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ano XIII número 147 junho 2009

R$ 9,90

SERVIÇOS PRIVADOS X CIDADÃOS

TRÁFICO DE
MULHERES
MADE IN BRAZIL
OBAMA
MUDANÇA OU
MAIS DO MESMO?

WAGNER MOURA
“O CINEASTA A REFORMA
AGRÁRIA JÁ ERA
QUER ENTENDER PRIORIDADE FEDERAL

QUE PAÍS
É O AGRONEGÓCIO

É ESTE” COMUNICAÇÃO
POPULAR
NO RIO DE JANEIRO

GUTO LACAZ MARILENE FELINTO GLAUCO MATTOSO GEORGES BOURDOUKAN JOSÉ ARBEX JR. GILBERTO VASCONCELLOS
MARCOS BAGNO FERRÉZ CAROLINA ROSSETTI JOÃO PEDRO STEDILE RENATO POMPEU MARCELO SALLES EDUARDO
SUPLICY ANA MIRANDA HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA CESAR CARDOSO TATIANA MERLINO ULISSES TAVARES GUILHERME
SCALZILLI JESUS CARLOS LEANDRO UCHOAS LUANA SCHABIB FREI BETTO BRUNA BUZZO CAMILA MARTINS CAROLINA
ROSSETTI FELIPE LARSEN GERSHON KNISPEL MC LEONARDO JOEL RUFINO FIDEL CASTRO EMIR SADER CLAUDIUS
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Banco da cultura
Central de Atendimento BB 4004 0001 ou 0800 729 0001
SAC 0800 729 0722 - Ouvidoria BB 0800 729 5678 - Deficiente Auditivo ou de Fala 0800 729 0088 - ou conecte bb.com.br
Faz diferença quando o
seu banco oferece uma
programação cultural que
emociona e surpreende você.
Investir na cultura brasileira e no fácil acesso a
ela sempre foi uma das maiores preocupações
do Banco do Brasil. E os últimos 20 anos
foram ainda mais importantes nesse sentido.
Desde a inauguração dos Centros Culturais
Banco do Brasil, milhões de pessoas tiveram
a oportunidade de vivenciar a arte nas suas
mais diversas manifestações.

Banco do Brasil.
Faz diferença ter um banco todo seu.

