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Caderno Religião e Política

Por uma perspectiva afrorreligiosa:


estratégias de enfrentamento ao racismo religioso
Lucas Obalera de Deus

Editora: Pesquisa iconográfica:


Fundação Heinrich Böll Marilene de Paula
Andréa Carvalho
Coeditora:
Sebastian Lenders
KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço

Licença CC BY-NC-SA 4.0 Revisão:


https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0 Marilene de Paula e Manoela Vianna

Fotos das capas: Projeto gráfico e diagramação:


Capa: André Mellagi (CC BY-NC-ND 4.0) Beto Paixão
Contracapa: Clara Angeleas/MinC (CC BY 4.0) fb.com/bpstudiodesign
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D486p
Deus, Lucas Obalera de.
Por uma perspectiva afrorreligiosa: estratégias de enfretamento ao
racismo religioso.
Lucas Obalera de Deus. – Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2019.
43 p.

ISBN 978-85-62669-26-2

1. Liberdade religiosa. 2. Discurso de ódio. 3. Intolerância religiosa.


4. Religião e direito. I. Deus, Lucas Obalera de. II. Título.

CDD 261.8348

Rio de Janeiro, janeiro de 2019


POR UMA
PERSPECTIVA
AFRORRELIGIOSA:
Estratégias de
enfrentamento ao
racismo religioso

Lucas Obalera de Deus


ABRINDO
OS CAMINHOS
A TOQUES
DE TAMBOR Pg. 7

TRILHANDO
OS CAMINHOS
DA PESQUISA Pg. 10

TRAZENDO
O RACISMO
RELIGIOSO PARA
A DISCUSSÃO Pg. 12

ALGUNS DADOS SOBRE


O CENÁRIO DE RACISMO
RELIGIOSO / INTOLERÂNCIA
RELIGIOSA Pg. 16

MOVIMENTOS,
MOBILIZAÇÕES E
PROJETOS DE ENFRENTAMENTO
AO RACISMO RELIGIOSO Pg. 19

TOCANDO E
CANTANDO PARA
SUBIR: BREVES
CONSIDERAÇÕES Pg. 41
APRESENTANDO
O CADERNO
RELIGIÃO E POLÍTICA
A história da luta das negras e negros no Brasil pela
sua liberdade e igualdade começa quando os primei-
ros aqui chegaram vindos escravizados nos tumbeiros,
como eram chamados os navios que trouxeram cerca
de três milhões de pessoas para as terras brasileiras. O
legado histórico de tantos homens e mulheres amal-
gamou o Brasil de hoje. Mas o processo de escraviza-
ção deixou sua raiz perversa na formação da socie-
dade brasileira. Entendê-lo e superá-lo é tarefa com a
qual nos debatemos todos os dias. Em muitas arenas
houve avanços, conseguidos a partir da resistência,
das alianças, da rebelião, do convencimento, da justi-
ça, da política, da reza, do canto, da dança.
As religiões afro-brasileiras foram e são o sustentácu-
lo dessa herança visível nos rostos de um pouco mais
de 50% da população. Atacados por grupos religiosos
cristãos fundamentalistas, mães e pais de santo, filhos
e filhas das comunidades de terreiro, hoje se articulam
em um sem número de organizações, comunidades
e movimentos que lutam por respeito e garantia de
seus direitos. O racismo, em sua versão religiosa, fez
aumentar o número de casos de violência contra ter-
reiros, centros e roças de candomblé e umbanda ao
longo do território brasileiro. A resposta também está
sendo dada, a partir de iniciativas das mais variadas,
é o que nos conta Lucas Obalera de Deus, autor da pu-
blicação digital “Por uma perspectiva afrorreligiosa:
estratégias de enfretamento ao racismo religioso”,
que @ leitor@ tem em suas telas. Protagonista de sua
história, o povo de santo, vem resistindo às tentativas
de demonização, ao desrespeito, violências simbóli-
cas, físicas e psicológicas.
Para falar sobre esse tema a Fundação Heinrich Böll e
KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço lançam o Ca-
derno Religião e Política, que nesta edição mapeia ini-
ciativas da sociedade civil contra o racismo religioso.
Além de trazer para discussão questões de fundo em
relação ao racismo religioso que permeia tantas ma-
nifestações de violência contra esse segmento.
Agradecemos a Ana Gualberto e a toda equipe de KOI-
NONIA pela sempre presente parceria e a Lucas Obale-
ra pela disposição e cuidado em nos fazer pensar so-
bre as implicações dos racismos em nossa sociedade.
Que seja cada vez mais realidade o respeito a todas
as crenças e religiões, a todas as vozes que buscam
reforçar a em constante disputa e construção, demo-
cracia brasileira.
Abraços,

Marilene de Paula
Coordenadora de Programa
da Fundação Heinrich Böll
1.
ABRINDO
OS CAMINHOS
A TOQUES
DE TAMBOR*

Lucas Obalera de Deus1

Os terreiros têm funcionado como efetivos


centros de luta, de resistência cultural
africana desde o século XV.
Abdias do Nascimento

As linhas que vão tecendo cada palavra ancestrais. Centrado nessa localização
e formando cada parágrafo são escri- afrorreligiosa, a tecitura deste trabalho
tas por um cientista social afrorreligioso tem o intuito de fazer ressoar, a toques
negro, iniciado na comunidade-terreiro de atabaques, não o lugar de simples
Ilê Axé Onisegun. E é deste lugar cultural, vítima, mas a continuidade da luta, re-
social e epistemológico que o autor vi- sistência e existência cultural negroafri-
vencia um complexo e rico universo de cana das comunidades de terreiro.
matriz africana, aonde os seus vivencia-
dores analisam, refletem, reagem, atu- Sendo assim, a reflexão empreendida
am, resistem e (re)existem. Nesse sen- no decorrer dessas páginas tem a fi-
tido, é de um lugar que não é somente nalidade de levantar uma discussão
atravessado por tentativas de destrui- acerca da perseguição e proliferação
ção de seus territórios, valores e saberes de múltiplas violências direcionadas

*. Meus agradecimentos a meu mestre Ògìyán Kàlàfó Jayro Pereira, a Iyá Torody d’ Ogun, Bàbá Adailton Moreira d’ Ogun, Iyá Wanda
Araújo d’ Omolu, Bàbá Alexandre Carvalho d’ Oxumarê, Babalawô Ivanir dos Santos, Mãe Marilena, Léo Akin Olakunde e João Paulo
Alves. Obrigado pela generosidade em me acolherem para a realização das entrevistas, pelo compartilhamento de seus saberes,
conhecimentos e inquietações. Aproveito para agradecer a tantas outras vozes de irmãs e irmãos que ajudaram a realizar este
trabalho. Nada somos só. Juntas/os e com nossos ancestrais seguiremos rumo a nossa libertação negroafricana.

1. Cientista social formado pela PUC-RIO, articulador nacional da Escola Livre Ubuntu de Filosofia e Teologia Afrocentrada/Decolo-
nial, coeditor do Jornal Nuvem Negra e ìyàwó do Ilê Axé Onísègun.
.

LUCAS OBALERA DE DEUS


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às religiões de matriz africana. Temos o maneiras das comunidades de terreiro
intuito de investigar as estratégias teó- de resistir e (re)existir na estrutura ra-
ricas e práticas que vêm sendo utiliza- cista-colonial-moderna brasileira.
das por afrorreligiosos no seu enfrenta-
Visamos mudar a perspectiva sob o
mento ao racismo religioso no Estado
cenário de perseguição às religiões
do Rio de Janeiro. Com isso também
de matriz africana. Em vez de perce-
tentaremos apreender o que os afror-
ber os afrorreligiosos como vítimas de
religiosos compreendem como uma
violências, propomos pensá-los como
estratégia. Esse movimento é (estrita-
alvo das violências. A ideia de vítima
mente) necessário, pois visa focalizar/
tem o efeito de reforçar um imaginá-
recolocar os afrorreligiosos como su-
rio em que os religiosos de matriz afri-
jeitos e agentes nesse contexto de vio-
cana seriam passivos, em “desagên-
lência, e não apenas como aquele que
cia”, isto é, “descartado como ator ou
sofre a agressão de forma passiva. Pre-
protagonista em seu próprio mundo”
tende então observar quais têm sido as
(ASANTE, 2009, 95), diante das agres-
estratégias construídas por afrorreli-
sões. De maneira inversa, a ideia de
giosos para enfrentar as violências ver-
alvo permiti-nos evidenciar o caráter
bais, simbólicas, psicológicas e físicas
da violência, ao mesmo tempo em
protagonizadas, sobretudo, por evan-
que não descarta a “agência”, isto é,
gélicos de tradição neopentecostal.
“a capacidade de dispor dos recursos
Buscamos investigar e compreender os psicológicos e culturais” (Ibid, 94) dos
processos de mobilização dos afrorreli- afrorreligiosos em sua luta pelo fim
giosos, suas narrativas, interpretações, das múltiplas agressões. Além disso,
ações e reações no enfrentamento ao ao pontuarmos as religiões de matriz
racismo religioso. “É a partir da pers- africana como alvos, estamos ressal-
pectiva interna aos atores que se po- tando que há uma ação quase deli-
derá perceber o caráter da violência” berada de vários setores da socieda-
(ANJOS, 2006, p. 62). Desse modo, o títu- de, que mesmo que camufladas, não
lo “por uma perspectiva afrorreligiosa”, deixam de ser direcionadas.
tem o objetivo apenas de demarcar
Uma vez que a pesquisa se propõe a
a centralidade das comunidades de
reconhecer e valorizar a perspectiva
terreironesta problemática. Logo, não
afrorreligiosa – aqui entendendo es-
pretende insinuar a existência de uma
pecificamente os afrorreligiosos que
única perspectiva, afinal, o mundo do
participaram da pesquisa -, a catego-
terreiro é muito diverso internamente.
ria racismo religioso apareceu como
Sendo assim, como os povos e comu-
algo a ser explorado. Seja como uma
nidades de terreiro de matriz africana
substituição à categoria de intolerân-
pensam, se articulam e atuam dentro
cia religiosa, ou como mais uma cate-
da violência, é o questionamento que
goria necessária ao debate, o racismo
mobiliza toda a nossa reflexão.
religioso é evocado nas entrevistas. A
Se por um lado a demonização, perse- forma com que a concepção de racis-
guição, subalternização e a violência às mo religioso aparece, evidencia a im-
religiões de matriz africana sempre es- portância que ela assume no debate
tiveram presentes nesse país, por outro, contemporâneo acerca da persegui-
vamos encontrar igualmente variadas ção aos terreiros de matriz africana. As

8 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


reflexões e análises afrorreligiosas du- civil contra os “Gladiadores do Altar”,
rante as entrevistas ressaltavam como 2015; movimento Não Mexa na Minha
racismo religioso é uma ferramenta Ancestralidade, fundado em 2017; arti-
teórico-política com rendimento ana- culações em torno da invasão e depre-
lítico capaz de ampliar o significado e dação das comunidades de terreiro em
sentido das múltiplas violências per- Nova Iguaçu, em 2017; o aplicativo “Oro
petradas contra as comunidades reli- Orum: axé eu respeito”, criado em 2017.
giosas de matriz africana. Além de tra-
Seguindo os toques de tambor ances-
zer novos questionamentos em torno
tral, não podemos deixar de registrar
dessa problemática histórica.
que no dia 13 de maio desse ano com-
Ademais, encontraremos aqui o “Projeto pleta-se 130 anos da falsa abolição da
Tradição dos Orixás, Inkices e Voduns”, escravidão. “13 de maio não é dia de
de 1987-1994; Centro de Tradições Afro negro” a tempos canta o bloco afro Ilê
-brasileiras Ylê Asè Egi Omim, fundado Ayê, da Bahia, e embalado pelos tam-
1997; PADE – Projeto Africanidade em bores do “mais belo dos belos”, esse
Dança e Educação, fundado em 2007; a trabalho surge como mais uma prova
“Comissão de Combate a Intolerância cabal de que a escravidão continua
Religiosa”, fundado em 2008; “Mapea- criando suas formas de se perpetuar e
mento das Casas de Religiões de Matriz tentar aniquilar os povos e culturas de
Africana no Estado Rio de Janeiro”, de ascendência africana. Contudo, assim
2008-2011; MUDA - Movimento Umban- como nossos ancestrais sequestrados
da do Amanhã, fundado em 2008; Mo- de sua terra-mãe e escravizados, esse
bilização das comunidades de terreiro trabalho ressalta igualmente a conti-
de matriz africana contra a decisão do nuidade de nossa luta e reexistência
juiz federal, 2014; abertura de inquérito negroafricana e afrorreligiosa.

