Esse é 0 chamado. Uma vez escutada a “voz" do chamado (que no ¢ sobrenatural e sim a voz interior), passaremos a olhar em volta com mais atencao. Talvez nem saibamos exatamente o que queremos ou 0 que estamos procurando. Mas persiste a sensacao de insatisfacdo, de vazio, de que falta algo... ‘A segunda fase refere-se ao “Encontro”. Nossa atencdo foi despertada pelo chamado, isso nos coloca em uma determinada faixa de sintonia e, em algum momento, encontraremos um “guia”. Nos contos de fada (ou nos mitos, esse guia é geralmente um personagem sobrenatural, um deus, um feiticeiro, uma fada, etc. Mas pode também ser um ancido, um guerreiro veterano, alguém que jd percorreu o mesmo caminho, que jé tentou a mesma aventura, etc. Trata-se de alguém que nos contara sobre a aventura que nos aguarda, que nos aconselhard e que nos dard alguma informacao importante, ensinamento, amuleto, ferramenta ou encantamento que seré decisivo no percurso e nos perigos que virdo. Nas Artes marciais, essa figura do “guia”, € a figura do mestre. O mestre ndo é sobrenatural, muito embora possa parecer assim as vezes, especialmente para os novatos. € alguém que jé percorre 0 caminho ha muito tempo antes de vocé. Alguém que um dia escutou 0 “chamado”, procurou e encontrou um “guia” Ele aceitou 0 chamado, encontrou um guia e comecou a jornada. Foi t8o longe, jé viu e aprendeu tanto, assou por tantas aventuras (talvez varias jornadas) que comecou a escutar outro chamado. O chamado de ajudar a guiar outros no mesmo caminho. Quando ouvimos a “voz” e encontramos o “guia” chega um momento crucial. Se houver sintonia e empatia com o guia/mestre, se vocé aceitar 0 roteiro que ele lhe apresenta, vocé daré um passo decisivo e atravessard 0 “portal”. Essa sintonia com 0 mestre (se acontecer) no é gratuita ou mera coincidéncia (isso existe?). J4 ouviram 0 ditado: “Quando o discipulo esta pronto o mestre aparece”? Uma vez que escutamos o “chamado”, encontramos um “guia” e sentimos empatia/sintonia/confianca o bastante nele para pararmos e escutarmos, ele nos contard sobre a “jornada”, nos dard as ferramentas e ensinamentos necessérios e nos apontard o “portal” de entrada para a aventura. Possivelmente ele passard algum tempo conosco. Apontard os primeiros passos do caminho, mostrar os pontos de referéncias mais distantes e, possivelmente, permanecerd um passo atrés vigiando e pronto para dar um conselho ou um empurrdozinho em caso de necessidade. Mas ele ndo o tomaré pela mao e o guiard paternalmente. Ele sabe que o caminho deve ser percorrido por vocé, na solidéo do seu coracao.. Por que 0 caminho, assim como a voz, nao sao externos a vocé. A vor é a sua vor interior. O chamado é uma inquietacgo interna e a jornada no serd uma jornada por um caminho externo. Seré uma jornada interior, de autoconhecimento. Os anos de treinamento e disciplina que seguirdo, servirdo para que vocé tome conhecimento com clareza de quem vocé 6, do seu lugar no mundo. Suas facanhas ou aventuras, embora possam, eventualmente, deixar marcas externas e afetar a vida de outros ou da sociedade, sergio aventuras internas, onde vocé aprenderé a conhecer e controlar seus medos e fraquezas. Os combates que travaré serio, em ultima anélise, combates contra vocé mesmo. Voc, quem sabe, conseguiré vencer a si mesmo e emergiré Vitorioso ndo sobre monstros miticos, mas sim sobre medos, fraquezas, angistias, traumas e tudo que se interpde entre sua vida antes do chamado e a realizacao plena de seu potencial. © chamado era a inquietacao e a angtstia da possibilidade de nunca realizar esse potencial. Se o “herdi” percorre a jornada interior e emerge vencedor, ele torna-se senhor de si mesmo. Conhecedor do caminho e, talvez, se receber 0 chamado, um guia para os que virdo depois. © heréi parte na jornada em busca da vitéria, Vitéria sobre si mesmo. Os primeiros passos, de escutar 0 chamado, encontrar o mestre, aceitar 0 ensinamento e, por fim, atravessar 0 portal, envolvem vencer 0 medo do desconhecido e do inesperado. A esses primeiros medos e desafios, outros seguirao ao longo do camino, ‘Apés a aventura ele emergird mudado. Ele mudou a si mesmo e ndo o mundo. Ele buscou o “reino”. Talvez, a0 iniciar a busca, tenha partido atrés de poderes miraculosos ou alguma outra ilusdo qualquer. Por fim ele descobriré que o que busca estava em si mesmo, pois, afinal, como disse o Mestre Jesus: “Nao vem o reino de Deus com visivel aparéncia. Nem dirdo: Ei-lo aqui! Ou Lé estd! Porque o Reino de Deus estd dentro de vés. Nao é 0 mundo que muda. € 0 caminhante que muda: “Antes do Zen, as montanhas eram apenas montanhas, os rios apenas rios, as drvores ‘apenas érvores.” “Depois do Zen, as montanhas deixaram de ser montanhas, os rios deixaram de ser rios, as drvores deixaram de ser drvores.” “Mos quando sobreveio a iluminagao, as montanhas voltaram a ser montanhas, os rios ‘apenas rios, as érvores apenas érvores.” ‘Apés buscar dentro de si mesmo: ““Seguir 0 caminho é esvaziar a mente.” “Saber um pouco menos a cada dia.” ““Até que, ao final da jornada, vocé e o caminho sejam um s6.” “Como sempre foram! Falamos acima sobre as coisas grandiosas e, no momento, abstratas do caminho, Mas 0 real percurso nao é um “conto de fadas”, a magia e os sortilégios sio uma boa metéfora, mas 0 caminho se percorre andando. Aqui e agora. A jornada interior exige determinacéo, dedicacdo, desprendimento e disciplina. A disciplina por vezes é vista como um jugo, uma prisdo. No entanto ao percorrer o caminho, talvez seja a ferramenta principal. A verdadeira disciplina, escolhida voluntariamente, ao invés de oprimir, liberta,

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