bb.com.br/cultura
CAROS AMIGOS ANO XIII 147 junhO 2009

As guerras das mulheres


Uma coincidência editorial reúne nesta edição da Caros Amigos
04 Guto Lacaz.
três reportagens que expressam as péssimas condições de vida das 06 Caros Leitores.
mulheres na sociedade brasileira. Uma delas revela dados chocantes
sobre o tráfico de mulheres do Brasil para inúmeros países, especial- 07 Marilene Felinto exalta os motoqueiros na luta de classes sobre rodas.
mente para a Europa, com o objetivo de transformá-las em prosti- 08 Glauco Mattoso Porca Miséria.
tutas. Evidentemente existe também o tráfico de trabalhadores ho-
mens para vários lugares, mas os alvos e as vítimas principais desse Georges Bourdoukan compara a democracia libanesa com a brasileira.
crime hediondo são mesmo as mulheres.
Outra reportagem mostra o funcionamento das casas-abrigo
09 José Arbex Jr. lembra os ensinamentos e as lutas de Guilhermo Lora.
mantidas por ONGs e pelo Estado, espaços reservados para mulhe- 10 Gilberto Felisberto Vasconcellos bate duro nos presidentes Lula e Obama.
res vítimas da violência doméstica. Durante muito tempo a socieda-
de procurou esconder esse problema e demorou em definir políticas Marcos Bagno Falar Brasileiro.
públicas ao necessário esquema de proteção. Para escapar da violên- 11 Ferréz sai da prisão e fala das mudanças que encontrou no mundo.
cia de maridos e companheiros, as mulheres precisam juntar cora-
gem para mudar de vida. Muitas estão seguindo esse caminho. 12 Carolina Rossetti Degradação e violência no tráfico de mulheres.
A terceira reportagem procura escancarar o círculo vicioso de um
sistema montado para enganar cidadãos e consumidores: são os ser-
16 Renato Pompeu e suas memórias de um jornalista não investigativo.
viços de call center, telemarketing e de atendimento dos clientes de João Pedro Stedile defende a campanha “o petróleo tem que ser nosso”.
grandes empresas de telefonia, bancos, cartões de crédito e de saú-
de privada. Elas contratam empresas terceirizadas que funcionam 17 Marcelo Salles O legado revolucionário do teatrólogo Augusto Boal.
como senzalas do mundo neoliberal eletrônico, com métodos de tra- 18 Eduardo Suplicy rende homenagem aos defensores da floresta amazônica.
balho próximos da escravidão. Mais uma vez as mulheres trabalha-
doras formam o grande exército da super exploração. Ana Miranda fala das boas recordações de Raduan.
Essa é uma guerra não apenas das mulheres, mas de todos nós:
superar as situações de violência e degradação humana.
19 Hamilton Octavio de Souza Entrelinhas.
A Caros Amigos apresenta também entrevistas com o ator Wag- Cesar Cardoso defende o uso generalizado das pesquisas de opinião.
ner Moura e com o dirigente do MST no Pará, Charles Trocate; repor-
tagens sobre os dilemas do presidente dos Estados Unidos, Barack 20 Entrevista com Charles Trocate O governo abandonou a reforma agrária.
Obama; o festival cultural de Corumbá (MT); os cursos de comuni- 23 Ulisses Tavares analisa a arte da sedução como mera habilidade de digitar.
cação popular no Rio de Janeiro. Registramos a nossa homenagem
à memória do caro amigo Augusto Boal – a quem devemos todas as Guilherme Scalzilli denuncia a tendência mundial de controle da internet.
lições do Teatro do Oprimido. Finalmente queremos convidar os lei-
tores para uma visita ao novo sítio na internet – www.carosamigos.
24 Ensaio Fotográfico Jesus Carlos
com.br – que está sendo construído para se tornar um espaço de in- 26 Entrevista com Wagner Moura “O cineasta quer entender que país é este”
teração cotidiana e de debates.
Boa leitura. foto de capa Angelo Cuissi
30 Leandro Uchoas Comunicação popular empolga jovens do Rio de Janeiro.
32 Luana Schabib Festival cultural da América do Sul agita Corumbá (MT).
33 Frei Betto fala sobre as contradições e as perspectivas do socialismo.
o ator Wagner Moura em entrevista
à equipe da caros amigos, no rio de janeiro

34 Reportagem Os serviços de telemarketing e call center enrolam os cidadãos.


36 Gershon Knispel lembra o orgulho e a honra de árabes e judeus.
37 MC Leonardo critica a construção de muros nas favelas do Rio.
Joel Rufino Amigos de Papel.

38 Camila Martins Mulheres procuram as casas-abrigo para mudar de vida.


foto Angelo Cuissi
40 Tatiana Merlino O presidente Barack Obama ainda não mostrou a que veio.
43 Fidel Castro questiona a versão da revista Science sobre a gripe influenza.
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Emir Sader mostra a diferença da saúde pública na luta contra epidemias.

EDITORA CASA AMARELA


­ evistas • Livros • Serviços Editoriais
R
44 Renato Pompeu, Idéias de Botequim.
46 Claudius
fundador: Sérgio de Souza (1934-2008)
Diretor Geral: Wagner Nabuco de Araújo

