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Princípios Gerais da

Economia
Autores: Prof. Maurício Felippe Manzalli
Profa. Ivy Judensnaider
Colaboradores: Profa. Amarilis Tudela Nanias
Profa. Glaucia Aquino
Prof. Me Livaldo dos Santos
Professores conteudistas: Maurício Felippe Manzalli / Ivy Judensnaider

Maurício Felippe Manzalli

Economista pela Universidade Paulista – UNIP e mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Atualmente é professor da UNIP nos cursos de Ciências Econômicas e Administração e também é
coordenador do curso de Ciências Econômicas na mesma universidade.

Ivy Judensnaider

Economista pela Fundação Armando Álvares Penteado e mestra pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
no Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência. Atualmente é professora da Universidade Paulista
– UNIP nos cursos de Ciências Econômicas e Administração, no qual coordena o curso de Ciências Econômicas no
campus Marquês (SP). Também atua no setor de publicações, dirigindo a editora eletrônica arScientia, e é autora de
inúmeros textos de divulgação científica publicados na web.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M296 Manzalli, Maurício Felippe

Princípios Gerais da Economia. / Maurício Felippe Manzalli; Ivy


Judensnaider. - São Paulo: Editora Sol.

128 p. il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-056/11, ISSN 1517-
9230

1.Economia 2.Mercado 3.Pensamento econômico I.Título

CDU 330

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
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Prof. Fábio Romeu de Carvalho


Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

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Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez


Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Profa. Melissa Larrabure

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dr. Cid Santos Gesteira (UFBA)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Cristina Alves
Sumário
Princípios Gerais da Economia
APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7
Unidade I
1 ABORDAGENS INICIAIS: FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS DA ECONOMIA ....................................9
1.1 Antiguidade e Idade Média .............................................................................................................. 12
2 MERCANTILISMO E FISIOCRACIA .............................................................................................................. 17
3 DA ESCOLA CLÁSSICA AO MARXISMO ................................................................................................... 18
4 A SÍNTESE NEOCLÁSSICA, A REVOLUÇÃO KEYNESIANA E O
PENSAMENTO ECONÔMICO CONTEMPORÂNEO .................................................................................... 33
Unidade II
5 PRINCIPAIS CONCEITOS ECONÔMICOS: DA TEORIA À PRÁTICA .................................................. 60
5.1 Conceitos gerais .................................................................................................................................... 60
5.1.1 Problema econômico fundamental ................................................................................................. 62
5.1.2 O fluxo circular da renda e do produto ......................................................................................... 64
6 SISTEMAS ECONÔMICOS .............................................................................................................................. 72
7 POLÍTICA ECONÔMICA .................................................................................................................................. 75
7.1 Política monetária ................................................................................................................................ 76
7.1.1 Moeda.......................................................................................................................................................... 76
7.1.2 De volta à política monetária ............................................................................................................ 81
7.1.3 Política fiscal ............................................................................................................................................. 83
7.1.4 Política cambial ....................................................................................................................................... 86
7.1.5 Política de rendas.................................................................................................................................... 87
8 O PAPEL DO ESTADO ...................................................................................................................................... 88
8.1 O desemprego e suas causas ........................................................................................................... 92
8.2 Economia brasileira: da estabilização da inflação aos dias atuais ................................... 94
8.3 Desenvolvimento econômico ........................................................................................................ 107
APRESENTAÇÃO

Prezado aluno,

O livro-texto que aqui apresentamos servirá de apoio ao estudo da disciplina Princípios Gerais de
Economia. Note que ele está dividido em duas unidades.

Na Unidade I, você entrará em contato com os primórdios do pensamento econômico. A partir


desses conceitos, o aluno será convidado a refletir sobre a importância do conhecimento econômico
e sobre a construção histórica do mundo em que vivemos. O conteúdo dessa unidade inclui os
conceitos relacionados às ciências econômicas e à economia de mercado, a transição do feudalismo
para a economia de mercado, o mercantilismo e a fisiocracia, a Revolução Industrial e os pensadores
clássicos (Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus, J. S. Mill e Marx), o pensamento neoclássico
e a revolução keynesiana e, finalmente, o pensamento econômico atual e os desafios a serem
enfrentados.

A Unidade II tratará da economia e do mundo real, pela abordagem de temas como os


referentes ao problema econômico fundamental, aos sistemas econômicos, à política econômica
e ao papel do Estado na economia. Ainda nessa unidade, serão discutidas questões relacionadas
ao desemprego e suas causas e a estabilização monetário-financeira da economia brasileira no
período recente.

Por fim, um esclarecimento se faz importante: nossa proposta não é a de tão somente transferirmos
um conjunto predeterminado de saberes. As escolhas metodológicas e didáticas a partir das quais o
livro-texto foi confeccionado incluem o aperfeiçoamento do espírito crítico e o desenvolvimento das
capacidades e habilidades de produção e geração de conhecimento. Dessa forma, o aluno poderá notar
que os conteúdos estão sempre entrelaçados aos contextos sócio-históricos que os geraram, bem como
aos problemas do cotidiano e do ambiente do Serviço Social.

Esperamos que aprecie o texto.

Bom trabalho!

INTRODUÇÃO

As necessidades da vida cotidiana tornam obrigatório o conhecimento sobre economia,


independentemente da área profissional ou da formação acadêmica. Assim, qualquer indivíduo
tem noções de microeconomia e de macroeconomia, mesmo que não saiba exatamente do que
tratam esses saberes. Em outras palavras, todos nós nos deparamos com aspectos relacionados
à formação de preços, às estruturas de mercado, às questões de escassez de bens e serviços, à
inflação, ao desempenho de determinados setores da economia e aos níveis de desenvolvimento
e crescimento das nações.

7
No caso particular dos assistentes sociais, a necessidade de operarem a partir de conceitos econômicos
é mais premente. Afinal, são esses os profissionais que devem compreender, como ação preventiva

a situação criada pela proposição do empreendimento que gerará novas


condições de vida para a população, [...] os expropriados, os espoliados e
os explorados. Entendendo-se como os expropriados urbanos e rurais
os diretamente atingidos (lavradores e índios) que são removidos
compulsoriamente de suas terras ou moradias, para dar lugar a construção;
os espoliados urbanos – aqueles indiretamente atingidos tanto na zona
rural como na urbana e que sofrerão não só os efeitos ambientais como
também esses efeitos sobre o seu sistema de produção; e na zona urbana
cujos efeitos serão sentidos na infraestrutura de serviços existentes no local
de moradia; e por fim os explorados – representados pelos trabalhadores
não qualificados que são recrutados para o trabalho nos canteiros de obras
e que terminada a construção, se veem desempregados1.

Assim, é claro que, para efeito desta disciplina, nossa expectativa vai além do conhecimento genérico
que a população tem sobre o tema econômico. Por isso, vamos às transformações da sociedade que
criaram o ambiente econômico tal como o conhecemos, título dado ao capítulo inicial desta apostila.

1
Texto disponível em: <http://www.ssrevista.uel.br/c_v1n2_conversando.htm>. Acesso em: 15 dez. 2011.

8
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Unidade I
1 ABORDAGENS INICIAIS: FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS DA ECONOMIA

Em outubro de 2008, todos se chocaram com as notícias que anunciavam uma crise econômica
de proporções tão imensas quanto a da quebra da bolsa americana em 1929. Segundo Judensnaider2,
Delfin Netto, economista que em vários momentos da história econômica brasileira desempenhou papel
de fundamental importância na formulação e na coordenação de políticas econômicas, em palestra
proferida na Universidade Paulista, “opinou que estaríamos vivendo mais uma das tantas crises da
história do capitalismo. ‘O mundo não vai acabar’, nas suas palavras”. Do ponto de vista da economia de
mercado, [...] [isto é] absolutamente correto.

Analisemos a história econômica mundial: desde o século XVIII, o mundo


vem caminhando lentamente no sentido de se organizar sob estruturas
básicas que são conhecidas como sendo de economias de mercado. De
forma simplificada, e considerando o período dos Setecentos até o século
XXI, poderíamos identificar três grandes momentos de inflexão do Capital, a
saber, a primeira grande depressão do final do século XIX, a grande depressão
dos anos 30 e as crises do final da década de 70. Em cada uma delas, o sistema
de mercado deu um jeito de resolver a situação: inicialmente, “avançou” em
direção a novos mercados por meio de estratégias imperialistas, e que isso
tenha acabado em guerra é assunto com o qual economistas do mainstream
não costumam se preocupar. Na de 30, entre as duas grandes guerras
mundiais, o capital, reconhecendo a inabilidade das suas mãos invisíveis,
atribuiu ao Estado o papel de tirar a economia de mercado do imenso buraco
em que havia se metido. Depois, cansado da imobilidade à qual estava
sujeito por força da mão visível do Estado, arquitetou o grande discurso
da globalização, sedimentando, ao longo do caminho, os caminhos para a
liberdade do capital através de incursões militares em países estrangeiros e
a institucionalização de organismos financeiros internacionais3.

A constatação de que o mundo econômico opera por meio de falhas e de forma cíclica nos leva a
indagar: afinal, que mundo é esse? Que instrumental teórico temos à nossa disposição que nos permitirá
conhecê-lo e nele operar?

Vejamos, inicialmente, do que trata a Economia. Os economistas, em geral, admitem que a discussão
sobre economia surge no mesmo período em que ocorre a Revolução Industrial e com o desenvolvimento
2
Em texto disponível em: <http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1185>. Acesso em: 15 dez. 2011.
3
A citação encontra-se disponível no mesmo link da nota anterior.

9
Unidade I

dos mecanismos de mercado de formação de preço e alocação dos recursos de produção. Assim, a
Economia é percebida como uma ciência já no século XIX e, desde então, seus especialistas debatem
incansavelmente sobre seu campo de atuação e seus limites.

Do ponto de vista antropológico, o ser humano vem estabelecendo relações de troca com seu
grupo e com a natureza desde sempre, assim o fazendo, em parte, para garantir as condições materiais
necessárias para a sua sobrevivência. Em período anterior ao século XVIII, havia atividade econômica, e
sobre ela foram escritas obras e realizados estudos.

Saiba mais

Sugerimos que você assista à belíssima obra A Guerra do Fogo (Direção:


Jean-Jacques Annaud, 97 minutos, l981). O filme mostra os diferentes
estágios do desenvolvimento social da espécie humana. Embora o diretor
tenha tomado a liberdade de colocar todos os estágios como se tivessem
ocorrido simultaneamente, pode-se perceber o valor e a importância de
cada transformação e o quanto a sociedade e nosso modo de viver foram
historicamente construídos ao longo do tempo.

No entanto, consideramos a gênese da ciência econômica aquela relacionada à investigação de uma


determinada forma de organização econômica, qual seja, aquela que resulta das relações existentes
no mercado. Uma explicação possível é que, apenas a partir do nascimento da economia de mercado
tornou-se possível falar em atos econômicos com interesses e objetivos essencialmente econômicos;
que apenas a partir do advento da economia de mercado as relações sociais passaram a ser explicadas
em função de um sistema econômico organizado.

Como estava organizada a produção de bens e serviços antes da economia de mercado? Naquele
tempo, o chefe de família provia sua prole porque isso era o que a sociedade esperava dele. As trocas se
realizavam não para o lucro, mas para a sobrevivência material. Produzia-se comida não para vendê-la e,
a partir da venda, obter lucro. Produzia-se para consumir. Quando passou a existir governo, ele distribuía
a riqueza para os cidadãos, por que esse era seu papel. Foi apenas com o advento do capitalismo que os
fatores de produção (mão de obra, terra, conhecimento técnico, capacidade empresarial e dinheiro, entre
outros) não apenas se dirigiram ao mercado, mas fizeram mesmo parte dele. Comprava-se e vendia-se
mão de obra. Comprava-se e vendia-se conhecimento. O dinheiro passou a ter um custo, mensurado por
meio dos juros que os bancos cobravam para fornecê-lo sob a forma de crédito. Trabalhava-se não para
produzir os bens necessários, mas para obter recursos capazes de serem trocados pelos bens necessários.
Essa é uma diferença fundamental que marca um momento de transição nas formas de organização da
sociedade.

Normalmente, os atos econômicos anteriores às sociedades capitalistas, ou que nelas não estejam
inseridos, são objeto de estudo dos antropólogos econômicos. Considerando nossos objetivos, basta
10
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

não confundirmos a Economia (ciência) com o próprio sistema de mercado. Entende-se por ciência
econômica a ciência que investiga como fatores escassos de produção são alocados para a produção
de bens e serviços que se destinam a saciar necessidades ilimitadas. Em contrapartida, economia de
mercado representa a forma pela qual, nas sociedades capitalistas, a reprodução material das sociedades
passou a acontecer por meio de instituições orientadas para objetivos econômicos, como os mercados
(CERQUEIRA, 2001). Assim, nos mercados, as trocas produzem preços, sendo essas “trocas realizadas
como resultado de barganha, de uma negociação, onde cada parte é livre para buscar sua vantagem e
não tem que se submeter, por exemplo, a preços preestabelecidos por algum agente regulador externo”
(CERQUEIRA, 2001, p. 400). Portanto, compreenderemos que, na economia de mercado

toda a organização da produção é confiada aos mercados, que compõem um


sistema autorregulado: indivíduos perseguindo apenas seu interesse pessoal
ofertam e demandam mercadorias, fazendo com que estes bens alcancem
um preço determinado. As decisões sobre o que e quanto produzir serão
tomadas como base apenas nos preços informados pelos mercados, que
sinalizam as expectativas de ganho em cada processo produtivo. Da mesma
maneira, a distribuição do produto depende apenas de preços, já que eles
formam os rendimentos de cada indivíduo: aluguel e salários são os preços
do uso da terra e da força de trabalho; o lucro é a diferença entre o preço do
produto e os preços dos insumos necessários para sua produção. Em resumo,
a reprodução material da sociedade depende de que tudo alcance um preço,
ou seja, se comporte como uma mercadoria, inclusive a terra e o trabalho
(CERQUEIRA, 2001, p. 402).

Seria possível haver Economia sem economia de mercado? Os economistas não respondem de
forma consensual e unânime à questão. Para nós, e para efeito dessa disciplina, consideraremos que o
surgimento da Economia ocorre não apenas por que a estrutura econômica passa a ser a de mercado
(finalmente havendo o que se investigar), mas porque as condições do pensamento científico daquele
momento permitem que ela, enquanto saber, se organize enfim de forma sistemática e autônoma.
Também é importante ressaltar que naquele momento (e, de forma hegemônica, até os dias de hoje),
o que se há para investigar são justamente as relações que se estabelecem no mercado. Considerar
como seu objeto de análise única e simplesmente a economia de mercado significa represá-la de forma
tautológica à imutabilidade das estruturas e relações materiais tais como desenvolvidas no Ocidente
a partir do século XVIII: a Economia, sob essa ótica, seria tão somente o estudo das maneiras como o
Ocidente se organizou em termos de determinada estrutura econômica.

Saiba mais

É interessante, nos tempos atuais, a produção de uma grande quantidade


de estudos relacionados a outras culturas, particularmente em relação às
respostas dadas por elas aos problemas de produção de bens e serviços

11
Unidade I

capazes de satisfazer as necessidades da comunidade. Nesse sentido,


recomenda-se a visita ao site da Associação Brasileira de Antropologia,
disponível em: <http://www.abant.org.br/>.

Embora isso acrescente dificuldade à investigação econômica, há que se considerar, portanto, que
o sistema de mercado foi historicamente construído, não sendo “uma entidade acima do tempo e do
espaço”4. Da mesma forma, os pressupostos comportamentais de racionalidade econômica (autointeresse
e propensão para o lucro) não são “naturais”, mas socialmente construídos.

Há economia sem mercado? Apesar de a antropologia ter demonstrado a existência de outras


racionalidades socioeconômicas, “é intrínseca à racionalidade econômica moderna, como uma
espécie de monopólio epistemológico e moral, a desvalorização dos outros modos de vida diferentes
do conduzido pela lei do valor”5. Os economistas ainda estão a debater possíveis respostas a essa
pergunta e, embora esse debate seja extremamente interessante, ele extrapola os limites da nossa
disciplina. Assim, assumiremos que, segundo os parâmetros científicos da modernidade, a Economia
nascerá à época de Adam Smith, no século XVIII, sendo Riqueza das nações um texto fundador, obra
que marca

uma mudança na natureza da reflexão sobre os temas econômicos,


não tanto pela criação de novos conceitos, mas pelo estabelecimento
de um novo arranjo dos conceitos, de um novo ponto de vista. Não
se trata apenas do fato de que a reflexão sobre assuntos econômicos
tenha deixado de ser tópica, fragmentada e guiada por interesses
essencialmente práticos, como nos escritos mercantilistas. Importa,
sobretudo, que ela tenha ganhado a forma de uma disciplina autônoma,
desligada da ética e da filosofia política, no interior das quais a
escolástica e as doutrinas do direito natural ainda a enquadravam
(CERQUEIRA, 2001, p. 397).

1.1 Antiguidade e Idade Média

É evidente que a compreensão do contexto histórico que irá ensejar o nascimento das ciências
econômicas trás à tona uma questão de fundamental importância: afinal, se a Economia surge por
meio do esforço de se distinguir da História, da Sociologia, da Ética, da Filosofia Moral e da Política,
poderíamos ser levados a crer na existência de uma distância entre ela e essas outras áreas, especialmente
do ponto de vista da delimitação do seu objeto de estudo ou da determinação de sua metodologia de
investigação. Esse é um problema que economistas da atualidade vêm buscando lidar e equacionar
e aqui, nessa disciplina, serão debatidas não apenas as condições necessárias para o surgimento da
economia de mercado mas, também, os desafios que esse sistema e sua investigação têm a enfrentar
no tempo presente.
4
Texto disponível em: <http://www.viannajr.edu.br/revista/eco/doc/artigo_90002.pdf>. Acesso em 15 dez. 2011.
5
A citação encontra-se disponível no mesmo link da nota anterior.
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PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Nesse período de asfixiante domínio conservador, forte desarticulação das forças de esquerda
e virtual ausência de um projeto alternativo de sociedade, trabalha-se sempre dentro de condições
preestabelecidas (sociedade capitalista globalizada), raramente questionando-se sua origem e seu
caráter histórico, o tipo de hierarquia e a desigualdade que produz e o tipo de ilusão (comumente
veiculada pela teoria econômica) que necessita para sobreviver6.

