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TRÁFICO DE
MULHERES
MADE IN BRAZIL
OBAMA
MUDANÇA OU
MAIS DO MESMO?
WAGNER MOURA
“O CINEASTA A REFORMA
AGRÁRIA JÁ ERA
QUER ENTENDER PRIORIDADE FEDERAL
QUE PAÍS
É O AGRONEGÓCIO
É ESTE” COMUNICAÇÃO
POPULAR
NO RIO DE JANEIRO
GUTO LACAZ MARILENE FELINTO GLAUCO MATTOSO GEORGES BOURDOUKAN JOSÉ ARBEX JR. GILBERTO VASCONCELLOS
MARCOS BAGNO FERRÉZ CAROLINA ROSSETTI JOÃO PEDRO STEDILE RENATO POMPEU MARCELO SALLES EDUARDO
SUPLICY ANA MIRANDA HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA CESAR CARDOSO TATIANA MERLINO ULISSES TAVARES GUILHERME
SCALZILLI JESUS CARLOS LEANDRO UCHOAS LUANA SCHABIB FREI BETTO BRUNA BUZZO CAMILA MARTINS CAROLINA
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CAROS AMIGOS ANO XIII 147 junhO 2009
EDITOR: hamilton octavio de souza EDITORa adjunta: Tatiana Merlino EDITORes ESPECIAis: José Arbex Jr e Renato Pompeu editora DE ARTE: Lucia Tavares assistente DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger editor de FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTER
especial: Marcos Zibordi REPÓRTERes: Camila Martins, Felipe Larsen, Fernando Lavieri, Luana Schabib ESTAGIÁRIOS: Bruna Buzzo e Carolina Rossetti CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro), Bosco Martins (Mato Grosso do Sul), Maurício Macedo
(Rio Grande do Sul) e Anelise Sanchez (Roma) revisora: Goreti Queirós SECRETÁRIA Da REDAÇÃO: Simone Alves DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann PUBLICIDADE: Melissa Rigo CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo Relações Institucionais:
Cecília Figueira de Mello ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO: Ingrid Hentschel, Elisângela Santana CONTROLE E PROCESSOS: Wanderley Alves, Elys Regina LIVROS CASA AMARELA: Clarice Alvon Sítio: Paula Paschoalick APOIO: Maura Carvalho, Douglas Jerônimo
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PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.
JORNALISTA RESPONSÁVEL: hamilton octavio de souza (MTB 11.242)
diretor geral: wagner nabuco de araújo
CAROS AMIGOS, ano XIIi, nº 147, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo, de acordo com a Lei de Imprensa.
Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. Impressão: Bangraf
Maria Rita Kehl e Brizola Neto Monsanto prazerosas de folhear; o tamanho, mais prá-
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Motocicletas
e a luta de classes sobre rodas
As motos rincham feito cavalos, zunindo fretistas. A autoridade explica a medida como em algumas avenidas, uma estupidez chama-
ilustração: gil brito
pelos corredores estreitos entre os carros, sendo para prevenção de acidentes e preser- da “Faixa Cidadã”, uma espécie de faixa pre-
entregues a todos os azares do trânsito, me- vação da vida do motoqueiro. Todo ano mor- ferencial para motocicletas. Só que ninguém
nores, leves, instantâneas como devem ser as rem milhares deles nos centros urbanos. nunca entendeu quem deveria dar a “prefe-
encomendas que conduzem ou vão buscar. A A explicação, porém, não convence. Não rência” a quem e nem de que modo, já que
massa de motoqueiros, os motoboys traba- há coesão social possível, nenhum consen- tanto carros quanto motos usavam a faixa in-
lhadores, os chamados motofretistas, orga- so sobre valores: afinal, o “carrão” Tucson discriminadamente. Não houve campanha de
niza-se mais ou menos autonomamente para (modelo “SUV”, como se diz na propaganda esclarecimento, não se via uma placa que de-
ganhar alguma força nisto que seria um con- da TV, sem se decifrar a sigla, como se todo finisse por que a tal faixa era cidadã. A pró-
trato social: e ganham, são temidos, meio ho- mundo soubesse que a droga do “SUV” sig- pria categoria dos motoqueiros reprovou a
mens, meio coisas aparamentadas com seus nifica, em inglês, “sport utility vehicle”, ou idéia sem pé nem cabeça.
capacetes que podem esconder tanto um ope- seja, “veículo utilitário esportivo”; e como se Ainda tenho na minha carteira de moto-
rário quanto um bandido. A categoria, origi- fosse natural ter dinheiro para possuir um rista uma letra A, que me qualifica também
nária assim do que as classes privilegiadas trambolho desses), afinal, repetindo, o “car- para conduzir motocicletas, embora não di-
consideram a estrebaria da pirâmide social, rão” Tucson ocupa o lugar de quatro moto- rija mais. É que, há 30 anos, no nosso tempo
é vista como maldita também porque costu- cicletas na faixa de rolamento – desigualdade de faculdade, foi um tal de todo mundo com-
ra no trânsito, faz piruetas na via e ameaças total na repartição das pistas. É claro que a prar moto na turma com quem eu andava. No
(quando se diz ameaçada) – e é especialmen- única solução seria criar faixas exclusivas para meu caso, porque não tinha mesmo dinheiro
te hostilizada pela burguesia ávida por in- as motocicletas (para não dizer que seria extin- para comprar carro. Com o tempo, até mes-
ventar leis que a domestique. guir os carrões de luxo). Se isto é viável ou in- mo o pobre do jegue no sertão do Nordeste
Mas como não há contrato social possível, viável, principalmente numa cidade como São foi sendo substituído pela moto. As novas ge-
não haverá lei burra passível de surtir efeito Paulo, que tem a maior frota de motos do país, rações do interior rural só andam de motoci-
sobre esta vanguarda proletária de motoquei- é questão de autoridade econômica e política, cleta. Nos últimos quatro anos, o número de
ros que seguem operando uma revolução per- é questão de luta de classes. E somente este carros aumentou 35% aqui no país, enquan-
manente no trânsito. A idéia (o Projeto de Lei exército sobre duas rodas, no seu estilo de to que o de motos chegou a 82%. O carro
2650/03, aprovado em abril último) de proibir associação tribal, de espírito comunitário, mais barato do mundo, muito pequeno e in-
que as motocicletas trafeguem nos corredo- pode ousar vencer mais uma batalha nessa diano, é um sucesso de vendas. Quem sabe
res entre veículos é tão absurda quanto inútil: guerra pela ordem pública ou pela convivên- não está próximo o dia em que o mundo será
eliminaria a função do veículo ágil, e compro- cia ordenada. dos que menos têm – porque já não caberá
meteria drasticamente a ocupação dos moto- Em São Paulo, criou-se há uns dois anos, muito mais que isso nele.
Como caracterizar o governo Lula do ponto de vista da classe so- Um amigo me deu a dica: “já leu o que Olgária Mattos escreveu so-
cial? Que interesses de classe o governo Lula expressa? bre o Acordo Ortográfico?” Fui ler, no site Carta Maior (27/4). Fiquei
Que classes sociais são contempladas pelo Estado petista? perplexo. Primeiro, por causa da forma. A renomada professora de fi-
Serve a que dentro do sistema econômico mundial? losofia da USP produziu um texto anfigúrico, de vocabulário tão em-
É possível estabelecer uma clivagem em termos de representação polado que me deu saudades de ler Platão em grego, mais agradável e
dos interesses de classe, entre os governos FHC e Lula? claro. Depois, pelo conteúdo. Embora eu seja favorável ao Acordo Or-
Quem se deu bem? Quem está se dando bem? Quem se deu mal? tográfico, gosto de ouvir os argumentos em contrário, quando são ela-
Quem está na pior? borados com um mínimo de pé e cabeça. Pé e cabeça, porém, é o que
Se política é economia concentrada, então é preciso destrinchar a teia falta ao texto de Olgária, cuja quase obscuridade não consegue escon-
dos interesses econômicos das classes dominantes no governo petista. der as batatadas e abobrinhas que ela plantou ali.
Que setor da burguesia mais usufrui? A exportadora industrial? Vejam só: “A mais recente reforma ortográfica do português no Brasil
A burguesia agroexportadora? subordina a língua às contingências do mercado e à agramaticalidade de
O proletariado das fábricas multinacionais está satisfeito? sua fala oral, rompendo o equilíbrio entre a anomia e a gramatização que
E os sem-terra apoiam a política petista? caracterizam uma língua viva. Expressionista antes da reforma, ‘idéia’
A classe média está sendo contemplada? ou ‘ idêia’, a pronúncia diferenciava o português do Brasil e de Portugal,
A massa marginalizada encontrou o paraíso com Bolsa Família? suscitando o metron de seu estranhamento e de seu parentesco, revela-
Quem vai levar o governo Lula à esquerda? O Espírito Santo? dor do ethos de um povo. Assim, diferentemente de unificar a palavra es-
O governo PT é uma mescla plebeia burguesa de caridade cristã crita, a reforma neutraliza a língua falada, despersonalizando-a.”
para a massa com o reinado do banco e das multinacionais. Igreja, Santa Epistemologia, orai por nós! Falar de “agramaticalidade
banco, empresa multinacional, latifúndio e televisão. da fala oral” (fala oral?! existe uma escrita oral?) é ignorar que toda
Lula quer competir com FHC: quem será o mais amado pelos EUA? a linguística moderna, desde 1916, nega peremptoriamente a ideia
Eu ou você? de que a língua falada é “agramatical”, isto é, não segue regras, é
Um ex-operário pequeno burguês da aristocracia sindical chega caótica, como supunham os primeiros filólogos gregos, três sécu-
à Presidência da República. O Banco governa o lumpemproletariado los antes de Cristo! Nossa filósofa confunde língua com ortografia
com Bolsa Família e Bolsa motoca. (erro primário que os livros didáticos de 1o ano do fundamental
A mídia cai de pau em Chávez, Morales e Rafael. A mídia, ponta de tentam logo extirpar) ao imaginar que a retirada do acento da pa-
lança do capitalismo videofinanceiro, quer armar um bloco (Colôm- lavra “ideia” vai provocar alguma diferença na pronúncia aqui e em
bia e Brasil) para enfrentar o socialismo bolivariano, ou seja, a unida- Portugal. Ridículo! Antes do Acordo já escrevíamos “titia”, embo-
de de todos os países da América Latina. ra os pernambucanos pronunciem “titia” e os cariocas “tchitchia”.