EDITOR: hamilton octavio de souza EDITORa adjunta: Tatiana Merlino EDITORes ESPECIAis: José Arbex Jr e Renato Pompeu editora DE ARTE: Lucia Tavares assistente DE ARTE: Henrique Koblitz Essinger editor de FOTOGRAFIA: Walter Firmo REPÓRTER
especial: Marcos Zibordi REPÓRTERes: Camila Martins, Felipe Larsen, Fernando Lavieri, Luana Schabib ESTAGIÁRIOS: Bruna Buzzo e Carolina Rossetti CORRESPONDENTES: Marcelo Salles (Rio de Janeiro), Bosco Martins (Mato Grosso do Sul), Maurício Macedo
(Rio Grande do Sul) e Anelise Sanchez (Roma) revisora: Goreti Queirós SECRETÁRIA Da REDAÇÃO: Simone Alves DIRETOR DE MARKETING: André Herrmann PUBLICIDADE: Melissa Rigo CIRCULAÇÃO: Pedro Nabuco de Araújo Relações Institucionais:
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PUBLICIDADE: BRASÍLIA: Joaquim Barroncas (61) 9972-0741.


JORNALISTA RESPONSÁVEL: hamilton octavio de souza (MTB 11.242)
diretor geral: wagner nabuco de araújo

CAROS AMIGOS, ano XIIi, nº 147, é uma publicação mensal da Editora Casa Amarela Ltda. Registro nº 7372, no 8º Cartório de Registro de Títulos e Documentos da Comarca de São Paulo, de acordo com a Lei de Imprensa.
Distribuída com exclusividade no Brasil pela DINAP S/A - Distribuidora Nacional de Publicações, São Paulo. Impressão: Bangraf

Redação e administração: rua Paris, 856, CEP 01257-040, São Paulo, SP


caros leitores

Maria Rita Kehl e Brizola Neto Monsanto prazerosas de folhear; o tamanho, mais prá-