Integrantes do Candomblé protestam em frente ao Congresso Nacional pela igualdade religiosa


Imagem: Pedro França/Agência Senado, 21 de maio de 2014 (CC BY-NC 2.0)

LUCAS OBALERA DE DEUS


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2.
TRILHANDO
OS CAMINHOS
DA PESQUISA
A nossa escrevivência não pode ser lida como
histórias para ‘ninar os da casa-grande’ e sim
para incomodá-los em seus sonos injustos.
Conceição Evaristo

Como as comunidades de terreiro têm


vivido, pensando, refletido, experiencia-
do e, a partir disso, criado estratégias
de enfrentamento ao racismo religioso?
Questionamento que resulta da inquie-
tação de perceber que os estudos sobre
a temática no Brasil nas últimas déca-
das estão voltados, sobretudo, para as
denominações evangélicas neopente-
costais. Diante disso, os afrorreligiosos
têm ocupado somente o lugar de víti-
mas de agressões que, como tais ge-
ralmente são acionadas para, apenas,
relatar a dor e o sofrimento. Com essa
provocação temos o interesse em des-
locar a centralidade dos evangélicos
das reflexões e recolocar os afrorreligio-
sos para o centro deste debate e assim, Olubajé 2018, Salvador (BA)
valorizar a perspectiva afrorreligiosa so- Imagem: Ivana Flores (Flores Comunicação)

bre a perseguição e violência às comu-

10 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


nidades-terreiro. Bruno Reinhardt, acer- O trabalho teve o objetivo de reunir
ca desta problemática ressalta que: movimentos e mobilizações de afror-
religiosos que vem acontecendo e/ou
que aconteceram. Posteriormente or-
A ‘guerra santa’ textualizada nes- ganizá-los de maneira mais ou menos
ses escritos tendia a ser composta cronológica, pretendendo assim, des-
apenas por um dos lados que nela crever e criar uma espécie de trajetó-
supostamente guerreiam: aque-
ria de luta afrorreligiosa. Sendo assim,
les dos evangélicos. Assim, o que
foram realizados, inicialmente, uma
a princípio era ‘guerra’ passa a ser
espécie de mapeamento de alguns
narrada, de fato, como uma espé-
movimentos, mobilizações e projetos
cie de ‘ofensiva evangélica’, acei-
protagonizados por afrorreligiosos que
ta com resignação pelo lado afro
tivessem o objetivo de enfrentar e al-
-brasileiro. (REINHARDT, 2007, p. 197).
terar as violências físicas, simbólicas,
psicológicas e patrimoniais às religi-
É essa suspeita sobre a ausência de ões de matriz africana. Logo, houve
“resignação pelo lado afro-brasileiro” muito mais um interesse em descrever
que nos conduziu a busca das formas e registrar a luta, resistência e (re)exis-
de ver, viver e atuar nesta “guerra san- tência do povo de terreiro.
ta”, no Estado do Rio de Janeiro. Sendo Assim como Maulana Karenga, com-
assim, fomos investigar o protagonis- preendemos ser fundamental “colo-
mo e a perspectiva afrorreligiosa, dian- car os povos africanos [aqui enten-
te deste cenário de violência e cercea- didos como pessoas de ascendência
mento à liberdade religiosa. africana no continente e na diáspora]
no centro de sua cultura e de sua his-
tória” (2009, p. 335). Nessa perspectiva,
os afrorreligiosos foram reconhecidos
e tratados como intelectuais que em
suas reflexões nos municiam de fer-
ramentas para tecer os caminhos
reflexivos e analíticos. As entrevistas
foram realizadas e posteriormente
tratadas, como resultado do que Ka-
renga (2009) define por “diálogo sig-
nificativo”, isto é, local e fonte valiosa
no sentido de oferecer problemáticas
reflexivas, conceitos, práticas capa-
zes de ajudar a estruturar um empre-
endimento intelectual. Nesse sentido
há um esforço, um exercício em mo-
bilizar os próprios textos – entrevistas
transcritas – como parte do referen-
cial teórico, do mesmo modo em que
se recorre ao uso de uma obra autoral
reconhecidamente publicada.

LUCAS OBALERA DE DEUS


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3.
TRAZENDO
O RACISMO
RELIGIOSO PARA
A DISCUSSÃO

Numa cultura com racismo,


o racista é, pois, normal.
Frantz Fanon

Lideranças de terreiro na abertura da a Iyalorixá indaga: “como é que a gen-


Plenária Nacional dos Povos Tradicio- te começa a trazer o racismo para as
nais de Matriz Africana, no III CONAPIR, nossas discussões? E é falar disso! E eu
em 2013, produziram um documento percebo que tem gente que corre. Con-
aonde defendem que intolerância re- versa sobre intolerância religiosa, mas
ligiosa é uma “expressão que não dá não quer falar de racismo. Como é que
conta do grau de violência que incide é isso?” (Entrevista, 16 nov. 2017).
sobre os territórios e tradições de ma-
Quase no fim da conversa com Jayro
triz africana”. O documento afirma que
Pereira, perguntei como ele interpre-
“esta violência constitui a face mais
tava as tentativas de destruição das
perversa do racismo”.
religiões de matriz africana. A sua res-
Dito isso, é inevitável não trazer o ques- posta é categórica em afirmar ser re-
tionamento de Iyá Wanda d’ Omolu após sultado de racismo religioso e não de
afirmar que a “intolerância religiosa é fi- intolerância religiosa, exatamente por-
lhote do racismo”. Seguindo sua reflexão que, para ele,

12 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


medicinais, filosóficos, de compreensão
O racismo é a negação de uma do humano, de idiomas, de relação com
substancialidade humana. E essa a natureza, e etc. Neste sentido, a fala de
substancialidade humana tem o Bàbá Alexandre Carvalho d’ Oxumarê
sagrado como constitutivo de sua nos é enegrecedora:
existência. É racismo religioso! Into-
lerância religiosa [pausa]... A gente
tem que pegar isso para dizer que A gente sabe do valor do rio para
ela é muita mais violenta do que se vida humana e para vida dos ani-
imagina. É racismo religioso! (En- mais [...] o que que é uma folha, o
trevista, 20 jan. 2018). que que é um bicho; o que que é a
fala – tá aqui, tá no hálito, tá no orô,
tá no que você canta, no que você
Essa definição apresentada por Jayro é reza [...]. O Candomblé te ensina na
central, pois complexifica nossa com- fala e no silêncio. Você silenciado
preensão acerca do significado e sen- dentro do terreiro, você vai ouvir
tido de racismo. Por “negação de uma pérolas. No seu silêncio, fazendo
substancialidade humana” somos con- ali o seu serviço diário, cozinhando
um feijão, um omolocum, quinan-
vidados a compreendê-lo como um
do uma erva, montando um ebó.
fenômeno que gerencia a tentativa de
Você vai ouvir pérolas de sabedo-
aniquilar, anular, corroer todos os ele-
ria! (Entrevista, 15 nov. 2017).
mentos que compõem e personificam
a presença negroafricana. Logo, o ra-
cismo está longe de ser um fenôme-
no relativo as visíveis discriminações Seguindo esta discussão vamos encon-
e preconceitos que decorrem de rela- trar outras leituras que se somam e, assim
ções interpessoais entre brancos e ne- vão dimensionando a categoria de racis-
gros, como um fenômeno circunscrito mo religioso. Léo Akin Olakunde ressalta,
somente a cor da pele. É como afirma
Frantz Fanon (1980, p. 36), “o objeto do
racismo já não é o homem particular, Se a gente for falar sobre caráter
mas uma certa forma de existir”. do racismo religioso, porque nunca
teve intolerância no Brasil, porque o
Entender esta “presença particular no preto sempre foi visto como inferior,
mundo” nos dá substância para ampliar- subjugado por uma visão europeia
mos a dimensão da violência que incide […]. Era o quê? Os curdos contra os
sobre as comunidades de terreiro. Afinal, xiitas? [...] Isso é intolerância religio-
não é mais apenas sobre a negação de sa, um cristão não entender um ju-
uma religião, mas de um modo de ser, deu por uma questão do ponto de
sentir e existir no mundo cujo sagrado é vista histórico, antropológico, des-
constitutivo da existencialidade humana. sas explicações, desses porquês. E
“O terreiro é lugar da existência” (Jayro não são demonizados. Agora o que
de Jesus, entrevista, 20 jan 2018). Portan- acontece aqui é racismo religioso
to, é a negação de todo um complexo (Entrevista, 14 nov. 2017).
cultural que preserva saberes ancestrais,

LUCAS OBALERA DE DEUS


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Seguindo a mesma linha reflexiva, João fletir sobre e a partir do mundo colonial
Paulo Alves d’ Xangô, escravista que herdamos, deslocando,
portanto, a centralidade de outras ex-
periências históricas e sociais que não
Isso é racismo religioso. A maior nos acessam.
prova de que isso é racismo reli- Por fim, a iyalorixá Torody d’ Ogun e o
gioso […]. A gente tem templos de babalorixá Adailton d’ Ogun apresen-
várias religiões aqui no Rio de Ja- tam os motivos que os levam a inter-
neiro. Templos budistas [pausa]. pretarem como racismo religioso. Evi-
Qual desses templos a gente vê denciam a relação entre racismo e o
sendo atacados, sendo diuturna- poder. Nessa perspectiva, Bàbá Adail-
mente atacados na televisão? Por ton pontua:
que especificamente os templos
da cultura de matriz africana es-
tão sendo atacados? Então, não Para mim não é intolerância reli-
existe intolerância religiosa (Entre- giosa nenhuma. É racismo religio-
vista, 4 dez. 2017). so mesmo. É um projeto sim, de
destruição e extermínio de nossas
tradições. É tudo que eles querem
botar para baixo do tapete, nos
Ambos trazem a dimensão da inten- invisibilizar, nos imobilizar. É uma
sidade e a forma específica pela qual tradição que nós somos gay, lés-
a violência se abate sobre as religiões bicas, somos hétero, somos bi, so-
de matriz africana. Há uma relação di- mos negros, pobres, favelados […].
reta entre a situação de inferiorização Esse contraponto a um Estado he-
do povo negro com a inferiorização e gemônico (Entrevista, 13 dez. 2017).
subalternização daquilo que é produzi-
do por ele. Isso aparece como elemen-
tos indissociáveis na reflexão tanto de Dialogando com ele, Iyá Torody ressalta,
Olakunde como de Alves. O questiona-
mento do por quê das comunidades de
terreiro serem atacadas diuturnamen- É por isso que eu não gosto da pa-
te, historicamente, em contraposição lavra intolerância. Por que existe
a outras religiões está relacionada ao uma proposta, um projeto muito
fato dos terreiros, assim como argu- maior, como foi o projeto de es-
menta o filósofo Wanderson Flor Nas- cravidão. É um projeto de racismo,
cimento (2016), possuírem uma origem não é um projeto só para o povo
negroafricana. Esta compreensão nos de terreiro. Está para o povo do
conduz a não deslocar a demoniza- samba, tá para o quilombola, tá
ção, inferiorização e agressão das es- pelo aluno negro, tá pelas cotas,
truturas raciais-coloniais que formam é o projeto de moradia (Entrevista,
e estruturam este país, uma vez que 16 nov. 2017).
são elas que definem quem está den-
tro ou fora da norma. Neste sentido, ao
que parece, falar em racismo religioso, Ambos enfatizam a existência de um
nos permite evidenciar e, com isso, re- projeto de poder de anulação e des-

14 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


Rio de Janeiro - Religiosos celebram o dia de Iemanjá, a orixá associada
à água e ao mar nas religiões afro, e padroeira de pescadores, na Barra da Tijuca
Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil, 2 de fevereiro 2018 (CC BY 2.0)

truição não somente do que se com- rarquiza seres humanos, formas de


preende como religião, mas de tudo vida e privatiza espaços públicos” (PI-
aquilo que está relacionado a cultura RES; MORETTI, 2016, p. 389). Sendo assim,
negroafricana. Um projeto de poder de demarcam a gravidade e, sobretudo a
alguns setores das igrejas evangélicas especificidade da experiência de uma
que, em nome da fé, negam o patrimô- violência perpetrada contra as religi-
nio cultural civilizatório das religiões de ões de matriz africana, que tem no ra-
matriz africana. Portanto, um projeto cismo o seu sustentáculo de legitima-
racista colonial-moderno, que tem na ção e ação destruidora. Evidenciam
demonização das outras possibilida- igualmente como as agressões não
des e formas de viver e existir a sua ex- se circunscrevem a um caráter pura-
pressão de desumanização e com isso, mente religioso, mas a uma dinâmica
naturalização de uma espécie de vio- civilizatória repleta de valores, sabe-
lência institucionalizada. res, filosofias, cosmogonias, em suma,
Todas essas perspectivas apresenta- modos de viver e existir negroafricano
das pelos afrorreligiosos acerca dos amalgamados nas comunidades de
significados da violência e perseguição terreiro. Diante disso, a afirmação de
aos povos e comunidades de matriz Jayro Pereira parece cirúrgica: “intole-
africana vem a ratificar as “continui- rância religiosa reduz a dimensão da
dades de um sistema de dominação, violência contra os terreiros” (Entrevis-
de matriz colonial escravista, que hie- ta, 20 jan 2018).