Façamos então uma viagem ao tempo. Na Europa do medievo, o mundo era bem diferente
daquele que hoje conhecemos: em vez de trabalhadores livres, políticos, organizações não
governamentais, supermercados e shopping centers, havia reis, senhores feudais, cavalheiros,
servos e clérigos. Assim estava organizada a sociedade durante o feudalismo, e essa estrutura
iria sofrer abalos contínuos até a degradação total, num processo que levaria alguns séculos para
se completar.

Sobre o período medieval, a imagem mais comumente lembrada é a do feudo, grande propriedade
trabalhada por camponeses que aravam não apenas a terra arrendada, mas também a terra do senhor.
Nesse sistema, que sobreviveria na Europa até o século XVIII, o castelo era o centro do mundo: era nele
que morava o senhor e sua família. O feudo, unidade autossuficiente, era o espaço em que ocorriam as
relações de vassalagem entre o servo e o seu senhor.

O servo não era um escravo: não podia ser vendido ou ter sua família desmembrada. Por mais
incrível que possa parecer aos nossos olhos do século XXI, o servo fazia parte da propriedade, e só
passava a ter outro patrão se a terra fosse vendida. E se imaginarmos que, àquele tempo, não eram
comuns as transações imobiliárias, podemos alcançar a real dimensão do relacionamento entre
servo e senhor. O servo muda de senhor, mas não de terra e, portanto, não pode ser expulso e dela
não pode escapar.

O senhor do feudo, como o servo, não possuía a terra, mas era, ele próprio,
arrendatário de outro senhor, mais acima na escala. O servo, aldeão
ou cidadão “arrendava” sua terra do senhor do feudo que, por sua vez,
“arrendava” a terra de um conde, que já a “arrendara” de um duque, que,
por seu lado, a “arrendara” do rei. E, às vezes, ia ainda mais além, e um
rei “arrendava” a terra a outro rei! A relação de vassalagem, inclusive, é
transferida hereditariamente, de pai para filho: o filho será servo daquele a
quem seu pai e seu avô também foram servos (HUBERMAN, 1986, p. 10).

O feudo tinha suas próprias regras e leis, e elas serviam para reger tudo e todos. O senhor feudal
era quem decidia sobre casamentos, litígios e conflitos. Ele resolvia o que, como plantar e quanto
colher. Em algumas regiões da Europa, o senhor feudal tinha o direito “da primeira noite”, ou seja,
podia desvirginar a noiva que morasse em sua propriedade, ou que fosse esposa de alguém que
more nas suas terras. Longe de ser mero capricho, esse direito selava seu papel de senhor absoluto e
também consagrava a continuidade da vassalagem por meio da suspeita em relação à paternidade
dos filhos do servo.
6
Texto disponível em: <http://revistas.fee.tche.br/index.php/ensaios/article/view/2252/2640>. Acesso em: 15 dez. 2011.

13
Unidade I

Saiba mais

Sugerimos, sobre o assunto, o filme Coração valente. (Direção: Mel


Gibson, 177 minutos, 1995). O enredo, apesar de algumas imprecisões
históricas, retrata bem a relação de vassalagem. Aborda, ainda, as lutas e os
conflitos na Escócia do século XIII.

Tudo o que era necessário para a sobrevivência podia ser produzido dentro do próprio feudo. O
comércio era inexistente e, quando ocorria, era baseado no escambo, ou seja, na troca de mercadorias
sem que qualquer dinheiro fosse utilizado, necessariamente, como meio de pagamento ou padrão de
referência.

Havia moedas, claro. Elas existiam e sua variedade era imensa: cada uma delas tinha valor apenas
numa determinada região e não havia referência cambial com outras moedas de outras regiões. Porque
haveria de existir referência, afinal? A vida econômica ocorria dentro dos muros do próprio feudo, não
havendo quaisquer relações comerciais com o que era exterior.

É provável que, à essa altura, surja um questionamento: como, a partir dessa organização
econômica, poderia ter surgido algo como o sistema de mercado? Quais foram os caminhos
percorridos para que esse modelo (o feudal) fosse substituído por outro (o mercado) em que
tudo era mercadoria e tinha um preço? Como o feudo, afinal, se tornou pequeno demais para as
necessidades da sociedade e como seus muros acabaram por ruir? Foram vários os fatores que, com
o tempo, criaram rachaduras e fissuras irreversíveis no sistema feudal e, agora, os investigaremos
de forma resumida.

Um deles foi a realização das Cruzadas, expedições armadas que tinham como objetivo a reconquista
da terra santa para os cristãos. Os cruzados precisavam de provisões e, ao longo do trajeto que percorriam
em direção ao Oriente, foram sendo criados entrepostos comerciais e feiras. Ao longo dos séculos, esse
comércio cresceria cada vez mais, surgindo então, em torno dele, as primeiras cidades.

Os senhores feudais, donos das terras onde se realizavam as feiras, tinham direito a receber comissões
pelos negócios lá efetuados; assim, eles eram receptivos às atividades comerciais por que elas traziam
lucro e prosperidade. Esse comércio também ensejaria o surgimento de uma figura muito importante:
o trocador de dinheiro, responsável pela troca e pelo câmbio entre as várias unidades monetárias. Já se
pode perceber: lentamente, a economia sem mercado transformava-se em economia de vários mercados,
já bem distante do sistema autossuficiente dos feudos.

Devagar, apareciam pequenas aberturas na estrutura feudal de imobilidade social: surgiam


comerciantes e “banqueiros”; crescia uma população urbana que não se encontrava aprisionada pela
vassalagem e tampouco tinha uma relação visceral com a terra.

14
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Esta população, de outro tecido social que não aquele costurado pelo feudal, exerceria
pressão por leis menos arbitrárias do que as do senhor feudal: afinal, era preciso liberdade para
se mover, para comerciar, para vender e comprar. Da mesma forma, o camponês se distanciava
do senhor feudal, já que o seu excedente agora podia ser negociado e transformado em dinheiro.
Sua sobrevivência não dependia mais da vassalagem, mas podia ser providenciada com o uso do
talento para produzir o que outros necessitassem ou com o talento para comerciar o que outros
desejassem consumir.

A riqueza agora não era medida pela propriedade possuída, mas pelo dinheiro possível de ser ganho
com a atividade comercial. Aliás, o golpe de morte no sistema feudal ocorre justamente no momento
em que se percebe ser a terra também uma mercadoria.

Os mercadores se reúnem em corporações. Eles se autointitulam possuidores de direitos monopolistas


que normatizarão as atividades comerciais (nas feiras) ou profissionais: às suas leis, seus membros
se sujeitam, sob pena de expulsão. Os artesãos, e outros profissionais, também se organizarão em
corporações, chamadas de guildas.

Lembrete

As guildas funcionavam como centros onde o aprendiz era treinado no


ofício, segundo as normas e tradições da categoria. Esse treinamento, que
chegava a durar mais do que uma década, lhe assegurava o conhecimento
das artes secretas do seu ofício, além do direito de exercer sua profissão e
ter proteção em caso de necessidade.

Nas guildas, os meios de produção (ferramentas e utensílios necessários para a fabricação das
mercadorias) pertencem aos artesãos que produzem e comercializam o fruto do seu trabalho. O espírito
é de fraternidade, e não de concorrência: se algum membro introduzir alguma inovação, todos devem ter
acesso à mudança. “Patentes” ou “diferenciais produtivos” são práticas desleais, e passíveis de punição.

Nas guildas, reunir-se-ão padeiros, pintores, curtidores de couro, ferreiros, açougueiros, fruteiros,
cirurgiões, jornaleiros, entalhadores, costureiros, sapateiros, e

supervisores das corporações [que] faziam viagens regulares de inspeção,


nas quais examinavam os pesos e medidas usados pelos membros, os
tipos de matérias-primas e o caráter do produto acabado. Todo artigo
era cuidadosamente inspecionado e selado. Essa fiscalização rigorosa era
considerada necessária para que a honra da corporação não fosse manchada,
prejudicando com isso os negócios de todos os seus membros. As autoridades
municipais, por sua vez, a exigiam como proteção ao público. Para maior
proteção desse público, algumas corporações marcavam seus produtos com
o ‘justo preço’ (HUBERMAN, 1986, p. 68).

15
Unidade I

Saiba mais

Rembrandt, pintor holandês do século XVII, retratou alguns membros


dessas corporações:

• na tela A ronda noturna, ele mostra a corporação dos oficiais


bacamartes. Disponível em: <http://www.uncp.edu/home/rwb/
rembrandt_nightwatch>.
• na obra Lição de anatomia do professor Tulp, a corporação dos
cirurgiões. Disponível em: <http://www.biol.unlp.edu.ar/images/
anatomia/anatomia-rembrandt.jpg>
• no quadro Os membros da guilda dos alfaiates, como sugere o título,
vemos os alfaiates reunidos em seu sindicato. Disponível em: <http://
www.abcgallery.com/R/rembrandt/rembrandt121.html>.

O próprio Rembrandt foi membro de uma guilda, a dos pintores.

Aos nossos olhos, estruturas como as das guildas podem parecer muito estranhas. Afinal, no mundo
em que vivemos, as competências relacionadas à competitividade são atributos positivos e desejados,
seja em se tratando de um empresário, seja de um trabalhador. No entanto, é importante entender as
regras da guilda no seu contexto específico, ou seja, o da transição entre um sistema autossuficiente
e fechado para outro, aberto aos negócios e à participação de todos. É claro que o tempo também se
encarregaria de provocar a desintegração das guildas e o justo preço sendo substituído pelo de mercado.
No entanto, àquele momento, a existência das corporações era o que permitia o exercício da atividade
artesanal, a sobrevivência dos artesãos nos centros urbanos e a regulação de uma atividade que se
distanciava, pouco a pouco, das tradições e costumes feudais.

O surgimento das nações também teria sua participação ativa no processo de deterioração
do sistema feudal. O senhor feudal já não conseguia proteger a população (e seu poder havia
diminuído com a perda de terras, servos e recursos gastos em expedições ao Oriente), tampouco
funcionar como autoridade central. Dessa forma, era necessário que alguém ocupasse esse vácuo,
chamando para si a tarefa de centralizar o poder. Quem o faria seria o Rei, aliado das cidades
na luta contra os senhores feudais. Será ele quem arregimentará um exército profissional, quem
tratará de armá-lo e treiná-lo usando os recursos obtidos pela cobrança de impostos. O mais
importante é compreender que esse exercício de poder se faria em subtração ao poder das próprias
cidades e dos comerciantes.

[...] os camponeses que desejam cultivar seus campos, os artesãos que


pretendiam praticar seu ofício e os mercadores que ambicionavam realizar

16
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

seu comércio – pacificamente – saudaram essa formação de um governo


central forte, bastante poderoso para substituir os numerosos regulamentos
locais por um regulamento único, de transformar a desunião em unidade
(HUBERMAN, 1986, p. 86).

O Rei representará a unidade nacional, e a Nação (o conjunto de pessoas que acreditam compartilhar
entre si um passado e um futuro em comum) passa a lutar por seus territórios e pela formação de sua
identidade: língua, moeda e legislação nacionais. Todas essas serão conquistas que, guiadas e conduzidas
pela unidade central de poder, construirão um novo mundo. Não à toa, será o Rei também o responsável
pelo empreendimento ultramarino, de descoberta, povoamento e exploração do que se acreditava ser
realmente um novo mundo, mundo esse que fornecerá a matéria prima, depois, para as indústrias
nascentes e que consumirá as mercadorias produzidas nas metrópoles. Os muros dos feudos haviam
ruído e, agora, as fronteiras avançavam em direção a terras desconhecidas.

Saiba mais

Os filmes Elizabeth (Direção: Shekhar Kapur, 125 minutos, 1998) e


Elizabeth, a era de ouro (Direção Shekhar Kapur, 114 minutos, 2007) são
sugestões excelentes sobre o assunto. Em ambos é tratada a questão
religiosa na Inglaterra, bem como são retratados os esforços para que o
país alcançasse o crescimento e a riqueza por meio das ações de um poder
central: a rainha.

2 MERCANTILISMO E FISIOCRACIA

Em termos do pensamento econômico desse período, duas são as principais vertentes:

• Mercantilismo

Para os mercantilistas, a origem da riqueza estava relacionada ao acúmulo de ouro e prata. O metal era
obtido com as exportações; de forma contrária, as importações representavam o envio de metal para outras
nações. Como uma determinada nação deveria proceder para obter esse superávit? Quanto mais poderosa ela
fosse, quanto mais numerosas fossem suas rotas comerciais, quanto maior a dependência de suas colônias
em relação à metrópole, maiores seriam as possibilidades de acumular ouro e prata (BRUE, 2006). Para isso, é
evidente que se fazia necessário um Estado forte. O espírito nacionalista associado a um conjunto de instituições
militares capazes de dar conta da ação expansionista também seriam fundamentais. Um governo centralizado
bastante forte era outra exigência e o controle governamental bastante rigoroso deveria dar conta das políticas
e das metas mercantilistas, com esse controle tornando-se visível por meio da concessão de monopólios, da
edição de leis protecionistas, e da elaboração e fiscalização de normas que regulamentassem a produção e a
distribuição de mercadorias. O controle das importações era rigoroso, quando não proibido, e a fixação de preços
dos produtos nacionais no mercado interno obedecia às exigências da política mercantilista.

17
Unidade I

• Fisiocracia

A fisiocracia francesa, representada pelas obras de Quesnay e Turgot, pode ser considerada
como uma reação às antecessoras práticas mercantilistas. A oposição se dá, principalmente, em
relação ao excesso de regulamentação e de normatização da ação governamental. Os fisiocratas
introduzirão (ao menos no campo econômico) a ideia de ordem natural, até por influência da
mecânica newtoniana e dos desenvolvimentos da medicina: acreditava-se numa ordem da natureza
que se responsabilizaria por manter tudo em equilíbrio. A mesma ordem natural seria responsável por
manter os planetas no céu, realizar o movimento circular do sangue e também cuidaria da harmonia
econômica terrestre. A oposição à regulamentação e à intervenção do Estado na economia explica
o lema fisiocrata: laissez-faire, laissez-passer (deixe fazer, deixe passar). Finalmente, é importante
salientar a importância que a agricultura tem no pensamento fisiocrático: é ela a responsável pela
produção de riqueza por meio da geração de excedente, sendo o comércio e a indústrias estéreis,
apesar de úteis.

3 DA ESCOLA CLÁSSICA AO MARXISMO

Para que dessas vertentes pudesse surgir um pensamento econômico que desse conta da análise
da atividade econômica, era necessária uma mudança nos valores morais e nas atitudes em relação ao
lucro e ao trabalho: faltava agora uma nova ética que norteasse e conduzisse os agentes em direção à
acumulação do capital. Afinal,

a moderna noção de que qualquer transação comercial é lícita desde


que seja possível realizá-la não fazia parte do pensamento medieval. O
homem de negócios bem-sucedido de hoje, que compra pelo mínimo e
vende pelo máximo, teria sido duas vezes excomungado na Idade Média.
O comerciante, porque exercia um serviço público necessário, tinha direito
a uma boa recompensa e a nada mais do que isso (HUBERMAN, 1986, p.
47).

Portanto, se quisermos compreender como nos transformamos em seres sedentos por sucesso e lucro,
devemos retroceder à transição de uma sociedade que se baseava na noção do justo preço para outra
que perseguia o sucesso econômico. Temos que supor que tal transição fosse requerer uma mudança
drástica na maneira de pensar e agir: era necessária uma nova ética. “A suspeita e o constrangimento
que cercavam as ideias de lucro, mudança e mobilidade social devem dar lugar a novas ideias que
encorajem essas mesmas atitudes e atividades” (HEILBRONER, 1987, p. 64). Vamos tratar, então, de
compreender como surge essa ética e como ela passa a conduzir o comportamento da sociedade que a
ela se submete.

Vamos pensar e refazer esse caminho: até o final da Idade Média, a Igreja Católica era a responsável
pela difusão e pela manutenção dos valores morais. Com base no texto sagrado, ela defendia a vida
como mera passagem transitória pela Terra, anterior à ida para o Paraíso, destino daqueles que haviam
cumprido seu papel aqui.

18
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Conforme afirma Huberman (1986, p. 47):

A Igreja ensinava que, se o lucro do bolso representava a ruína da alma,


o bem-estar espiritual é que estava em primeiro lugar. “Que lucro terá o
homem, se ganhar todo o mundo e perder sua alma?” Se alguém obtivesse,
numa transação, mais do que o devido, estaria prejudicando a outrem, e
isso estava errado. São Tomás de Aquino, o maior pensador religioso da
Idade Média, condenou a “ambição do ganho”. Embora se admitisse, com
relutância, que o comércio era útil, os comerciantes não tinham o direito de
obter numa transação mais do que o justo pelo seu trabalho.

O que era considerado pecaminoso? Por exemplo, a busca pelo lucro ou pelo ganho pessoal e o
trabalho (além do necessário para satisfazer as necessidades mais básicas). Quem tivesse o suficiente
para viver e, apesar disso, continuasse a trabalhar incessantemente, “seja para conseguir uma posição
social melhor, seja para viver mais tarde sem trabalhar, ou para que seus filhos se tornassem homens
de riqueza e importância – todos esses estavam dominados por uma avareza, sensualidade ou orgulho
condenáveis” (HUBERMAN, 1986, p. 47). A ética católica pregava o conformismo e abominava qualquer
tentativa de romper com o que estava dado e acertado. Mais: obter qualquer vantagem em relação
ao seu concorrente (se é que existia esse conceito) era simplesmente inimaginável. Como novamente
aponta Huberman (1986, p. 67):

Assim como se precaviam da interferência estrangeira em seu “monopólio”,


as corporações tinham também o cuidado de evitar, entre si, práticas
desonestas que pudessem causar prejuízos a terceiros. Nada de competição
mortal entre amigos, é o que realmente significa o item 3 dos estatutos dos
curtidores. O membro da corporação não podia furtar um jornaleiro ou o
aprendiz de seu mestre. Também era tabu a prática comercial, hoje muito
difundida, de obsequiar o cliente ou suborná-lo para conseguir realizar
um negócio. Em 1443, a corporação dos padeiros de Corbie, na França,
determinou que ninguém daria bebidas ou faria qualquer outra gentileza a
fim de vender seu pão, sob pena de pagar uma multa de 60 soldos.