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Venho por este e-mail parabenizar a incrí- Perfeita a matéria do Guilherme Saldanha tico para ler, inclusive para carregar; o con-
vel edição nº 146 do mês de maio de 2009, sobre a Monsanto. É a mais pura realidade. teúdo, pelos textos terem ficado mais curtos
que a meu ver foi o ápice, até o momento, de Posso dizer porque passei por essa fase de e  diretos, ganhou em densidade. Com ex-
um trabalho de excelência. A edição conta transição do convencional para o transgê- ceção do texto do Georges Bourdokan e da
com entrevistas magníficas como a de Ma- nico acompanhando plantações de soja da opinião da Conceição Tavares de que Cha-
ria Rita Kehl e Brizola Neto, incrível repor- família, hoje em outra atividade, mas ainda vez é “uma espécie de padre Cícero moder-
tagem sobre o Judiciário brasileiro e a de percebo o sério problema para nosso futuro no” – lamentável, mas sensacional –, o úl-
maior sensibilidade pela proximidade com Antonio Montoro Neto timo número saiu excelente. Longa vida à
minha vida cotidiana, a matéria de Marcelo Caros Amigos
Salles que conclui o trabalho feito com dedi- Ditabranda Paulo Jonas de Lima Piva, São Paulo/SP
cação. É inevitável notar que a Caros Ami- Excelente a reportagem sobre o editorial pu-
gos está com a marca registrada formada. blicado no jornal Folha de S.Paulo. Absurda Olá meus caros amigos, sou um leitor
Aguardo ansiosamente pela revista todo mês é a manipulação dos fatos pela grande mídia! da revista. Agradeço a vocês que fazem a
e me surpreendo principalmente com as en- Adoro a revista. Parabéns! Caros Amigos, porque ao descobrir a re-
trevistas. Não posso omitir o fato que tam- Marilia Passini vista, ri  muito de contentamento, pois vi
bém não gostei da nova folha, mais brilhan- que nem tudo é Veja e nem todo jornalis-
te, mas ainda sim, fator circundante ao que Linha editorial ta está impregnado de mentira.Com vocês,
interessa. Muito obrigado por garantir este Sou leitor  e comprador da revista nas voltei a acreditar na verdadeira democrati-
trabalho de qualidade mensalmente. bancas desde 2002. Nesses quase sete anos zação da  informação. Depois de ler minha
Rafael Albuquerque de leitura de artigos, entrevistas, e repor- Caros Amigos todo mês eu dou um prejuízo
  tagens  sobre o nosso país, tive o desprazer a vocês, pois empresto ao maior número de
Rádio Muda de ler esta edição de março. Vocês da revis- pessoas  possível.  
Gostaria de dizer que sou assinante da re- ta deviam disfarçar um pouco. A linha edi- Ruy da Costa
vista, não por concordar com todos os pon- torial está tendenciosa demais – pró Dilma
tos e com todos os colunistas, mas sim por Rousseff 2010. Com a entrevista da profes- Marilene Felinto
reconhecer que ainda existe ética jornalís- sora Conceição e artigos como os de Marile- Sou deficiente visual total, formado em
tica e uma proposta de pluralidade de posi- ne Felinto, percebi que o negócio desandou. Licenciatura Plena em Matemática pela Uni-
ções políticas dentro dela. E isso é uma flor Não deve ser fácil manter uma revista como versidade de São Paulo. Sou um dos que não
no deserto nos dias de hoje. Escrevo de den- sempre em alto nível sem recursos, com pou- existem, como mencionou em seu texto. Gra-
tro da Unicamp. Fiquei muito indignada com ca tiragem, mas pergunto: do que vocês tem ças à cota de reserva de 5% das aulas para os
a Polícia Federal ter vindo aqui na cara de medo? De perder a publicidade de empresas professores deficientes, não estou precisan-
pau, no meio das férias, precisamente antes públicas e de economia mista do governo fe- do perambular tanto, e posso criar vínculo
do Carnaval, no dia 19 de fevereiro, às 5h30, deral, que permeiam as reportagens dessa com a escola e a comunidade. Sobre a tal pro-
arrombar a sala da Rádio Muda e roubar os revista? Ou vocês voltam a ser como eram, va, estou na lista dos que tiraram zero. Eu
equipamentos (o próprio processo de fecha- ou estão fadados a desaparecer e a ceder o não entreguei a prova em branco, não. Eles
mento da rádio foi ilegal dentro dos moldes espaço que conquistaram para revistas que é que não me deram o tempo a mais que a
que a própria lei impõe). E gostei do que li não dizem nada. Apeoesp solicitou, e eu fazia jus a ele, pois,
sobre isso na Caros Amigos, escrito pelo Mc José Roberto Barizon Pires, Londrina /PR durante a prova, tive de deslocar-me de uma
Leonardo. Saiba, caro Mc Leonardo, que a sala para outra; eles não puseram os gráfi-
Rádio Muda  não se calará; o pessoal certa- Caros Amigos cos em Braille. Para finalizar, quero dizer
mente vai reabri-la. Que a nossa indignação Há males que vêm para bem. Fiquem que concordo com sua crítica, porém acho
não seja uma mosca sem asas, que nunca ul- tranquilos. O “emagrecimento da revista” que o descaso com a educação não se res-
trapassa a janela de nossas casas. deixou-a muito mais gostosa. As páginas, do tringe ao PSDB.
Isadora Franco Di Gianni ponto de vista do novo material, estão mais Wílton Ferreira, São Paulo/SP

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caros amigos junho 2009


6
Marilene Felinto

Motocicletas
e a luta de classes sobre rodas
As motos rincham feito cavalos, zunindo fretistas. A autoridade explica a medida como em algumas avenidas, uma estupidez chama-
ilustração: gil brito