O mundo é um só e está conectado. A história ensina: quando a Isso por acaso alguma vez “neutralizou” a língua falada? Abobrinha
metrópole entra em crise, há impulso na periferia; quando há impul- pura! Achar também que a língua falada sofre de “anomia” é negar
so na metrópole, a periferia dança. um século e meio de estudos da psicologia cognitiva, da linguística,
Não nos deixemos ludibriar pela dicção Bob Dylan de Mister Oba- da biologia, da psicolinguística, da filosofia da linguagem...
ma: o destino dos EUA, como de todo o império, não é o de ser ama- E a batatada final: “Por valorizar na língua seu caráter sumário, cô-
do, mas temido e acatado. modo e elementar [como é?], esta reforma dissolve a dimensão ética da
A maior arqueóloga norte-americana, Betty Megers, tradutora linguagem, da leitura e da literatura [uau!]. Sob a hegemonia da orali-
para o inglês do livro de Darcy Ribeiro, O Processo Civilizatório, di- dade agramatical e anti-literária, as desgramatizações [hein?!] não se-
zia que os Estados Unidos precisavam aprender com a antropologia guem as ‘tendências da língua viva’, mas obscurecem nuances e refina-
das civilizações do mestre brasileiro. mentos na comunicação oral e escrita”. O que é, meu Santo Tomás, o
Os Estados Unidos podem descambar de vez, se não seguirem o “caráter sumário, cômodo e elementar da língua”? Por favor, me diga,
que Darcy Ribeiro preconizou em vários livros. Os Estados Unidos ti- porque nós linguistas temos uma dificuldade tremenda em convencer
nham que voltar à ideia de missão e democratizar o mundo, rompen- os alunos do caráter complexo, perturbador e intrincado das línguas
do com o imperialismo, a subjugação de outros povos, e, assim, reto- humanas! E, por fim, falar da “oralidade agramatical e antiliterária” é
mar o lance democrático dos pais fundadores. traduzir, em termos mal empregados, o senso comum, para o qual só
Obama refere-se insistentemente aos pais fundadores, porque sem a escrita tem “gramática” e só é possível produzir “literatura” por es-
a ideia da missão os Estados Unidos vão entrar em uma crise espiri- crito. Pré-científico até a medula!
tual, talvez a derrocada final. Pobre Platão! Pobre Aristóteles! Pobres estoicos! Pobre Agostinho!
É claro que a referência de Obama aos pais fundadores dos Esta- Pobre Saussure! Pobre Peirce! Pobre Wittgenstein! Pobre Benveniste!
dos Unidos não é a mesma que faz Darcy Ribeiro, porque para Oba- Pobre Lacan! Todo o vosso trabalho foi em vão!
ma inexiste imperialismo norte-americano. E ainda falam mal das opiniões dos jogadores de futebol...
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br
Liberdade
O sol parece que vai queimar minha retina. difícil de uns anos pra cá. Ando pelas vielas, pelas ruas principais,
Degradação e violência
no
Tráf ico de
mu lh eres
Dia 11 de julho de 2007. Aeroporto de Gua- Asbrad, demonstrou indignação “com as ‘pu-
rulhos, São Paulo. Uma mulher é encontrada tas’ brasileiras que não são respeitadas, le-
com a cabeça apoiada numa toalha e pés sobre vam porrada e são obrigadas a se ‘foder’ sem
uma cadeira. São sinais de cansaço, depois dos reagir. ‘Desde que cheguei lá, já disse que
quatro dias morando na sala de desembarque queria a minha passagem e meu passaporte
do terminal 2, até que um funcionário da Infra- de volta!.’” “A ‘puta’ tem que se respeitar”, di-
ero percebe sua situação e vai ajudá-la. zia, revoltada. “Muitas mulheres saem da mi-
Deportada de Zaragoza, na Espanha, onde nha cidade para a Espanha. Esse homem que
era trabalhadora sexual, Maria* tenta, sem me levou tinha que me trazer de volta. Agora,
sucesso, entrar em contato com os seus fami- para a Espanha, só vou como turista.”
liares. Descendente de mãe índia, nascida em A história de Maria foi registrada pelas as-
uma cidadezinha localizada a 13 horas de bar- sistentes sociais do Posto da Asbrad, como
co de Belém do Pará, Maria estava a milhares parte do programa de apoio às mulheres e
de quilômetros de casa. transexuais vítimas de tráfico, no aeroporto
Convidada para ser trabalhadora sexual na de Guarulhos, maior fronteira aérea do País.
Espanha, ela aceitou. Saiu do Brasil com passa- Fundado em dezembro de 2006, o Posto pro-
porte e passagem paga pelo “empregador”. cura identificar possíveis casos de tráfico,
O funcionário da Infraero encaminhou a dentre os migrantes brasileiros deportados
mulher ao Posto de Atendimento Humaniza- ou não-admitidos, e ajudá-los em sua chega-
do da Associação Brasileira de Defesa da Mu- da ao Brasil.
lher, da Infância e da Juventude (Asbrad), que Mesmo depois da assistência oferecida,
atende brasileiros deportados ou não-admiti- Maria recusou-se a voltar de avião para Be-
dos no Exterior. Sua história foi identificada lém, dizendo preferir “pegar carona com um
como um caso de tráfico para fins de explora- caminhoneiro qualquer”. A Asbrad, por meio
ção sexual. de convênio com uma companhia de ônibus,
Como consta no relatório da Asbrad, Ma- conseguiu uma passagem para Belém, e a
ria aparentava “abstinência de drogas” e es- moça partiu. Consigo, levou mais R$ 70 para
tava “muito fragilizada”. Tinha muito medo e o barco e o lanche, doados pela própria asso-
ilustração sobre imagem hke.../www.subis.blogspot.com
dificuldade de se comunicar, “pois confundia ciação que recebe apoio de uma organização
o português com o espanhol”. Uma das coisas humanitária holandesa.
que disse foi que “não queria o cárcere”.
Maria morava em Zaragoza, e trabalhava em Fornecedores e receptores
clubes, onde fazia programas. Recentemente, Resultado da situação de vulnerabilida-
havia mudado para um piso, apartamento pro- de social em que vive parte da população, o
curado por clientes que buscam discrição. Brasil é um país predominantemente “forne-
A mulher foi obrigada a “fazer muitas coisas cedor” de pessoas para o tráfico, enquanto
contra a sua vontade”. Seus documentos foram países como Espanha, Holanda, França, Itá-
apreendidos pelos donos dos clubes e, ela não lia são “receptores”. Apesar disso, no Brasil
podia escolher com quem fazer sexo, pois tinha também entram pessoas para serem explora-
que pagar a dívida da passagem aérea. das no tráfico, vindas principalmente de pa-
Em conversa com uma assistente social da íses latino-americanos com os quais o Brasil
faz fronteira, como é o caso de alguns migran- Tráfico de pessoas em pleno século 21”. sadora também aponta para a deficiência da
tes bolivianos, paraguaios e colombianos que A pesquisadora aponta que as brasileiras legislação nacional que da forma em que está
têm sua força de trabalho explorada aqui. são muito requisitadas para exercer a pros- redigida não faz diferenciação entre a prosti-
As oportunidades de emprego oferecidas tituição em países da Europa. Uma das ima- tuição autônoma e a prostituição forçada.
pelos aliciadores, que prometem gordos salá- gens mais comuns associadas ao País é o trí-
rios em euros e dólares, seduzem pessoas dos plice clichê: praia, futebol e mulher bonita. Aliciadores e redes de tráfico
países de origem, onde vivem destituídos dos Esse estereótipo está presente no imaginário “Eu perguntei a ela, ‘como seria viver na
seus direitos mais básicos como cidadãos. dos estrangeiros que visitam o Brasil em bus- Suíça?’. A resposta foi que a Suíça é um país
Uma das principais causas do tráfico de pes- ca do turismo sexual, em especial nas cida- maravilhoso, que teria tudo o que sempre so-
soas é o abismo socioeconômico existente entre des litorâneas. nhei, liberdade...então, pedi a ela um tempo
os países ditos subdesenvolvidos ou em desen- Segundo pesquisa, geralmente as mulhe- para pensar em tudo.” Esse depoimento, reco-
volvimento e os desenvolvidos, discrepância in- res em situação de tráfico são pertencentes lhido na Pestraf, é de uma adolescente baiana
tensificada pela globalização recente. às classes mais populares, com baixa escola- de 16 anos que foi convidada por uma tia que
A corrupção de funcionários públicos que ridade, moram nas periferias, onde há carên- morava na Suíça para estudar e trabalhar.
facilitam o tráfico pelas fronteiras e a inefici- cia de saneamento básico e transporte. Mui- O Exterior, principalmente países da Euro-
ência ou morosidade do Judiciário no julga- tas vezes, moram com familiares, têm filhos pa e América do Norte, é visto como local onde
mento dos casos e na punição dos culpados, e algumas já passaram pela prostituição. Ou- boas oportunidades de emprego, educação e
além da emigração sem documentação tam- tras trabalham em serviços mal remunerados, formação pessoal podem ser encontradas.
bém fortalecem a viabilidade do crime. sem carteira assinada, sem garantia de direi- Tais mulheres partem do Brasil atrás de
tos em funções subalternas, com alta rotati- seus sonhos, querem mudar as suas vidas
Quem são as vítimas vidade, sem perspectiva de ascensão social e e trilhar um caminho diferente, de ascen-
Em 2002, foi realizada a primeira pesquisa melhoria da qualidade de vida. são. No caso da “Baiana”, como ela era menor
em âmbito nacional para mapear as rotas do As que mais despontam na pesquisa são de idade, a tia conseguiu documentos falsos
tráfico de pessoas. Foram localizadas 241 ro- “afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 para que pudesse sair do País. Os pais, a prin-
tas de tráfico no Brasil, sendo 131 delas com anos”. As adultas são as mais traficadas para cípio não concordaram, mas a menina acabou
destinos internacionais. A Pesquisa Sobre o o Exterior e as adolescentes são mais comu- por convencê-los: “Como a minha tia falava
Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes mente traficadas entre municípios e Estados tanta coisa sobre a Suíça, eu queria ir!”
Para Fins de Exploração Sexual Comercial no da federação. Essas mulheres podem ter sofri- Chegando ao aeroporto de Zurique, a tia
Brasil (Pestraf), organizada pelas sociólogas do abusos sexuais – estupro, sedução, atenta- mandou um homem buscá-la. A adolescente,
Maria Lúcia Leal e Maria de Fátima Leal, da do violento ao pudor, abandono, negligência virgem, foi obrigada a ter relações sexuais
Universidade de Brasília, contou com a parti- ou maus tratos – de membros da família ou de com tal homem. “Ter que transar com um ho-
cipação de pesquisadores de todo o País. conhecidos próximos. mem que eu vi um só dia ... e ainda por cima
De acordo com a socióloga Maria Lúcia Maria Lúcia atenta para o perigo das sim- brutal! Nunca vi coisa igual! Perder a minha
Leal, na época em que o trabalho foi feito “não plificações reducionistas: “Não devemos asso- virgindade com um homem podre como aque-
se falava em tráfico de pessoas, o movimen- ciar pobreza à exploração sexual, mas as situ- le, foi difícil. Daí por diante a minha vida mu-
to de mulheres não tratava disso, muito me- ações de precarização potencializam isso.” E dou totalmente...aí, senti que o pesadelo esta-
nos o movimento de trabalhadoras do sexo”. mais, “se uma mulher sai daqui para exercer va apenas começando para mim.”