Como se pode perceber, a mudança capaz de introduzir uma nova forma de pensar deveria ser ampla
e irreversível. O que se sabe é que o Calvinismo e a Reforma transformaram, à sua época, a forma de ver
o mundo, trazendo em seu bojo uma nova ética e uma nova moral.

Em contraste com os teólogos católicos, propensos a considerar a atividade


humana como coisa fútil e vã, os calvinistas santificavam e aprovavam o
esforço humano como uma espécie de indicador de valor espiritual. De fato,
cresceu entre os calvinistas a ideia de um homem dedicado ao seu trabalho:
‘vocacionado’ para ele, por assim dizer. Daí, a fervorosa entrega de cada um à
sua própria vocação, muito ao contrário de evidenciar um afastamento dos
fins religiosos, passou a ser considerada uma evidência da dedicação à vida
religiosa. O comerciante enérgico e empreendedor era, aos olhos calvinistas,
19
Unidade I

um homem piedoso, não um ímpio; e desta identificação de trabalho e


virtude não foi necessário mais que um passo para se desenvolver a noção
de que, quanto mais bem-sucedido um homem fosse na vida, mais virtuoso
e mais valor ele tinha (HEILBRONER, 1987, p. 79).

Trabalhar, especialmente além do necessário, era virtuoso. A conquista da riqueza não era imoral,
especialmente se a piedade e a virtude direcionassem o uso dessa riqueza: nada de luxo, jogos e hábitos
faustosos. O trabalho era sagrado, e sagrado também era o seu fruto. Os homens deveriam viver com
simplicidade, com economia e com humildade:

[o calvinismo] fez da poupança, da abstinência consciente do usufruto da


renda, uma virtude. Fez do investimento, do uso da poupança para fins
produtivos, um instrumento tanto de devoção como de lucro. Justificou
até, com vários quids e quos, o pagamento de juros. De fato, o calvinismo
estimulou uma nova concepção de vida econômica. Em lugar do antigo ideal
de estabilidade social e econômica, de se conhecer e manter o ‘lugar’ de
cada um, conferiu respeitabilidade a um ideal de luta, de aperfeiçoamento
e progresso material, de crescimento econômico (HEILBRONER, 1987, p.
80).

Essa moral criaria o que Max Weber, no século XIX, ao estudar a fundo a relação entre a religião e o
capitalismo, identificou como sendo o espírito do capitalismo:

De fato, o summum bonum dessa ética, o ganhar mais e mais dinheiro,


combinado com o afastamento estrito de todo prazer espontâneo de viver
é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura eudemonista,
para não dizer hedonista; é pensado tão puramente como um fim em si
mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade para o indivíduo
parece algo transcendental e completamente irracional. O homem é
dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da
vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como
um meio para a satisfação de suas necessidades materiais. Essa inversão
daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de
vista ingênuo, é evidentemente um princípio guia do capitalismo, tanto
quanto soa estranha para todas as pessoas que não estão sob a influência
capitalista (WEBER, 1996, p. 21).

Assim, em algum momento do passado, o processo de industrialização foi ganhando o espaço


antes reservado à agricultura e às outras atividades extrativas. O período em que esse processo
efetivamente teve início, e a partir do qual se desenvolveu, é aquele que compreende o final do século
XVIII até o século XIX. Nesse momento, as velhas estruturas fabris ainda continuavam a conviver
com modernas técnicas produtivas (e isso aconteceria por um bom tempo); grandes invenções
transformavam a indústria: máquina de fiar, tear mecânico, máquina a vapor, lançadeira volante,
patentes para técnicas diversas de fundição, bombeamento de minas e obras hidráulicas. Todas
20
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

essas inovações seriam responsáveis por profundos desenvolvimentos em relação às atividades das
indústrias de lã e siderurgia, embora ainda existissem pequenas firmas que empregavam poucos
trabalhadores (nessas, o empregador não era o grande capitalista, mas o empreiteiro intermediário).
A manutenção desses padrões de indústria domiciliar, inclusive, representaria um obstáculo na
consagração de um caráter homogêneo da classe trabalhadora, às vezes envolvida nos processos
produtivos das grandes indústrias, em outras ainda vinculada aos sistemas dos ofícios e pequenas
unidades produtoras.

O uso intensivo de maquinário nas fábricas – fruto de um incessante processo de inovação


tecnológica –, e a expansão de uma classe trabalhadora, explorada e assalariada, caracterizavam uma
crescente atividade econômica já bem distante da economia comercial e mercantil dos séculos XVII
e XVIII.

Saiba mais

Sugerimos a leitura das obras de Charles Dickens. O autor, de forma


magnífica, soube mostrar a Inglaterra pobre e miserável do século XIX. Entre
seus livros recomendamos Tempos Difíceis e Oliver Twist. Este último foi
transformado em filme com o mesmo nome (Oliver Twist. Direção: Roman
Polanski, 130 minutos, 2005).

Nada parecia se traduzir em algo além de um intenso pessimismo em relação ao “progresso” da


sociedade e à “evolução” da humanidade (pessimismo esse visível nas obras de Malthus e Ricardo), mas
alguns viam nos Oitocentos razões para otimismo e esperança de dias melhores e de um futuro mais
promissor.

As degradadas e sujas cidades inglesas viam circular trabalhadores esfomeados e que viviam em
condições totalmente inadequadas; ao mesmo tempo, os pensadores e a elite empresarial discutiam o
terrível destino que aguardava a humanidade (em especial, a fome resultante da explosão populacional
e da escassez de terras aráveis e produtivas); outros pensadores e capitalistas buscavam alternativas que
pudessem criar um sistema social justo dentro (e a partir do) contexto de industrialização e da economia
de mercado.

Num período em que a crença na ideia do progresso era hegemônica, essas alternativas
incluíam sonhos extravagantes e projetos – às vezes mais, outras menos – mirabolantes. Saint-
Simon e seus seguidores pretendiam construir uma pirâmide social na qual se ganharia em
função do trabalho útil para a sociedade. Fourier escreveria sobre as falanges, locais parecidos
com hotéis, onde todos viveriam e “todos teriam que trabalhar, é claro, porém poucas horas por
dia. Mas ninguém tentaria escapar do trabalho, porque cada qual estaria fazendo o que mais
gostava” (HEILBRONER, 1996, p. 118).

21
Unidade I

Outras iniciativas ocorreriam de forma mais pragmática como, por exemplo, a fábrica de Nova Lanark,
localizada nas redondezas de Glasgow, de propriedade de Robert Owen (1771-1858).

Em Nova Lanark havia duas perfeitas fileiras de casas de trabalhadores


com dois quartos em todas elas; havia ruas com o lixo cuidadosamente
empilhado, à espera de remoção, em vez de estar espalhado em asquerosa
imundície. E, nas fábricas, uma cena ainda mais incrível apresentava-
se aos olhos dos visitantes. [...] Outra surpresa se impunha: não havia
crianças na fábrica — pelo menos, nenhuma com menos de dez ou
onze anos —, e as que lá se encontravam trabalhavam duro apenas dez
horas e quinze minutos por dia. Além disso, nunca eram castigadas;
na verdade, ninguém era castigado e, a não ser poucos adultos
incorrigíveis que tinham sido despedidos por embriaguez crônica ou
algum outro vício, a disciplina parecia basear-se na bondade e não no
medo. A porta da sala do capataz da fábrica permanecia aberta e quem
quer que fosse podia (e o fazia) apresentar suas objeções a qualquer
regra ou regulamento. Todos podiam consultar o livro que continha o
relatório detalhado do próprio comportamento, que servia para que
cada qual recebesse seu cubo, e quem se julgasse injustamente tratado
podia reclamar. O mais notável de tudo eram as crianças pequenas. Em
vez de viverem correndo e fazendo diabruras pelas ruas, os visitantes as
encontravam na escola enorme, estudando ou brincando (HEILBRONER,
1996, p. 103).

Owen, apesar de capitalista, mostrava sentimentos bastante negativos em relação ao uso do dinheiro
e à propriedade privada; em função disso, proporia a criação de aldeias de cooperação, comunidade de
pobres onde estes poderiam se tornar “produtores de riqueza se tivessem chance de trabalhar e que seus
hábitos sociais deploráveis podiam se transformar com facilidade em hábitos virtuosos sob a influência
de um ambiente decente” (HEILBRONER, 1996, p. 118). No entanto, aquele era um tempo de exploração
humana, das crianças em particular. Em uma passagem do livro A riqueza do homem de Leo Huberman,
podemos ver o que era considerado normal, no século XIX, em termos de duração de um dia de trabalho
em uma fábrica inglesa:

As crianças agora trabalhavam em fábricas, sob a direção de um supervisor


cujo emprego dependia da produção que pudesse arrancar de seus pequenos
corpos, com horários e condições estabelecidos pelo dono da fábrica, ansioso
por lucros. Até mesmo um senhor de escravos das Índias Ocidentais poderia
surpreender-se com o longo dia de trabalho das crianças. Um deles, falando
a três industriais de Bradford, disse: “Sempre me considerei infeliz pelo fato
de ser dono de escravos, mas nunca, nas Índias Ocidentais, pensamos ser
possível haver ser humano tão cruel que exigisse de uma criança de 9 anos
trabalhar 12 horas e meia por dia, e isso, como os senhores reconhecem,
como hábito normal” (HUBERMAN, 1986, p. 192).

22
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Heilbroner (1996) também se espanta com a miséria e a exploração infantil. Conforme o autor,

em 1828, The Lion, uma revista radical para a época, publicou a incrível
história de Robert Blincoe, uma das oito paupérrimas crianças que haviam
sido enviadas para uma fábrica em Lowdham. Os meninos e as meninas —
tinham todos cerca de dez anos — eram chicoteados dia e noite, não apenas
pela menor falta, mas também para desestimular seu comportamento
preguiçoso. E comparadas com as de uma fábrica em Litton, para onde
Blincoe foi transferido a seguir, as condições de Lowdham eram quase
humanas. Em Litton, as crianças disputavam com os porcos a lavagem
que era jogada na lama para os bichos comerem; eram chutadas, socadas
e abusadas sexualmente; o patrão delas, um tal de Ellice Needham, tinha
o horrível hábito de beliscar as orelhas dos pequenos até que suas unhas
se encontrassem através da carne. O capataz da fábrica era ainda pior.
Pendurava Blincoe pelos pulsos por cima de uma máquina até que seus
joelhos se dobrassem e então colocava pesos sobre seus ombros. A criança e
seus pequenos companheiros de trabalho, viviam quase nus durante o gélido
inverno e (aparentemente apenas por pura e gratuita brincadeira sádica) os
dentes deles eram limados! (HEILBRONER, 1996, p. 101).

Saiba mais

O trabalho infantil ainda é uma tragédia nos nossos tempos. Se você


quiser saber mais sobre o combate ao trabalho infantil, leia o conteúdo do
site do Ministério do Trabalho e Emprego e, em particular, as publicações
que ali estão sobre o assunto. Disponível em <http://www.mte.gov.br/trab_
infantil/default.asp>.

Aquele era um tempo em que mudanças surgiriam não apenas sob a forma do livre pensamento de
políticos e capitalistas, mas também sob a forma de teorias que buscavam explicitar uma ordem racional
na história da humanidade, ordem essa sempre no sentido de avanço e da melhoria.

A documentação sobre esse período é farta: “o século da imprensa ao alcance de todos e da


disseminação quase universal da alfabetização nos legou fontes documentárias de uma abundância até
agora superior à de qualquer outro século anterior” (DOBB, 1987, p. 257). Aquele seria o momento em
que se organizariam estruturas sociais bastante específicas. O aumento populacional (principalmente
em função da queda da mortalidade causada pelas melhorias nas técnicas de saúde pública), a expansão
do mercado (por meio da divisão do trabalho e dos acréscimos na produtividade) e as invenções
modificariam as cidades e a produção.

Entre 1775 e 1875, o mundo passaria por um intenso progresso econômico, embora desigual
se comparados países, ou mesmo se comparados diferentes setores industriais. Os trabalhadores
23
Unidade I

concentram-se num só lugar, a fábrica. O processo de produção agora é coletivo e, do operário, não é
mais esperada vontade própria ou aptidão especial, mas apenas destreza e obediência às exigências das
máquinas. Também,

era agora necessário capital para financiar o equipamento complexo


requerido pelo novo tipo de unidade de produção; e criara-se um papel para
um tipo novo de capitalista, não mais apenas como usurário ou comerciante
em sua loja ou armazém, mas como capitão de indústria, organizador e
planejador das operações da unidade de produção, corporificação de uma
disciplina autoritária sobre um exército de trabalhadores que, destituídos
de sua cidadania econômica, tinham de ser coagidos ao cumprimento de
seus deveres onerosos a serviço alheio pelo açoite alternado da fome e do
supervisor do patrão (DOBB, 1987, p. 262).

Nesses termos, a Revolução Industrial pode ser descrita como “uma série contínua de transformações
que perdurou além mesmo do século XIX, em vez de como uma modificação feita de uma só vez” (DOBB,
1987, p. 269). No entanto, “uma vez vinda a transformação crucial, o sistema industrial embarcou em
toda uma série de revoluções na técnica de produção, como traço notável de uma época do capitalismo
amadurecido” (DOBB, 1987, p. 270). As invenções provocavam a especialização do trabalho que, assim
dividido, facilitava a introdução de novas inovações, caracterizando um processo cumulativo e irreversível
em termos do aumento da produtividade, da concentração da produção e da acumulação.

Essa última tendência, filha da complexidade crescente do equipamento


técnico, é que iria preparar o terreno para outra transformação crucial na
estrutura da indústria capitalista, e gerar o ‘capitalismo de corporação’
monopolista (ou semimonopolista ou quase monopolista) em grande escala
da era atual (DOBB, 1987, p. 270).

As invenções surgiam em função das necessidades prementes das indústrias e, com o auxílio do
espírito prático e comercial dos capitalistas, mudavam a face da economia e das estruturas sociais.
A força de trabalho não apenas era uma mercadoria, mas uma mercadoria disponível e disposta a se
empregar em troca de salários extremamente baixos. Os cercamentos de terra e o êxodo da população
rural disso resultante, também faria aumentar o número de trabalhadores dispostos a trabalhar em troca
de qualquer salário. A acumulação do capital, portanto, excedia o crescimento da oferta de trabalho.

São os pensadores clássicos que irão consagrar uma forma de “ler” esse novo mundo. As preocupações
desses primeiros teóricos resumem-se a três categorias: produção, distribuição e circulação de riqueza,
essa última vista como consequência da consolidação do Estado burguês na Europa oitocentista. Os
principais pensadores dessa escola foram Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus e John Stuart
Mill. Essa doutrina, a do liberalismo econômico, terá em suas bases a liberdade pessoal, a propriedade
privada, a iniciativa individual, a empresa privada e a interferência mínima do governo: as ideias clássicas
eram liberais, em contraste com as restrições feudais e mercantilistas sobre a escolha de profissões, as
transferências de terra e o comércio.

24
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Esse liberalismo clássico irá defender a interferência mínima do Estado na economia, o comportamento
econômico individual baseado no autointeresse e buscará leis explicativas dos fatos econômicos. Para
ele, não é apenas a agricultura que cria riqueza: a origem desta se encontra em todos os ramos da
atividade econômica.

Adam Smith (1723-1790) é o precursor dos autores clássicos, desenvolvendo um padrão de análise
a ser reproduzido por seus sucessores (o sumário de A riqueza das nações, sua principal obra, é quase
o mesmo daqueles dos escritos de Malthus e Ricardo). Para Smith, a riqueza de uma nação é medida
pela produção total anual de um país, que será consumida por um determinado número de pessoas.
Assim, a riqueza é dada pela relação entre a produção anual e a população. A divisão do trabalho gera
a riqueza e esse processo (o de consecutivas divisões e especializações) só encontra limites no tamanho
do mercado: a divisão do trabalho ocorrerá até o limite das possibilidades do tamanho do mercado.
Para Smith, o sistema econômico tende ao equilíbrio natural, tal como observado na natureza física, e é
resultado do comportamento egoísta que, direcionado ao bem-estar individual, gera o bem-estar social.
Como isso ocorre?

Para Smith, ao buscar seu próprio interesse, cada agente tem também que considerar o interesse do
outro: um bom exemplo é o de um comerciante que diminui o preço de sua mercadoria se os clientes
optam por outro comerciante que venda mais barato. Será essa busca pelo progresso individual, busca
essa motivada pelo autointeresse, que resulta no crescimento das cidades, no aumento da eficiência
econômica e no acúmulo da riqueza material.

Saiba mais

Sobre a questão do autointeresse, sugerimos a leitura do texto A fábula


das abelhas: vícios privados, benefícios públicos, de Eduardo Gianetti da
Fonseca, disponível em: <http://pt.braudel.org.br/publicacoes/braudel-
papers/05.php>.

Smith tentaria, dessa forma, compreender o sistema econômico como um todo, em especial no que
diz respeito à alocação de recursos para os fatores de produção, aos mecanismos de autorregulação do
mercado e ao modelo de crescimento. Segundo Heilbroner e Milberg (2008, p. 75),

Smith mostrou que o sistema de mercado é um processo autorregulador.