pelos corredores estreitos entre os carros, sendo para prevenção de acidentes e preser- da “Faixa Cidadã”, uma espécie de faixa pre-
entregues a todos os azares do trânsito, me- vação da vida do motoqueiro. Todo ano mor- ferencial para motocicletas. Só que ninguém
nores, leves, instantâneas como devem ser as rem milhares deles nos centros urbanos. nunca entendeu quem deveria dar a “prefe-
encomendas que conduzem ou vão buscar. A A explicação, porém, não convence. Não rência” a quem e nem de que modo, já que
massa de motoqueiros, os motoboys traba- há coesão social possível, nenhum consen- tanto carros quanto motos usavam a faixa in-
lhadores, os chamados motofretistas, orga- so sobre valores: afinal, o “carrão” Tucson discriminadamente. Não houve campanha de
niza-se mais ou menos autonomamente para (modelo “SUV”, como se diz na propaganda esclarecimento, não se via uma placa que de-
ganhar alguma força nisto que seria um con- da TV, sem se decifrar a sigla, como se todo finisse por que a tal faixa era cidadã. A pró-
trato social: e ganham, são temidos, meio ho- mundo soubesse que a droga do “SUV” sig- pria categoria dos motoqueiros reprovou a
mens, meio coisas aparamentadas com seus nifica, em inglês, “sport utility vehicle”, ou idéia sem pé nem cabeça.
capacetes que podem esconder tanto um ope- seja, “veículo utilitário esportivo”; e como se Ainda tenho na minha carteira de moto-
rário quanto um bandido. A categoria, origi- fosse natural ter dinheiro para possuir um rista uma letra A, que me qualifica também
nária assim do que as classes privilegiadas trambolho desses), afinal, repetindo, o “car- para conduzir motocicletas, embora não di-
consideram a estrebaria da pirâmide social, rão” Tucson ocupa o lugar de quatro moto- rija mais. É que, há 30 anos, no nosso tempo
é vista como maldita também porque costu- cicletas na faixa de rolamento – desigualdade de faculdade, foi um tal de todo mundo com-
ra no trânsito, faz piruetas na via e ameaças total na repartição das pistas. É claro que a prar moto na turma com quem eu andava. No
(quando se diz ameaçada) – e é especialmen- única solução seria criar faixas exclusivas para meu caso, porque não tinha mesmo dinheiro
te hostilizada pela burguesia ávida por in- as motocicletas (para não dizer que seria extin- para comprar carro. Com o tempo, até mes-
ventar leis que a domestique. guir os carrões de luxo). Se isto é viável ou in- mo o pobre do jegue no sertão do Nordeste
Mas como não há contrato social possível, viável, principalmente numa cidade como São foi sendo substituído pela moto. As novas ge-
não haverá lei burra passível de surtir efeito Paulo, que tem a maior frota de motos do país, rações do interior rural só andam de motoci-
sobre esta vanguarda proletária de motoquei- é questão de autoridade econômica e política, cleta. Nos últimos quatro anos, o número de
ros que seguem operando uma revolução per- é questão de luta de classes. E somente este carros aumentou 35% aqui no país, enquan-
manente no trânsito. A idéia (o Projeto de Lei exército sobre duas rodas, no seu estilo de to que o de motos chegou a 82%. O carro
2650/03, aprovado em abril último) de proibir associação tribal, de espírito comunitário, mais barato do mundo, muito pequeno e in-
que as motocicletas trafeguem nos corredo- pode ousar vencer mais uma batalha nessa diano, é um sucesso de vendas. Quem sabe
res entre veículos é tão absurda quanto inútil: guerra pela ordem pública ou pela convivên- não está próximo o dia em que o mundo será
eliminaria a função do veículo ágil, e compro- cia ordenada. dos que menos têm – porque já não caberá
meteria drasticamente a ocupação dos moto- Em São Paulo, criou-se há uns dois anos, muito mais que isso nele.

Novo sítio: www.carosamigos.com.br junho 2009 caros amigos


7
Georges Bourdoukan

porca Glauco Mattoso

miséria! Churchill e as eleições


no Líbano
SONETO PARA UM DIVAN REFORÇADO [1876]

A gorda um analysta, até, procura,


pois anda azucrinada. Saber quer
si assim tão problematica a gordura
seria... E seja la o que Zeus quizer!