LUCAS OBALERA DE DEUS


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4.
ALGUNS DADOS
SOBRE O CENÁRIO DE
RACISMO RELIGIOSO /
INTOLERÂNCIA
RELIGIOSA

Denúncias de Intolerância Religiosa no Brasil/Ano

800
700
600
500
400
300
200
100
0
2011 2012 2013 2014 2015 2016

Número
Fonte: Disque 100, Ministério dos Direitos Humanos de denúncias

16 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


Denúncias de Intolerância
Religiosa no Estado do Rio de Janeiro/ 2017

3%
6%
9%
Religiões de Matriz Africana

Católicos

71,5%
Evangélicos

Islâmicos

Número total de denúncias: 800; Secretaria Estadual de Direitos Humanos

Distribuição percentual do tipo de atendimentos prestados


pela Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos
Humanos (CEPLIR), entre o período de abril de 2012 a
dezembro de 2015, estado do Rio de Janeiro
TIPO DO ATENDIMENTO/PERÍODO PERCENTUAL (%)

Abril de 2012 a agosto de 2015 1014 (100%)


Contra Religiões Afro-brasileiras 71
Contra Evangélicos, Protestantes ou Neopentecostais 8
Contra Católicos 4
Contra Judeus e Pessoas sem Religião 4
Ataques contra a liberdade Religiosa 4
Não informado\Não possui 9
Setembro a dezembro de 2015 66 (100%)
Agressões contra mulçumanos 32%
Agressões contra candomblecistas 30%
Agressões contra s indígenas 6%
Agressões contra agnósticos 5%
Agressões contra pagãos 3%
Agressões contra Kardecistas 3%
Não informados\Não possui 21

Fonte: Intolerância Religiosa no Brasil: Relatório e Balanço

LUCAS OBALERA DE DEUS


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Tipos de Violência – Total e por Religião
TIPOS DE VIOLÊNCIA POR RELIGIÕES
TOTAL EVANGÉLICOS CATÓLICOS OUTROS
MOTIVAÇÃO RELIGIOSA AFRO-BRASILEIRAS

Psicológica 562 221 50 33 258


Moral 232 120 21 16 75
Institucional 199 48 32 9 110
Física 147 84 12 3 48
Patrimonial 144 82 9 31 22
Relativa a pratica de atos/
106 54 8 15 29
ritos religiosos
Negligência 17 2 1 1 13
Sexual 7 0 0 0 7

Total 1414 611 133 108 562

Número total de denúncias: 1414; Fonte: RIVIR, SDH, 2016

18 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


5.
MOVIMENTOS,
MOBILIZAÇÕES E
PROJETOS DE
ENFRENTAMENTO AO
RACISMO RELIGIOSO

Enquanto os leões não puderem contar


as histórias de caça, os caçadores sempre
serão os vencedores.
Provérbio africano

5.1. PROJETO TRADIÇÃO DOS lhor sua formação e articulação, surgiu


ORIXÁS, INKICES E VODUNS da aproximação com o professor Jayro
Pereira de Jesus, filósofo, teólogo afro-
A primeira organização política dos centrado, egbon do Ilê Omiojuaro e ati-
povos e comunidades de terreiro que vista histórico do movimento negro e
identificamos foi fundada em 1987, na o grande articulador desse Projeto. Foi
Baixada Fluminense/RJ, sob a coor- através de nossas conversas que co-
denação de Jayro Pereira de Jesus. O mecei a escutar, aprender e a ter a cer-
Projeto Tradição dos Orixás, como era teza, do que era até então uma suspei-
conhecido, surgiu em reação ao ra- ta, que em anos recentes a articulação
cismo cultural-religioso e intolerância política conjunta das comunidades de
religiosa dos pentecostais e neopente- terreiro contra as agressões protagoni-
costais. A “descoberta” desse Projeto e zadas pelas igrejas cristãs não era um
o posterior interesse em conhecer me- processo que se iniciava no século XXI.

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 19
Na década de 1980 um grupo de aproxi- espaço importante para a formação
madamente vinte jovens vivenciadores política de negras/os bem como do
de religiões de matriz africana visitava Projeto Tradição dos Orixás. Segundo
comunidades de terreiro pela Baixada Pereira, o curso de yoruba “foi um cur-
Fluminense para falar sobre o fenôme- so que engendrou o Projeto. Foi depois
no da intolerância religiosa, depois que e em meio ao Projeto”. Além das aulas
autorizados pelas respectivas lideran- sobre o idioma, professor Jayro “parti-
ças do terreiro. Consequentemente, cipava as sextas-feiras no curso para
dessas intervenções nos terreiros se fazer uma discussão política de terreiro
escutava muitas denúncias de experi- e a tradição de matriz africana”.
ências de violências sofridas pelo ter-
Antes de falarmos propriamente da
reiro e/ou liderança e filhas e filhos de
atuação desse projeto é importante
santo. Esse processo foi um dos em-
demarcar a conjuntura que a década
briões que geraram o Projeto Tradição
de 1980 apresentava. Além da ditadura
dos Orixás, Inkices e Voduns, em 1987. “Ia
militar, vivíamos um período de recru-
para os terreiros cativar os jovens”, foi o
descimento e atualização das formas
que disse Jayro.
de perseguição e violência às religi-
ões de matriz africana, justificada em
grande medida, pelo crescimento das
A gente fez um grupo de quase igrejas neopentecostais, precisamente
20 pessoas, todo mundo jovem e a Igreja Universal do Reino de Deus. Se-
a gente saía aos sábados e do- gundo Jayro Pereira,
mingos pela Baixada Fluminense
descobrindo terreiros […] A gen-
te visitou muitos terreiros, ouviu
muitas denúncias de igrejas, de-
Existiam outras igrejas, como
núncias de xingamentos verbais
Deus é Amor, mas que não tinham
e tentativa de ações físicas. Aí
a petulância que a Universal teve.
a gente senta, faz uma reunião
Ela se hegemonizou nesse cam-
antes e pensa num projeto para
po das igrejas neopentecostais e
atuar junto aos terreiros contra a
inaugurou uma violência que as
intolerância religiosa. Daí é que
outras não tinham. Tinha a intole-
surge o Projeto Tradição dos Ori-
rância, mas não tinha a violência
xás (Entrevista, dia 20 jan. 2018).
no sentido físico. A Universal é a
grande inauguradora da violên-
cia, da violência física (Entrevista,
Concomitante a esse movimento de 20 jan. 2018).
ida aos terreiros, Jayro Pereira organi-
zou o primeiro curso de língua e cultura
yorubá em Nova Iguaçu/Baixada Flu-
minense, patrocinado pelo Instituto de Nesse período, terreiros começaram a
Pesquisas e Estudos da Lingua e Cultu- ser invadidos por evangélicos, afrorre-
ra Yorubá (IPELCY), cujo presidente era ligiosos eram agredidos com “surras de
o prof. Jayro. O IPELCY foi também outro bíblia”, materiais de jornais e panfletos

20 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


de igrejas começaram a veicular ma- A “luta jurídica” se concretizou a partir
teriais, textos e imagens que deprecia- da formação do “Núcleo Jurídico Oju
vam e agrediam simbólica e psicologi- Obá”, que funcionava dentro do IPEL-
camente os vivenciadores de religião CY. A atuação do Oju Obá compreen-
de matriz africana. Segundo Jayro “os dia em receber denúncias de intole-
terreiros saíram do seu lugar de invisi- rância religiosa das religiões de matriz
bilidade e vieram para a cena pública, africana, encaminhá-las a delegacia e
sobretudo, por causa do agravamento auxiliar no decorrer dos processos. Um
e intensificação das agressões”. dado interessante que o professor nos
O projeto se articulava em torno de três informa é a presença da imprensa, na-
frentes interligadas, a saber: a “luta po- quele momento, noticiando casos de
lítica”, a “luta jurídica” e a “luta afroepis- agressão aos afrorreligiosos. Isso ocor-
temológica”. ria “porque para a mídia era um fato
novo. Invasão de terreiro, pedrada”. So-
A “luta política” compreendia a visita a
mado a esta atuação decorrente das
terreiros com o propósito de se debater
agressões que já haviam acontecido, o
junto a comunidade acerca do racismo
núcleo jurídico do Projeto Tradição dos
religioso, recolher denúncias de casos e
Orixás ia aos terreiros para falar sobre
desenvolver formação política a partir
os seus direitos, assim como incenti-
de uma afroepistemologia. Nessa pers-
var aquela comunidade a se informar
pectiva se discutia sobre a necessidade
sobre mecanismos do Direito, no intui-
de se sistematizar uma educação para
to de potencializar a luta e o fortaleci-
crianças no terreiro, como a criação
mento das comunidades de terreiro.
de escolas alicerçadas numa afrope-
dagogia. Com esta frente também de- Além disso, o Núcleo Oju Obá produziu
ram prosseguimento ao levantamento um dossiê, o primeiro do Brasil, sobre os
da quantidade de terreiros pela Baixa- casos de agressões verbais, físicas, psi-
da Fluminense, iniciado nas atividades cológicas e simbólicas protagonizadas
embrionárias do Projeto, chegando a pelas igrejas pentecostais e neopente-
mapear 3.000 comunidades de terreiro. costais, e precisamente denunciando
a Igreja Universal. No dia 31 de agosto
Essa luta política empreendia-se tam-
de 1989, há 28 anos, Jayro Pereira, Mãe
bém na tentativa de aproximar os terrei-
Beata de Iyemonjá, Mãe Meninazinha
ros do movimento negro e o movimento
d’ Oxum e Pai Adailton d’ Ogun foram a
negro dos terreiros. Para Jayro, havia até
Brasília e entregaram o “Dossiê Guerra
então, “uma cisma, um negócio” exata-
mente porque o “movimento negro era Santa Fabricada” ao subprocurador-ge-
marxista e religião afro era também ral da República Cláudio Lemos Fonteles.
o ópio do povo, então a gente aí levar,
dizer coisas. Talvez tenhamos sido nós
os primeiros a dizer para o movimento
A gente se articulou com o Movi-
negro o que era tradição de matriz afri-
mento Negro Unificado, o MNU de
cana e o que era ancestralidade”. Além
Brasília através de duas pessoas: a
disso, a frente política incentiva os “ter-
Graça Santos, uma afroempreen-
reiros a se colocarem para fora”, “intera-
gir com a vizinhança, com o entorno”.