A Pestraf deu o pontapé inicial para a intensi- a prostituição, não significa que ela está em Como no caso acima, os aliciadores muitas
ficação do debate no Brasil: “De repente, a so- uma situação de tráfico, que ela está sendo ex- vezes são pessoas da própria família que ins-
ciedade foi surpreendida com um dado dessa plorada, ou violada. O que ocorre é que estão piram confiança na futura vítima de tráfico.
natureza que vai contra a dignidade humana. se fazendo grandes generalizações”. A pesqui- Inclusive, grande parte são mulheres que já
O mercado de gente
de como ganhar muito dinheiro lá fora.
Frans Nederstigt, do Projeto Trama – con-
ões
sórcio de Ongs do Rio de Janeiro que aten-
de vítimas de tráfico –, diz que “muitas mu-
n d e US $ 3 2 b i l h
lheres que são identificadas como traficantes
foram exploradas e, como forma de pagamen- re
to e pressão, aceitam trazer um familiar, uma Diferente do que se pode imaginar, escravi- Marco-regulatório
amiga, uma conhecida” e existe a dificuldade dão não é um fenômeno social que ficou num A convenção das Nações Unidas Contra o Crime
de prender os verdadeiros mandantes das má- passado distante. Inúmeras formas de escravi- Organizado Transnacional, no Protocolo Adicional
fias de tráfico de pessoas. dão moderna geram grande volume de dinhei- Anti-Tráfico Humano (mais conhecido como o Pro-
ro para o crime organizado de tráfico de pessoas. tocolo de Palermo), de 15 de novembro de 2000, no
Caminhos do Tráfico É difícil precisar números exatos, justamente de- art.3, define o tráfico de pessoas como:
Os principais Estados fornecedores de mu- vido à ilegalidade com que essas máfias atuam, “O recrutamento, transporte, transferência,
lheres traficadas são Ceará e Goiás, tendo um que contam com empresas de fachada para lavar alojamento ou acolhimento de pessoas recor-
número de casos consideráveis no Rio de Ja- o dinheiro do mercado de seres humanos. rendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras
neiro, São Paulo, Minas Gerais e Pará. Os No entanto, segundo relatório da Organi- formas de coação, ao rapto, à fraude, ao enga-
principais destinos são os países de língua la- zação Internacional do Trabalho (OIT), de 2005, no, ao abuso de autoridade ou à situação de
tina, como Espanha, Itália e Portugal. Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado, vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
No Nordeste, muitas partem do Maranhão o lucro anual produzido pelo tráfico de pesso- pagamentos ou benefícios para obter o consen-
para a Holanda, pelo porto de Itaqui, na capi- as gira em torno de US$ 32 bilhões, riqueza ge- timento de uma pessoa que tenha a autoridade
tal São Luís. Ocorre ali o “leilão das virgens”, rada pela exploração do corpo e da força-traba- sobre outra para fins de exploração. A explora-
em que uma agenciadora percorre os povoa- lho dos traficados. ção incluirá, no mínimo, a exploração da prosti-
dos em busca de meninas para os prostíbulos, Cerca de metade disso, US$ 15,5 bilhões, tuição de outrem, ou de formas de exploração
para que sejam leiloadas a clientes de alto po- vai para os países desenvolvidos. O restante é sexual, o trabalho ou serviços forçados, escrava-
der executivo, inclusive políticos. distribuído para a Ásia (9,7 bi), países do Leste tura ou práticas similares à escravatura, a servi-
Recife, Salvador, Fortaleza e Natal são cida- Europeu, (3,4 bi), Oriente Médio (1,5 bi), Amé- dão ou a remoção de órgãos.”
des onde o turismo sexual é muito forte. Des- rica Latina (1,3 bi), e África Subsaariana (US$ O Brasil foi uma das nações a assinar o Protoco-
te encontro com os europeus, muitas brasilei- 159 milhões). lo de Palermo, e em 29 de maio de 2003 o conceito
ras acabam se apaixonando e se casam. “Eles Ainda pela estimativa da OIT, são 2,4 mi- ali disposto foi aprovado pelo Congresso Nacional
as convidam para ir embora. Mas chegando lhões de seres humanos traficados no mundo. na Resolução nº 231, e posteriormente promulga-
lá nem todas são bem sucedidas, porque se há Desses, 43% são para a exploração sexual e 32% do pelo Decreto presidencial do governo Lula, nº
um conflito familiar, uma violência domésti- são de exploração econômica, além dos 25% de 5.107, em 14 de março de 2004, tornando-se lei or-
ca, elas têm que voltar ou ficar clandestinas. vítimas escravizadas para os dois fins. dinária federal, em âmbito interno.
Muitas dessas mulheres passam por situações
muito difíceis”, conta Maria Lúcia.
Esses casamentos podem ser mais uma
forma de aliciamento, como narra na Pes- De Belém, partem cinco voos semanais para de Coimbra e Universidade Complutense de
traf uma universitária em psicologia e direi- Paramaribo, capital do Suriname. Por essa rota, Madrid, para analisar as histórias de mulhe-
to, do Rio de Janeiro, identificada como “S” Marcel Hazeu, da Ong Só Direitos, identificou res que vão para Espanha e Portugal exer-
que também era stripper e garota de progra- casos de migração voltados para o trabalho es- cer a prostituição.
ma: “Você paga para usar o sobrenome de al- cravo. Lá chegando, muitas mulheres vão se Verônica Teresi, brasileira que também
guém e ter cidadania, e o que acontece? O prostituir nos clubes da cidade, outras são en- participa desta pesquisa, está desenvolvendo
cara passa a cafetizá-la. A exploração sexual caminhadas para as zonas de garimpo, no inte- desde 2007 um trabalho de articulação entre
não é pelo dono do estabelecimento. É quan- rior do Suriname. Ou, o que pode acontecer é as organizações brasileiras e as espanholas.
do a idiota quer ficar no país e casa com um que “muitas pessoas saem daqui para ficar com De acordo com os dados recolhidos junto à
cliente! É ele que vai tentar cafetizá-la, que um surinamês, um brasileiro que se deu bem lá, Guarda Civil espanhola, as brasileiras são as
prende o passaporte, que faz horrores, como ou um holandês, e esses homens se aproveitam imigrantes que mais se prostituem na Espa-
no caso daquela menina que foi para a Ale- delas. Têm uma, duas, três mulheres em casas nha, tendo esse número aumentado de 2004
manha, da Bahia, que o cara matou e enter- diferentes, a serviço deles”, relata. para 2005, e está por volta de cinco mil.
rou no quintal.” Verônica observou que muitas mulheres em
Na região Norte, Belém e Manaus são as Em terra de espanhol situação de tráfico na Espanha não se enqua-
cidades por onde essas mulheres saem do De todos os países europeus, a Espanha é dram no perfil de baixa renda e escolaridade.
País de avião. Circulou durante um tempo onde chega o maior número de rotas. No to- Pelo contrário: “Existem mulheres de classe-
um folheto em Belém com o seguinte texto: tal, são 32. Para Portugal são mais oito, o que média baixa, inclusive universitárias que vão
“Brasil/Holanda. Quer encontrar um homem se configura como a “conexão ibérica”. para a Espanha em busca de outras possibili-
gentil? Um europeu? Pegue sua chance para A quantidade de brasileiras exercendo a dades de vida, é errado achar que a migração é
ser feliz! Vida nova. ATENÇÃO! Damas a par- prostituição nesses países é tão grande que apenas um fator econômico”, diz.
tir de 21 anos, que sonham em conhecer o as brasileiras são estigmatizadas, conside- Algumas regiões espanholas identificadas
seu príncipe encantado, chegou a hora!!! Co- radas “putas” pelos locais, explica a sociólo- com alta concentração de brasileiras na prosti-
nheça um europeu gentil, carinhoso e com ga Maria Lúcia Leal, que atualmente inicia tuição são a Galícia, no Norte, as Astúrias, Ma-
estabilidade. Ajudamos você.” uma pesquisa conjunta com a Universidade drid, Barcelona, na Catalunha, e na Andaluzia.
useacuca.com.br
* Nome fictício
pessoas. Para isso, se prevê a cooperação bila- Carolina Rossetti é reporter
Depoimento
o s t i t u ída
“
Bra s i l e i r a , p r
Eu vim de Naviraí, Mato Grosso do Sul. Eu era meu país, mas não tinha como. E o dono do clu-
estudante, fazia o primeiro ano de educação fí- be me ameaçou, tanto psicologicamente como
sica. Eu trabalhava e estudava e tinha uma vida fisicamente. Ele me ameaçou, disse que se eu
C
de dinheiro curto, entende? não pagasse a dívida com ele, ele viria ao Brasil
Foi um próprio espanhol que me convidou. A e mataria a minha família e que eu nem tentas- M
mulher dele era brasileira e ela exercia a prostitui- se fugir, porque ele me mataria. Y
ção na Espanha. Ele era encarregado de um clu- No Brasil eu tinha uma vida saudável, não CM
be, disseram que eu ia ganhar muito dinheiro. Na fumava, não bebia, nunca tinha usado drogas. MY
época, eu tinha sonhos de fazer uma carreira em Nesse clube, a primeira vez que eu tive que es-
CY
educação física e queria montar uma academia. tar com um homem, tive que usar droga, porque
Ele falou “vai para a Espanha que em seis me- eu não tinha coragem. CMY
ses você vai conseguir dinheiro para sua acade- Eu paguei minha dívida com ele, e através de K
mia, para um carro, uma casa”. uma amiga minha, de Belém do Pará, ela disse
Eu vim por uma máfia de contrabando de para eu ir à Galícia que “era mais fácil de traba-
mulheres, desembarquei no aeroporto de Bil- lhar”. Eu vim trabalhar num clube e conheci um
bao. O dono do clube foi me buscar. A primei- homem, 11 anos mais velho, era policial aqui da
ra coisa que eles fazem quando tu chega é re- Espanha. Antes de conhecer ele, eu estava com
colher sua passagem de volta. De Bilbao, eu fui ideia de voltar ao Brasil porque estava com uma
parar em Torre de La Vega. crise de depressão muito grande. Só conseguia
Eu tinha uma dívida com eles, o meu bilhete eu trabalhar se eu cheirasse coca e tomasse um li-
até considero que foi um valor barato, porque foi tro de uísque. Estava ficando louca.