A bela consequência de um mercado competitivo é que ele é seu próprio
guardião. Se preços ou lucros saírem de seus níveis “naturais”, determinados
pelos custos, haverá forças que os reconduzirão à linha. Surge, então,
um paradoxo curioso. O mercado competitivo, que tem em seu ápice a
liberdade econômica individual, é ao mesmo tempo o mais rígido supervisor
econômico.

25
Unidade I

O exemplo utilizado por Adam Smith em A riqueza das nações é o da fábrica de alfinetes. Por meio
das atividades observadas nessa fábrica, ele explicará como a divisão de trabalho acaba por gerar riqueza
a partir do aumento da produtividade:

Um operário desenrola o arame, outro o endireita, um terceiro o corta,


um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação
da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se
três ou quatro operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade
diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes
também constitui uma atividade independente. Assim, a importante
atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18
operações distintas, as quais, em algumas manufaturas, são executadas
por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às
vezes executa duas ou três delas. [...] Se, porém, tivessem trabalhado
independentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido
treinado para esse ramo de atividade, certamente cada um deles não
teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1
(SMITH, 1996, p. 66)

Por seu turno, Thomas Malthus (1766-1834) está preocupado com outra coisa: o que o atormenta
é a fome e a imensa miséria dos trabalhadores. Para ele, é visível que, como consequência dos
desenvolvimentos da Revolução Industrial, a acumulação do capital e da renda da terra se faz a partir do
arrocho do salário dos trabalhadores; Malthus escreve sob efeito dos conflitos de seu tempo, conflitos
esses marcados pelo confronto dentro da elite econômica entre os interesses do capital agrário e do
capital industrial, ainda nascente. Os proprietários de terra desejam impostos altos de importação para
os cereais para que possam elevar os preços internos. Os industriais querem os cereais vendidos a preços
menores para que não tenham que aumentar os salários. Os pobres e miseráveis perdem, aos poucos, a
parca ajuda financeira das paróquias.

Malthus está extremamente preocupado com o destino da espécie humana. Para ele,

tem sido dito que uma grande questão está hoje em debate: se doravante o
homem se lançará para frente, com velocidade acelerada, em direção a um
aperfeiçoamento ilimitado e até agora inimaginável, ou se será condenado
a uma permanente oscilação entre a prosperidade e a miséria e, depois
de todo esforço, ainda permanecerá a uma incomensurável distância do
objetivo desejado (MALTHUS, 1996, p. 243).

Malthus analisa o crescimento populacional e o aumento da produção de alimentos e chega à


seguinte conclusão: “não há como essa conta bater”. A população cresce a taxas geométricas, enquanto
a produção de alimentos cresce a uma taxa aritmética. Malthus conclui: em pouco tempo haveria
milhões de esfomeados, a não ser que se pudesse contar com o providencial auxílio das guerras, das
pragas e das pestes. O modelo malthusiano pode ser representado como a seguir:

26
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Teoria de Malthus

Crescimento populacional
Produção de alimentos
Fome, doenças, crises sociais, políticas, mortes
Capacidade de produção de alimentos

Figura 1 - O modelo malthusiano7

Para Malthus, essa era a tendência natural da humanidade: “independentemente do êxito conseguido
pelos reformadores, em suas tentativas de modificar o capitalismo, a atual estrutura de proprietários
ricos e trabalhadores pobres reapareceria inevitavelmente” (HUNT, 2005, p. 69). Essa divisão de classes
era uma consequência inevitável da lei natural: “parecia que, pelas leis inevitáveis da natureza, alguns
seres humanos teriam de passar necessidade. Essas eram as pessoas infelizes que, na grande loteria da
vida, tinham tirado um bilhete em branco” (idem, p. 69).

Malthus, apesar da rigorosa formação religiosa, é contrário a contra qualquer tipo de ajuda aos
pobres. Em sua opinião, se a ajuda aos menos privilegiados surtisse qualquer efeito, eles já teriam
desaparecido da face da terra. Segundo ele, “o fato de que aproximadamente três milhões são coletados
anualmente para os pobres e, entretanto, sua miséria ainda não tenha sido eliminada, é um objeto de
permanente assombro” (MALTHUS, 1996, p. 268). Sua opinião apoia-se na seguinte justificativa:

As leis dos pobres da Inglaterra tendem a rebaixar a condição geral do pobre


dos dois modos seguintes. Sua primeira tendência óbvia é de aumentar a
população sem um aumento de alimento para sustentá-la. Um pobre pode
casar com pouca ou nenhuma perspectiva de ser capaz de sustentar uma
família com independência. Pode-se dizer que, de certo modo, as leis criam
o pobre que mantêm; e como as provisões do país, em consequência do
aumento populacional, devem ser distribuídas a cada pessoa em pequenas
quantidades, é evidente que o trabalho daqueles que não são sustentados
pela assistência da paróquia comprará menor quantidade de provisões
do que anteriormente e, consequentemente, a maioria deles será forçada
a reclamar por sustento. Em segundo lugar, a quantidade de provisões
consumida em albergues por uma parcela da sociedade que não pode, em
geral, ser considerada a mais importante diminui as cotas que, de outro
modo, caberiam aos elementos mais operosos e mais dignos; e, então,
7
Disponível em: <http://www.geomundo.com.br/images/images-geografia/teoria_malthus.gif>. Acesso em: 15 dez 2011.

27
Unidade I

dessa maneira, obriga muitos a se tornarem dependentes. Se os pobres dos


albergues fossem viver melhor do que vivem hoje, essa nova distribuição de
dinheiro da sociedade tenderia mais evidentemente a rebaixar a condição
daqueles que não estão nos albergues, por ocasionar uma elevação do preço
das provisões (MALTHUS, 1996, pp.270-271).

Observação

Ideias não nascem sós: evidência disso é a série de estudos que vem sendo
feita para investigar a relação entre as ideias de Thomas Malthus e as de Charles
Darwin. Ambos partiram de uma mesma realidade e suas obras apresentam
aproximações interessantes. Afinal, ambos buscaram compreender os processos
de seleção natural e de sobrevivência da espécie humana.

Saiba mais

Se você quiser ler mais sobre o assunto levantado na Observação


anterior, sugerimos O conceito da natureza em a origem das espécies, de
Anna Carolina K. P. Regner. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?pid=S0104-59702001000400010&script=sci_arttext&tlng=pt>.

David Ricardo (1772-1823) tinha ideias em comum com Malthus. Discordava, porém, em uma série de
coisas: apesar da enorme amizade pessoal entre os dois, eram inimigos intelectuais. Ricardo concordava
com a ideia de o crescimento populacional ser responsável pela “corrosão” salarial do trabalhador, sempre
levando esse salário ao nível de subsistência. No entanto, Ricardo discordava de Malthus em relação à
renda da terra. Para Ricardo, “o preço dos cereais, em relação ao preço das mercadorias industrializadas,
era regulado pela tendência do trabalho e do capital, quando empregados em terras cada vez menos
férteis, a produzir cada vez menos cereais” (HUNT, 2005, p. 87). Quer dizer, eram as terras menos férteis
que determinavam a renda das terras mais férteis.

Saiba mais

As ideias desses fundadores das ciências econômicas são ainda debatidas


e analisadas à exaustão: do tempo em que a economia política buscava
por um estatuto de ciência que a diferenciasse da filosofia moral, as obras
desses autores ainda trazem as marcas – indeléveis – de um período em que
juízo moral e ciência podiam – e deviam – estar próximos.

28
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Figura 2 - Thomas Malthus8 Figura 3 - David Ricardo9

Apesar de oponentes nas ideias, Thomas Malthus e David Ricardo


desenvolveram uma amizade que se manteve durante suas vidas. Segundo
Heilbroner (1996, p. 85), “O debate sem fim dos dois prosseguiu, por cartas
e visitas, até 1823. Em sua última carta para Malthus, Ricardo escreveu: ‘E
agora, meu querido Malthus, para mim chega. Como outros disputantes,
depois de muita discussão, cada um de nós mantém as próprias opiniões. No
entanto, essas discussões jamais alteraram nossa amizade; eu não gostaria
mais de você, caso concordasse com minhas opiniões’. Ele morreu nesse
ano, subitamente, com cinquenta e um anos; Malthus viveu até 1834. Sua
opinião sobre David Ricardo: ‘Não amei ninguém tanto assim, a não ser
minha família’”.

Você pode ter contato com pensamentos do período consultando o livro


A era do economista, de Daniel R. Fusfeld. Outra obra interessante e que em
muito o ajudará é Novas ideias de economistas mortos, escrito por Todd.

Entre a perspectiva otimista de Smith e o olhar pessimista de Malthus e Ricardo, temos a obra de
John Stuart Mill: nascido em Londres, em 1806, filho do filósofo James Mill, iniciou sua educação ainda
muito criança. Talvez seu maior desafio tenha sido sobreviver à rotina massacrante de estudos imposta
pelo pai: o estudo de grego teria começado aos três anos de idade, e aos sete os primeiros seis diálogos
de Platão já eram conhecidos. Fiel defensor dos direitos das mulheres e do sufrágio universal, Mill
acreditava na necessidade de dar voz às minorias como forma de legitimar a decisão majoritária. Nas
suas obras, Mill indaga: como conciliar uma visão histórica do homem e da sociedade com os critérios

8
Disponível em: <http://images.wellcome.ac.uk/indexplus/obf_images/fa/25/d2c7707f809bd259eb86d61d1cc5.
jpg>. Acesso em 15. dez. 2011.
9
Disponível em: <http://lcweb2.loc.gov/service/pnp/cph/3b40000/3b45000/3b45800/3b45889r.jpg>. Acesso em:
15 dez. 2011.

29
Unidade I

metodológicos consagrados como verdadeiramente científicos? Forjado na herança intelectual de seu


pai e de Bentham, erudito em Lógica, estudioso refinado da Economia política, socialista utópico para uns
e defensor do sistema de mercado para outros, John Stuart Mill procura realizar o estudo da Economia
política a partir da herança deixada por outros pensadores do passado (Adam Smith, Malthus e Ricardo,
entre eles), inspirado pelo pensamento científico do século XIX, impulsionado pelos conflitos éticos e
sociais do momento histórico em que vivia, otimista e progressista, mas profundamente interessado em
fazer a ciência esperada segundo os critérios da comunidade científica de seu tempo. O mundo passava
por grandes transformações.

De fato, entre o pessimismo e o otimismo, uma grave crise estava sendo alimentada: essa crise
resultaria da expansão da produção associada à redução da lucratividade dos negócios: dificuldades
para abertura de novas oportunidades, rapidez na acumulação de capital e limites para a exploração
da mão de obra contribuíram para o desenvolvimento da crise que romperia ao final do século XIX,
aparentemente tão promissor nos seus primórdios.

A substituição crescente da mão de obra por maquinário gerava desemprego, e a revolta era tão
grande que, ao final do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX, eram normais as invasões de
fábricas por hordas de trabalhadores. Conforme afirma Heilbroner (1996, pp. 102-103),

fábricas destruídas espalhavam-se pelo campo, e a cada uma o comentário


era ‘Ned Ludd passou por aqui’. O boato era que um rei Ludd ou um
general Ludd estava dirigindo as atividades da turba. Não era verdade,
claro. Os luddites, como eles eram chamados, inflamavam-se pelo puro
e espontâneo ódio às fábricas, que viam como prisões, e ao trabalho
assalariado, que desprezavam. [...] Para a maior parte dos observadores
[...], as classes baixas estavam escapando do controle e era preciso
agir severamente para acabar com a situação. E, para as classes altas,
aqueles acontecimentos pareciam indicar que um violento e terrificante
Armageddon se aproximava.

Ao final do século XIX, a concorrência exigia a criação de mecanismos de defesa contra a redução
de preços e de margens de lucro. “Essa maior preocupação com os perigos da concorrência sem
barreiras veio numa época em que a crescente concentração da produção, principalmente na indústria
pesada, lançava os alicerces de uma centralização maior da propriedade e do controle da política
dos negócios” (DOBB, 1987, p. 310). Esse contexto enseja a formação de trustes, de associações de
produtores industriais e de cartéis. As empresas europeias (especialmente as de capital britânico),
desesperadas por conquistar novos mercados, irão exportar bens de capital para a Ásia, a África e a
América.

Assim será com a exploração do salitre no Chile, com a construção de ferrovias e portos no Brasil,
no México, no Japão, no Canadá e na Argentina: se o capital já não pode ser traduzido em acumulação
nos seus locais de origem, irá ser exportado para o exterior, e de lá trará os lucros tão desejados pelos
empresários.

30
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Saiba mais

Sugerimos a leitura de Santa Maria de Iquique, Há Cem Anos, de Ivy


Judensnaider, em que a autora relata o ocorrido nas minas de salitre do
Chile no começo do século XX. Disponível em: <http://www.arscientia.com.
br/materia/ver_materia.php?id_materia=442>.

Também sugerimos o filme Mauá, o Imperador e o Rei (Direção: Sérgio


Rezende, 134 minutos, 1999), que trata do embate entre o capital inglês e
o capital nacional).

Inspirados pela visão dos sucessos de levantes operários e envolvidos no trabalho de entender
e resolver os problemas oriundos da acumulação capitalista, Marx e Engels buscarão a análise do
capitalismo, defendendo sua inexorabilidade rumo à destruição.

A concepção materialista da História, escreveu Engels, [...] origina-se do


princípio que a produção, e com a produção a troca de seus produtos, é a
base de toda ordem social; que em cada sociedade que apareceu na História
a distribuição dos produtos, e com ela a divisão da sociedade em classes ou
estados, é determinada pelo que é produzido, como é produzido e como
o produto é trocado. De acordo com esta concepção, as causas finais das
mudanças sociais e das revoluções políticas devem ser vistas, não na mente
dos homens nem em seu crescente impulso em direção da eterna verdade
e da justiça, mas sim nas mudanças das maneiras de produção e de troca;
devem ser vistas não por meio da filosofia, mas sim da economia da época
concernente (HEILBRONER, 1996, p. 138).

Marx, acrescentando, fará uma previsão: o capitalismo se destruirá por si mesmo. A produção não
planejada, a desorganização do sistema, as constantes oscilações de preços, tudo estaria conspirando
para a inexorável crise.

O sistema, simplesmente, era complexo demais; desencaixava-se de maneira


constante, perdia o ritmo, produzia determinada mercadoria em excesso e
outra de menos. A segunda, o capitalismo deveria produzir seu sucessor sem
o saber. Dentro de suas grandes fábricas ele precisaria não apenas criar a
base técnica para o socialismo — produção racionalmente planejada —, mas
teria, além disso, que criar uma classe bem treinada e disciplinada que viria
a ser o agente do socialismo, o amargurado proletariado. Por sua própria
essência dinâmica, o capitalismo iria produzir a própria queda e, no processo,
alimentaria o inimigo (HEILBRONER, 1996, p. 141).

31
Unidade I

Algumas das principais ideias de Marx podem ser assim resumidas: para ele, o capital era quem
gerava lucros para uma específica e especial classe social; a relação econômica básica era a da troca e,
nesse sentido, as mercadorias tinham um valor de uso (criado pelo trabalho útil) e um valor de troca
(criado pelo valor abstrato); o valor de troca era expresso em termos de preço monetário; ainda, “o valor
de uso não poderia ser a base do valor de troca” (HUNT, 2005, p. 198). Tendo “estabelecido a ligação
entre o valor de troca de uma mercadoria e ‘a quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário
para sua produção’, Marx [...] mostrou as condições sócio-históricas específicas necessárias para os
produtos do trabalho humano se transformarem em mercadorias” (idem, p. 200).

Para Marx, enquanto numa sociedade não capitalista o fluxo de troca poderia ser descrito por mercadoria
– dinheiro – mercadoria (o processo, nesse caso, envolvendo a troca com o objetivo de adquirir outras
mercadorias para uso), numa sociedade capitalista o fluxo caracterizava-se por dinheiro – mercadoria –
dinheiro (ou seja, o dinheiro era gerado pela produção e troca de mercadorias produzidas a partir do capital
disponível); a diferença entre dinheiro recebido pela troca das mercadorias produzidas e dinheiro gasto com
salários era denominada mais-valia, gerada no processo de produção e que tinha como origem o fato de
os capitalistas comprarem um conjunto de mercadorias (fatores de produção, incluindo o trabalho que o
operário vendia como mercadoria) por um valor abaixo daquele representado pelo conjunto de mercadorias
vendidas (resultantes do processo produtivo).

Para Marx, essa análise permitia concluir que a única maneira de o capitalista sobreviver era por meio
da acumulação cada vez maior de capital, e essa a luta pela sobrevivência acabaria por gerar concentração
econômica e queda da taxa de lucro (em suma, crises setoriais, alienação e miséria da classe operária).

Saiba mais

Germinal (Direção: Claude Berri, 160 minutos, 1993) é um filme baseado


na obra homônima de Émile Zola e retrata a situação dos mineiros franceses
ao final do século XIX, especialmente as condições insalubres de trabalho
associadas aos baixos salários.

Esse seria o contexto a partir do qual se desenvolveria a depressão da década de 1870 e, em consequência,
a articulação de um discurso analítico feito sob medida para compreendê-lo em toda a sua extensão.

O que se tornou conhecido como Grande Depressão, iniciada em 1873, interrompida por surtos
de recuperação em 1880 e 1888, e continuada em meados da década de 1890, passou a ser encarado
como um divisor de águas entre dois estágios do capitalismo: aquele inicial e vigoroso, próspero e cheio
de otimismo aventureiro, e o posterior, mais embaraçado, hesitante e, diriam alguns, mostrando já as
marcas de senilidade e decadência (DOBB, 1987).

Afinal, se os mercados são tão necessários para a sobrevivência do capital, as nações desenvolvidas
entrariam em guerra para disputá-los.