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 21
dedora e Wilson Veleci,que traba- da República era para ele percor-
lha no Ministério Público. A gente rer todos os Estados que o Dossiê
se articulou com eles e foi marca- dizia que tinha intolerância religio-
do uma audiência com Aristides sa […]. E a intenção da procurado-
Junqueira, Procurador-Geral da ria-geral era fazer a investigação
República naquela época. Nos re- nesses estados todos indicados
cebeu assim muito rapidamente por nós (Entrevista, 20 jan 2018).
porque ele tinha um outro com-
promisso, mas ele queria pontuar
a presença dele e depois nos re-
meteu ao subprocurador Cláudio Questionado sobre os desdobramen-
Lemos Fonteles (PEREIRA, Jayro, en- tos acarretados pela entrega do Dos-
trevista, 20 jan 2018). siê ao Ministério Público Federal, prof.
Jayro aponta que naquele momento
“a gente começou a perceber que já ti-
nha evangélicos neopentecostais nas
A entrega do Dossiê foi marcada por instituições públicas que começaram
grande repercussão nacional, sen- a interceptar o Dossiê que tinha vira-
do manchete nos principais jornais do
do peça jurídica”. Esta leitura eviden-
Brasil. No dia seguinte os jornais fala-
cia, no mínimo que a influência política
vam do Dossiê e, por conseguinte, dos
desses setores religiosos bloqueando
episódios de intolerância religiosa que
a efetivação dos direitos das religiões
ocorriam no Brasil. No mesmo dia eles
de matriz africana é um fenômeno que
também entregaram o Dossiê à “Co-
se expressa há bastante tempo.
missão de Diálogo Inter-religioso” da
CNBB (Comissão Nacional dos Bispos Já a “luta afroepistemológica” tinha o
do Brasil), que era coordenada por Dom intuito de desmarginalizar a cosmolo-
Sinésio Bohn. gia, a filosofia e perspectivas negroa-
fricana das comunidades de terreiro
O Dossiê de 256 páginas constituiu-se
que são associadas ao Mal. Também
de um texto teórico, com uma análise
se configurava como uma atuação
jurídica, realizada por Tânia Maria Salles
preocupada em dizer para os afrorre-
Moreira, e anexos de panfletos de igre-
jas que agrediam as religiões de matriz ligiosos que a tradição de terreiro, se-
africana e de matérias de jornais do gundo Jayro Pereira, não era “só fazer
Brasil inteiro que noticiavam casos de ritual, não é só cantar, não é só dançar.
intolerância religiosa. O que permeia tudo isso é algo mais
complexo”. O que estava em questão
A respeito dos objetivos do “Dossiê
era refletir e debater sobre os valores
Guerra Santa Fabricada”, Jayro Pereira
culturais civilizatórios negroafricanos
informa que
subjacentes a dinâmica das comuni-
dades de terreiro e com isso dar em-
basamento afroepistemológico que
Na verdade, o encaminhamento potencializasse a luta a partir da pró-
do Dossiê para o procurador-geral pria perspectiva afrorreligiosa. Contu-
do, esta frente de luta, em comparação

22 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


com as duas descritas anteriormente, 5.2. COMISSÃO DE COMBATE A
segundo Jayro foi pouco enfatizada. INTOLERÂNCIA RELIGIOSA (CCIR)
Sobre essa consideração, cabe regis-
O século XXI é marcado pela continui-
trar que, a partir de aproximadamen-
dade e rearticulação da luta protagoni-
te 2016, Jayro Pereira funda e coorde-
zada por afrorreligiosos na elaboração
na a Escola Livre Ubuntu de Filosofia
de estratégias ao enfrentamento do
e Teologia Afrocentrada/Decolonial
racismo religioso/intolerância religiosa,
com o propósito de retomar e priori-
a partir da organização de novas arti-
zar a “luta afroepistemológica” que se
culações. A Comissão de Combate a
caracterizaria por “desmarginalizar”,
Intolerância Religiosa (CCIR), igualmen-
“desbanalizar” e “desmaniqueizar” a
te a todos os outros movimentos ante-
“cosmovisão africana e afrodiaspóri-
riores, surge em reação a uma série de
ca” das comunidades de terreiro.
ataques das igrejas neopentecostais às
Por fim, é importante enfatizar que o religiões de matriz africana. Segundo o
Projeto Tradição dos Orixás, Inkices Relatório de Casos Assistidos e Monito-
e Voduns teve suas atividades com rados pela Comissão de Combate à In-
maior vigor no período de 1987 a 19942, tolerância Religiosa no Estado do Rio de
que se caracterizou como “um pro- Janeiro e no Brasil publicado em 2009,
jeto de combate ao racismo cultural ela “nasceu da necessidade cada vez
religioso afro e de implementação de mais premente de defesa dos religiosos
ações sociais em comunidades de de matriz africana diante dos processos
terreiro”, para usar o título de artigo de aniquilamento e demonização de
publicado por Jayro Pereira sobre as suas práticas religiosas”. O relatório des-
atividades do Projeto, em 2003. Um taca como fator decisivo para sua or-
dado relevante para nós é o de que, ganização a constatação, em 2008, da
de acordo com Pereira (2003), entre “intolerância armada” nas favelas e pe-
1987 e 1988 eles organizaram dez en- riferias do Rio, por meio dos traficantes e
contros regionais por vários municí- milicianos evangelizados que passam a
pios da Baixada Fluminense, bairros proibir cultos de candomblé e umbanda
do subúrbio do Rio de Janeiro e ainda e que ainda expulsam afrorreligiosos.
em bairros de São Gonçalo, o que de-
A CCIR é fundada por afrorreligiosos e
monstra a extensão da rede constru-
congrega espíritas, católicos, judeus,
ída pelo Projeto. E estes dez encontros
muçulmanos, evangélicos, budistas, ci-
culminaram com a conferência es-
ganos, bahá’ís, hare Krishnas, wiccanos,
tadual do Projeto Tradição dos Orixás
seguidores do Santo Daime, agnósticos
realizado na Universidade Federal Flu-
e ateus. Além disso, fazem parte dela
minense (UFF).
instituições ligadas ao movimento ne-
gro, às questões dos direitos humanos,
um representante oficial da Polícia Ci-
vil do Estado do Rio de Janeiro e um do
2. Nesse período, outras duas instituições foram fundadas por
religiosos de matriz africana com o objetivo de aglutinar as
Ministério Público. Esta configuração da
comunidades de terreiro contra o racismo religioso e intole-
rância religiosa, a saber: o INARAB (Instituto de Articulação das
Comissão, caracterizada pela sua plura-
Religiões Afro-brasileiras) que funcionou de 1989 à 1992 e o CE- lidade religiosa interna demarca a cons-
NARAB (Centro Nacional de Articulação das Religiões Afro-bra-
sileiras) que atuou com mais vigor entre 1992 e 1995. trução de uma agenda política em tor-

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 23
no da luta contra a intolerância religiosa ceito e discriminação religiosa” enqua-
e pela garantia da liberdade religiosa, drado na Lei 7.716/89.
como uma estratégia para preservação Nesta perspectiva, uma das deman-
dos terreiros. Isto é, há a emergência de das da CCIR tem sido a criação da
uma pauta que visa a unificação de to- “Delegacia de Crimes Raciais e Delitos
dos os religiosos a partir da construção de Intolerância” (Decradi)4 no estado
de uma agenda em comum: o combate do Rio de Janeiro com o intuito de ga-
a intolerância religiosa e a garantia do rantir a efetividade dos direitos cons-
direito à liberdade de crer e não crer. titucionais e permitir que os crimes de
“Passamos a encarar o diálogo inter-re- intolerância religiosa sejam reconhe-
ligioso e o fortalecimento de uma rede cidos como um problema do Estado e
de proteção como fundamentais para que, portanto, deixem de ser desqua-
a manutenção das religiões de matriz lificados como “um problema de me-
africana” (Relatório da CCIR, 2009, p. 11). nor importância” (MIRANDA, 2012). No
Outro aspecto aglutinador é a denún- decorrer desse processo, a Comissão
cia que a Comissão vem fazendo des- tem realizado um importante trabalho
de sua fundação da ameaça à demo- de assistência jurídica às vítimas de
cracia por parte de setores evangélicos, intolerância religiosa que denunciam
notadamente neopentecostais, que a polícia e o subsequente monitora-
possuem um projeto de construção de mento dos casos.
um “Estado Teocrático no Brasil”. Sendo
Além dessas demandas a CCIR apre-
assim, ainda em 2008, a CCIR articulou
senta pautas como implementação
a formação de um Fórum de Diálogo In-
da Lei 10.639/03, que torna obrigatório
ter-religioso, com a participação de vá-
o ensino de História da África e Cultu-
rias religiões, ateus e agnósticos, com o
ra Afro-Brasileira; a proibição por parte
objetivo de construir o Plano Nacional de
do governo federal de que empresas e
Combate à Intolerância Religiosa3.
órgãos públicos anunciem ou patro-
Ao longo destes dez anos a Comissão cinem programas em emissoras que
de Combate a Intolerância Religiosa transmitam ou produzam programa-
se notabilizou como uma organização ção de conteúdo discriminatório e pro-
de grande importância na visibiliza- selitista; a punição pelo Ministério das
ção, a partir da mobilização midiática, Comunicações, com a retirada de pro-
das demandas por políticas públicas gramação do ar e aplicação de multas
de enfrentamento a intolerância reli- às emissoras de televisão e rádio que
giosa e na consequente desnaturali- promovam a intolerância religiosa; a
zação da violência às comunidades de atualização de todas as delegacias do
terreiro. Com isso ela também tem se país para o uso da Lei n° 7.716/89; a rea-
empenhado em trazer os casos de in- lização de um censo nacional das ca-
tolerância religiosa para a esfera públi- sas de religião de matriz africana em
ca e estimulado os alvos das agressões parcerias com universidades em cada
por motivação religiosa a denunciarem estado (Relatório CCIR, 2016).
junto as delegacias o crime de “precon-
4. Agosto de 2017 o governador do Rio de Janeiro, Fernando
3. “Intolerância Religiosa no Brasil: relatório e Balanço”, publi- Pezão, deu o aval para criação da Decradi. Porém até o mo-
cado em 2016.O relatório é resultado da parceria entre a CCIR, mento segue sem previsão de funcionamento. Disponível em:
o CEAP e o Laboratório de História das Experiências Religiosas http://odia.ig.com.br/_conteudo/rio-de-janeiro/2017-09-20/
(LHER) da UFRJ. nova-delegacia-de-intolerancia-ficara-pulverizada.html

24 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


Não há dúvida de que a “Caminhada é igual à da primeira, que aconteceu
em Defesa da Liberdade Religiosa: eu em 2008. Isso mostra que os poderes
tenho fé”, que em 2017 foi para sua 10° Legislativo, Executivo e Judiciário não fi-
edição, é o evento de maior importância zeram nada”5.
realizado pela CCIR. Sob o lema “cami- Essa avaliação do babalawo Ivanir é
nhando a gente se entende”, a primeira sintomática, precisamente porque há
edição da Caminhada ocorreu no dia dez anos, um dos principais episódios
21 de setembro de 2008, levando cerca que impulsionaram a criação tanto
de 20.000 pessoas das mais variadas da CCIR e por conseguinte da 1° Ca-
religiões, ateus e agnósticos à orla de minhada foi o ataque de traficantes
Copacabana/RJ. A Caminhada em sua evangelizados a terreiros no Morro do
maioria, apesar da variedade de reli- Dendê/RJ. Pois bem, no ano em que a
giões presentes, constitui-se de afror- Caminhada completa dez anos, virali-
religiosos e com isso, aquele caminhar zou-se vídeos nas redes sociais de tra-
vai se configurando também como um ficantes invadindo terreiros em nome
momento no qual o ritmo dos tambores, de sua fé, no município de Nova Igua-
as cantigas, as danças, o colorido em çu, e mandando as próprias mães e
meio ao branco vai corporificando e se pais de santo quebrarem os assenta-
materializando no orgulho, afirmação e mentos, imagens ameaçando-os de
exaltação da identidade afrorreligiosa. morte etc (O DIA, 2 out. 2017). Ou seja,
esses novos episódios de “intolerância
Contudo, dentro deste mesmo cenário
armada”, para usar a expressão pre-
de mobilizações é oportuno destacar a
sente no relatório da CCIR em 2009, já
avaliação do babalawo Ivanir dos San-
tos, articulador da Comissão, em uma
entrevista sobre a 10° edição da Cami- 5. “Caminhada defende liberdade religiosa em Copacabana”.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/caminhada-de-
nhada: “A motivação dessa caminhada fende-liberdade-religiosa-em-copacabana-21834481

VII Caminhada contra a intolerância religiosa – Rio de Janeiro. Representantes de diversas


religiões participam de caminhada na praia de Copacabana contra o racismo/intolerância religiosa.
Imagem: Acervo Koinonia, 2014.