Explica o therapeuta: tudo é pura


encucação, ao homem e à mulher.
Embora o caso nunca tenha cura, Winston Churchill disse certa vez que a democracia é o melhor
ajuda um tractamento no que der... sistema que o dinheiro pode comprar. Fiquei intrigado com essa
declaração, ainda mais dita por quem. É muita maldade, pensei co-
Desconfiada, a gorda inda pergunta migo. Pois é sabido que, pelo menos no Ocidente, jamais se com-
si, na magreza, ha tanta coisa juncta prou ou vendeu voto. Aqui mesmo, nesta maltratada terra de San-
que em nada a obesidade o drama augmente... ta Cruz, alguém consegue imaginar candidato ou eleitor fazendo
comedeira?
Responde o cara que, no magro, o drama Enquanto refletia sobre afirmação tão absurda, uma voz ao te-
é coisa mais de cuca que de cama, lefone pergunta se gostaria de ir ao Líbano para votar. Passagem
de ida e volta por conta do candidato.
mas menos se convence a paciente...
Isso pode? Perguntei. Candidato pagar passagem de ida e vol-
ta ao Líbano apenas para votar?
E você teria outras regalias, respondeu a voz ao telefone.
Fallava eu das innumeras vantagens da orthographia ety- E prosseguiu: Se você pedir aos seus parentes (que sobrevive-
mologica. Uma dellas é a distincção entre vocabulos de diffe- ram ao genocídio israelense, completo eu) para votarem no nosso
rentes origens, ainda que apparentemente eguaes. Pelo antigo candidato, eles serão substancialmente recompensados.
systema, “eschatologia” (tractando-se das finalidades philoso- O quê?
phicas) não se confunde com “escatologia” (tractando-se de ex- “Sim, eles podem receber entre 800 e 1.500 dólares por
crementos). Ainda nesse terreno da fecalidade, os “annaes” do voto.”
Congresso não seriam papeis tão vulgares a ponto de servirem Aí sou informado que qualquer pessoa de origem libanesa, seja
apenas para fins “anaes”, em bom portuguez, para limpar o cu. ela brasileira ou argentina, australiana ou senegalesa, enfim, de
O que se nota é que, nos tempos actuaes, a exemplo da gra- qualquer região do planeta, está recebendo essa mesma oferta.
phia, tudo vae se mixturando, invertendo e pervertendo, fun- São dezenas de partidos disputando 128 vagas no Majlis al-
dindo e confundindo. Não faz muito tempo, aquella mulher que Nuwab no dia 7 de junho. O voto não é obrigatório e o candidato
ganhasse um concurso de miss era cheia de curvas, como um precisa ter mais de 25 anos.
violão. Agora uma modelo tem que ser practicamente formada O Pacto Nacional libanês, acordado na cidade saudita de Taif,
por rectas, mais fina que a batuta do maestro. Sem a roupa que decidiu que a distribuição dos lugares no Parlamento será da se-
exhibem nas passarelas, taes moças são só pelle e osso, egua- guinte maneira: os cristãos serão representados por 64 deputa-
es às sobreviventes dos campos de concentração. A imagem do dos, assim distribuídos: maronitas, 34; ortodoxos gregos, 14; ca-
nazismo me traz à mente o character dictatorial dessa estheti- tólicos gregos, 8; ortodoxos armênios, 5; católicos armênios, 1;
ca da magreza. O regimen totalitario se confunde, litteralmen- protestantes, 1; outros cristãos, 1.
te, com o regimen culinario. Adepto que sou do torresminho, Os muçulmanos também serão representados por 64 deputa-
do churrasco e do puddim de caramello, fico horrorizado ao sa- dos: sunitas, 27; xiitas, 27; druzos, 8; alauítas, 2.
ber que as coitadas se privam até de pão e agua. É coisa de louco, não? Mas é assim que a coisa funciona na ter-
Emquanto o Ferréz denuncia a desegualdade social que ex- ra dos cedros.
clue uma favellada do accesso aos patês e pavês, algumas patri- Esclareça-se que esse exagerado número de partidos está mais
cinhas bemnascidas se privam voluntariamente daquillo que seu para o virtual do que para o real. No fundo, no fundo, serão ape-
dinheiro pode comprar... Este mundo é mesmo cheio de ironia. nas três famílias a controlarem o país, vença quem vencer. Isto
Não posso me ver no espelho, mas, quando apalpo meu “pneu- acontece desde a independência.
zão”, dou graças a Zeus (ou Juppiter) por ainda poder comer de Democracia no Líbano é como liberdade de imprensa no Brasil,
tudo, e a Dionysio (ou Baccho) por poder beber... onde também apenas três famílias controlam a mídia.
Ou alguém duvida?
Glauco Mattoso é poeta, letrista e ensaista.
htt://sites.uol.com.br/glaucomattoso Georges Bourdoukan é jornalista e escritor.