32
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Para refletir

Veja o mapa a seguir. Ele mostra as regiões do mundo que sofrem com o problema da fome. Em sua
opinião, as previsões de Malthus estavam corretas?
-180º -135º -90º -45º 0º 45º 90º 135º 180º

45º 45º

0º 0º

-45º -45º

-180º -135º -90º -45º 0º 45º 90º 135º 180º

< 5% 5 - 20% 20 - 35% > 35% Dados não disponíveis

Fonte: FAO/GIS (ESNP / SDRN), 2003

Figura 4 - O mapa da fome10

4 A SÍNTESE NEOCLÁSSICA, A REVOLUÇÃO KEYNESIANA E O PENSAMENTO


ECONÔMICO CONTEMPORÂNEO

Como vimos ao final do item anterior, o marxismo marcou indelevelmente o pensamento econômico ao
final do século XIX: colocando sob o holofote crítico do materialismo histórico, ele veio se configurar como
a mais estruturada manifestação contrária ao capitalismo. É evidente que os liberais e os adeptos do livre
mecanismo de mercado precisavam reagir, e eles reagiram: em verdade, a síntese neoclássica se mostrou,
ao menos no primeiro instante, como uma tentativa de responder às previsões pessimistas de Marx quanto
ao futuro da relação capital-trabalho que até então se mostrava hegemônica e insubstituível.

Dessa forma, podemos entender o pensamento neoclássico como resultante das ideias que

surgiram por volta de 1870 como reação aos movimentos socialistas de


meados do século XIX, que eclodiram devido à concentração de renda e
à intensa migração rural-urbana decorrentes da industrialização. Os
marginalistas ou neoclássicos combatiam a teoria clássica baseada no
10
Disponível em: <http://www.feedingminds.org/info/world_h_pt.htm>. Acesso em: 25 jun. 2011.

33
Unidade I

valor-trabalho e na ideia de que a renda da terra não era socialmente justa.


Novas teorias foram desenvolvidas para o valor, distribuição e formação dos
preços. Suas suposições são as de que a economia é formada por um grande
número de pequenos produtores e consumidores, incapazes de influenciar
isoladamente os preços e as quantidades no mercado. Os consumidores, de
posse de determinada renda, adquirem bens e serviços de acordo com seus
gostos, a fim de maximizarem sua utilidade total, derivada do consumo ou
da posse das mercadorias. Essa é uma concepção hedonista, segundo a qual
o homem procura o máximo prazer, com um mínimo de esforço11.

Segundo o texto anterior, a escola neoclássica (também chamada de marginalista), se organizaria a


partir de algumas ideias básicas, tendo como centro o indivíduo e a firma e como forma de investigação
a abstração teórica e a argumentação lógica: produzir-se-á ou se consumirá a partir da análise do custo
ou benefício que a última unidade (produzida ou consumida) proporciona; as ações dos indivíduos e
das firmas proporcionam o equilíbrio entre o consumo e a oferta; o modelo de estrutura de mercado
adotado é aquele representado pela concorrência perfeita; a demanda é o elemento mais relevante na
determinação dos preços; a determinação do valor dos bens se dá pela sua utilidade; a racionalidade
conduz as ações dos agentes econômicos e a liberdade de mercado é essencial para o equilíbrio de
mercado. Como pode ser visto, o pensamento neoclássico se encarregaria de tirar de cena as questões
incômodas de valor de troca, de salário e de mais-valia da análise econômica, traduzindo-se assim como
real alternativa teórica aos estudos marxistas.

A crise de 1929 traria outros ingredientes para a análise do pensamento econômico, e a escola
neoclássica teria que proporcionar soluções antes não cotejadas no seu desenvolvimento teórico.
Vejamos um texto publicado na revista Veja sobre o famoso outubro daquele ano:

Um alvoroço incomum nos arredores da Bolsa de Valores de Nova York chamou


a atenção do comissário de polícia da cidade, Grover Whalen, na última
quinta-feira, dia 24. Por volta das 11 horas, um rugido cavernoso começou
a escapar do edifício. Alguns minutos depois, já não era possível identificar
se o bramido vinha de dentro ou de fora da Bolsa; uma multidão estrepitosa
tomara as cercanias de Wall Street e Broad Street, como formigas rodeando
um torrão de açúcar esquecido na pia da cozinha. Alarmado, o comissário
logo enviou um destacamento especial para a região. A turba, contudo, não
representava uma ameaça à ordem pública, como o oficial perceberia mais
tarde. Com olhares horrorizados e incrédulos, os nova-iorquinos, espremidos
uns aos outros, estavam inertes. Eles apenas esperavam, não se sabe ao certo
quem ou o quê. Era o pânico. Dentro do prédio, a consternação era semelhante
e estava ainda mais evidente na agitada face de corretores e operadores,
protagonistas e testemunhas do acontecimento que pode mudar os rumos
da economia mundial. Símbolo maior da pujança econômica dos Estados
Unidos, o mercado de ações, que se tornou verdadeira mania nacional nesta
11
Texto disponível em: <http://www.nalijsouza.web.br.com/introd_hpe.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2011.

34
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

década gloriosa para os americanos, via seu baluarte, a rica e poderosa Bolsa
de Nova York, despedaçar-se em poucos minutos naquela que já entrou para
os anais como a “quinta-feira negra”. Uma onda súbita e sem precedentes de
vendas tomou de assalto o pregão nova-iorquino. Ações outrora valorizadas
simplesmente não encontravam novos compradores, nem mesmo por
verdadeiras ninharias. Os preços dos papéis, fossem eles da United States
Steel ou da American Telephone and Telegraph, caíam vertiginosamente,
arrastando com eles as economias, esperanças e sonhos de milhares de
americanos levados à bancarrota instantânea12.

Observação

O primeiro número impresso da revista Veja foi publicado em 1968.


Por meio da internet, porém, sob o nome Veja na História, a publicação
tem colocado à disposição dos interessados edições especiais sobre fatos
históricos relevantes que aconteceram no mundo nas mais diversas épocas,
como o crash na Bolsa de Nova York.

A notícia faz referência à quebra da bolsa da maior economia do mundo em 1929, que, por sua
dimensão, disseminou a crise por todos os continentes. Para Dobb (1987, p. 322), o que desmontava era
o sonho de um paraíso econômico:

Os próprios fatos desses anos sombrios, com suas falências repentinas, fábricas
abandonadas e filas de gente a pedir pão, forçaram nos espíritos já refeitos a
conclusão de que algo – muito mais fundamental do que uma adaptabilidade
lenta de desordenadas relações de preços – devia estar errado no sistema
econômico, e que a sociedade capitalista teria sido tomada por algo com
todos os sinais de ser uma doença crônica que ameaçava tornar-se fatal.

Saiba mais

Recomendamos a leitura do livro As vinhas da ira, de John Steinbeck,


editora Record. O romance é de 1939 e o autor narra a trajetória dos
camponeses sem trabalho que vagam pelo território americano em busca
de alguma oportunidade de sobrevivência.

Entendamos, portanto, a crise. A atividade econômica tinha, naquele momento, a produção de massa
como principal característica. O antigo artesão, o produtor independente da máquina e o agente que operava
12
Texto disponível em: <http://veja.abril.com.br/historia/crash-bolsa-nova-york/especial-quebrou-panico-acoes-
wall-street-impressao.shtml>. Acesso em: 16 dez. 2011.

35
Unidade I

a máquina, todos eles haviam sido substituídos, aos poucos e de maneira irreversível, por máquinas que
operavam e comandavam a produção. Ela se tornara um processo de equipe, mecanizado e unificado.

Nas primeiras décadas do século XX, tudo parecia funcionar exatamente como o previsto pelo
modelo da “mão invisível”: aos capitalistas e industriais, era requerido apenas que se conhecesse o
mercado para conduzir a oferta em sua direção. Porém, problemas não previstos passaram a ocorrer: o
mercado parecia dominado cada vez mais por monopólios e oligopólios. As margens de lucro não mais
aumentavam e os preços pareciam não admitir elevação. O emprego se reduzia cada vez mais e mesmo
isso parecia não elevar a rentabilidade dos negócios. Uma situação como essa não poderia culminar em
outra coisa que não crise e foi exatamente isso que se observou ao final da secunda década daquele
século que parecia tão promissor.

A demanda havia se reduzido de forma significativa e os produtos produzidos permaneciam estocados


acima dos níveis normais. Mesmo com o desaquecimento da produção (com demissões em massa para
reduzir custos), os lucros pareciam “dados” por força da ação do sistema monopolista. De acordo com
Dobb (1987, p. 360), ainda havia outro fator a ser considerado:

À medida que o processo de produção se torna um todo unificado, em vez


de uma coleção de unidades atomísticas, impõe-se pelo menos um tamanho
mínimo, abaixo do qual uma fábrica não pode operar. E, à medida que os
custos fixos ou gerais são aumentados, enquanto os custos diretos ou
primários (ou variáveis) são simultaneamente rebaixados, a praticabilidade de
variar a produção de uma dada fábrica (por exemplo, pela sua dotação com
uma força de trabalho menor) fica ao mesmo tempo reduzida.

O otimismo que havia conduzido os negócios até então contrastava com a triste realidade da
superprodução e do desemprego, sendo esse otimismo perceptível na febre de poerações na bolsa de
valores: os lucros eram tão imensos que todos compravam ações. Do padeiro ao motorista de ônibus,
todos compravam ações, embalados pelo sonho da prosperidade rápida e sem riscos, sequer imaginando
que o fim estava muito mais próximo do que se imaginava. Mas, por qual motivo?

Desde muito, o governo americano incentivava o cidadão a participar do mercado acionário. Seria
nesse tipo de mercado que agentes superavitários encontravam formas alternativas de valorizar suas
riquezas, deixando-as à disposição dos empresários que investiriam mais e mais na produção de coisas
úteis. Ao final do processo, o empresário vendia sua produção e repassava parte dos lucros aos agentes
superavitários que acreditaram no “negócio”. No entanto, essa participação entusiasmada no mercado
de ações acabou perdendo o contato com a realidade cruel da superprodução e do desemprego reais:
na ânsia capitalista de querer acumular mais e mais capital, algumas pessoas chegaram a hipotecar
seus imóveis para arriscar os lucros extraordinários do mercado financeiro. Já se deve ter percebido a
cilada: para que lucros maiores fossem repartidos entre mais pessoas, maiores deveriam ser os lucros das
empresas; para aumentar os seus lucros, empresas deveriam diminuir custos e salários, produzir mais e
vender mais. Como aumentar o consumo se os salários baixavam para aumentar a margem dos lucros?
Como desaguar a produção se cada vez havia mais desempregados fora do mercado de consumo?

36
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

As empresas industriais desempregavam pessoas e aumentavam as quantidades de produtos


produzidos. Não havia quem comprasse, não havia como gerar receitas. Dessa forma, não havia como
devolver o capital anteriormente investido pela população no mercado de ações. Assim,

quando os escombros foram varridos, o estrago era assustador. Em dois insanos


meses, o mercado perdera todo o terreno que ganhara em dois anos delirantes;
US$ 40 bilhões em valores haviam simplesmente desaparecido. Houve também
o fato de que o americano médio usara sua prosperidade de forma suicida;
ele se hipotecara até o pescoço, esticara seus recursos de forma perigosa sob a
tentação de compras a prestação e acabara por selar o próprio destino comprando
avidamente fantásticas quantidades de ações — cerca de 300 milhões de quotas,
é a estimativa — com dinheiro emprestado (HEILBRONER, 1996, p. 233).

Para piorar a situação, o monopólio, estrutura na qual operava a maior parte do mercado, tinha como
característica a imposição de obstáculos à entrada de novas empresas. A queda de investimentos logo se
faria sentir. Capacidade ociosa: esse seria o resultado da adoção desse conjunto de práticas, e a ociosidade
seria não apenas de equipamentos e ativos imobilizados, mas especialmente da mão de obra, que se
caracterizaria como exército industrial de reserva de dimensões alarmantemente ampliadas. Superprodução
e desemprego seriam, dessa forma, as características mais evidentes da crise que se anunciava.

Os Estados Unidos, antes reconhecidos como país de sucesso e de oportunidades para todos, seriam agora
identificados como geradores de crises. Os milhões de desempregados eram como obstruções nas veias pelas
quais circulava a riqueza da nação e, embora sua evidente existência demonstrasse que algo estava errado
no sistema, os economistas simplesmente não conseguiam entender, diagnosticar ou receitar: não havia, no
referencial teórico à disposição, qualquer remédio conselhado para essa situação inédita. Desemprego — este
tipo de desemprego — simplesmente não se encontrava na lista dos possíveis problemas do sistema; era
absurdo, irracional e, portanto, impossível. Mas estava ali. (HEILBRONER, 1996, p. 234).

O mecanismo da crise está representado no quadro a seguir.

Subconsumo
e
superprodução
Desemprego Baixa de preços

Quebra dos Quebra dos


rendimentos Falências industriais e lucros
comerciais

Quebra
Diminuição das ações
do crédito Falências
bancárias

Quadro 1 - Mecanismo da crise de 1929

37
Unidade I

O que fazer com o mundo que parecia não encontrar o caminho para o equilíbrio tão prometido,
previsto e preconizado pelo liberalismo vigente até então? Como fazer se a oferta não criava a sua
própria demanda? Várias foram as estratégias que inspirariam os governantes dos mais diversos países
do mundo, rompendo com determinados paradigmas do pensamento econômico e se configurando
como uma verdadeira revolução.

O contexto gera a oportunidade de desenvolvimentos teóricos: a partir das catástrofes causadas pela
grande depressão (consequência direta da crise de 1929), vamos perceber uma ruptura com a ciência
clássica e com os principais pressupostos sobre a capacidade de os mercados, sem a interferência do
governo, utilizarem de maneira eficiente os recursos disponíveis, ou seja, produzirem esses recursos com
pleno emprego. As teorias econômicas, até então, sugeriam a existência de uma tendência automática
ao pleno emprego de recursos, sem o desemprego de trabalhadores. Por conta da grande depressão dos
anos 30, a evidência empírica mostrava agora pessoas buscando constantemente emprego sem alcançar
sucesso.

Não se tratava apenas de um problema de superprodução associada ao desemprego: é


importante notar que outros acontecimentos da economia americana da época, conjugados à
euforia especulativa, acabariam por alimentar a crise. Um desses acontecimentos refere-se às
dificuldades sofridas pelo setor agrícola. Vejamos com mais detalhes: este mercado funciona a
partir de um modelo de concorrência perfeita e de tal forma que se, por exemplo, baixarmos
significativamente o preço da alface, o seu consumo não aumentará na mesma magnitude. O
mesmo fenômeno ocorre em função da renda: como a sociedade industrializava-se cada vez mais,
era esperado que os salários dos trabalhadores da indústria fossem maiores em comparação aos
dos trabalhadores agrícolas. Mais: como as sociedades estavam mais concentradas nos centros
urbanos do que nos rurais, o consumo de produtos industrializados era maior do que o dos
produtos agrícolas, gerando superprodução dos produtos agrícolas e diminuindo os lucros dos
empresários desse setor.

Outro elemento complicador (e, portanto, estimulador da crise) diz respeito ao desenvolvimento do
setor de serviços, que dava suporte e assistência às indústrias. Para que as empresas do setor de prestação
de serviços pudessem operar, eram necessários trabalhadores que, de forma muito provável, deveriam ser
“roubados” do setor da indústria. Como esses trabalhadores somente mudariam de emprego se a relação
de salário fosse melhor, ou seja, se o setor de serviços pagasse salários maiores, percebia-se que os lucros
nesse setor eram baixos se considerados os pagamentos de salários elevados, comparativamente aos
salários industriais. Lucros baixos remetiam à baixa remuneração do investimento em ações na bolsa de
valores. Tudo parecia conspirar para que a crise atingisse, portanto, diversos setores, disseminando-se e
alastrando-se com rapidez.

Se a crise já tinha contornos bem visíveis, faltava agora a solução. Em 1933, Roosevelt assumiu
a presidência dos Estados Unidos, herdando a pesada conta de 17 milhões de desempregados. Para
tentar solucionar a crise, sua equipe elaborou um plano que passou a ser conhecido como New Deal
(Novo Acordo) e que envolvia, basicamente, a atribuição ao Estado da responsabilidade de intervir na
economia, vigiando o mercado e os empresários, corrigindo as distorções e monitorando as atividades

38
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

nas bolsas de valores. De forma resumida, o New Deal procurou consertar o desequilíbrio na economia
por meio de algumas estratégias:

• criação de um grandioso e ambicioso programa de obras públicas a serem executadas por órgãos
públicos e empresas estatais: estradas, escolas, hospitais, aeroportos e toda uma infinidade de
obras de infraestrutura;
• criação da Previdência Social e elaboração de leis sociais para a proteção dos trabalhadores e
desempregados;
• criação do salário mínimo;
• diminuição da jornada de trabalho e manutenção dos salários;
• compra de estoques de cereais e sua posterior queima, para manter a remuneração dos setores da
economia envolvidos com o setor primário;
• arbitragem dos conflitos entre empresários, forçando-os a concretizar acordos sobre os níveis de
produção e preços;
• renegociação e perdão das dívidas dos pequenos proprietários;
• concessão de crédito aos fazendeiros.

A proposta do New Deal baseou-se numa combinação bastante simples: por um lado, procurou
aumentar a capacidade de consumo da sociedade; por outro, evitou-se aumentar a capacidade de
produção das empresas. A preocupação maior de Roosevelt era proporcionar à sociedade novos tempos
de consumo e produção, e não aumentar a estocagem de produção vigente, já imensa; assim, procurou-
se transferir renda para a sociedade, por meio da ação do governo.

Acompanhe o raciocínio: para que o governo possa construir uma escola, ou um hospital, por
exemplo, precisa inicialmente de um espaço geográfico, um local físico. Terá, então, que adquirir
uma fábrica fechada em função da crise anterior; ao comprar o imóvel, o governo está, portanto,
repassando renda a uma família que pode voltar ao mercado de consumo. Agora, é necessário
construir a escola ou o hospital: o governo terá que adquirir, no mercado de construção civil,
todos os materiais necessários à construção; também terá que contratar pessoas que trabalharão
nas obras. Cada um desses profissionais receberá um salário como forma de remuneração de sua
atividade, podendo então voltar ao mercado de consumo de mercadorias. E, assim por diante.