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 25
era uma tragédia anunciada há muito Por fim, a Comissão de Combate a Into-
tempo, caso o Estado seguisse negli- lerância Religiosa tem investido na pro-
gente diante das denúncias de into- dução de pesquisas, dados, relatórios,
lerância religiosa por parte de setores palestras, manuais, em suma, conhe-
evangélicos. cimentos, em parceria com universida-
Um último aspecto que gostaríamos de des e movimentos sociais sobre a con-
ressaltar acerca da Caminhada é a de figuração da intolerância religiosa no
que, na perspectiva da Comissão, ela Rio de Janeiro e Brasil. Dentre estes ma-
nunca foi pensada como uma caminha- teriais destacamos o lançamento do li-
da encerrada em si mesma. De acordo vro, já citado, “Intolerância Religiosa no
com o interlocutor da CCIR, Babalawo Brasil: relatório e Balanço”, que tem sido
Ivanir dos Santos, “a Caminhada não é utilizado pela CCIR como ferramenta de
uma caminhada em si só. Nunca foi. Olha denúncia do contexto de intolerância
o que em torno do chamado da Cami- e cerceamento da liberdade religiosa
nhada se produziu de ações em vários pelo mundo. Salientamos também a
lugares […]. Mesmo as experiências nos criação do Curso de Extensão na IFCS/
órgãos públicos: todas elas após a Ca- UFRJ de multiplicadores contra a into-
minhada” (Entrevista, 16 jan. 2018). lerância religiosa, em agosto de 2017. O
curso, que resultou de uma articulação
A Caminhada é uma estratégia de
da CCIR com Laboratório de Experiên-
luta que se personifica na construção
cias Religiosas do Instituto de História
de um ponto de unidade de diversos
da UFRJ e o Grupo Awrê, em sua primei-
credos que visibilizam e reivindicam
ra edição, tiveram como público-alvo
a elaboração de políticas públicas de
os religiosos de matriz africana. Seus
combate a intolerância religiosa. Uma
objetivos era o de formar multiplicado-
dessas experiências em órgãos pú-
res dos saberes históricos, socioantro-
blicos é referente a criação, em 2012,
pológicos e legislativo e, deste modo,
do CEPLIR (Centro de Promoção à Li-
berdade Religiosa e Direitos Huma- potencializar a luta.
nos) no estado Rio de Janeiro, coor-
denado pela Secretaria de Estado de
5.3. MAPEAMENTO DAS CASAS
Assistência Social e Direitos Humanos
(SEASDH). Além disso, há também o
DE RELIGIÕES DE MATRIZ
processo de elaboração do “Plano Es- AFRICANA NO RIO DE JANEIRO
tadual de Promoção da Liberdade Re- No ano de 2006, Mãe Beata de Iyemonjá,
ligiosa” que, em 2014, foi apresentado após ser procurada por Mãe Flávia Pin-
e submetido a consulta pública. Após to solicitando-a apoio para um projeto
anos de embates políticos, o dia 23 de de mapeamento de comunidades de
janeiro deste ano foi marcado pela terreiro do estado Rio de Janeiro, apre-
apresentação tanto do Plano como sentou-o para a PUC-RIO. A partir disso,
do “Conselho Estadual de Defesa da o Mapeamento das Casas de Religi-
Promoção da Liberdade Religiosa” ões de Matriz Africana – realizado pela
pela SEDMH6. PUC-RIO em parceria com a SEPPIR-PR
6. “Rio é primeiro estado a ter plano e conselho de promoção
entre 2008 e 2011 – não só resultou de
da liberdade religiosa”. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc. uma proposta trazida por afrorreligio-
com.br/geral/noticia/2018-01/rio-e-primeiro-estado-ter-plano
-e-conselho-de-promocao-da-liberdade-religiosa sos, como o próprio processo de elabo-

26 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


ração e construção da metodologia e Por meio da metodologia de cartogra-
o seu respectivo andamento tiveram a fia social, a pesquisa tinha como obje-
participação ativa das lideranças reli- tivo mapear a localização dos terreiros
giosas. Nas palavras de Mãe Beata, es- do Rio de Janeiro, visibilizando assim a
critas no prefácio do livro Presença do sua existência no território fluminen-
Axé: mapeando terreiros no Rio de Ja- se. Identificar e espacializar as formas
neiro (2013), que compilou os resultados de violência, conhecer as práticas so-
da pesquisa: ciais e políticas desenvolvidas por es-
tes espaços e contribuir para o (re)
conhecimento do patrimônio identi-
tário da população negra. A pesquisa
de mapeamento confeccionou diver-
Senti-me de fato presente, pois
sos mapas com temas distintos a fim
discutíamos todos os passos a
de ilustrar a variedade dos resultados
serem tomados para bons cami-
da pesquisa de maneira cartográfica,
nhos (onan ire), líderes de várias
destacando-se o mapa de localização
correntes de matriz africana, que
das 847 casas mapeadas pela pesqui-
se debruçavam horas e dias jun-
sa e o mapa da intolerância religiosa
tamente com a academia – em
que materializa espacialmente os lo-
pé de igualdade – para ver o nos-
cais das agressões verbais, físicas e ou-
so trabalho acontecer.
tras identificadas pela pesquisa7 (FON-
SECA, Denise; GIACOMINI, Sonia, 2013).

DADOS DO MAPEAMENTO DE TERREIROS

SIM NÃO
TERREIROS QUE SOFRERAM AGRESSÃO
52% 48%

ESPAÇO PÚBLICO 57%


LOCAL DA AGRESSÃO
ESPAÇO PRIVADO 33%

VERBAL 70%
TIPOS DE AGRESSÃO
FÍSICA 21%

EVANGÉLICOS 32%

VIZINHOS 27%
TIPOS DE AGRESSORES
VIZINHOS EVANGÉLICOS 7%

OUTROS 30%

ADEPTOS 60%
TIPOS DE ALVO
TERREIROS 29%

Fonte: Presença do Axé: mapeamento terreiros no Rio de Janeiro

7. Resultado da demanda apresentada pelo Conselho Griot foi produzido também a “Cartilha para a legalização de Casas Re-
ligiosas de Matriz Africana”. Disponível em: http://www.jur.puc-rio.br/2018/01/30/cartilha-do-nec-legalizacao-de-casas-religiosas-
de-matrizes-africanas/

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 27
Esta breve apresentação do Mapea- africana. Segundo, é que os pesquisa-
mento importa para nós, posto que dores bolsistas do projeto seleciona-
a metodologia e a epistemologia de dos para a pesquisa, preferencialmen-
pesquisa que possibilitou a realização te deviam possuir “vínculos vivos com
e alcance dos resultados tinham como o segmento religioso de matriz afri-
premissa a participação substantiva cana”, o que acabou garantindo uma
de afrorreligiosas/os. Segundo Denise maior participação de afrorreligiosos
Fonseca e Sonia Giacomini (2013, p. 31, na realização da pesquisa8.
grifo nosso), “o que estava por trás des- Diante do exposto, percebemos como
ta estrutura de pesquisa era a deter- as/os afrorreligiosa/os, por meio de sua
minação de promover a coprodução “agência” não apenas apresentou a
de conhecimento entre os portadores demanda como também foi prepon-
dos chamados conhecimentos tradi- derante para se alcançar os resultados
cionais e conhecimento científico, em da pesquisa.
busca de uma nova epistemologia”.
Esta coprodução de conhecimento foi
realizada a partir da participação do 5.4. MOBILIZAÇÃO DE
Conselho religioso-político, conhecido AFRORRELIGIOSAS/OS CONTRA
como Conselho Griot. O Conselho era A DECISÃO DO JUIZ FEDERAL
composto por quatorze lideranças re-
“Justiça Federal define que cultos afro
ligiosas de matriz africana, sendo sete -brasileiros não constituem uma reli-
do Candomblé e sete da Umbanda. gião”. Para quem não lembra isso foi o
Ainda de acordo com Fonseca e Gia- título da reportagem publicada pelo
comini (2013), o papel dos conselheiros jornal O Dia, 16 de maio de 2014. Isto
foi o de definir as casas a serem pes- ocorreu depois que o juiz federal Eugê-
quisadas; as condições de acessibili- nio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal
dade à informação coletada; a gestão do Rio de Janeiro, apresentou o argu-
e utilização do conhecimento criado, mento de sua decisão que indeferiu o
delinear as necessidades metodoló- pedido do Ministério Público de retirar 15
gicas específicas e a dinâmica de in- vídeos do Youtube do ar que agrediam
teração e trabalho com as casas ma- as religiões afro-brasileiras. Segundo a
peadas. Conforme Mãe Beata (2013), “a reportagem, o juiz Federal Eugênio Rosa
presença massiva de lideranças reli- alegou que as crenças professadas pe-
giosas de matriz africana, que compu- los adeptos das religiões de matriz afri-
nham o Conselho Griot da pesquisa [...] cana não continham as características
tudo era discutido, e nenhuma decisão necessárias de uma religião. Para o juiz,
era tomada sem o aval de tod@s nós os traços necessários de uma religião
do Conselho”. Vale ressaltar, quanto seriam a existência de “um texto base
a participação efetiva dos afrorreli- – uma Bíblia Sagrada, Torá ou Alcorão,
giosos, dois aspectos: primeiro é o de por exemplo –, e que deve existir uma
que além do papel crucial do Conselho estrutura hierárquica, com um deus
Griot, a própria coordenação de cam- a ser venerado, para que se constitua
po da pesquisa foi formada por Mãe uma religião” (O Dia, 16 maio de 2014).
Flávia Pinto e Bàbá Adailton Moreira,
8. Para acessar os mapas e outros materiais produzidos pela
ambas lideranças religiosas de matriz pesquisa ver: www.nima.puc-rio/mapeamento/

28 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


A sua declaração evidencia, em grande Comissão de Combate a Intolerância
medida, a permanência, manutenção e Religiosa (CCIR) e da ANMA, promove-
atualização do modelo judaico-cristão ram o “Ato em Solidariedade às Reli-
como organizador da dinâmica social, giões de Matriz Africana”, sob o lema
desconsiderando, portanto, a laicidade “Independente de escolhas, somente
do Estado. Com isso ele também, expli- unidos, somos muito fortes”, realizado
cita a perspectiva racista, etnocêntrica na Associação Brasileira de Imprensa
e eurocêntrica que historicamente vem (ABI), no dia 21 de junho de 2014. No ato
inferiorizando e desqualificando as tra- estiveram presentes líderes de várias
dições culturais religiosas de ascen- religiões, em solidariedade à negação
dência africana. Embora a decisão e os do juiz de retirar os vídeos da rede, as-
argumentos apresentados por esse juiz sim como também em repúdio ao ar-
suscitem e mereçam muitas discus- gumento que inferioriza as religiões de
sões acerca do lugar e papel da Jus- matriz africana.
tiça na perpetuação das discrimina-
Cabe salientar que o juiz federal, após
ções, através do racismo (institucional),
polêmica em torno de sua declaração
o que nos interessa aqui é o enfrenta-
devido, sobretudo, manifestação dos
mento dos afrorreligiosos. Sendo assim,
afrorreligiosos, volta atrás e afirma que
ao pesquisar sobre esse caso percebe-
cultos brasileiros são religiões, porém,
mos que ele envolve duas articulações
mantêm sua decisão de não retirar os
do povo de terreiro, sendo a segunda
vídeos do ar10. Araújo argumentou que
provocada pelos rumos tomados pelo
“a liminar indeferida para a retirada
processo anterior.
dos vídeos no Google teve como fun-
Na primeira articulação encontramos damento a liberdade de expressão de
o episódio no qual a Procuradoria Re- uma parte (Igreja Universal) [...]”, desse
gional de Direitos Humanos do MPF re- modo, segue desconsiderando o ca-
cebe, segundo jornal Folha de S. Paulo9, ráter discriminatório, intolerante e de
uma denúncia da Associação Nacional incitação ao ódio, denunciado pelos
de Mídia Afro (ANMA), cujo presidente é afrorreligiosos e ratificado pelo MPF. Na
o Babalorixá Márcio de Jagun. Foi esta mesma perspectiva o advogado Hédio
denúncia que gerou a abertura de pro- Silva Jr (2009, p. 206), defende: “à medi-
cedimento administrativo para apurar da que a liberdade de expressão passa
os 26 vídeos publicados no Youtube e a ser utilizada para pregar o preconcei-
que possibilitou, em seguida, a solici- to e a discriminação, tem-se um qua-
tação da retirada dos vídeos, uma vez dro de abuso e não de uso do direito”.
que o MP entendeu que os vídeos “pro- Mesmo assim, no fim desse processo, a
movem a discriminação e a intolerân- articulação das religiões de matriz afri-
cia as religiões de matrizes africanas”. cana se concretizara na vitória deste
A segunda articulação dos afrorreligio- embate jurídico. No dia 27 de junho de
sos ocorreu em reação a declaração 2014, depois do MPF recorrer da decisão
do juiz federal Eugênio de Araújo. Reli- anterior, a Justiça Federal determinou
giosos de matriz africana, através da que o Google Brasil retirasse quinze ví-

9. “Procuradoria recomenda retirar vídeos do Youtube 10. “Juiz federal volta atrás e afirma que cultos afro-brasi-
que atacam igrejas” http://www1.folha.uol.com.br/po- leiros são religiões” http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noti-
der/2014/02/1418119-procuradoria-recomenda-retirar-vide- cia/2014/05/juiz-federal-volta-atras-e-afirma-que-cultos-a-
os-que-atacam-igrejas-de-matriz-africana.shtml fro-brasileiros-sao-religioes.html