1,7mil euros, mas tem casos de “chicas” que pa- Então, depois de 21 dias, eu fui morar com
gam 4,8 euros. No piso onde eu estava, tinha que ele. Foram cinco meses de inferno. Porque ele
comprar comida à parte, e tinha que pagar o quar- não me fazia tortura física, mas psicológica. Ele
to que era 90 euros por semana. É uma dívida in- tinha vergonha de andar comigo na rua.
crível que você paga, paga e parece que nunca Aí eu voltei a trabalhar num clube, como cama-
acaba de pagar, você está sempre devendo. reira de copos, e um dia bateu a polícia. Eles che-
No Brasil, eu não trabalhava na prostituição. O gam como se fossem clientes normais. Era a polícia.
dono do clube me batizou como Cristina. Eu ve- Pára a música, pede documentação e passaporte.
nho de família evangélica, nunca tive o hábito de Você vem enganada porque eles te dizem
usar maquiagem e saia curta; quando eu vi aquilo uma coisa, mas a realidade é outra. Se eu pu-
eu fiquei assustada. Muita gente “snifando” [chei- desse voltar atrás... Eu amadureci bastante aqui,
”
rando] coca, eu pensei que estava no próprio in- mas com muito sofrimento. Eu cheguei com 23
ferno. Foi uma experiência tenebrosa, horrível. anos, hoje tenho 27 e são sequelas que quan-
Eu fiquei 15 dias sem me “acostar” (deitar) do eu tiver 60 e 70 anos isso vai comigo. “É uma
com nenhum homem, porque os homens che- coisa que não compensa, acaba com a pessoa.”
gavam em mim e eu só sabia chorar, chorar, (Depoimento recolhido por Lourdes García, da
chorar. Eu queria ir embora, queria voltar para o Ong Vagalume, em Santiago de Compostela.)
“Eu sou do tempo em que não havia televisão Na década de 50 a sociedade brasileira fez uma das maiores
e a gente ou ia ao estádio ou ouvia o jogo pelo campanhas de massa de sua história, tendo como resultado a lei
2004 que instituiu o monopólio estatal da exploração do petróleo
rádio. Pelo rádio, como até hoje, os jogos eram
e criou a empresa pública PETROBRAS para explorá-lo em nome
muito mais emocionantes do que ao vivo.”
de toda a sociedade.
Mesmo assim, as elites brasileiras subordinadas aos interesses
do imperialismo estadunidense e aglutinadas ao redor da UDN
União Democrática Nacional (UDN) foram contra, e usavam dados
científicos falsos fornecidos pelos Estados Unidos para dizer que
As matérias feitas no “hospício” no Brasil não havia petróleo.
Certamente os leitores da revista Veja nos anos 1970 não tinham a Passaram-se quase 50 anos e a Petrobras foi um sucesso. De-
menor ideia de que algumas matérias que leram haviam sido escritas senvolveu tecnologia para encontrar petróleo em nosso subsolo e
por um redator, eu, que estava internado, primeiro numa pequena clíni- em alto mar. Hoje somos autosuficientes.
ca psiquiátrica, o Instituto de Psiquiatria Comunitária-IPC, em São Pau- No governo FHC, as elites subalternas ao imperialismo voltaram
lo, com lotação máxima de 20 pacientes, e depois num grande hospital, à carga, e derrubaram o monopólio da exploração do petróleo. Pri-
o Hospital Espírita de Marília-HEM, em Marília-SP, com 300 pacientes. vatizaram a Petrobras. Hoje, 62% de suas ações são de propriedade
Em janeiro de 1974, passei a sofrer de alucinações e delírios logo de capitalistas privados. Estima-se que 42% delas sejam de capital
antes de entrar em férias na revista. Eu não sabia que estava sofrendo estrangeiro. Nas ações com direito a voto, o governo federal ainda
dessas patologias, apenas achava muito estranho e hostil o mundo à tem 51% delas, e portanto nomeia o presidente e a maioria do con-
minha volta e procurei um amigo, Carlos Alberto Sardenberg, que era selho de administração. Mas, na hora de dividir os lucros, 62% vão
estudante de filosofia e depois se tornou jornalista, tendo a vida nos para os capitalistas e entre eles 42% vão para o Exterior.
afastado. Ele me internou no IPC, no bairro do Itaim-Bibi. Ao quebrar o monopólio sobre o petróleo, criaram um monstrengo
Fiquei internado até agosto de 1975, os últimos seis meses chamado Agência Nacional do Petróleo (ANP), que apenas “leiloa”
no HEM. Livrei-me das alucinações com o remédio haloperidol e para as empresas estrangeiras a exploração de reservas encontradas
aprendi por meio da terapia analítica a lidar com os delírios, ou pela Petrobras. Hoje, se estima que ao redor de 40% das reservas em
seja, a distinguir entre o que é uma imaginação e o que é um pen- alto mar, estejam sendo exploradas por empresas estrangeiras.
samento comprovado pela prática. Depois de muitas pesquisas da Petrobras, no ano passado foi
Tanto a clínica como o hospital eram comunidades terapêuticas, em revelado que a sete mil metros sob o nível do mar há uma imensa
que cada paciente, além de tomar remédios e fazer terapia individual e camada de petróleo, que os geólogos chamaram de pré-sal. Seu
em grupo, também ajudava na administração. Assim, fui porteiro exter- valor? Ninguém sabe ainda, mas certamente são de vários bilhões
no, recebendo os visitantes (que não sabiam que quem lhes abria as por- de barris, que representam trilhões de dólares.
tas era também paciente), fui atendente de pacientes – lhes dava banho e Dezenas de entidades, movimentos sociais, partidos políticos, sin-
ouvia suas queixas, participei das organizações de jogos e campeonatos. dicatos de petroleiros articulados na FUP e na FNP estão se reunindo
As atividades tinham horário determinado e havia discussões sobre o para desencadear no Brasil uma nova mobilização popular para ga-
bom cumprimento das tarefas. rantir que o petróleo e sobretudo as reservas do pré-sal sejam recupe-
Durante todo esse ano e meio de internamento, não deixei de traba- rados para o povo brasileiro. Que mudanças são urgentes?
lhar na Veja, com exceção das férias e de seis dias em que faltei. Quan- 1. Parar qualquer leilão e suspender os já realizados.
do eu estava no IPC, fazia hospital-noite, ou seja, saía para trabalhar e 2. Mudar a lei do FHC e voltar a ter o monopólio do petróleo
voltava à clínica. Quando estava no HEM, recebia material por malote, para o povo.
escrevia no hospital e enviava por malote, e logo fiquei no esquema de 3. Reestatizar a Petrobras para que seja uma empresa pública.
passar um dia por semana em São Paulo, para fechar. 4. Fim das exportações de petróleo cru, e incentivo à indústria
Assim, quando estava no IPC, participei da elaboração dos textos fi- petroquímica, para produzir bens mais úteis do que simplesmente
nais da cobertura da Copa do Mundo de 1974 na Alemanha, juntamente queimar gasolina e diesel e gerar mais poluição.
com Sebastião Gomes Pinto, o Tão, e depois cumpri a rotina de editor- 5. Criar um fundo social soberano para usar a riqueza do pe-
assistente. Quando estava no HEM, fiz, por exemplo, uma reportagem tróleo na solução dos problemas urgentes do povo, de emprego,
sobre psiquiatria comunitária, aproveitando que os cantores e compo- distribuição de renda, moradia, educação e reforma agrária.
sitores Vinícius e Toquinho, que estavam fazendo shows em Marília, A convocação da CPI da Petrobras é também uma resposta de-
atenderam um pedido partido dos pacientes (não de mim) e fizeram um les, para tentar embaralhar o debate e transformar a empresa em
show no auditório do hospital. Essa matéria ganhou o Prêmio Abril de ré, quando ela é vitima de uma política irresponsável e vende-pá-
Matérias sobre Psicologia de 1975. tria realizada pelo governo FHC.
Renato Pompeu é jornalista e escritor. João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via
rrpompeu@uol.com.br Campesina Brasil.
Gênio
BRASILEIRO
“Teatro do Oprimido é revolução.
Boal nos ensinou e a gente ensina
VOCÊ ACREDITA
EM PESQUISAS?
AVANÇO NO AR Você vai abrir um restaurante? Uma boca
Reivindicação antiga dos metalúrgicos do de fumo? Vai se candidatar a senador, a ho-
ABC paulista, finalmente o presidente Lula mem-bomba, a miss? Vai trazer a pessoa
anunciou que vai autorizar a concessão de amada em três dias? Seja qual for o caso, faça
emissoras educativas de rádio e TV para enti- uma pesquisa. Se em vez de ficar conversan-
dades ligadas ao sindicato da categoria. Como do com cobra, Adão tivesse consultado um
esses pedidos têm mais de 20 anos, é preciso instituto de pesquisas, podia ter deixado a
esperar a conclusão do processo para come- maçã quietinha, comido um jiló e a gente es-
morar. Mesmo por que o Ministério das Co- tava no paraíso até hoje. Deus mesmo, se não
municações não merece a menor confiança! fosse tão onipotente, podia ter consultado o
Datafolha sobre a criação do universo. Não
TERRA SEM LEI é por nada não, mas bota água em Júpiter,
Ao revogar a Lei de Imprensa, entulho da com aquele tamanhão todo, e vê o que dá pra
Ditadura Militar, sem colocar nada no seu lu- fazer de civilização lá dentro. Sem falar que
gar, o Supremo Tribunal Federal deu uma de noite ainda tem quatro luas no céu pra
tremenda ajuda para a mídia oligárguica-ne- gente olhar. E duvido que uma pesquisa en-
oliberal. Agora os juízes e tribunais podem ar- tre todos os seres vivos fosse apontar os hu-
quivar todos os processos de pedidos de retra- manos pra crescer e se multiplicar. Nós não
tação e indenização baseados na extinta lei. O sabemos voar, não conseguimos viver em-
prejuízo será de quem é perseguido e crimi- baixo d’água, somos completamente incapa-
LIXO NAS ESCOLAS nalizado por essa mídia. zes de dormir por seis meses e não conse-
A rede paulista de ensino público está re- guimos nem cair sempre em pé de qualquer
cebendo os jornais O Estado de S. Paulo e CRIMES MIDIÁTICOS altura. Quem ia votar na gente pra ser a raça
Folha de S. Paulo e as revistas Época, Isto É Os jornais de São Paulo não demonstraram superior do planeta?