Por outro lado, os empresários, incentivados também pelo governo com subsídios à produção,
retomam o interesse na continuidade de seus negócios, percebendo agora que a sociedade também
retorna ao mercado de consumo. Assim, empresas voltam a empregar outras pessoas e a produzir. O
círculo do incentivo se fecha.

Esse exemplo, bastante simples, mostra o efeito da intervenção do governo no status quo da
economia: aumento no nível de emprego da economia, da produção e da contratação de empregados,
manutenção da atividade econômica e controle das tensões sociais. De tal monta é o resultado da

39
Unidade I

intervenção do Estado que a resposta à pergunta de qual a solução para o capital parece ser uma só: a
resposta é: o Estado. O Estado, finalmente, salva o capital. Chega ao fim a era da crença no equilíbrio
natural e automático do mercado e esse será o contexto a partir do qual se desenrolará aquilo que
chamamos de revolução keynesiana.

Lembrete

Conforme avançamos em nossa disciplina, percebemos que há certa


mudança no papel do Estado: de instrumento utilizado pela classe dominante,
ele passa a ser visto como importante regulador da atividade econômica.

A revolução keynesiana é assim denominada em função do economista britânico que se proporia


a traduzir essa nova situação dentro dos rigores do pensamento econômico: John Maynard Keynes.
A obra de Keynes, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, foi tão brilhante que ainda hoje
ele adjetiva parcela considerável dos economistas do mainstream13. No seu trabalho, Keynes buscou
mostrar que, contrariamente aos resultados apontados pela teoria clássica, as economias capitalistas
não eram capazes de promover automaticamente o pleno emprego. Assim, caberia ao governo direcionar
a economia rumo à utilização total dos recursos.

Vejamos como ele desenvolveu sua análise: partindo do estudo da riqueza de uma nação, Keynes
concluiu que sua medida é a renda em posse da população. Atenção: renda, aqui, não é um conceito
estático, porque ela se transfere de mãos no processo de produção e no consumo de mercadorias,
revitalizando assim a economia. Como parte da renda é gasta no consumo de bens e serviços e outra
parte é poupada (em bancos ou por meio da aquisição de ações), é esperado que essa renda retorne ao
sistema, via concessão de empréstimos ou por meio de financiamentos para a expansão das atividades
produtivas.

Apresentado dessa forma, o modelo parece ser simples; no entanto, o problema surge porque essa
comunicação entre poupança e investimento não é automática.

E aí está a possibilidade de depressão. Se nossas poupanças não forem investidas


por empresas com negócios em expansão, nossas rendas vão declinar. Estaremos
na mesma espiral de contração como estaríamos se tivéssemos congelado nossas
poupanças guardando-as no colchão (HELBRONER, 1996, p. 248).

O fluxo circular da renda não funciona de forma automática e a economia fica paralisada, segundo
Keynes. Ele ainda descobriria mais uma coisa: a depressão e a crise da bolsa haviam acabado com o
montante de poupanças. De fato, sequer havia renda para o consumo, quanto menos para poupança.
No contexto da crise que se desenvolvera a partir de 1929, a situação era mais grave: a economia
encontrava-se paralisada exatamente quando precisava ser mais dinâmica. Não havendo excedente
de poupanças, não havia pressão na taxa de juros suficiente para encorajar os negociantes a pedir
empréstimos. “Se não havia empréstimos e gastos com investimentos, não havia ímpeto de expansão.
13
Ainda nos dias de hoje, uma boa parte da heterodoxia econômica se autointitula de “keynesiana”.
40
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

(...) Assim, dava-se o paradoxo da pobreza em meio à fartura e à anomalia de homens e máquinas sem
ter o que fazer” (HELBRONER, 1996, p. 252).

Nessa situação de paralisia, Keynes recomendaria o que se tentara antes, e de forma bem-sucedida,
com o New Deal americano: cabia ao governo tirar a economia do fundo do poço, investindo e criando
empregos. Ao criar empregos, criava-se renda para o consumo e para a poupança. Criando demanda,
criaria estímulos para que a oferta fizesse a produção retomar seu crescimento. Ao investir em obras
públicas, mesmo que fosse apenas para cavar buracos que, posteriormente, fossem tapados, o governo
atendia ao que era prioritário: a criação de empregos.

Em outras palavras,

os projetos de obras públicas atacariam o problema com uma faca de dois


gumes: ajudando diretamente a manter o poder de compra das pessoas, que
de outra forma permaneceriam desempregadas, e liderando o caminho para
a retomada da expansão privada dos negócios (HELBRONER, 1996, p. 256).

A “mão visível” do Estado colocava ordem no mercado, ordem essa que outra mão invisível lograra não
conseguir. Os resultados obtidos foram satisfatórios. Como pode ser visto no gráfico da figura a seguir,
a economia americana voltou a crescer e nesse ritmo se manteria até a década de 70. Observe: a linha
pontilhada corresponde ao crescimento americano e as barras verticais correspondem ao crescimento
da economia brasileira.

Tendência secular do crescimento no Brasil e nos Estados Unidos (1900-2005)

Figura 5 - Crescimento no Brasil e nos Estados Unidos

41
Unidade I

Faltava ordenar ainda alguns mecanismos, em especial em relação aos mecanismos de


interdependência entre as economias do mundo. Isso finalmente ocorreria em Bretton Woods: uma
sequência de acordos iriam determinar algumas regras de relacionamento monetário entre os países.
Depois dos efeitos desastrosos da crise de 1929, e ainda sob a comoção da II Guerra Mundial, os países
industrializados estabeleceriam regras para a paridade cambial, tornando as moedas indexadas ao dólar
e ancorando a ele (e apenas ele) a conversibilidade ao ouro. Bretton Woods também ensejaria a criação
do Banco Internacional de Reconstrução de Desenvolvimento (Bird), constituinte do Banco Mundial,
e do Fundo Monetário Internacional (FMI). A intenção era estabelecer uma nova ordem econômica
mundial e, conforme Manzalli e Gomes (2006, p. 89-90),

o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois importantes


organismos criados para promover a coordenação de políticas entre países,
notadamente na área financeira, mas muitas vezes tal coordenação ocorre
em detrimento de interesses de sociedades. Com o avanço do comércio de
longa distância na Europa, surge certa tendência de que as coordenações
financeiras, predominantemente administradas por famílias dos comerciantes
locais, passem a desempenhar um papel primordial na definição dos interesses
políticos e econômicos de diversos grupos no continente. Com o tempo, o
desenvolvimento do comércio privado de moedas e instrumentos financeiros.

Para Sandroni (1996), o objetivo da criação do FMI em 1944 era o de estabelecer mecanismos
para estímulo da cooperação monetária entre todos os países do mundo. A iniciativa tinha como
escopo a necessidade de equilibrar paridades monetárias justas entre diferentes moedas, evitando as
desvalorizações concorrenciais e formando um grande fundo com recursos dos países membros. A
manutenção do equilíbrio mundial das economias poderia exigir a utilização desses recursos em favor
de países que encontrassem dificuldades nos pagamentos internacionais, principalmente aqueles que
apresentavam recorrentes déficits em sua conta de transações correntes.

Uma das principais funções do Fundo era regular as paridades das moedas.
Tinha o objetivo essencial de presidir um regime internacional de câmbio
praticamente fixo, promovendo a cooperação monetária internacional
mediante uma instituição permanente que servisse de mecanismo para
consulta e colaboração sobre problemas monetários. Em seu instrumento
constitutivo estabeleceu-se, ainda, que recursos financeiros do Fundo
seriam oferecidos temporariamente aos países membros para proporcionar-
lhes oportunidades de corrigir desequilíbrios no seu balanço de pagamentos,
sem recorrer a desvalorizações cambiais, consideradas destrutivas da
prosperidade internacional (MANZALLI e GOMES, 2006, p. 96).

A criação do Banco Mundial correspondia ao atendimento de outras necessidades: a instituição


financeira internacional ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), e também criada em 1944, tinha
como propósito financiar projetos de recuperação e de promoção de desenvolvimento econômico dos
países atingidos pela guerra (SANDRONI, 1996). Na prática, o banco passou a lidar de modo crescente
com o tema do desenvolvimento econômico e a atuar, sobretudo, junto aos países subdesenvolvidos
42
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

(BAUMANN, 2004). Formalmente, sua estratégia consistia na canalização de capital para investimentos
que elevassem a produtividade das empresas, o padrão de vida das pessoas e as condições de trabalho
nos países membros. Em outras palavras, a preocupação primordial do Banco Mundial estaria ligada à
melhoria das condições de vida da população, quer dizer, às questões de cunho qualitativo (ficando as
questões de cunho quantitativo-financeiro a cargo do FMI).

Se o objetivo básico do Banco Mundial era o de auxiliar na reconstrução e no desenvolvimento de


territórios dos países membros atingidos pela destruição da guerra, ele agiria no sentido de desenvolver
uma série de atividades dedicadas a:

• prover capital para fins produtivos;


• promover o investimento externo privado;
• complementar o investimento privado mediante o fornecimento de capital para fins produtivos;
• promover o crescimento equilibrado de longo prazo do comércio internacional;
• manter o equilíbrio nos balanços de pagamento mediante o incentivo internacional a investimentos
para o desenvolvimento de recursos produtivos.

Os resultados das políticas keynesianas logo se fariam sentir e a economia americana viveria o seu
período de maior riqueza e crescimento.

Nós, keynesianos antes de Keynes

No Brasil, também se adotaria estratégia parecida à do New Deal: ao tempo de Getúlio Vargas,
a produção de café seria comprada pelo governo apenas para remunerar os fatores de produção
empregados. Depois, esse café seria queimado, em vez de ser colocado no mercado, abaixando ainda mais
o preço do produto. Comprava-se café não para revendê-lo, mas apenas para manter a remuneração de
setores importantes da economia.

Cavando buracos

Em sua obra Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, Keynes explicaria a necessidade de investir
na criação de empregos como medida para manter a demanda agregada e evitar a queda da produção.
Se fosse necessário, que se cavassem buracos e os cobrissem novamente. Ou, nas palavras dele: “Cavar
buracos no chão, à custa da poupança, não só aumentará o emprego como também a renda nacional
em bens e serviços úteis” (KEYNES, 1996, p. 216).

Para refletir

Veja o texto abaixo e reflita, conforme o proposto.

Situação – Numa entrevista concedida nos anos 1970, Golbery do Couto e Silva, então Ministro
Chefe da Casa Civil, afirmou que a maior ou menor intervenção do Estado na economia assemelhava-se
43
Unidade I

aos movimentos cardíacos de sístole e diástole, o que os tornava, portanto, inexoráveis com o passar do
tempo14.

Proposta – Em que situações você acha ser importante a intervenção do Estado na economia?

Observe o trecho da entrevista de Fernando Ferrari Filho, professor titular do Departamento de


Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador do CNPq, sobre a situação
proposta:

Keynes nunca deixou de viver, no aspecto figurativo. Entre os anos 1950


e 1970, o mundo passou por um período de prosperidade jamais visto,
conciliando crescimento econômico e estabilização de preços. E, queiramos
ou não, essa prosperidade se alicerçou em concepções de caráter keynesiano,
ou seja, políticas monetárias e fiscais extremamente expansionistas, controle
de capitais e estabilidade das taxas de câmbio. Foram as regras do sistema
criado em Bretton Woods, na década de 1940. [...] Eu diria que não há
ninguém mais moderno que o Keynes para explicar as dificuldades atuais
e para nos fazer entender que essas crises financeiras do capitalismo não
são anômalas. Elas tendem a se repetir por períodos. Os economistas que
são céticos a Keynes, o são porque nunca o leram. Segundo ponto: é aquilo
que você falou. As pessoas se apoiam no Keynes, se reportam às ideias dele,
como agora, defendendo políticas fiscalistas, políticas de injeção de liquidez,
como se fosse para solucionar um problema de curto prazo. Ou seja, hoje
existe uma “aceitabilidade” de Keynes, para remediar os problemas. Pegando
a sua expressão, na visão dessas pessoas, Keynes é só para o tempo em que
durar a chuva. Por quê? Porque entendem que os mercados tendem a seguir
uma lógica definida. Entendem que políticas fiscais e políticas monetárias de
cunho essencialmente keynesiano devem ser utilizadas em épocas de crise,
de depressão, mas não devem ser utilizadas em épocas de prosperidade.
Acreditam que o mercado funciona na lógica da normalidade e só veem
relevância no Estado keynesiano dentro de uma lógica de depressão. Essa é,
infelizmente, a percepção.15

Proposta – O que podemos concluir a respeito da atualidade das ideias keynesianas?

Se a Revolução Keynesiana mudara a perspectiva econômica em relação à intervenção do Estado


na economia, os anos seguintes tratariam de ratificar suas ideias e seus paradigmas. Um mundo novo
desenvolvia-se e o progresso, novamente, era visível. Fábricas funcionando a pleno vapor, países em
pleno desenvolvimento e a economia americana ia de vento em popa. Tudo contribuía para a construção
do que ficou conhecido como o período dos anos dourados do capitalismo.
14
Texto disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,idas-e-vindas-do-setor-de-
petroleo,691478,0.htm>. Acesso em: 23 mar. 2011.
15
Texto disponível em: <http://consultorfelix.wordpress.com/2009/03/12/fernando-ferrari-quem-diria-agora-
todos-sao-keynesianos>. Acesso em: 15 dez. 2011.
44
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Nesse mundo do pós-guerra, os avanços da ciência surgiam sob a forma de técnicas e tecnologias
que não necessitam ser compreendidos pelos usuários finais (HOBSBAWM, 1995). A física quântica,
desenvolvida por Einstein no começo do século, era agora visível nos produtos do cotidiano e, para
utilizá-los, não era sequer necessário entender qualquer teoria. Se na Terra, por inspiração da Guerra
Fria, americanos e soviéticos disputavam um lugar ao sol, a corrida espacial sugeria a imortalidade e
infinitude do espaço.

A segunda metade do século XX também alojaria o debate e a especulação sobre o processo de


conhecimento científico. Das teorias sobre falseabilidade de Popper à investigação das revoluções
científicas e quebras de paradigma de Kuhn, os cientistas se questionariam: o conhecimento leva à
certeza ou apenas nos aproximamos, probabilisticamente, da verdade? É possível algum conhecimento
certo e seguro sobre o mundo que nos cerca? O conhecimento científico realmente avança? É a história
da ciência uma linha de sucessivos aprimoramentos ou estamos sempre rompendo com o pensamento
do passado? Como lidar com esse saber que, ao mesmo tempo em que se produz em circunstâncias e
processos ainda desconhecidos, pode ser o responsável pelo fim da humanidade? Aos poucos, formava-
se uma nova mentalidade que tinha como principal tarefa a compreensão dos impactos sociais dos
desenvolvimentos científicos e que se construía em um mundo destinado ao progresso e, ao mesmo
tempo, à destruição.

Para os Estados Unidos, aqueles seriam esplêndidos anos: os anos posteriores ao final da II Guerra
haviam sido nada mais do que a continuidade do estupendo desempenho que beneficiou o país nos anos
de conflito armado, embora tenha sido notável o fato de que as taxas de crescimento fossem lentas,
comparativamente às de outras nações. Nas economias dos países desenvolvidos, o pleno emprego era
uma realidade, finalmente atingida nos anos 1960: a perspectiva era de crescimento e prosperidade
contínua, não havendo por que duvidar que o desenvolvimento dessa década não se reproduzisse na
década posterior (HOBSBAWM, 1995).

Até as nações do bloco não capitalista cresciam e a fome e miséria ainda não se faziam visíveis,
apesar dos sinais de explosão populacional e de exclusão dos povos do Terceiro Mundo na repartição
do bolo dourado do capitalismo. Na década de 60, a produção de manufaturas produzidas no mundo
já havia se quadruplicado e o comércio mundial dos produtos da industrialização havia se multiplicado
por dez (HOBSBAWM, 1995).

Os Estados Unidos alavancavam o crescimento de outras nações, particularmente dos perdedores


da II Guerra – (Alemanha Ocidental e Japão) e as guerras (Coreia e Vietnã, por exemplo) objetivavam
saciar as necessidades expansionistas e de mercado das grandes corporações transnacionais. Mesmo
os organismos internacionais criados ao final da década de 40 (Fundo Monetário Internacional – FMI e
Banco Mundial) estavam a serviço das políticas hegemônicas norte-americanas, até porque justificadas
pelo êxito econômico de tais políticas.

Não havia porque temer nada, nem mesmo em relação ao esgotamento dos recursos ambientais:
apenas anos depois, o primeiro choque do petróleo impulsionaria a institucionalização das preocupações
ambientais e seu subsequente alastramento pelo mundo nos anos 80 e 90.

45
Unidade I

Como em outros momentos da história, o progresso tornava-se visível por meio das inovações
tecnológicas decorrentes dos desenvolvimentos científicos. O uso da terra e de seus recursos nada mais
era do que resultado do direito legítimo de o ser humano habitar o mundo e dele retirar o necessário, ou o
mais que necessário. Os números relativos à posse de automóveis, telefones e outros bens industrializados
(grande parte deles com base na tecnologia desenvolvida durante os anos de guerra) evidenciavam o
crescimento econômico e a disseminação do bem-estar para todos aqueles que houvessem adotado (por
bem ou por mal) o modelo capitalista. O crescimento desmesurado ocultava outra realidade: parcelas
cada vez maiores da população estariam desempregadas em breve, especialmente em função do uso
intensivo da tecnologia. Nesse contexto, portanto, não havia por que duvidar de que o sistema de
mercado não fosse a razão de ser da própria economia e, a partir desse ponto de vista, tudo aquilo que
teria sido obstáculo ao surgimento da economia de mercado também seria responsável pelos obstáculos
ao desenvolvimento da economia como ciência.