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 29
deos que agrediam e incitavam o ódio desse projeto para os afrorreligiosos,
às religiões de matriz africana11. suas interpretações e, sobretudo, a mo-
bilização política a nível nacional con-
tra o Gladiadores do Altar.
5.5. ABERTURA DE INQUÉRITO
No dia 23 de março de 2015 lideranças
CIVIL CONTRA OS “GLADIADORES
de terreiro de 26 estados organizaram
DO ALTAR” um ato nacional contra o Gladiadores
“Em culto da Universal no CE, jovens do Altar e entregaram um pedido de
‘gladiadores’ se dizem ‘prontos para a abertura de inquérito civil ao Ministério
batalha’”. Este foi o título da matéria pu- Público Federal para investigar o G.A so-
blicada pelo portal Uol Notícias no dia 3 bre possíveis casos de intolerância re-
de março de 2015. A matéria noticiava a ligiosa. Anexado ao pedido havia uma
publicação de um vídeo no Facebook, “farta documentação reunindo graves
no dia 15 de fevereiro de 2015, produzido denúncias contra a Igreja Universal do
pela Igreja Universal do Ceará, no qual Reino de Deus (IURD)”12.
registrava a entrada de jovens em um
O advogado e candomblecista que
culto da igreja, vestidos como militares,
elaborou a petição entregue ao MP, Luiz
batendo continência e dizendo palavras
Fernando Martins, declarou ao jornal
de ordens. Segundo o Uol Notícias, no ví-
O Dia, no dia 20/03/2015, “sabemos do
deo os jovens diziam: “graças ao Senhor
histórico de perseguições e violência
hoje estamos aqui prontos para a bata-
contra centros espíritas e integrantes
lha, e decididos a te servir. Somos gla-
de religiões afro-brasileiras, praticadas
diadores do seu altar. Isso é uma deci-
por membros da Igreja Universal em
são. Todos os dias enfrentamos o inferno
todo o país. Líderes da Umbanda e do
confiantes em sua santa proteção”.
Candomblé estão preocupados com o
Dois dias depois da publicação desta que pode vir a ser esse novo grupo”.
matéria, o jornal O Dia lançou a repor-
Nesse caminho, a “Carta Aberta às
tagem intitulada “Polêmico ‘exército’ da
Autoridades Brasileiras: Proteção das
Igreja Universal, Gladiadores do Altar
Religiões de Matriz Africana contra os
chega ao Rio”. Nela o jornal noticiava
‘Gladiadores do Altar’”13, elaborada por
que o projeto da Universal se encontra-
diversas lideranças afrorreligiosas, en-
va em várias partes do Brasil, contando
dereçada ao M.P, divulgada no dia 7 de
com 4.300 participantes em todo o país
março de 2015 pelas mídias sociais da
e ainda com ramificações em templos
Casa Oxumarê, um dos terreiros tradi-
de países como Argentina e Colômbia.
cionais da Bahia, é um documento im-
No caso do Rio de Janeiro, já reunia de-
portante no que se refere a perspectiva
zenas de adeptos em bairros como Re-
afrorreligiosa sobre o caso.
creio e Tijuca.
A Carta apresenta uma série de ele-
O que nos interessa de toda a polêmica
mentos que expressam o significado
gerada em torno da criação do proje-
to Gladiadores do Altar (G.A) da Igreja
12. “Umbandistas e candomblecistas vão ao MPF denunciar
Universal é, precisamente o significado grupo ‘Gladiadores’” https://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-ja-
neiro/2015-03-24/umbandistas-e-candomblecistas-vao-ao
-mpf-denunciar-grupo-gladiadores.html
11. “Justiça manda Youtube excluir vídeos com intolerância
religiosa”. Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/justiça 13. Para ler na integra: http://www.peticaopublica.com.br/
-manda-youtube-excluir-videos-com-intolerancia-religiosa/ pview.aspx?pi=BR80303

30 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


e a maneira pela qual a Igreja Univer- bra deles? ‘Gladiadores do Altar’ da
sal, desde sua fundação, posiciona- Igreja Universal serão investigados”. A
se diante das religiões de matriz afri- notícia falava sobre o pedido de instau-
cana. Evidencia/denuncia, em toda a ração de um inquérito criminal, na Dele-
sua extensão, a Iurd como uma igreja gacia de Crimes Raciais e Delitos de In-
responsável pela perseguição, assim tolerância do estado de São Paulo, para
como das diversas formas de violên- apurar a responsabilidade por crimes
cias causadoras de danos “incalcu- “como propaganda de perseguição re-
láveis” às comunidades de terreiro. As ligiosa e prática, indução ou incitação à
primeiras linhas do documento já nos discriminação ou preconceito de raça,
informam o significado da Universal, cor, etnia, religião ou procedência na-
bem como a gravidade dos seus ata- cional”. O pedido para a abertura do in-
ques para as lideranças de terreiro: “a quérito se baseava numa postagem do
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) Facebook veiculada aos Gladiadores do
promove um massacre cultural e reli- Altar de incitação ao ódio. A postagem
gioso contra as Religiões Tradicionais dizia coisas como: “limparemos nosso
de Matriz Africana, perpetrando uma país de tantos falsos profetas e tornare-
contínua, incansável, declarada e bru- mos a Igreja Universal única religião do-
tal perseguição através dos meios de minante em nosso território!”; “destrui-
comunicação social”. Essa compreen- remos cada religião enganosa até que
são e definição da Iurd faz com que no desapareça do nosso país! Essas religi-
mínimo, por um lado, reconheçamos ões pagãs e de origens africana ou mu-
a validade dos protestos, assim como çulmana não serão toleradas em nosso
evidencia os motivos de toda a mobili- país! Nem o homossexualismo!”.
zação nacional que ocorreu.
É fundamental destacar que a “carta
5.6. INVASÃO E DEPREDAÇÃO
aberta as autoridades brasileiras”, so-
DAS COMUNIDADES DE TERREIRO
licitava a instauração de um inquérito
civil público, no qual se investigasse
EM NOVA IGUAÇU
possíveis casos de intolerância religio- Entre agosto e outubro de 2017 assis-
sa, como veiculado nas notícias dos timos, via redes sociais, vídeos com
jornais. Entretanto, essa não era ape- homens armados dentro de terreiros,
nas a única solicitação presente na no município de Nova Iguaçu/RJ, orde-
carta. Os afrorreligiosos solicitavam nando ‘‘quebra tudo, apaga as velas,
uma audiência pública na sede do MPF pelo sangue de Jesus tem poder. Todo
com objetivo de denunciar e cobrar mal tem que ser desfeito em nome de
resoluções a respeito dos programas Jesus’’. Esses registros de destruição
religiosos veiculados nas TVs patroci- dilaceraram não apenas as pessoas
nados pela Universal que produzem “a atingidas diretamente, mas todas as
apropriação e desfiguração e ainda comunidades de terreiro.
desqualificação de rituais e liturgias
Diante desse contexto de atuação
das religiões afro-brasileiras”.
dos traficantes evangelizados, o “bra-
Por fim, vale ressaltar que no dia 16 de ço armado da intolerância religiosa”,
janeiro de 2017, o site da ong Koinonia que como já vimos, vem sendo de-
publicou uma notícia intitulada “Lem- nunciado pela Comissão de Combate

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 31
a Intolerância Religiosa, desde 2008; 3 - “proteção e acolhimento às vítimas
somado aos inúmeros outros casos (e suas respectivas famílias) no que
de violência por motivação religiosa, consiste ao atendimento psicológico,
não só no Rio, o povo de terreiro mo- de Saúde, Segurança, Bem-estar e Edu-
bilizou ações em reação as tentativas cação”.
contínuas de destruição.
A compreensão de que aqueles atos cri-
No município de Nova Iguaçu, a comu- minosos se configuram como crime de
nidades de terreiro Ilê Omiojuaro, dia 16 “terrorismo religioso” merece ser desta-
de setembro de 2017, realizou uma reu- cada. A categoria de “terrorismo religio-
nião de discussão e estratégias dos po- so” denota a gravidade das agressões
vos tradicionais de matrizes africanas e que, diante do que viemos refletindo
afro-brasileira sobre os casos de vio- até aqui, são efeitos da omissão do Es-
lações e depredações às comunida- tado diante das denúncias sistemáticas
des de terreiro. As lideranças de terreiro de perseguição e violência às religiões
presentes nessa reunião produziram de matriz africana. No entendimento do
uma carta endereçada à Assembleia advogado Hédio Silva Jr,
Legislativa do Estado do Rio de Janei-
ro, ao Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro e Governo do Estado do
Rio de Janeiro14. Esta carta, lida publica- devemos acionar o Estado brasi-
mente na “Audiência Pública sobre In- leiro nas Cortes Internacionais de
tolerância Religiosa e Ataques a Terrei- Justiça, visto que tais crimes resul-
ros”, na Alerj, no dia 5 de outubro de 2017, tam de décadas de omissão das
classificava como crime de terrorismo autoridades e agentes públicos
as agressões cometidas contra os ter- que nada fazem para coibir a pro-
reiros em Nova Iguaçu, além de listar paganda do ódio e a incitação à
algumas exigências ao governo do es- violência contra as Religiões Afro
tado do Rio de Janeiro e ao município -brasileiras14.
de Nova Iguaçu.
No que se refere às demandas apre-
sentadas na Carta ressaltamos:
1 - o “imediato fechamento das igrejas Nessa perspectiva, estes episódios em
nos presídios”, baseado no Art. 19, Inc. Nova Iguaçu deflagaram não somente
1 da Const. Federal. Além disso, argu- uma nova categorização das agres-
mentava que “os ‘traficantes evangé- sões às religiões de matriz africana,
licos’ são arregimentados no cárcere”. que como tal reconfiguram a própria
2 - “que os ministros religiosos que percepção da violência, mas também
promovem a perseguição aos adep- como essa classificação demarca “no-
tos das religiões tradicionais de ma- vos” caminhos estratégicos de enfren-
triz africana sejam acionados por tamento à problemática: recorrer a ins-
crime de ódio e devidamente enqua- tâncias internacionais.
drados na Lei de Segurança Nacional”.
15. SIlVA JR. Hédio. “Depredações de templos e coação de
Sacerdotes(isas) configuram crime de terrorismo”. Disponível
14. “Carta dos Povos Tradicionais de Matriz Africana do Estado em: https://umbandaead.blog.br/2017/09/14/depredacoes-de-
do Rio de Janeiro”. Disponível em: http://s0.ejesa.ig.com.br/pdf/ templos-e-coacao-de-sacerdotesisas-configuram-crime-
odia/17/10/CARTA-TERREIRO-RJ-audiencia-publica.pdf de-terrorismo/.

32 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


No dia 29 de outubro, a liderança do Ilê 5.7. “BISPO-PREFEITO”
Omiojuaro, babalorixá Adailton Moreira, DO RIO DE JANEIRO
entregou a Sra. Margarette May Macau-
Em meio aos movimentos, mobiliza-
lay, relatora especial para os direitos da
ções e articulações de afrorreligiosas
população afrodescendente e mulhe-
e afrorreligiosos de enfrentamento ao
res na Corte Interamericana de Direitos
racismo religioso/intolerância religiosa
Humanos (CIDH), da Organização dos
no estado do Rio de Janeiro, a sua ca-
Estados Americanos (OEA), um “Levan-
pital, em 2016, elegeu para prefeito o
tamento de casos de racismo e intole-
candidato Marcelo Crivella. A ascensão
rância religiosa contra religiões de ma-
Crivella à prefeitura da cidade do Rio
triz africana no Brasil”, elaborado pelo
de Janeiro pode ser considerada como
terreiro e a ong Criola, em Montevidéu
a primeira conquista da Igreja Univer-
(Uruguai)16. Num mesmo sentido, no dia
sal do Reino de Deus (Iurd) a prefeitura
30 de outubro, representantes das re-
de uma grande capital. Isso nos leva a
ligiões de matriz africana entregaram
questionar se em alguma medida a sua
uma petição na Câmara Municipal de
vitória pode vir a redefinir a experiência
São Paulo denunciando o Brasil à Corte
vivida dos afrorreligiosos na cidade do
Interamericana de Direitos Humanos, da
Rio, uma vez que, a Igreja Universal, se-
Organização dos Estados Americanos
gundo Emerson Giumbelli (2007), tem
(OEA) sobre a omissão das autoridades
um projeto político hegemônico que
brasileiras diante deste problema his-
reiteraria a subordinação religiosa e so-
tórico. Essa ação visa obrigar o Estado
cial das religiões de matrizes africanas.
brasileiro, segundo Hédio Silva, um dos
Além disso, sua vitória se torna particu-
responsáveis pela denúncia, “adotar
larmente significativa ao considerar-
políticas preventivas, educacionais; in-
mos que o Rio de Janeiro, segundo o re-
centivos na área cultural, na publicida-
latório sobre a intolerância religiosa no
de, direcionados para a valorização da
Brasil lançado ano passado (SANTOS;
diversidade humana, para a cultura de
CAVALCANTI; GINO; ALMEIDA, 2016), tem o
paz e de respeito recíproco entre todas
maior número de denúncias de agres-
as convicções e crenças”17, além de re-
sões contra afrorreligiosos no Brasil.
parar as vítimas de racismo religioso.
O primeiro ano de gestão do prefeito
Ao que tudo indica estas últimas mobi-
da cidade do Rio de Janeiro, Marcelo
lizações expressam as várias esferas e
Crivella, bispo licenciado da Igreja Uni-
níveis de articulação política que as co-
versal do Reino de Deus, foi permeado
munidades de terreiro têm ocupado e
por polêmicas, debates e mobilizações
tensionado. Nada próximo a um estado
de afrorreligiosas/os e setores culturais
de conformação ao lugar marginal, su-
em reação às políticas de seu governo.
balterno e desumanizador relegado as
Grande parte desse processo tem a ver
religiões de matriz africana.
com o Decreto de Lei (DL) n° 43.219, pu-
16. “Organizações de Mulheres Negras se encontram com blicado por Marcelo Crivella no dia 26 de
relatora da OEA”. Disponível em: http://criola.org.br/organi-
zacoes-de-mulheres-negras-se-encontram-com-relatora- maio de 2017 que instituía o Sistema Rio
da-oea/
Ainda Mais Fácil Eventos (RIAMFE) desti-
17. “’Vivemos era do ódio’, diz advogado que luta contra
intolerância religiosa”. Disponível em: https://universa.uol.com.
nado a processar e emitir autorizações
br/noticias/redacao/2017/12/01/o-brasil-vive-a-era-do-odio- de eventos em áreas públicas e parti-
diz-especialista-em-intolerancia-religiosa.htm?cmpid=co-
piaecola culares. O decreto ainda condicionava