e Veja, todos defensores do programa neoli- o menor interesse em apurar as informações di- As pesquisas também podiam ter ajuda-
beral dos partidos PSDB e DEM. A Secreta- vulgadas pelo Conselho Regional de Medicina, do a História. Imaginem essa carta-respos-
ria Estadual da Educação gasta o dinheiro no dia 12 de maio, sobre os crimes ocorridos ta do Ibope: “Caro senhor Che, em resposta
do povo com publicações que só reforçam os dois anos antes, em 2006, quando a polícia pau- à pesquisa encomendada, informamos que
valores da sociedade de consumo, não aju- lista e grupos de extermínio assassinaram 564 a Bolívia ficou em vigésimo lugar quanto
dam em nada para a construção de um Bra- pessoas no Estado de São Paulo, especialmen- a possibilidades revolucionárias, sem falar
sil melhor. As escolas deveriam exigir publi- te negros, pobres e jovens da periferia. Essa na desvantagem de não ter mar pra se fu-
cações críticas ao neoliberalismo. “obra” dos governos tucanos está sendo omiti- gir de barco se tudo der errado.” Ou ainda:
da pela mídia. “Exmo. Sr. Jesus, nossas pesquisas reco-
AMEAÇA À DEMOCRACIA mendam que o Senhor diminua o número
Transformada em espaço de liberdade e SÓ VALE TEATRINHO de convidados para a ceia da próxima se-
interação na comunicação social, a internet Depois que os ministros Joaquim Barbo- mana. Um por cento dos apóstolos quer lhe
tem sido alvo de abusos comerciais e baixa- sa e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal pegar pra Cristo.”
rias, assim como de censura, perseguição e Federal, bateram boca ao vivo na TV Justiça, Mas isso tudo é passado. Agora mesmo
cerceamento político e cultural. Já o projeto a mídia gorda propôs que as sessões do STF nós, do Data-Amigos, estamos aqui na ave-
de lei do senador Eduardo Azeredo, do PS- fossem gravadas e editadas antes de ir ao ar. nida Paulista pesquisando. E vamos aos pri-
DB-MG, é nitidamente fascista, pois crimina- Os ministros não aceitaram, preferem a ex- meiros resultados. Sobre a confiança da po-
liza quem pensa diferente da visão conserva- posição direta, desde, é claro, que a encena- pulação na polícia, por exemplo, 98% dos
dora e moralista das elites brasileiras. Chega ção seja bem comportada. entrevistados olharam pra um lado, pro outro
de censura! e responderam que é claro que confiam, ima-
EPIDEMIA ANTIÉTICA gina! E só 2% fugiram correndo. Não é uma
FARSA GLOBAL Uma repórter da Veja chupou matéria do beleza? Quanto à gripe suína, todos os entre-
A TV Globo quis criar as condições para Wall Street Journal, dos Estados Unidos, des- vistados iam responder que estavam tranqui-
que os jagunços do banqueiro Daniel Dan- mentiu o plágio, mas foi desmascarada pelo los, mas como eles não tiraram as máscaras,
tas, em sua fazenda no Pará, transformas- site Comunique-se, que checou diretamente não conseguimos entender as respostas. E,
sem a ocupação dos sem-terra num banho com uma fonte que não havia dado entrevista por fim, perguntamos se a população acredi-
de sangue semelhante ao massacre de El- para a revista da Abril. Pelo visto, dentro da ta na moralização do Legislativo e do Judiciá-
dorado dos Carajás. A farsa só não deu cer- editora, a mentira é doença contagiosa. rio brasileiros. E 100% dos entrevistados ain-
to porque o repórter da emissora desmentiu da não conseguiram parar de rir.
que tivesse sido sequestrado pelos trabalha- Hamilton Octavio de Souza é jornalista.
dores. A TV Globo não aprende! hamilton@uol.com.br Cesar Cardoso é 100% escritor.
GOVERNO
ABANDONOU
A REFORMA
AGRÁRIA
Integrante da coordenação do MST, Charles Trocate fala
da prioridade que o governo federal dá ao agronegócio
Entrevista de Tatiana Merlino | fotos Yann Vadaru.
O governo Lula optou pelo agronegócio prada de forma ilegal. Em abril, o local foi pal- bitantes: três vezes mais gado do que gente. A
em detrimento da reforma agrária. A avalia- co, segundo o MST, de uma tentativa de mas- segunda é a frente madeireira, que existe há 20,
ção é de Charles Trocate, da coordenação na- sacre, pintado como “confronto” pela grande 30 anos no sul do Pará, e que está se deslocan-
cional do Movimento dos Trabalhadores Ru- mídia. “Confronto” que deixou oito feridos: do para o oeste do Estado. Há a frente mineral.
rais Sem Terra (MST), que acredita que a um segurança privado e sete camponeses. O sul e o sudeste do Pará têm aproximadamen-
política de distribuição de terra vive uma en- te 17 mil títulos minerais, que variam de 50 a
cruzilhada no Brasil. “Eles fizeram uma op- Caros Amigos - Como está a situação da reforma 10 mil hectares, todos em posse da Companhia
ção pela ampliação do capital na agricultura, agrária no Pará hoje? Vale do Rio Doce, ou de empresas associadas a
querendo extrair uma nova renda da terra, Charles Trocate – Como em todo o País, ela. Então, há uma guerra de monopólio do tí-
e impedindo que se crie um ambiente favo- a reforma agrária vive um impasse extraordi- tulo minerário e da extração minerária. É uma
rável para a existência dos movimentos”, de- nário, porque o Estado possui vários mecanis- disputa acirradíssima do subsolo. A outra fren-
nuncia, em entrevista à Caros Amigos. mos para fazê-la, como também possui vários te é a da soja, que também atua no oeste para-
Trocate afirma que os primeiros qua- mecanismos para negá-la. Dependendo da atu- ense, transformando áreas de florestas nativas
tro anos do governo Lula foram medíocres: ação dos governos, mais progressista ao tema em campos de soja, com pesadas perdas para a
“Houve uma briga de estatísticas, mas, no fi- ou mais conservador, acaba-se criando encru- sociedade local, para o bioma local e para o bio-
nal, eles não assentaram mais do que 65 mil zilhadas. Então, na prática, no Brasil inteiro, ma amazônico. E a última frente está monta-
famílias.”No segundo mandato, para justifi- a reforma agrária vive uma encruzilhada. A re- da no modelo de desenvolvimento econômico
car os parcos números, priorizou-se o discur- forma agrária foi derrotada ideologicamente da região, que é a apropriação indevida da bio-
so de se fazer a reforma agrária de qualidade, no governo Lula porque eles fizeram uma op- diversidade, com pesquisas de laboratórios de
ou seja, com melhores condições nos assenta- ção pelo agronegócio, portanto, pela amplia- empresas transnacionais que atuam na região e
mentos. No entanto, a realidade é outra. “Não ção do capital na agricultura, querendo ex- se apropriam dos conhecimentos naturais e da
se enfrenta o latifúndio e nem se tem dado a trair uma nova renda da terra, e impedindo essência farmacêutica da região sem que isso
infraestrutura fundamental, essencial para os que se crie um ambiente favorável para a exis- tenha um controle. Todas essas partes conver-
assentamentos que já existem”, lamenta o di- tência dos movimentos. Nós estamos enfren- gem para um modelo, o uso do território para
rigente do MST. tando muitas dificuldades nessa conjuntura. a reprodução do capital e da sua taxa de lucro.
No Pará, Estado onde vive, a situação é Lá no Pará, a questão central é a terra públi- Isso provoca uma desterritorialização das co-
uma das piores do Brasil. Nos seis anos do go- ca. Foram se estabelecendo latifúndios de toda munidades ribeirinhas, quilombolas e dos indí-
verno Lula, nenhuma área ocupada pelo mo- e qualquer natureza, com documentos irregu- genas. Sem território, estes não se reproduzem
vimento foi desapropriada. Ao mesmo tempo, lares atestados por todos os cartórios. E o Ju- socialmente. Aí está a natureza do conflito.
a organização denuncia um processo de re- diciário não está disposto a rever esses títulos,
concentração fundiária no Estado, encabeça- que são fraudulentos e de origem duvidosa. Quais grupos que encabeçam essas frentes?
do pelo banqueiro Daniel Dantas, dono do Op- Além disso, há uma disputa pela posse da Há uma associação de pelo menos três gru-
portunity, que nos últimos anos comprou 52 terra, porque o modelo de desenvolvimento do pos distintos. Primeiro, os latifundiários de ori-
fazendas em 11 municípios do Estado. Entre Pará tem cinco grandes frentes. Uma é a pecu- gem paulista e sulista que nos últimos 30 anos,
elas, a fazenda Espírito Santo, ocupada pelos ária extensiva: temos aproximadamente 20 mi- pela relação com o Estado, conseguiram obter
sem-terra, que alegam ser área pública, com- lhões de cabeças de gado e sete milhões de ha- títulos fraudulentos dos cartórios, e que nos im-
Apoio: www.mds.gov.br
0800-7072003
Ulisses Tavares Guilherme Scalzilli
“O cineasta quer
entender
que país é este”
Um dos atores mais premiados do cinema, teatro e
televisão, Wagner Moura recebeu a Caros Amigos em
sua produtora, no Jardim Botânico, bairro acolhedor da
zona sul carioca.
Nesta entrevista ele fala sobre sua infância em Rode-
las, no sertão baiano, a timidez que lhe valeu o apelido de
OVNI numa escola de Salvador, os primeiros passos no
teatro e a vinda para o Rio de Janeiro – de onde passou a
fazer trabalhos reconhecidos internacionalmente.
Com entusiasmo, defende a importância de Tropa de
Elite e fala sobre a montagem de Hamlet e a produção
do filme Tropa de Elite 2, que vai abordar a questão dos
grupos criminosos formados por policiais, vulgarmente
conhecidos como “milícias”. O ator comenta ainda o cer-
camento, com muros, das favelas do Rio, uma iniciativa
conjunta do governo estadual e de empresas privadas.