A crise surgiria em meados da década de 70, com o esgotamento das políticas que combinavam
liberalismo econômico e bem-estar social (que, na Europa, significou a eleição de vários governos social-
democratas), e com o esquecimento das lições do período entre guerras e da depressão. A ação da
OPEP (Organização dos Países Produtores de Petróleo) no sentido de elevar significativamente o preço
do petróleo também faria sua parte, aumentando o endividamento dos países dependentes de sua
importância e acelerando o processo inflacionário no mundo todo.

O frágil equilíbrio entre o crescimento da produção e a capacidade de consumir a riqueza (obtido,


a duras penas, pela adoção do receituário keynesiano) iria cair por terra (HOBSBAWM, 1995). A aliança
entre o livre mercado e os mecanismos de controle do Estado (desde que não socialista ou comunista)
havia sustentado os anos dourados do capitalismo no século XX e as teorias econômicas keynesianas
agora já não conseguiriam mais salvar as economias à beira de processos inflacionários, de desemprego
e de queda de produção.

O problema agora não era apenas o da garantia do pleno emprego, mas o da estabilidade monetária.
Afinal, embora a história já houvesse contabilizado outros momentos de inflação, eles eram apenas
passageiros, diferentes daqueles que penalizavam todas as economias do mundo, independentemente
do grau de desenvolvimento. Agora, a inflação era sinônimo de crise. Uma crise monetária de excesso de
moeda em circulação. Crise pois, apesar da expectativa em contrário que apostava na sua transitoriedade,
a inflação dos anos 70 configurava-se, naquele instante, como um problema crônico, tão sério quanto
a depressão de outrora.

O que se seguiu é do conhecimento de todos: ativos monetários sofrendo erosão, falências, tentativas
de conter o processo via tributação ou via recessão, adoção de estratégias ortodoxas e heterodoxas.
Tudo se tentou para secar a água que transbordava sem parar dos diques financeiros e a corrente
monetarista (uma vertente do pensamento econômico daquele instante) encarregou-se de estruturar
os diagnósticos e estratégias que buscariam resolver o problema da inflação.

Pode não parecer evidente, mas aquilo que o capital acabou por utilizar na resolução dos seus
problemas foi resultado do próprio processo histórico. Acompanhe o nosso raciocínio: durante o
século XVI, período da revolução comercial e da consolidação do pensamento mercantilista, as teorias
46
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

explicativas das relações comerciais prescreviam que cada nação deveria exportar o máximo e importar
o mínimo para que assim fosse possível um saldo positivo em sua balança comercial. Nesses termos,
o comércio com o exterior era visto como fonte de riqueza dos países. Conforme Dowbor (1990) e
Singer (1989), esse comércio trazia dois efeitos sobre a estrutura sócio-político-econômica da Europa. O
primeiro era o fluxo de metais preciosos para a Europa, e não coincidentemente a quantidade de ouro
chegou a dobrar em meados do século XVI. Como a produção de bens pouco se alterava, havia elevação
de preços e redução dos rendimentos dos senhores feudais pois,

nesta época, os senhores feudais recebiam as contribuições anuais dos


servos ainda em trabalho e em produtos, mas a forma dominante já era
de simples pagamento, em moeda, de uma taxa fixa por pessoa. Ao dobrar
a quantidade de ouro, enquanto a produção de bens permanecia pouco
alterada, os preços duplicaram [...], reduzindo pela metade os rendimentos
dos senhores feudais (DOWBOR, 1990, pp. 26-27).

O outro efeito está relacionado ao reforço da produção, vez que

a rápida acumulação de capital nas mãos dos comerciantes e a abertura


dos mercados internos criam uma situação em que há ao mesmo tempo
a procura pela produção e a procura pelos meios para desenvolver esta
produção (DOWBOR, 1990, pp. 26-27).

Dessa forma, percebemos que o comércio internacional, por meio da abertura dos portos, era tido
como mecanismo para obtenção de metal precioso; mais: cada país só obteria vantagens à custa dos
demais. Posteriormente, outra visão substituiria essa (mercantilista): a capacidade de produzir seria a
variável explicativa da riqueza.

No século XVIII, a Inglaterra tinha um mercado interno comparativamente muito desenvolvido


e, nesse mercado, procurava-se produzir cada vez mais, a preços mais baixos, obtendo assim lucros
crescentes. Além disso, a demanda externa por produtos ingleses industrializados serviria de estímulo
à produção na Inglaterra, ensejando inclusive a explosão de inovações tecnológicas então ocorridas
(HUNT, 2005). Assim, a revolução industrial cumpriria seu papel na disseminação do uso da tecnologia,
especialmente em relação à produção de ferramentas e provocando, nesse processo, a especialização
e a modernização da produção manufatureira. O desenrolar desses acontecimentos, é claro, acabaria
por promover, nos países desenvolvidos, o processo de enriquecimento cumulativo, com a conquista de
novos mercados nas mais diversas partes do mundo (DOWBOR, 1990).

Em 1776, com A riqueza da nações de Adam Smith e, em 1817, com Princípios de economia política
e tributação de David Ricardo, ocorre uma transformação no pensamento econômico. Em verdade, a
musculatura do corpus científico da Economia começa a se estruturar, resultando nas formulações
teóricas clássicas do liberalismo. Essas formulações preconizavam que os capitalistas deveriam se opor à
intervenção do Estado central na economia, dado o declínio de políticas mercantilistas que dependiam
de forte regulamentação do Estado: o sistema econômico livre do Estado se apoiava na crença de que
cada capitalista e trabalhador deveria buscar o seu próprio interesse no mercado. Esse é o sistema que
47
Unidade I

identificamos com o laisse-faire, laissez-passer, que Dowbor (1990) entende como a recomendação
da irrestrita abertura dos portos e mercados – entre as nações – fato que, na época, favorecia o poder
industrial inglês. Dentro desse contexto, a abertura dos portos, ou dos mercados, era fundamental pois,
como enfatiza Smith (1996, p. 77),

quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir-se estimulado a


dedicar-se inteiramente a uma ocupação porque não pode permutar toda
a parcela excedente de sua produção que ultrapassa seu consumo pessoal
pela parcela de produção do trabalho alheio, da qual tem necessidade.

Ainda para Smith (1996, p. 420),

[...] com plena segurança, achamos que a liberdade do comércio, sem que
seja necessária nenhuma atenção especial por parte do governo, sempre
nos garantirá o vinho de que temos necessidade; com a mesma segurança
podemos estar certos de que o livre comércio sempre nos assegurará o ouro
e a prata que tivermos condições de comprar ou empregar, seja para fazer
circular as nossas mercadorias, seja para outras finalidades.

O que podemos concluir disso? Podemos perceber que, aos olhos daquele contexto, o comércio
externo beneficiaria todos os países participantes já que, em primeiro lugar, permitiria o escoamento
da produção excedente de manufaturados caso não existisse demanda interna; em segundo lugar,
valorizaria, externamente, mercadorias que talvez não mais correspondessem às preferências do mercado
interno, e em terceiro lugar, resultaria na elevação da produção, “aumentando assim a renda e a riqueza
reais da sociedade” (SMITH, 1996, p. 430).

Conforme Manzalli (2000), já na segunda metade do século XIX, a economia dos países então
desenvolvidos alcançava a maturidade e, nos tempos e nos padrões de um capitalismo industrial ainda
caracterizado por mercados dominados por empresas de porte relativamente pequeno, associava-
se também a um grau elevado de evolução tecnológica. As transformações ocorridas nos setores de
siderurgia, metalurgia, mecânica e ferrovias e o crescimento da capacidade produtiva industrial levariam
à necessidade, cada vez maior, de novos mercados que dessem conta de adquirir a produção extraordinária
gerada pelo setor; precisava-se também, e com urgência, de novos mercados fornecedores de matérias-
primas. Esse é o período que corresponde, portanto, ao avanço do capitalismo em direção aos países em
desenvolvimento, que comprarão das nações industrializadas aquilo que lhes falta: estradas de ferro,
navios, tecidos, artigos de luxo e de consumo popular. Em troca, as nações periféricas enviarão ao Velho
Mundo e aos Estados Unidos as matérias-primas tão necessárias.

Vamos resumir, de forma simplificada, como a teoria das vantagens absolutas, de Smith, e a teoria das
vantagens comparativas, de David Ricardo, explicam esse processo de interdependência das economias:
cada país se especializa na produção de mercadorias com maiores vantagens naturais ou adquiridas na
produção. Também podemos fazer uso das ideias mercantilistas, que pregavam que o comércio exterior
serviria para a obtenção de mais metais preciosos. Fazendo uso das teorias neoclássicas do comércio
internacional, bem como com das teorias marxistas, podemos notar que a tendência à internacionalização
48
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

da economia, longe de ser algo inédito ao final do século XX, foi construída ao longo do tempo à
medida que as economias se especializavam em determinados produtos e trocavam estes produtos
entre si, atingindo um nível mais elevado de produtividade, consumo e acumulação de capital, ainda
que com distribuição não homogênea entre os países envolvidos no processo (MANZALLI, 2000). Ou
melhor, ainda que nesse processo houvesse países que lucrassem mais do que os outros. Dessa forma,
o conceito de internacionalização associa-se à possibilidade de comércio entre países e, facilitado pelo
desenvolvimento dos meios de transporte, acabou por resultar na interdependência de uma economia
às outras, com relação a mercados.

Por que estamos tratando disso? Porque vivemos na era da globalização, cuja principal característica
é a intensificação das relações comerciais entre os países, como se pode ver no gráfico da figura a
seguir.

Crescimento do Volume da Produção e Exportação Mundiais de Bens (1950-2004)1950 = 100

(1950-2004)1950 = 100

Fonte: OMC (2005b).

Figura 6 - Intensificação do comércio internacional16

Podemos perceber, pelas informações anteriores, que o comércio internacional aumentou mais do
que aumentou a produção mundial de bens. Assim, considerando aquele aumento resultante do próprio
crescimento econômico mundial, o comércio internacional apresentou taxas de aumento superiores.
Em outras palavras: a economia mundial cresceu, mas o comércio internacional cresceu mais. Esse
fato, aliado a outros (tais como a predominância do capital especulativo em detrimento do capital
produtivo, as estratégias de alocar etapas do processo produtivo em diferentes países e as iniciativas de
abertura das economias locais ao mercado internacional, por exemplo, caracteriza um fenômeno que
ficou conhecido como globalização.

De acordo com Chesnais (1996) e Mattei (1997), o termo globalização nasce no início dos anos
80 nas escolas americanas de administração de empresas, representando a nova ordem mundial
16
Gráfico disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cint/v29n2/v29n2a01.pdf>. Acesso em 16 dez. 2011.
49
Unidade I

única caracterizada por um processo de interdependência e interação entre países e povos no que diz
respeito às relações produtivas, comerciais, financeiras, tecnológicas e culturais. Esse seria um fenômeno
que interligaria o mundo todo a partir dos meios de comunicação e a partir dos desenvolvimentos
tecnológicos da informática.

Saiba mais

O filme Wall Street, poder e cobiça (Direção: Oliver Stone, 126 minutos,
1987) é icônico: nele são retratadas as atitudes e os novos valores morais
do período da globalização. Vale a pena assistir e entrar em contato com a
cultura do tatcherismo e do reaganismo daquele momento.

Segundo Manzalli (2000), esse processo de internacionalização está associado à capacidade


de os países estabelecerem relações comerciais entre si, relações essas envolvendo a produção, as
informações e o setor financeiro. Essa intrincada rede de relacionamentos estaria, também, vinculada
ao desenvolvimento do capitalismo e da concorrência: afinal, era fundamental a manutenção de boas
relações internacionais.

Já o processo de globalização, para o mesmo autor, pode ser visto como um aprofundamento do
antigo processo de internacionalização ao qual já nos referimos: a diferença se explicaria em função de
um maior padrão tecnológico e concorrencial, bem como da expansão dos meios de comunicação e de
transportes: assim, o processo de globalização resultaria numa maior intensidade na interdependência
entre economias.

É importante salientar também que a era da globalização na qual vivemos é aquela que pressupõe
um Estado bem diferente daquele representado pelos tempos do welfare state. Em verdade, temos
agora um retorno às práticas liberais de períodos anteriores. Inspirado no liberalismo dos séculos
XVIII e XIX, o neoliberalismo de agora reafirma valores que “defendem a menor intromissão do Estado
na dinâmica de mercado, devendo o poder público se voltar para um conjunto limitado de tarefas,
tais como a defesa nacional, a regulação jurídica da propriedade e a execução de algumas políticas
sociais” (BARBOSA, 2006, p. 88). Opondo-se ao Estado do bem-estar, o que se valoriza é o Estado
mínimo: mínima intervenção, mínimas barreiras ao livre-comércio, impostos mínimos, benefícios
sociais mínimos. A receita parece ser bem simples: sobreviverá quem souber melhor aproveitar as
oportunidades do mercado. Sobreviverá mais rapidamente quem encontrar vantagens competitivas.
Sobreviverá quem for mais capaz. É claro que esse ideário não leva em considerações as oportunidades
históricas de equidade e igualdade social.

Tal mudança no comportamento do Estado, de interventor para neoliberal, ocorre em função do


período de crise vivenciado pelas economias capitalistas dos anos 80, da década perdida e do período
de elevação do endividamento público. Também concorre para essa mudança o processo de inflação
galopante, sobre a qual já falamos e sobre cujo arcabouço teórico será tratado na Unidade II.

50
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

A década de 90 será, portanto, a dos ajustes: fiscal, monetário e administrativo. Todos eles se
comprometem a equacionar os problemas anteriores, causados pela excessiva participação do Estado na
economia. Como condição, portanto, requerem que o Estado não mais produza mercadorias: esse será o
tempo das privatizações. O Estado também não será mais o grande pai responsável por todos: esse será
o tempo em que o aparelho estatal ficará encarregado de apenas regular o sistema econômico. Não à
toa, o neoliberalismo empresta do liberalismo anterior a marca da liberdade aos agentes econômicos e
sua primazia nas decisões relacionadas à produção e comercialização.

O Consenso de Washington será o documento norteador dessa nova era. Fruto de decisões de
economistas que se reuniram em Washington em 1989, ele institucionalizará o discurso de um novo
tempo. Esse será um tempo em que as economias agirão no sentido de eliminar barreiras comerciais
e subsídios do governo a determinados setores, buscando um ambiente concorrencial mais “justo e
honesto”. Buscar-se-á a privatização das empresas estatais e a “flexibilização” das leis trabalhistas: tudo
deverá contribuir para um ambiente sem restrições às ações dos agentes econômicos, livres enfim de
quaisquer entraves e da coerção do Estado. O welfare state cede espaço à hegemonia da economia
de mercado. É evidente que tal discurso não obtém unanimidade. Para alguns, não se trata de uma
nova forma de gerenciar o funcionamento da economia, mas somente de um retrocesso em relação às
conquistas do passado. Afinal, as evidências mostram que, no seu rastro, a globalização deixa as marcas
da fome, da guerra, das ditaduras e do desrespeito aos direitos sociais.

A falta de unanimidade ocorre em relação ao próprio conceito do processo. Segundo Ianni (1997)

Na época da globalização, o mundo começou a ser taquigrafado como “aldeia


global”, “fábrica global”, “terra pátria”, “nave espacial”, “nova babel”, entre outras
expressões que ele chama de “metáforas da globalização”, que correspondem
às conquistas e dilemas da modernidade e expressam inquietações sobre o
presente e ilusões sobre o futuro (IANNI, 1997, pp. 15-16).

Por seu turno, Baumann (1996) afirma que a dificuldade em conceituar o que realmente designa
o processo de globalização está na variedade de significados que se têm atribuído às transformações
a ele relacionadas, em especial por que o fenômeno impacta diversas áreas da economia. Ainda, sendo
um processo difuso no próprio desenrolar da história, adicionar-se-ia a dificuldade da datação no
tempo. Para o autor, há indícios de uma gênese apontando para os acontecimentos e as condições
favoráveis ao crescimento do comércio internacional pós-II Guerra Mundial. A partir daí, a economia
mundial teria passado por transformações desde o pós-guerra: na esfera técnico-produtiva, dado o
avanço tecnológico; na esfera financeira, dado o movimento de “financeirização da riqueza”, ou, como
chama Chesnais (1996), dada a “indústria das finanças”; na esfera comercial, cujo fluxo do comércio
mundial é altamente crescente; e, na esfera organizacional das empresas, provocando uma mudança
de paradigma produtivo nas economias capitalistas. Todas essas mudanças seriam responsáveis pelo
constructo daquilo que denominamos globalização. Justamente em função dessa dificuldade, para
Baumann (1996), o fundamental é o conhecimento dos aspectos estritamente econômicos do processo
de globalização, em especial quanto à identificação dos fluxos de investimentos externos diretos entre
empresas transnacionais e suas subsidiárias: esse seria o principal eixo explicativo do fenômeno e nele
deveria estar focada a análise do processo.
51
Unidade I

Conforme Manzalli (2000), todas as transformações que acabaram por desaguar na globalização,
na sua maioria decorrentes de um ajuste macroeconômico e industrial que foi efetuado por países
centrais – leia-se Estados Unidos, Japão e Alemanha – logo após a II Guerra Mundial, teriam
surgido como resposta à crise financeira internacional derivada do primeiro choque do petróleo
em 1973. Essa crise refere-se à ação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)
quando do aumento súbito dos preços do petróleo e que teria resultado na decadência de diversas
economias capitalistas, em função dos elevados endividamentos gerados pela subida dos preços
desse fator de produção. Com a subida dos preços do barril do petróleo, vários países passariam
por crises recorrentes em balanço de pagamentos devido à maior quantidade de dólares que eram
requeridos para pagamento de importações de petróleo, insumo de produção utilizado de forma
intensa por empresas.