LUCAS OBALERA DE DEUS


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a realização de eventos à aprovação lavras de João Paulo d’ Xangô, “o de-
direta do gabinete do prefeito Crivella. creto não garante o direito de crença,
Segundo o decreto, em seu Art. 2°, a ele não garante o direito político, ele
prefeitura teria a responsabilidade de não garante nada, ao contrário” (En-
liberar ou não eventos de natureza cul- trevista, 4 dez. 2017).
tural, esportiva, econômica, recreativa, O debate público do dia 24 de agosto,
artística, musical, expositiva, cívica, co- se mostrou um grande ato político das
memorativa, social, política ou religiosa. comunidades de terreiro na Câmara
Além disso, estabelecia a obrigatorie- Municipal do Rio de Janeiro. Com a pre-
dade de alvará de licença para ativida- sença estimada de 1.200 pessoas, o de-
des permanentes. Essa exigência afeta bate se mostrou um ato de afirmação e
diretamente as casas religiosas de ma- valorização das religiões de matriz afri-
triz africana, uma vez que grande parte cana, assim como de reivindicação do
delas não possui alvará. Nesse sentido, reconhecimento dos seus direitos de
a publicação desse decreto desenca- liberdade de culto e crença. Os afror-
deou a mobilização de afrorreligiosos religiosos, oriundos de diversas casas
cobrando a sua suspensão. e tradições ocuparam a Câmara com
Dentre as articulações políticas de seus cânticos, vestimentas, atabaques
afrorreligiosos nós temos a criação do e discursos, proferidos da tribuna, que a
movimento “Não Mexa na Minha Ances- partir da crítica ao decreto, exaltavam
tralidade” (NMA). Coordenado pelo can- as suas tradições ancestrais e denun-
domblecista João Paulo Alves d’Xangô, ciavam o racismo religioso.
o movimento surgiu inicialmente como Em relação a esta espécie de ocupa-
uma página no Facebook, no dia 2 julho ção da Câmara Municipal de afrorreli-
de 2017, com o objetivo de informar as giosos, João Paulo ressalta:
pessoas sobre o decreto, assim como o
de mobilizá-las para um debate públi-
co. A partir de sua página, o NMA, criou
um evento no Facebook em que convo- A ideia de trazer as pessoas para
cava o povo de terreiro e setores cultu- a praça pública era justamente
rais que se sentiam prejudicados com mobilizar para que o próprio pre-
o decreto, como sambistas e capoei- feito visse que nós não somos 1%,
ristas, a comparecerem no dia 24 de nós somos até muito mais do que
agosto de 2017 na Câmara dos Verea- este 1% que eles dizem. Então a
dores para um debate público. Segun- ideia realmente era mobilizar pes-
do a descrição do evento essa mobili- soas ali e aí botar a prefeitura con-
zação tinha “a finalidade de formar um tra a parede. E provou uma coisa:
debate sobre os impactos do DL 43.219 que nós candomblecistas, apesar
para as casas de Umbanda e Candom- das pessoas insistirem em dizer
blé que não possuem alvará”. que não somos, nós somos unidos
sim [pausa]... é só vê uma situação
No entendimento do “Não Mexa na Mi-
extrema contra aquilo que nos re-
nha Ancestralidade”, o decreto abria a
presenta, que é a nossa religiosi-
possibilidade de ameaça explícita às
dade (Entrevista, 4 dez. 2017).
religiões de matriz africana e à cultura
negra carioca como um todo. Nas pa-

34 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


Ainda em relação ao decreto de lei n° Após a polêmica criada em torno deste
43.219 é importante registrar que além censo religioso, a comandante da Guar-
da mobilização e pressão através da es- da Municipal, Tatiane Mendes, evangéli-
fera legislativa, houve uma articulação ca, admitiu ter ocorrido um “equívoco la-
do povo de terreiro no âmbito jurídico. mentável” (O Dia, 10 ago. 2017).
No dia 26 de julho de 2017, a Organização
Ademais, sob o argumento da necessi-
dos Advogados do Brasil (OAB), junto à
dade de cortar gastos, o prefeito Marce-
lideranças de terreiro, encaminhou ao
lo Crivella suspendeu o apoio financeiro
Tribunal de Justiça uma representação
para o tradicional “Presente de Ieman-
por inconstitucionalidade contra o de-
já”, realizado em dezembro, na praia de
creto publicado pelo prefeito Crivella18.
Copacabana. Acerca desse corte, Mãe
Essas mobilizações, por fim, desencade-
Marilene Matos, Vice-presidente do Mo-
aram a suspensão deste decreto pelo
vimento Umbanda do Amanhã, o MUDA,
Tribunal de Justiça em janeiro deste ano
numa entrevista ao Jornal Extra19, afir-
(O Globo, 23 jan. 2018).
mou: “junto ao aspecto financeiro há
Outra polêmica na gestão do prefei- uma posição religiosa para que não
to Marcelo Crivella foi a realização de haja o evento. Estamos sendo esma-
um censo religioso na Guarda Munici- gados pelo poder religioso da atual ad-
pal. Segundo a matéria do portal G1, no ministração”. Na mesma direção, o Ba-
dia 9 de agosto, intitulada “Prefeitura balaô Ivanir pontua: “é inegável que há
do Rio faz censo religioso na Guarda uma segregação cultural. Na concep-
Municipal”, o “formulário, demanda do ção da Igreja Universal, há uma demo-
Comando da Guarda Municipal, tem nização das religiões africanas”.
três perguntas. A primeira, se a pes-
Diante do corte de verbas da Prefeitura
soa professava alguma religião. Se sim,
para a realização da já tradicional fes-
há opção de responder se é católico,
ta, a Congregação Espírita Umbandista
evangélico, espírita ou outra”. A justifi-
do Brasil (Ceub), responsável pela cele-
cava da Prefeitura para realização do
bração do Presente de Iemanjá, organi-
Censo era de que pretendiam construir
zou uma vaquinha virtual para levantar
uma Capelania. A despeito de sua jus-
fundos que garantissem a realização
tifica, a matéria informa haver relatos
da festa. Observamos com isso, a mo-
de guardas dizendo-se constrangidos
bilização dos afrorreligiosos nas mídias
e temendo represálias.
sociais, a partir da apropriação de fer-
É importante destacar a ausência das ramentas tecnológicas que permitem
religiões de matriz africana no questio- um financiamento coletivo de projetos
nário. Sobre isso, o Babalaô Ivanir dos que independem de verbas públicas.
Santos, representante da Comissão de Além disso, ressaltamos que a divulga-
Combate a Intolerância Religiosa, em ção pelas mídias sociais do Presente
entrevista para essa matéria do jornal de Iemanjá tornaram-se também um
O Dia, ressaltou que “a ação é parte de espaço de repúdio a gestão do prefei-
uma longa história de perseguições a re- to Crivella. A realização do evento, mais
ligiões e culturas afro-brasileiras no país”.
19. “Pela primeira vez em 13 anos, Prefeitura do Rio corta apoio
18. “OAB/RJ entra com representação contra decreto da financeiro à procissão de Iemanjá. Disponível em: https://
Prefeitura”. Disponível em: http://www.oabrj-entra-com-re- extra.globo.com/noticias/rio/pela-primeira-vez-em-13-anos
presentacao-contra-decreto-da-prefeitura. Acessado em: 2 -prefeitura-do-rio-corta-apoio-financeiro-profissao-de-ie-
dez. 2017. manja-22126728.html Acessado em: 8 dez. 2017.

LUCAS OBALERA DE DEUS


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do que nunca, tornou-se um ato de (re) 2018 (O Globo, 12 jun. 2017); e também o
existência das comunidades de terreiro corte no apoio financeiro da prefeitu-
do Rio de Janeiro. ra à realização do tradicional Trem do
Essa categorização de Crivella como Samba (G1, 30 nov. 2017); podem estar
“bispo-prefeito” - que nomeia esse sinalizando a institucionalização de
subcapítulo -, tem sido mobilizada por um governo iurdiano na cidade do Rio
diversos setores sociais, e sobretudo de Janeiro e que, como enfatizou Bàbá
afrorreligiosos. Ela indica de maneira Adailton, tem como uma das carac-
objetiva a não separação entre reli- terísticas acabar ou, pelo menos difi-
gião e política. Ainda que, oficialmente, cultar as práticas culturais-religiosas
o prefeito Marcelo Crivella não tenha negroafricana. Nas palavras de Baba-
nem assumido uma candidatura estri- lorixá Adailton Moreira d’Ogun,
tamente confessional evangélica, o seu
primeiro ano de mandato evidencia
uma veiculação entre sua identidade
religiosa, bispo da Igreja Universal, e o Crivella, este bispo-prefeito, que
seu governo. não é um prefeito-bispo, é um
bispo-prefeito. E aí vai acaban-
Sendo assim, o Decreto de Lei, os cortes
do com tudo, vai acabando com
de verbas, o censo na Guarda Municipal,
o samba, vai acabando com as
assim como o não comparecimento do
manifestações e expressões ne-
prefeito na abertura oficial do carnaval
groafricanas. Vai dominando nos-
(Estadão, 24 fev. 2017); o anúncio de cor-
sos corpos. É um projeto de domi-
te 50% nas subvenções públicas dire-
nação (Entrevista, 13 dez. 2017).
cionadas as escolas de samba para os
desfiles do grupo especial no carnaval

36 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


PADE
Projeto
Africanidade
Dança e Educação
O PADE – Projeto Africanidade Dança
e Educação, coordenado pelo profes-
sor e Bàbálorixa Alexandre Carvalho d’
Oxumarê, é um dos projetos vincula-
dos ao Departamento de Arte Corpo-
ral na Escola de Educação Física e Des-
portos da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Um projeto que surgiu em
2010 com o objetivo de pesquisar, es-
tudar, discutir, difundir e ressaltar a im-
portância das religiões de matriz afri-
cana para a formação e manutenção
da cultura brasileira. Articula encontro
de saberes e conhecimentos entre
os terreiros e os integrantes do Proje-
to. Elabora performances artísticas e
culturais a partir dos conhecimentos
e saberes presentes nas comunida-
des de terreiro e assim, esse comple-
xo cultural civilizatório, reiteradamente
Imagem: Thomas Quine (CC BY 4.0)

associados ao Mal, ao demônio, são


(re)apresentados com sua dignidade
e potência libertadora. A estratégia de
enfrentamento ao racismo religioso do
PADE está no processo de descoloniza-
ção do pensamento, de mudança do
olhar racista e colonial sobre as comu-
nidades de terreiro.