Marcelo Salles - Wagner, a gente sempre começa choram, querendo voltar. Quando fechou o As pessoas todas cuidando daquele santo,
pedindo para o entrevistado falar desde a ciclo dele, quis voltar para Rodelas, voltamos daquela imagem. Eu me lembro que o san-
infância, como foi sua criação, seus pais, em todos pra lá, isso nos anos 80. to bambeou, parou, aí uma senhora gritou
que cidade. E aí a gente vai desenvolvendo... “São João Batista quer que caia!”, aí todo
Wagner Moura - Meu pai é militar da reserva, Luciana Chagas – Isso foi um pouco antes da mundo “quer que caia, quer que caia!”. Lem-
da Aeronáutica. Serviu 32 anos, era sargen- enchente? bro da minha mãe chorando.
to. Veio de Rodelas, interior da Bahia, com Um pouquinho depois, na verdade. A en-
17 anos, no pau-de-arara, como os nordesti- chente foi em 88, e a gente se mudou em 89 Marcelo Salles – Como é que foi o seu encontro
nos que vêm para ser porteiros, trabalhar na para Salvador. Isso é um negócio que está gra- com o teatro?
construção civil. Até que entrou como sol- vado na minha cabeça de uma forma violenta... Então, eu era esse cara que não tinha ne-
dado para a Aeronáutica, fez carreira mili- nhum amigo, muito só. Meu apelido na es-
tar, mas a onda dele era estudar. Durante Luciana Chagas – A perda da cidade natal é uma cola era OVNI, sentava sozinho. Eu não me
esse tempo ele conseguiu estudar Direito e referência? sentia incluído, não me sentia parte daqui-
se formar. Nunca exerceu. Se formou e fa- Rapaz, não. Pra mim, criança, eu achava lo, sabe? Quando eu comecei a fazer teatro
lou: sou doutor. Eu nasci em Salvador, a mi- um barato aqueles peões na cidade, as casas eu tinha 14, 15 anos. E musicalmente Salva-
nha mãe também é baiana de Rodelas, era quebradas. Ficava brincando naqueles escom- dor era, no início dos anos 90, uma ditadura
dona de casa. Meu pai tinha sido transferido bros, na lama, mas eu me lembro das pesso- do axé. Nenhuma rádio tocava outra coisa,
do Rio para Salvador, fiquei lá dois anos, aí as, mais velhas principalmente, sem entender e os jovens eram muito fascinados por essa
ele foi transferido de volta para o Rio. Morei o que estava acontecendo. cultura do axé, de ir pra festas e pegar me-
cinco, seis anos em Marechal Hermes [bairro nininhas, de pegar o carro do pai. Aqueles
da zona norte da capital fluminense]. Fui al- Luciana Chagas – Você estava com quantos anos? blocos de Carnaval sectários, onde uma pes-
fabetizado aqui no Rio, tenho uma irmã mais Nove, dez anos. Tinha uma coisa religio- soa preta não pode entrar, uma pessoa feia
nova, médica pediatra de UTI. Meu pai é bem sa muito forte. Eu me lembro da mudança do não podia. Eu era muito só, ficava em casa,
mais velho que minha mãe, tem 73 anos, e santo padroeiro da cidade, Santo Antônio, estudando. Aí eu estava na escola e uma me-
sempre foi um nordestino saudoso, desses da cidade velha para a nova. Foi uma coi- nina chamada Micheline, que era mais velha
que ficam ouvindo Luis Gonzaga em casa, e sa que antropologicamente era muito forte. e fazia parte de um grupo de teatro, num lu-
que
Quando é que surgem os regimes de pa de Elite 2, não sei se vocês sabem.
“A gente sabe
força? O fascismo surge quando a situação é
rupta”
caótica. Vivemos uma situação caótica em re-
r
MC Leonardo – Você acha que a arte, de maneira
lação à segurança pública. Então, a tendência
ap olícia é co geral, a novela, poderia estar cumprindo um
do cara que já foi assaltado cinco vezes e vê al- papel mais social...
guém metendo a porrada no bandido e matan- incorporava o Capitão Nascimento, Eu acho que isso é muito de quem tá fa-
do é dizer: “É isso. A solução é essa.” A solução, você ficava preocupado com o que a gente zendo. Você é um cara que mora na comuni-
pra mim, está muito longe. Enquanto o único vive na favela. Como é que isso mexeu dade, você quer que a garotada jovem não
poder público a subir na favela for a polícia, dentro de você? entre para o tráfico. Então, isso faz parte de
não vai ter solução. Na favela não sobe esco- Eu ficava o tempo todo achando que estava quem você é. Eu, particularmente, quero fa-
la, não sobe hospital, não sobe livro, não sobe fazendo um filme importante. zer um filme sobre a questão agrária. A par-
parquinho pras crianças brincarem, não sobe tir do momento em que eu sei que nenhum
biblioteca, só sobe polícia? MC Leonardo – Quando eu li o roteiro pensei mandante de nenhum crime agrário no Bra-
assim: vai mostrar que a polícia é assim, que a sil está preso, ou jamais foi preso. Mas eu
Marcelo Salles – O filme apresenta
uma realidade polícia é corrupta, que a polícia vende droga, acho que a arte é livre, entendeu, cada um
concreta. Quem conhece um pouco da arma, que a polícia é assassina, então, vou faz da arte o que quiser.
realidade da polícia do Rio... entrar no projeto. Nunca pensei que iria chegar
A gente sabe que a polícia é corrupta. em São Paulo e ouvir dos Racionais: “ Aí, rapá, Sheila Jacob – Como você encara o trabalho de
Quem não sabe que a PM é corrupta? Ago- Tropa de Elite não tá maneiro não.” publicidade?
ra, existem bons policiais? Existem. Os poli- Os Racionais acharam isso? Ótimo, adoro publicidade.
ciais do Bope que eu conheci, eu vou dizer a
você: eles todos são homens de bem! Incor- Marcelo Salles – Uma superprodução, Sheila Jacob – E você escolhe?
ruptíveis, eles têm suas famílias, e eles real- um super-roteiro, ninguém contesta a Escolho, fazer comercial de dentadura não
mente acreditam que estão fazendo um puta sua atuação, um fi lme que mostra uma dá. E escolho também se não é um produto que
bem pro Brasil matando bandido. realidade impregnada de fascismo. Mas vai fazer mal às pessoas, porque a imagem vai
também a reforça. V ocê não acha que, por contribuir para aquilo. Mas eu te confesso que
MC Leonardo – No meio da gravação, quando isso, o fi lme foi pelo menos irresponsável? adoro, é um dinheiro ótimo de ganhar, você vai
te via fardado ficava com medo de você, até Eu acho que é importante o Brasil en- lá, grava um dia só e ganha um bom dinheiro.
porque sou morador de favela. Quando você tender que existe, se eu estivesse no Matrix Sheila Jacob – Porque tem a questão da arte
Comunicação popular
mobiliza a juventude
cursos realizados no Rio resgatam o idealismo e o papel
transformador dos jornais foto Arquivo NPC.
Arraial do Cabo é uma cidade pacata de 26 perceberam um idealismo surpreendente bro- çado, de tendência progressista. Era muito
mil habitantes, no litoral do Rio de Janeiro. tando, aos poucos, em Izabelle. diferente”, conta a jornalista Raquel Junia.
Conhecida como Capital do Mergulho, o jo- Principal fruto das aulas, o jornal O Ca- A maioria dos cursos do NPC é voltada
vem município que até 1985 era distrito de bistão já vai para sua quarta edição. Segun- para militância de sindicatos e movimen-
Cabo Frio tem sua economia estruturada, es- do a jornalista do NPC, Cláudia Santiago, tos sociais. Costumam encontrar um públi-
sencialmente, no turismo. Seria natural que tanto as pautas, relativas ao cotidiano da re- co mais velho, com maior embasamento in-
seus habitantes fossem alheios às questões gião, quanto a orientação gráfica do periódi- telectual devido à participação política mais
contemporâneas, isolados em suas ativida- co “evoluem a cada número”. Os estudantes efetiva. Formar jovens do interior a partir de
des de pesca, hotelaria e culinária. Mas a ex- já buscam parcerias para montar uma rádio conteúdos complexos foi um desafio para o
periência de um grupo de adolescentes mos- na região. “A comunidade está muito anima- Núcleo. “Logo no primeiro dia, o Vito Gian-
tra que é possível romper essa barreira. da com a possibilidade de termos uma rádio notti deu uma aula de História dos Traba-
Em julho de 2008, o Núcleo Piratininga de só nossa”, comenta Izabelle. lhadores no Brasil”, conta Cláudia, rindo. A
Comunicação (NPC) iniciou na região um cur- A estudante frisa que os assuntos aborda- equipe temia que a desistência fosse grande,
so de Comunicação. Tratava-se de uma par- dos têm, quase sempre, uma perspectiva crí- principalmente porque as aulas tomavam os
ceria com o Ressurgência, projeto da UFRJ tica. O curso inicialmente previsto encerrou sábados integralmente. Entretanto, o índice
que leva o nome de um fenômeno oceânico co- este mês com uma grande festa na praça cen- de presença superou dois terços da audiên-
mum na cidade. Os jovens selecionados para tral da cidade. Números musicais, apresenta- cia inicial. Segundo Raquel, o curso teve ain-
as aulas passaram a assistir palestras sobre ções de balé e exibição dos filmes realizados da o mérito de reforçar “a autoestima dos jo-
geografia, história, audiovisual, redação e os pelos estudantes somaram-se ao lançamento vens e seu amor pela cidade”.
mais variados temas. Professores da região da quarta edição do jornal. Entretanto, sur-
e da capital fluminense foram selecionados giu a proposta, na comunidade, de que as au- Histórico
para oferecer uma ampla formação. las fossem estendidas por mais dois meses. A O exemplo de Arraial sublinhou um traba-
“Os cursos abriram nossa cabeça, princi- aceitação foi quase unânime. lho que vem sendo feito no Rio de Janeiro há
palmente para a questão social. Tomamos co- O processo não foi simples desde o início. mais de seis anos. O NPC criou seu curso de
nhecimento de quem somos, de onde podemos Quando desembarcou na cidade, a equipe do formação de comunicadores populares após a
chegar”, relata Izabelle Felix. A estudante foi NPC se surpreendeu com um cenário diferen- Chacina do Borel, em 2003. Numa operação
a quase todas as aulas, que ocorriam quinze- te do que esperava. “A gente se deparou com policial em 16 de abril daquele ano, quatro jo-
nalmente aos sábados. Fala do projeto com ní- uma turma muito nova, de 15 a 17 anos. Tí- vens haviam sido injustamente assassinados.
tido entusiasmo. Os professores contam que nhamos preparado um conteúdo super-avan- A revolta com a crueldade dos homicídios le-
Frei Betto
Serviços privados
enrolam os cidadãos
Reflexões
acaba levando os problemas do cliente com você. Sai de lá com o mun-
do nas costas. É algo que vai cansando, depois você não consegue
nem ver telefone direito. Vai acumulando os problemas dos clientes e
também a cobrança dos superiores.” sobre minha
Ele lembra que sem a variável – o bônus recebido pelo trabalha-
dor que cumpre as metas propostas pela empresa – o serviço na li- última viagem a Israel– 3
nha não valeria a pena, “é muito desgastante”, desabafa. Na linha,
Fábio era do setor de retenção. “O cliente liga para cancelar o car-
tão e nossa missão era convencê-lo do contrário.” A meta imposta
(final)
era reter 60% dos usuários que ligavam. Cada setor tem suas me-
tas específicas, mas em todos eles, se essas não são cumpridas, o
de
Todos aqueles que nasceram e foram criados em favelas têm O que é um bom romance?
algumas histórias de pessoas que foram em nossas casas e ao Para começar, um bom romance não pode ser chato.
sair sofreram algum tipo de abordagem preconceituosa por par- Na moda do nouveau roman, anos 1960, pulularam na Eu-
te de algum policial. ropa e, por imitação, no Brasil, romances chatos, ilegíveis.