De qualquer forma, e independentemente da controvérsia, grande parte da comunidade econômica


percebeu, no processo de globalização, os arautos do fim da história, não havendo mais nada novo
a acontecer. Mas, se o fim da história é o aqui e agora, se a Guerra Fria teve fim, se o receituário de
Washington é tão bom, como é possível que um modelo como o globalizador possa encontrar dificuldades
na sua propagação pela aldeia global? Talvez porque, mesmo em tempos de paz (se é que se pode
chamar de pacífico o século em que vivemos), “a construção de uma economia de mercado e instituições
democráticas não é tarefa fácil” (BARBOSA, 2006, p. 84). Corrupção, desmandos e eleições fraudulentas
parecem conspirar contra os valores democráticos. Alguns adversários dos valores neoliberais, se não
conspiram, ao menos torcem para que o projeto globalizador dê com os burros n’água. Ao chamá-lo
de neoliberalismo, parecem querer que ele tenha o mesmo fim que seu antecessor, o liberalismo. Mas,
afinal, o que é neoliberalismo?

O termo surge na escola austríaca do pensamento econômico com a figura de Friedrich August
von Hayek e seu O caminho da servidão, mas, como prática, somente aparece períodos mais tarde. Essa
escola de pensamento pregará, inicialmente, uma reduzida participação do Estado na condução da
economia e, em contrapartidade, uma total liberdade às leis de mercado como aquelas que levariam as
economias capitalistas ao equilíbrio.

Assim, a certeza de que problemas recorrentes como subdesenvolvimento, inflação e endividamento


público seriam consequências da ineficiência da gestão governamental daria impulso a políticas de
privatização e de transferência ao capital privado de empresas estatais, até então por uns consideradas
não rentáveis e, por outros, verdadeiros “elefantes”.

Também seriam praticadas políticas fiscais contracionistas, com a elevação de tributação e a


diminuição de despesas e investimentos, e políticas monetárias também restritivas (caracterizadas
pela elevação das taxas de juros com o interesse de diminuir investimentos produtivos e de
aumentar a expansão do crédito favorável ao capital especulativo). Estratégias fiscais e cambiais
também são adotadas na mesma direção: favorecem-se as importações de mercadorias com o
objetivo de obrigar o empresariado nacional à baixa dos preços de venda de sua produção. Outro
objetivo dessas políticas será o de aumentar a saída de dinheiro do país, por meio do pagamento
de importações, fazendo diminuir a renda interna e, consequentemente, a circulação de moeda nas
economias nacionais.
52
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

Você deve estar se perguntando a essa altura: afinal, a globalização significa um retrocesso ou um
progresso em termos dos desenvolvimentos do pensamento econômico? Vejamos: como resultado das
políticas neoliberais, observa-se avanço em relação à estabilidade de preços; por outro, os avanços são
bastante tímidos quando pensada a questão social. Afinal, no neoliberalismo globalizador, a sociedade
ocupa um segundo plano, dando a primazia ao equilíbrio financeiro.

Talvez em função disso, muito da fala neoliberal não encontrou apoio em diversos países: muito
do receituário neoliberal se perdeu no caminho em função da recusa do paciente ao qual se pretendeu
administrá-lo. Dessa forma, contrariamente ao que se imaginava que iria acontecer, os Estados
nacionais continuam firmes e fortes. Contrariamente ao que se desejava, o Estado ainda é chamado
para apagar o incêndio das crises do capital, em todos os continentes e independentemente do grau de
desenvolvimento da nação em que ocorrem. Em outras palavras, apesar do discurso defensor da mão
invisível do mercado, o Estado vem sendo convocado para

impedir que o processo de globalização instaure uma sociedade segmentada


entre incluídos e excluídos. Para isso, os Estados nacionais [...] [investem]
em ciência e tecnologia, qualificação profissional, [...] [e estimulam] os
seus sistemas produtivos, aumentando a competitividade do país, além de
erradicar os bolsões de miséria (BARBOSA, 2006, p. 92).

Os organismos internacionais e multilaterais também cumprem o seu papel, ao mesmo tempo


disseminando e controlando o fenômeno globalizador. Apesar de a intervenção econômica
acontecer por meio do FMI e do Banco Mundial, outros organismos também buscam formas
alternativas de ajuda aos países em desenvolvimento ou em dificuldades: fóruns, organizações não
governamentais, diversas agências da ONU e até mesmo bancos e instituições privadas, todos eles
procuram minimizar o ônus da globalização naqueles países em que o processo não converteu-
se em resultados favoráveis (ou melhor, tão favoráveis quanto os imaginados). A OMC, herdeira
dos primeiros acordos do GATT (sigla em inglês para Acordo Geral de Tarifas e Comércio), também
tem funcionado como tribunal das disputas comerciais entre países. Afinal, “se não forem criadas
novas leis e mecanismos que permitam maior autonomia e maior participação no crescimento
do comércio para os países subdesenvolvidos, cedo ou tarde estes países” (BARBOSA, 2006, p. 97)
poderão optar por outros modelos de desenvolvimento.

O discurso neoliberal também encontra dificuldades para responder adequadamente ao problema


da fome e da miséria que assolam o mundo. Segundo Judensnaider, informações da Organização das
Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) revelam que

são aproximadamente 920 milhões de famintos no mundo e, deste total,


aproximadamente trinta por cento são crianças. Na Cúpula do Milênio, a
meta estabelecida era de reduzir a fome pela metade até o ano de 2015.
Dentre as recomendações da Força-Tarefa Contra a Fome, preconizou-se o
planejamento e execução de políticas integradas para agricultura, nutrição
e desenvolvimento rural, acesso à terra, intensificação de pesquisas, apoio à
pequena propriedade e à agricultura de subsistência, programas de assistência
53
Unidade I

e proteção com foco nas grávidas, lactantes, bebês e crianças, restauração e


conservação dos recursos naturais essenciais para a segurança alimentar. Ao
final de 2008, já se considerava a meta impossível de ser atingida17.

Observação

Qual o custo de um programa sério como esse? Algumas fontes mensuram


aproximadamente 25 milhões de dólares por ano para a obtenção dessas
metas até 2015. Bem menos que os três trilhões de dólares estimados por
Joseph Stiglitz e Linda J. Bilmes em relação ao custo da Guerra no Iraque
até agora e detalhadamente estudados em A guerra de US$ 3 trilhões – O
custo real do conflito no Iraque.

Saiba mais

Sugerimos que você assista a Diamante de Sangue (Direção: Edward


Zwick, 143 minutos, 2006). O filme mostra a situação de miséria e
vulnerabilidade de Serra Leoa.

Miséria gera mais miséria. Não por acaso, a região africana é a que mais sofre com a escassez de água,
esse bem que um dia foi livre de valor econômico e que, no futuro, provavelmente, será o mais precioso
da humanidade. É o outro lado da promessa de um mundo justo, em que as riquezas se distribuíram
naturalmente, sob força das mãos invisíveis da economia do mercado. Segundo Barbosa (2006, p. 107),

o aumento da desigualdade entre países ricos e pobres e o crescimento da


pobreza tanto nos países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos esteve
relacionado à abertura dos mercados e ao crescimento desordenado da esfera
financeira, propiciando a expansão do desemprego e do emprego informal na
grande maioria dos países, ainda que em ritmos e com significados diferentes.

Para os assistentes sociais, a compreensão desse contexto é fundamental, já que ele determina os
níveis de emprego, de escolaridade e de renda da população. Ainda, explica também a ação contida do
Estado, que agora deixa ao mercado e à sociedade civil a tarefa de se mobilizar na criação de mecanismos
que possam diminuir o impacto dos efeitos da pobreza.

Seja por falta de ação do Estado ou da pouca mobilização da sociedade civil, o Brasil ainda hoje
se depara com um déficit expressivo no que diz respeito ao atendimento às demandas sociais, sejam
elas relacionadas à habitação, à educação ou à saúde. Mesmo considerando os relativos sucessos
econômicos da última década, esses são problemas que ainda não foram resolvidos e que atingem
parcelas consideráveis da população brasileira.
17
Texto disponível em: <http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1185>. Acesso em: 16 dez. 2011.

54
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

No caso da habitação, por exemplo, a situação é dramática: embora o Estado tenha buscado orientar
seus investimentos com o objetivo de diminuir o déficit habitacional, a atual situação condena milhares
de famílias brasileiras a moradias em condições precárias. Segundo a Agência Câmara de Notícias,

mais de 5,5 milhões de moradias precisam ser construídas em todo o país para
acabar com o déficit habitacional, segundo dados da Pesquisa Nacional de
Amostra por Domicílios (Pnad) 2008, utilizados pelo Ministério das Cidades.
Lançado em 2009 e ampliado em março do ano passado, o programa Minha
Casa, Minha Vida pretende construir ou reformar três milhões de moradias
até 2014 para famílias com renda mensal de até dez salários mínimos18.

A tabela a seguir retrata essa situação em detalhes:

Deficit de domicílios permanentes Deficit de domicílios permanentes


(em números absolutos) (em números absolutos)
Região/Estado Deficit Região/Estado Deficit
Norte Total: 557.092 Sudeste Total: 2.052.956
RO 31.229 MG 476.287
AC 19.584 ES 85.344
AM 132.224 RJ 428.959
AP 14.295 SP 1.062.366
RR 13.969 Deficit de domicílios permanentes
PA 286.110 (em números absolutos)
TO 59.681 Região/Estado Deficit
Deficit de domicílios permanentes Centro-Oeste Total: 419.491
(em números absolutos) MS 77.206
Região/Estado Deficit MT 74.149
Nordeste Total: 1.956.380 GO 163.115
MA 434.750 DF 105.021
PI 124.047 Deficit de domicílios permanentes
CE 276.915 (em números absolutos)
RN 105.605 Região/Estado Deficit
PB 104.699 Sul Total: 4586.394
PE 266.360 PR 215.752
AL 86.900 SC 141.425
SE 66.492 RS 229.217
BA 490.612 Total Brasil 5.572.313
Fonte: Ministério das Cidades
Tabela 1 - Déficit habitacional (2011)

Texto disponível em:<http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/ADMINISTRACAO-PUBLICA/196187-DEFICIT-


18

HABITACIONAL-NO-BRASIL-E-DE-5,5-MILHOES-DE-MORADIAS.html>. Acesso em: 16 dez. 2011.

55
Unidade I

Saiba mais

Os déficits nas áreas de educação e saúde também são significativos.


Sugerimos a consulta ao banco de dados do IBGE, notadamente os relativos
aos aspectos demográficos, ao trabalho e ao rendimento, à educação e
às condições de vida. Essas informações encontram-se disponíveis em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/
indicadoresminimos/defaulttab.shtm>. Acesso em: 15 dez. 2011.

Resumo

A Economia ganha estatuto de ciência a partir do século XVIII, com


as obras fundadoras de Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus.
O cenário econômico é aquele resultante das transformações que, da
sociedade medieval, criaram as condições para o surgimento da economia
de mercado.

A Revolução Industrial permitiu a especialização e a divisão de trabalho


em níveis nunca antes alcançados. Os antigos camponeses agora ofereciam
a mão de obra para as indústrias nascentes e o capital mercantil acumulado
era investido em máquinas e equipamentos. O aumento populacional se
encarregaria de garantir um mercado consumidor para os bens e mercadorias
produzidos.

Apesar do crescimento extraordinário, as condições de trabalho


eram precárias e a miséria deixava os trabalhadores em uma situação
insustentável. A partir desse contexto, Marx investigará o sistema capitalista
e a exploração da massa trabalhadora e fará uma previsão aterrorizante: o
capitalismo se autodestruirá.

A superprodução e os movimentos cíclicos do capital provocaram a crise


de 1929 nos Estados Unidos, crise essa que, posteriormente, se alastrou
para o restante do mundo. O desequilíbrio econômico, que se refletiu em
milhões de desempregados, motivou a formulação de políticas públicas que
visassem ao investimento na geração de empregos. John Maynard Keynes
foi o teórico que melhor elaborou as teorias referentes às políticas que se
constituíram na base do modelo de welfare state (estado do bem-estar).

O processo inflacionário que teve início na década de 70 inverteu essa

56
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

situação. Agora, a preocupação não era mais o emprego e sim a inflação


que corroía o poder da moeda. Os keynesianos tiveram que abrir espaço
para os monetaristas, teóricos que priorizaram a questão da inflação em
detrimento das políticas públicas de geração de postos de trabalho.

Os anos 90 acrescentaram outras variáveis nesse processo de profundas


transformações econômicas. A partir do Consenso de Washington, o discurso
globalizador tornou-se hegemônico e, mais do que nunca, o Estado foi convidado
a se retirar do cenário econômico, deixando ao mercado e à sociedade civil a
tarefa de se ocupar de áreas antes sob responsabilidade do poder público.

Mais de vinte anos após a reunião em Washington, os governos


atuais vêm procurando equilibrar ações típicas de welfare state com os
compromissos assumidos pelo discurso neoliberal de dar ao mercado toda
a liberdade possível.

Exercícios

Questão 01 (ENADE 2006). A ciência econômica nasce com os fisiocratas e Adam Smith, através
da concepção do sistema econômico. Embora o mercantilismo não possa ser descrito como uma escola
do pensamento, é natural que sejam comparados os seus pressupostos com aqueles defendidos pelos
fisiocratas e por Smith. Assim, como seria julgada a política econômica mercantilista pelos fisiocratas e
por Smith?

A) Adequada, por possibilitar moldar os condicionantes do sucesso econômico de uma nação.


B) Adequada, por respeitar as leis naturais do funcionamento da economia.
C) Inadequada, por aumentar o excedente econômico e causar problemas de demanda efetiva.
D) Inadequada, por interferir na ordem do mercado e, assim, na reprodução e no crescimento das
nações.
E) Inócua, não afetando o desenvolvimento das nações.

Resposta correta: alternativa D.

Análise das alternativas:

A) Alternativa incorreta.

Justificativa:

Para Smith e fisiocratas, as políticas mercantilistas são inadequadas. A fisiocracia e Smith se apresentam
como ferrenhos opositores ao mercantilismo. Contrariamente à política mercantilista, os fisiocratas e
57
Unidade I

clássicos defendem a autonomia do mercado por meio de seus mecanismos de autorregulamentação,


sendo o sucesso econômico de uma nação fruto da atividade econômica, atividade essa livre de
quaisquer regulamentações. Para os fisiocratas e Smith, o Estado deve interferir o minimamente possível
na economia, já que o mercado tem uma capacidade “natural” de encontrar o equilíbrio. Ainda, para
esses, são todas as atividades econômicas que produzem valor (embora os fisiocratas acreditassem
serem o comércio e indústria estéreis); para os mercantilistas, em contrapartida, é o comércio que pode
gerar riqueza, já que somente assim se produzirá superávit em metais preciosos. Em resumo: para os
mercantilistas, será o comércio – por meio da geração de riqueza – o condicionante para o sucesso
econômico de uma nação; para os fisiocratas e clássicos, será a atividade econômica esse condicionante,
por meio especialmente da divisão de trabalho e dos mecanismos de autorregulação.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa:

Para Smith e fisiocratas, as políticas mercantilistas são inadequadas. São os fisiocratas que introduzem
a idéia de uma ordem “natural” da economia, princípio esse posteriormente desenvolvido por Smith.
Para os mercantilistas, fazia-se necessária a intervenção de um governo central forte, especialmente por
meio de normas, leis e regulamentações que permitissem o perfeito comportamento do mercado. Os
fisiocratas e clássicos, em oposição, pedem laissez-faire, laissez-passer: que o mercado possa funcionar
com toda a liberdade possível, confiando-se a ele mesmo sua autorregulamentação e equilíbrio.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa:

Para Smith e fisiocratas, as políticas mercantilistas são inadequadas, mas não pelo motivo alegado.
Vale relembrar: o comércio mercantilista se baseia na importância do excedente de estoque de metais
preciosos (ouro e prata), excedente esse obtido por meio de exportações maiores que importações.
Para os fisiocratas e clássicos, entretanto, a origem da riqueza está na divisão do trabalho e em todas
as atividades econômicas. As práticas do mercantilismo são inadequadas não por que aumentam o
excedente econômico, já que isso não ocorre. São inadequadas, mas não por causar problemas de
demanda efetiva, já que isso tampouco ocorre.

D) Alternativa correta.

Justificativa:

Para Smith e fisiocratas, as políticas mercantilistas são inadequadas, e as razões são justamente as
mencionadas no item: os mercantilistas, ao apoiarem a regulamentação excessiva do mercado e de
seus agentes, acabam por interferir numa ordem que já está “dada” e que é natural. Se for deixada ao
mercado sua própria regulamentação, o mercado será capaz de alcançar o equilíbrio, especialmente
em função da existência de uma ordem na natureza que também se traduz em ordem na atividade
econômica. Para Smith e os fisiocratas, a riqueza de uma nação tem sua origem na atividade econômica,
58
PRINCÍPIOS GERAIS DA ECONOMIA

atividade essa livre de qualquer amarra ou regulamentação.


E) Alternativa incorreta.

Justificativa:

Para Smith e fisiocratas, as políticas mercantilistas são inadequadas, e as obras clássicas têm como
eixo central a crítica ao mercantilismo. Em A Riqueza das Nações, por exemplo, Smith passa a maior
parte do texto justamente valorando – negativamente – as práticas do mercantilismo que seriam, na
opinião dele, prejudiciais ao crescimento econômico.

Questão 02. Segundo Malthus, “o fato de que aproximadamente 3 milhões são coletados anualmente
para os pobres e, entretanto, sua miséria ainda não tenha sido eliminada, é um objeto de permanente
assombro. (MALTHUS, 1996, p. 268). Veja a charge abaixo e responda:

Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_CKXr2m51ezo/TTY3eFpWSsI/AAAAAAAABp0/JdRFsn1V0tc/s1600/com%25C3%25A9rcio+d


o+Jahu+12-01-11.jpg>. Acesso em: 24 de junho de 2011.

A análise dos dois textos nos permite concluir que:

A) Sempre existirão pobres, independentemente do que se faça.


B) O problema da pobreza acompanha a história da humanidade, não sendo exclusividade do tempo
em que vivemos.
C) Os pobres não sabem aproveitar os benefícios que o setor público oferece.
D) A natureza e os seus acidentes são responsáveis pela existência da pobreza.
E) Não há interesse, na sociedade, em se acabar com o problema da pobreza.

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