LUCAS OBALERA DE DEUS


| 37
ORO
ORUM:
Axé Eu Respeito
O aplicativo de celular que recebe denúncias de violên-
cia contra as religiões de matriz africana, batizado de
“Oro Orum: Axé Eu Respeito”, foi idealizado pelo afrorre-
ligioso Léo Akin Olakunde e surge como uma ferramen-
ta que ajuda a identificar, registrar e compilar um perfil
amplo de casos de agressão direcionada aos afrorre-
ligiosos. O aplicativo é uma ferramenta tecnológica à
mão, de alcance nacional, capaz de incentivar a denún-
cia dos crimes de discriminação religiosa, bem como o
de organizar um banco de dados dos casos denuncia-
dos para o aplicativo. O aplicativo oferece a possibilida-
de de realizar denúncia especificando o endereço em
que sofreu a agressão, data, hora, quem fez (autorida-
de, servidor público, vizinho, parente, evangélico, cató-
lico,etc), o que fez (injúria, espancamento, invasão, ra-
cismo, assassinato, etc) e um espaço para relatar com
mais detalhes o ocorrido. O aplicativo também disponi-
biliza informações sobre leis que garantem a liberdade
religiosa, permite localizar através de um mapa o local
das agressões denunciadas ao aplicativo e através dos
usuários que cadastram sua comunidade-terreiro, o
aplicativo produzir um banco de dados capaz de quan-
tificar e localizar os terreiros pelo Brasil.

38 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


MUDA
Movimento
Umbanda
do Amanhã
O MUDA é um movimento formado por
casas de Umbanda que tem o objetivo
de positivar e desconstruir a visão ra-
cista, preconceituosa, negativa e mi-
nimalista sobre a Umbanda. Procura
propagar a Umbanda como uma re-
ligião difusora do bem e da caridade
e, desse modo, atua no imaginário so-
cial que associa a Umbanda e as ou-
tras religiões de matriz africana como
espaços de culto a forças do Mal. Esse
movimento, que existe há dez anos, se-
gundo Mãe Marilena, dirigente da Casa
de Cláudia e vice-presidente do MUDA,
tem como principal papel “mostrar
que nós não somos só incorporação
[...] mas que nós somos uma religião,
que como toda e qualquer outra, tem
seus bons e maus lideres e que como
toda e qualquer outra precisa ser res-
peitada”. Eles realizam ações sociais,
limpezas de cachoeira e assim, falam
também da importância do respeito
Imagem: A. Baldini (CC BY 4.0)

ao meio ambiente para as religiões de


matriz africana. Integram a Comissão
de Combate a Intolerância Religiosa
e como tais, acolhem, assessoram e
acompanham afrorreligiosos que fo-
ram alvo de alguma religiosa por mo-
tivação religiosa.

LUCAS OBALERA DE DEUS


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YLÊ ASÈ
EGI OMIM
Centro de Tradições
Afro-brasileiras
O Ylê Asè Egi Omim, liderado pela Iyalorixá Wan-
da Araújo d’ Omolu, abriga o Centro de Tradições
Imagem: Secretaria
Especial da Cultura Afro-brasileiras Ylê Asè Egi Omim que atualmente
do Ministério da
Cidadania (CC BY 4.0) desenvolve seis projetos:

IMAGENS DE AXÉ ENCONTRO CÂNTICOS


COM JOVENS ORIN DUNDUM
Foi um projeto que É um projeto É o nome do projeto
produziu doze postais desenvolvido dentro que está sendo
com a intenção de e para o próprio realizado em parceria
divulgar o cotidiano terreiro com o objetivo com a Escola de
do Candomblé, de conversar sobre Comunicação da UFRJ.
desmistificando o contemporaneidade e Ele pretende gravar
imaginário negativo. Candomblé, os rumos um CD de cantigas
da tradição frente as com “pessoas acima
tecnologias. de 60 anos.

REVISTA CONVERSA #SOU DE


PITÀN DUDU DE TERREIROS TERREIRO
É uma revista eletrônica São oficinas realizadas É uma campanha
voltada à reflexão e dentro dos terreiros virtual em que estimula
difusão sobre e com os próprios afrorreligiosos a
os aspectos inerentes membros daquela produzirem seus vídeos
à cultura afro- comunidade, utilizando- falando os motivos
brasileira utilizando se dos referenciais que o levam a ser de
os conhecimentos e e conhecimento da terreiro. “A ideia é que
metodologias próprias cultura negroafricana, você pegue seu celular
das religiões de matriz estimulando os e diga sou de terreiro
africana. participantes a por isso. Para a gente
refletirem sobre o valor começar a ouvir falar
e potência do próprio bem do terreiro e
terreiro, fortalecendo o começarmos a viralizar
pertencimento cultural isso pela internet”.
das comunidades.

40 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


6.
TOCANDO E
CANTANDO PARA
SUBIR: BREVES
CONSIDERAÇÕES
Não temos que nos prender somente aos
tempos conturbados que vivemos, mas sim à
forma como poderemos transformá-los em
dias melhores para todos nós.
Mãe Beata de Iyemonjá

Na medida em que nos perguntamos o tros modos de Ser, Existir e Sentir. Como
que e como os afrorreligiosos vem re- pode o Dossiê Guerra Santa Fabricada,
fletindo, agindo e reagindo diante da entregue por lideranças de terreiro ao
perseguição e violência as suas tradi- Ministério Público Federal, em 1989, des-
ções, nos deparamos com uma con- crever e realizar denúncias tão atuais,
tínua e crescente articulação políti- senão, devido à continuidade e apri-
ca. Nada próximo a uma condição de moramento das formas de agredir as
meramente vítima, mas sim de alvo religiões de matriz africana.
de uma engenharia social racista que,
apesar das constantes e variadas de- Ao mudarmos nossas lentes de análise e
núncias ao Estado, continua, substan- focarmos no protagonismo, agência dos
cialmente, sendo negligente e omisso. afrorreligiosos, percebemos que há uma
Entretanto, o que poderia fazer uma articulação política coletiva do povo de
estrutura racista, a não ser a de en- terreiro, uma inserção pública em nome
gendrar dispositivos, de forma cada da tradição que, considerando esse Dos-
vez mais sofisticada e camuflada, que siê e o Projeto Tradição dos Orixás como
anulem, demonizem/desumanizem ou- um todo, acontece desde o final de 1980.

LUCAS OBALERA DE DEUS


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Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) realiza audiência pública
para debater o tema: “Perseguições contra praticantes de religiões de matriz africana, candomblé”.
Em pronunciamento, deputada Erika Kokay (PT-DF)
Imagem: Geraldo Magela/Agência Senado, 16 de setembro de 2015 (CC BY 2.0)

Estamos falando aqui de movimentos e Janeiro, a partir da Comissão de Com-


mobilizações de afrorreligiosos, que vem bate a Intolerância Religiosa.
acontecendo, desde pelo menos a vi- Pudemos observar como os povos e co-
gência do chamado Estado Democráti- munidades tradicionais de matriz afri-
co de Direito. É evidente, que estamos nos cana vêm protagonizando, em várias
referindo, nesse momento, ao uso de ins- esferas da sociedade, lutas de enfren-
trumentos oficiais do mundo moderno, tamento à violência perpetrada con-
deixando em suspenso, mas sem des- tra as suas tradições. São estratégias
valorizá-los em nenhum grau, as tantas de enfrentamento que, a partir da for-
outras formas de luta e reexistência das mação de organizações sociais afror-
comunidades de terreiro que são pensa- religiosas, ou por meio de articulações
das e executas desde outrora. pontuais entre terreiros, têm pressiona-
Sendo assim, podemos afirmar que a do o Estado a elaborar e efetivar de for-
mobilização social/política de afrorre- ma conjunta políticas públicas que al-
ligiosos no enfrentamento ao racismo terem a histórica violência direcionada
religioso não é um fenômeno social que as religiões de matriz africana. Identifi-
vem a acontecer somente no século XXI. camos a utilização de dispositivos con-
Essa pesquisa, a partir do projeto coor- temporâneos de articulação, mobiliza-
denado por Jayro Pereira de Jesus, nos ção e cobranças como a construção
permite identificar uma continuidade de aplicativos de celular e a criação de
nessa luta, que dada a sua extensão, páginas no Facebook, ou seja, o uso das
evidentemente, vai variando sua inten- tecnologias e mídias sociais a favor da
sidade, conforme o contexto político. mobilização social em prol da garantia
Sublinha que o povo de terreiro como de direitos das comunidades de terrei-
um todo, não fica sofrendo agressões ro. Ainda nos deparamos com projetos
inertes, pelo contrário vem protagoni- de valorização e positivação do per-
zando e criando caminhos para seguir tencimento cultural civilizatório negro-
resistindo e vivendo a revelia das ten- africano das comunidades de terreiro.
tativas de inferiorização e destruição. Ações voltadas para o próprio universo
Todavia, não há dúvidas que o início do do terreiro e que vêm atuando fora da
presente século se caracteriza por uma chamada política institucional.
intensificação e ampliação dos enfren- Ao reunirmos essas articulações afror-
tamentos, sobretudo, no caso do Rio de religiosas fica muito evidente o como

42 | POR UMA PERSPECTIVA AFRORRELIGIOSA: ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO RACISMO RELIGIOSO


as múltiplas vozes identificam uma va- padas em valorizar o pertencimento cul-
riabilidade de problemas no que se re- tural ancestrálico das comunidades de
fere as agressões, denunciam e criam terreiro. Observamos uma espécie de vol-
caminhos para enfrentá-los. Contudo, tar para dentro e fortalecer internamente
ao que parece, os ouvidos coloniais, a compreensão de mundo negroafricana
ocidentalizados não conseguem ou- dentro das comunidades de terreiro, num
vir essas vozes-atabaques. Em outras processo que classifico como movimen-
palavras, é agoniante constatar que, to/estratégia intra-mariwò20. As estra-
mesmos cientes das agressões, de tégias intra-mariwò imprimem um pro-
seus tipos, os lugares em que ocorrem, cesso de fortalecimento e corporificação
como ocorrem e quem a protagoni- dos valores culturais civilizatórios negro-
zam, muito pouco, para não dizer nada, africana da comunidade-terreiro, numa
efetivamente ocorreu para alterar esse restituição existencial de nossa dignidade
histórico em que as violências físicas, cultural, filosófica, política, epistemológi-
simbólicas, psicológicas e matrimo- ca e espiritual simplificada, demonizada,
niais as comunidades de terreiro são destroçada pelo racismo. Como o ma-
a regra. Cento e trinta anos de aboli- riwò que protege os terreiros de energias
ção da escravidão para quem, se a sua indesejadas, o movimento intra-mariwò
mentalidade que desumaniza pessoas aparenta proteger e fortificar as religiões
e culturas negras continua presente e de matriz africana, por conseguinte, os
criando formas de se atualizar? afrorreligiosos diante dos atravessamen-
É baseado neste cenário, desenhado pe- tos da visão de mundo branco-ocidental
los caminhos afrorreligiosos, que racis- que violenta, “estilhaça” e despotencializa
mo religioso emerge como uma catego- as comunidades de terreiro.
ria potente teórica e politicamente, pois
Esse movimento pode significar a insur-
evidencia como determinadas opres-
gência, nem que ainda de forma em-
sões as religiões de matriz africana são
brionária, de um processo que possa
efetivamente raciais. Ela ressalta o cará-
vir a se redimensionar a um movimen-
ter específico dessa violência, a destrui-
to de luta capaz de uma ruptura radi-
ção de outros modos de compreender e
cal com este padrão cultural ocidental
se relacionar com o mundo. Ao fazer isso,
que reduz múltiplos modos de vida em
também nos coloca diante de um mun-
Um. Sendo assim, ousemos imaginar
do que a gente herdou e que ainda hoje
e construir substancialmente outros
não deixou de produzir seus tentáculos
mundos a partir de sistemas culturais
“genocidas”. E assim como um remé-
civilizatórios que preconizam o equilí-
dio só pode ser eficaz quando se sabe a
brio incondicional entre tudo e todos,
causa da doença, é preciso que manu-
entre seres visíveis e invisíveis, entre os
seemos ferramentas teórico-políticas
seres humanos e as forças da natureza.
que potencializem nossas condições de
Mundos nos quais o “Outro” seja com-
atuar no mundo que a gente tem.
preendido como condição para nossa
Seguindo a sabedoria de nossa ances- própria existência!
tral Iyá Beata de Iyemonjá, percebemos
também um movimento reflexivo, um 20. Mariwò é o nome yorubá dado ao Dendezeiro (conhecido
também como Igi Ope), e as suas respectivas folhas pelas co-
pensar em prática, indicando uma am- munidades de terreiro. As folhas desfiadas do mariwò são utili-
zadas no portão e nas portas das comunidades de terreiro com
pliação de ações afrorreligiosas preocu- a função de protegê-los de energias indesejadas ao território.

LUCAS OBALERA DE DEUS


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Homenagens ao Dia de Iemanjá no Rio de Janeiro. Religiosos celebram o dia de Iemanjá,
a orixá associada à água e ao mar nas religiões afro, e padroeira de pescadores, na Barra da Tijuca
Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil, 2 de fevereiro 2018 (CC BY 2.0)

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LUCAS OBALERA DE DEUS


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