A mais comum é a que o policial, depois de ter tirado até os Clarice Lispector tem um romance chato, A Maçã no Escuro.
sapatos da pessoa ali mesmo no meio da rua, levanta o queixo O romance chato sobrevive do leitor pretensioso: se os peri-
da pessoa e com uma lanterna apontada pra dentro do nariz, faz tos literários dizem que é bom, tem de ser.
a seguinte pergunta: Um bom romance é escrito no melhor idioma do país.
– O que você faz aqui? Melhor idioma do país não é o que falam as pessoas cul-
E seja lá qual for sua resposta, se ele notar que você não é dali tas, do Sudeste, universitários etc. Ele se situa numa espécie
vai finalizar a péssima abordagem com a seguinte frase: de base idiomática, presente em todo o país, uma língua mé-
– Isso aqui não é lugar pra você. dia que qualquer um – inclusive os iletrados – pode acompa-
Sabemos que todas as pessoas que frequentam as favelas es- nhar. Vejam a trilogia O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo.
poradicamente, por ter parentes, amigos ou desenvolver algum O tema é o povoamento do Rio Grande do Sul, certas perso-
tipo de trabalho nessas localidades, reclamam dos constrangi- nagens só se encontram naquela região, alguns episódios só
mentos que passam nessas situações. lá fazem sentido – como a matriarca Ana Cambará na cadei-
Atitudes como essa nos mostram que o muro que envolve a ra de balanço ouvindo a voz do vento no pampa sem frontei-
favela é muito antigo, grande, resistente, mas não é impossível ra. Mas qualquer brasileiro pode viajar naquela saga, senti-
de ser derrubado, pois cada vez mais as favelas estão sendo fre- la como sua.
quentadas por muita gente de diferentes lugares. Érico dá, aliás, em Solo de Clarineta (memórias), uma boa
O governo do Rio está com um projeto de murar as favelas definição de literatura. O pai era médico em Cruz Alta, no in-
com a argumentação de preservação do meio ambiente. terior do Rio Grande, e uma madrugada aparece um baleado
O presidente da Associação de Moradores da Rocinha (Chaulin) na barriga, precisando operação urgente. O pai acorda Érico,
deu a sugestão de um anel viário, que serviria de calçada para visi- lhe dá a tarefa de segurar a lamparina enquanto opera: “Não
tação turística na favela, como também de visitação dos favelados à vacila, Érico, ou o cara morre.” Quando termina, diz: “Pron-
floresta, e a secretária do Meio Ambiente respondeu que a decisão to, acabou, pode ir dormir.” O garoto desmaia. Mais tarde tira
do governador (de botar um muro de mais de dois quilômetros e daí uma metáfora: a função da literatura é iluminar as entra-
três metros de altura em volta da Rocinha) é irreversível. nhas da sociedade moribunda para outros a salvarem. Ela pró-
O governo diz que vai fiscalizar de helicóptero constantemen- pria não salva.
te para que os muros não virem a primeira parede de novas casas O bom romance deve sondar a nossa humanidade.
dos dois lados do muro, se vai haver fiscalização pra que murar? Podemos distinguir dois tipos de romance: o de puro en-
Proponho que enquanto o assunto não for plenamente dis- tretenimento e o de proposta. Do primeiro, como são os best-
cutido com quem vai conviver com esse apartheid, não se cons- sellers, que já deram lucro antes de chegar aqui, não se deve
trua muro nenhum. pedir muito. Para isto foram produzidos: entreter. Com os ro-
Enquanto isso, que tal despoluir a Baía de Guanabara, a La- mances de proposta devemos ser exigentes, pois são uma for-
goa Rodrigo de Freitas, a Lagoa de Marapendi... ma de conhecimento do homem. Forma superior, que não se
confunde com a sociologia, a história, a psicologia etc. Aliás,
MC Leonardo é compositor, autor, com seu irmão MC Junior, de o bom romance de proposta é também de entretenimento, vide
funks de protes-to, como o Rap das Armas. mcleonardo@carosami- D. Quixote (1605/1615), de Cervantes, pai de todos os roman-
gos.com.br - http://mcjunioreleonardo.wordpress.com ces, e Viva o Povo Brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro. O
romance, nesse sentido, é uma forma de mais-saber.
O bom romance comprova a unidade forma-conteúdo.
Pode o conteúdo existir independente da forma, e vice-ver-
sa? Por exemplo, que conteúdo quis expressar Graciliano Ra-
mos no romance Angústia (1936)? A angústia do homem-pa-
rafuso, condenado a dar voltas no mesmo lugar. Seria possível
dizer esse conteúdo de outra forma? Claro, mas o efeito so-
bre o leitor, seu significado para nós passaria a ser outro, não
mais o que Graciliano pretendeu. Conteúdo e forma não são a
mesma coisa, mas um não existe sem o outro.
Vejo daqui, apertado entre grandes romances, o Tristessa,
de Jack Kerouac. Não obedece a quase nenhuma dessas re-
gras. Mas é um grande romance.
Mulheres
de coragem
Vítimas da violência doméstica, elas encontram
nas casas-abrigos a proteção e a chance de mudar de vida
Ana é a responsável pela limpeza do cen- casa quando o marido apareceu. Tinha fugi- Enquanto isso, ele dormiria em um colchone-
tro social de uma igreja na grande São Paulo. do. “Fiquei com medo, mas deixei que ficas- te na cozinha. As agressões só pioraram.
Morena bonita, beirando os 35 anos, conversa se lá porque eu ainda gostava dele. Foi dessa “Ele me xingava o dia inteiro de puta, de
bastante e sorri enquanto trabalha. Quando vez que eu engravidei. Em nenhum momento vagabunda, dizia que eu só estava fazendo
dá meio-dia, hora de seu almoço, avisa: “Va- ele aceitou a gravidez, me batia e xingava toda aquilo porque estava com outro homem. Era
mos porque só tenho uma hora.” Enquanto hora, dizia que ia abrir minha barriga com a tanto palavrão que o meu filho falava: ‘Respei-
seguimos em direção a uma das salas, explico faca e tirar a criança de dentro.” ta a minha mamãe, meu papai’”.
que a matéria é sobre abrigos para mulheres Com o tempo, as agressões foram aumen- Muitas noites, Ana acordava assustada
que sofrem violência doméstica. Ana começa tando. Ana era agredida verbalmente. Tapas e achando que estava sendo alisada. “Tinha cer-
a tremer, e assim que sentamos ela diz, com pontapés também eram comuns. Até que che- teza que ele estava fazendo isso, mas fazia eu
voz engasgada: “Falar disso ainda é muito di- gou a vez do abuso sexual. me passar por louca.” Certa vez, acordou no
fícil pra mim.” Depois de um assalto que D. e os amigos meio da noite com um barulho de faca raspan-
Baiana de Salvador, Ana conheceu seu ex- fizeram, eles foram comemorar com uma fes- do no chão. “Fui correndo na cozinha ver o que
marido, D., quando ainda era menina. “Ele ta na casa de Ana, que durou o dia todo. “Eles estava acontecendo, abri uma das gavetas e vi
sempre ficou atrás de mim, dizendo que me usaram muita droga. Fiquei esperando do que o facão de cortar coco tinha sumido. Ele
amava, até que, aos 18 anos, aceitei namorar lado de fora, até que anoiteceu e eu precisava começou a dar risada e me mostrou o facão es-
com ele.” Depois de um tempo juntos, D. mu- colocar meu filho pra dormir. Quando entrei condido embaixo do colchão, disse que ia me
dou-se para São Paulo para “tentar a vida”. em casa, ele olhou pra mim e disse: ‘me espe- matar naquela noite. Acho que ele só não me
Sete meses depois, Ana foi fazer uma visita ao ra lá em cima porque hoje eu estou animado matou porque meu filho ajoelhou nos pés dele
namorado, e acabou ficando. Nunca suspeitou e quero transar com você a noite inteira’. Dei- implorando pra ele não fazer nada.”
da agressividade do companheiro. tei na cama e fingi que estava dormindo, es- O ponto final chegou no dia em que Ana
O primeiro soco aconteceu depois de qua- tava morrendo de medo. Quando ele chegou virou a agressora. “Mais uma vez, durante a
tro meses na capital paulista. “Estávamos em perto, cumpriu o que disse. Me estuprou du- noite, acordei com ele querendo se masturbar
uma festa quando percebi que ele estava me rante toda a noite.” em cima de mim, com o meu filho deitado do
desrespeitando, dando em cima de outras mu- meu lado. Fiquei maluca, fora de mim. Cravei
lheres na minha frente. Falei isso pra ele, mas Mais violência minha unha na bochecha dele até sair sangue.
ele não respondeu nada. Assim que chegamos Ana não reagia. Entrou em depressão, lar- Ele não teve reação nenhuma, só pedia para eu
em casa, ele se transformou. Trancou a porta gou o emprego, parou de tomar banho e che- parar de fazer aquilo em nome do nosso filho
do quarto e me deu um soco na cara. Me fez gou a pesar 38 quilos. Só saía de casa às segun- – argumento que eu sempre usava quando ele
ilustração ricardo reis/www.reisricardo.com
deitar de lado no chão, sem roupa, e disse que das-feiras, para levar o filho na fonoaudióloga. me batia. Enquanto isso, eu enchia ele de soco,
se eu me mexesse ia me esfaquear. Fiquei as- Nunca buscou ajuda, até o dia da inauguração de mão fechada mesmo. Mordia com tanta for-
sim das 6 da manhã até as 7 da noite”, recorda de uma Casa de Referência em sua rua. No en- ça, que tirava os pedaços de carne da boca. Só
Ana. A alegação que D. dava para bater na es- tanto, mesmo sabendo dos seus direitos, Ana parei quando meu filho acordou chorando e
posa era que Ana não era mais virgem quan- não quis fazer boletim de ocorrência. viu o pai todo ensanguentado. Foi ali que eu
do começaram o relacionamento. Só depois da terceira fuga de D. da peniten- vi que não podia mais continuar naquela vida,
Também foi nessa época que D. ficou de- ciária, Ana começou a mudar de opinião. Mes- dentro daquela casa. Quando amanheceu, o D.
sempregado e entrou para a vida do crime. mo sem ter mais nenhum vínculo afetivo com saiu, eu peguei algumas peças de roupa, filho,
Não demorou muito para que fosse preso. No o marido, ela aceitou a permanência dele na cachorro, e fui direto pra Casa de Referência.
feriado de sete de setembro, Ana estava em casa até que arrumasse um lugar para ficar. De lá, fui levada pra um abrigo.”
Quando li uma notícia publicada no México por Mark Stevenson e Em tempos de tanta insegurança na saúde pública, quando uma
David Koop, transmitida pela AP, vi que nela não havia intenção algu- epidemia causa pânico global, revela-se com clareza a fragilidade
ma de me dar razão, quando mais de uma vez reiterou que eu tinha acu- das nossas sociedades diante de problemas dessa ordem. Nunca
sado o México de ocultar a epidemia até depois da visita de Obama. como nesses momentos ressalta a diferença entre sociedades marca-
Que diz a notícia textualmente? das por sistemas de saúde pública frágeis, com um predomínio das
“A visita de Obama, em 16 de abril, aconteceu uma semana antes empresas de saúde privada, e aquelas fundadas na saúde publica.
que os funcionários da saúde anunciassem que a influenza suína se es- Conto uma experiência muito distinta, vivida em Cuba, que
tava propalando, o que levou ao eventual fechamento em massa de lo- demonstra a diferença de atuação de uma sociedade fundada na
cais de trabalho, que praticamente paralisou muitas partes do país. saúde pública. Houve uma epidemia de conjuntivite hemorrágica.
“Uma pesquisa publicada em maio na revista Science calculava Parecia estranho, talvez o vírus tivesse sido inoculado pelos EUA,
que, em 23 de abril, data em que foi anunciada a epidemia, pos- o que já tinha acontecido muitas vezes.
sivelmente o México já tivesse 23 mil casos de influenza suína. A A ação do governo não se fez esperar: imediatamente foi proi-
enquete considera que a influenza suína causa a morte de entre bida a venda de colírio nas farmácias, obrigando a todos se dirigi-
0,4% e 1,4% de suas vítimas. rem aos centros de saúde, que existem em todos os bairros, com
“A pesquisa publicada pela Science sugere a existência de muitos excelente atendimento gratuito. Uma vez constatados sintomas da
mais casos que os confirmados nos laboratórios, entre seis mil e 32 mil doença, imediatamente se decidiu por licença de uma semana do
no México, desde 23 de abril. A influenza se alastrou desde essa data trabalho – possível, por ser uma economia socializada. Como resul-
por todo o mundo e, segundo o estudo, parece ser muito mais contagio- tado, a epidemia foi controlada e terminou rapidamente.
sa que a influenza comum que se apresenta em cada temporada. Tudo isso foi possível porque se trata de uma economia socializada,
“Os cientistas também compararam o DNA dos vírus em 23 ca- de uma sociedade não fundada no lucro, mas no bem-estar das pessoas.
sos confirmados e fizeram a estimativa de que em 12 de janeiro Uma sociedade que tem melhores índices de saúde do que os EUA, tanto
devem ter aparecido os primeiros casos, provavelmente contagia- de expectativa de vida ao nascer, como de mortalidade infantil.
dos de pessoa a pessoa. Vê-se a diferença, por exemplo, com o México, em que foram suspen-
“Os cientistas indicaram que, ao que parece, a influenza H1N1 sas missas, aulas, jogos de futebol, mas em que os trabalhadores conti-
de 2009 será tão severa quanto a de 1957, contudo, menos que a nuaram a estar sujeitos a pegar a gripe suína, porque não foi suspenso
mortal de 1918. o trabalho. Em que a pressão dos donos de bares e restaurantes para
“No entanto, seis dos 31 Estados mexicanos adiaram mais outra se- não diminuir seus lucros foi enorme, não importando se a convivência
mana a reabertura das escolas por causa do aumento dos casos de in- pública deixaria os fregueses passíveis de pegar a gripe.
fluenza em nível local e um sétimo Estado a adiou mais um dia, isto é, Diante disso, é mais absurda ainda a resistência de colegiados mé-
até a terça-feira. O Departamento de Educação anunciou que acrescen- dicos no Brasil para que o nosso país reconheça os diplomas cubanos e
tará sete dias ao ano letivo para recuperar o tempo perdido. possa dispor já de três gerações de médicos formados na melhor saúde
“Enquanto os funcionários elogiam os sistemas de educação e pública do mundo. As primeiras gerações de médicos pobres no Brasil
de saúde pela sua resposta à crise, constata-se que o já sobrecar- e em toda a América Latina se formaram nas Escolas Latinoamericanas
regado sistema de saúde do México começa a dar sinais de estar de Medicina, em Havana e na Venezuela, e não no Brasil.
sob grande pressão.
“‘O governo nos pediu ajuda para combater a epidemia da in-
sugestões de leitura
fluenza, agora nós pedimos ao governo que faça justiça’, disse a en-
fermeira Mariana Cortés, uma das organizadoras do protesto.” A REVOLUÇÃO VENEZUELANA
Tantos esforços que fiz para demonstrar que, desde o final de Gilberto Maringoni
março, já estavam aparecendo sintomas, cinco semanas antes do Edunesp
anúncio oficial da epidemia! A revista Science expressa sua opi- MARX: INTÉRPRETE DA CONTEMPORANEIDADE
José Carlos Ruy, Sergio Lessa, Antonio Carlos Mazzeo e outros
nião de que, possivelmente, entre janeiro e março de 2009, apare-
Quarteto Editorial
ceu a doença no México.
Não fui eu quem escreveu essa notícia nem escrevi o artigo da INTRODUÇÃO AO TEATRO DIALÉTICO
Sergio de Carvalho (org.)
Science. Como o que afirma equivale a mais de dez vezes o número de
Editora Expressão Popular
doentes que eu disse, e está avaliado por uma das revistas científicas
A CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL
mais prestigiosas do mundo, pergunto-me se o presidente e os líderes Istvan Meszáros
do seu partido já visitaram o embaixador dos Estados Unidos no Méxi- Boitempo Editorial
co e o ameaçaram de romper relações diplomáticas com esse país.
Este mês vamos tentar pôr em dia a pensamento de Karl Polanyi, pedidos a alta-
estante. Para quem gosta de artes plásti- dena@altadena.com.br. Souza transpõe para
cas, um lançamento oportuno é Bonfan- os tempos de agora as constatações do autor
ti – através do espelho, um álbum de um húngaro do clássico A grande transformação,
artista expressionista contemporâneo que descreveu como o capitalismo corroeu
que, segundo a patrocinadora da edi- periodicamente as próprias bases da sobre-
ção, a Eletrobrás, ilumina “um país de vivência da sociedade desde o século 19 até a
várias cores e de povo tão diverso que Segunda Guerra Mundial. Senão a instaura-
poderia ser muitos”, o brasileiro. ção do socialismo, torna-se de novo pelo me-
Para quem se interessa pela his- nos necessária a concretização de “diques de
tória recente desse mesmo povo contenção” ao capitalismo, tal como foi feito
brasileiro e pelas irracionalidades pela instauração de controles públicos do se-
do capitalismo, é útil examinar Al- tor financeiro e estatização de serviços como saúde, educação e trans-
canorte, da farsa às cinzas, de Cláu- porte, que se seguiram à Segunda Guerra, em grande parte por influ-
dio Guerra, edição do Sebo Verme- ência do livro de Polanyi.
lho de Natal, sebovermelho@yahoo.com.br. Narra a história Que os regimes comunistas foram repressivos contra os dissiden-
de “patifarias” da construção, inacabada após mais de três décadas, tes não é novidade. Mas o teólogo Miroslav Volf, radicado nos EUA,
da Fábrica de Barrilha da Álcalis do Rio Grande do Norte S/A no ist- conta, em “O fim da memória – interrompendo o ciclo destrutivo das
mo de Macau, uma “história de dumping”, de “ataque à nossa so- lembranças dolorosas”, publicado pela Mundocristão, como perdoou
berania” e de “irresponsabilidade com o dinheiro do povo, aqui con- seus interrogadores na Iugoslávia natal, onde era suspeito de espio-
cretizada com o abandono da fábrica, o engodo da privatização e a nagem por ser casado com uma americana.
‘doação’ para os operários quando só restavam cinzas”. O desperdí- Igualmente sobre religião, a Revista 18, editada pelo Centro de Cul-
cio, segundo Guerra, foi de R$ 500 milhões. tura Judaica de São Paulo, revista@culturajudaica.org.br, tem no nú-
E para quem se interessa pela história do Brasil Colônia é um mero 27 como reportagem de capa Judaísmo em Portugal, que nos
prato cheio o livro Andanças pelo Brasil Colonial – Catálogo comentado revela como, tendo os judeus não-convertidos ao cristianismo sido ex-
(1503-1808), de Jean Marcel Carvalho França e Ronald Ruminelli, pulsos da Terrinha na passagem do século 15 para o século 16, sobre-
editado pela Unesp. A obra apresenta uma lista de relatos escritos viveram lá vestígios do judaísmo, hoje de novo florescente em Lisboa.
por viajantes que estiveram no Brasil, com comentários sobre cada E para quem está interessado no bolivarianismo, temos, pela
um dos textos, desde o francês Binot Paulmier de Gonneville, de Unesp, A Revolução venezuelana, de Gilberto Maringoni, dentro da Co-
1503 a 1505, até os britânicos Thomas O’Neil e Sidney Smith, em leção Revoluções do Século 20, dirigida pela conceituada historiadora
1808. Uma obra preciosa. Emília Viotti da Costa. A apresentação: “Frequentemente caricatura-
Também da Unesp e da Brazilian Busi- da como perigoso resultado de exotismos personalistas do presidente
ness School é o trabalho Abolicionistas bra- Hugo Chávez, a revolução venezuelana – ‘revolução em andamento’ –
sileiros e ingleses – A coligação entre Jo- é a expressão de um passado rico, complexo e tumultuoso”.
aquim Nabuco e a British and Foreign Finalmente, para quem gosta de ficção (sur)realista, um romance
Anti-Slavery Society (1880-1903)”, em que original: Tempo seco, da Geração Editorial, em que a jornalista Clara
o pesquisador Antonio Penalves defende, Arreguy romanceou histórias que ouviu da boca de taxistas de Bra-
com muita documentação, a tese de que o sília e do cerrado. No pano de fundo das conversas, a reeleição de
abolicionismo de Nabuco não foi tão desin- Lula: “Política, amor, violência – memórias do passado e do que está
teressado assim, pois sua ação estava es- por vir, ainda a ser inventado. Entre uma corrida e outra no táxi, en-
treitamente ligada a interesses britânicos. contros e desencontros entre personagens que existem ou que sim-
Já para entender como o endeusamento plesmente foram sonhados”. Vale a pena conferir.
do mercado leva periodicamente à barbárie
da sociedade, como na atual crise, convém Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O
ler, de Ailton Benedito de Souza, forma- Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amare-
do em letras e em engenharia civil, A so- la, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista,
ciedade no mercado – Ensaios em torno do rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.