caros amigos junho 2009


8
José Arbex Jr.

Guillermo Lora (1921 – 2009)


Réquiem para um revolucionário
O nacionalismo burguês, por mais radicali- dades do país foram tingidas pelo banho de san- agora preocupado pelo impacto da revolução
zado que se possa apresentar em determinado gue. Estenssoro assumiu o poder, e tratou de cubana (1959), mobilizou o Exército em opera-
momento histórico, jamais será capaz de con- iniciar o processo de reconstrução do exército e ções de assistencialismo aos setores mais pau-
duzir até o fim o processo de ruptura com o im- dos órgãos estatais de repressão. Em oposição a perizados da população, com a realização de
perialismo, afirmava Guillermo Lora, em 1946, isso, os mineiros, a partir da iniciativa dos mili- obras de infraestrutura. Repressão e assisten-
nas Teses de Pulacayo. Somente o proletaria- tantes trotskistas liderados por Lora, fundaram cialismo, portanto, caracterizam esse período.
do organizado, confiante apenas em suas pró- a Central Obrera Boliviana (COB), que passou Como resultado, criaram-se relações de
prias forças, poderá realizar a reforma agrária a exigir a total dissolução do Exército regular clientelismo entre os movimentos de campone-
e todas as demais reivindicações postas pelo e a formação de um Exército popular, que seria ses e os militares, e o governo do MNR passou a
movimento operário e camponês, assim abrin- formado pelas milícias de trabalhadores. ser sustentado, basicamente, pela ação do Exér-
do as condições para a revolução socialista; o Em agosto de 1952, sob pressão da COB, o cito. Em 1964, refletindo a novo quadro, Es-
resto é uma perigosa ilusão. Suas teses iriam governo viu-se obrigado a nacionalizar o es- tenssoro é novamente eleito à Presidência, ten-
exercer uma grande influência sobre o movi- tanho (já praticamente esgotado), assim como do como vice o general René Barrientos. Para
mento revolucionário dos operários mineiros iniciar formalmente a reforma agrária, que já isso, rompeu uma aliança histórica com Juan
da Bolívia, cujo ápice ocorreu em 1952 – 53. se realizava “na marra”, com a multiplicação Lechín, o mais importante líder sindical do país,
Lora, dirigente do Partido Obrero Revolucio- dos movimentos de ocupação dos latifúndios. principal articulador das reformas que tinham
nário (POR), de inspiração trotskista, prota- Criou-se, assim, na Bolívia, uma situação de por objetivo conceder migalhas aos trabalhado-
gonista de um dos momentos mais gloriosos disputa do poder entre, de um lado, a COB e res e à juventude. Esse processo desembocou,
– e, até hoje, praticamente desconhecido – da as organizações autônomas dos trabalhado- em 4 de novembro de 1964, num violento golpe
história da luta de classes na América Latina, res, e de outro o governo formalmente cons- de estado, liderado por Barrientos.
morreu em 17 de maio. Suas cinzas foram en- tituído, presidido por Estenssoro. Nesse qua- Não se trata, aqui, de narrar a história re-
terradas em Siglo XX, em Potosí. dro, a relação entre as milícias e o Exército cente da Bolívia – que prosseguiu, ao longo
O combate político e ideológico movido por – tradicionalmente, uma força sangrenta e do século 20 e até hoje, como sabemos, com
Lora era particularmente árduo, no final dos hostil aos movimentos populares – tornou-se marchas e contramarchas revolucionárias –,
anos 40. Os operários das minas de estanho uma questão fundamental. mas de recuperar o papel exercido pela COB
– de longe, o principal setor da economia bo- Estenssoro, sem forças para reprimir em 1952 e os ensinamentos que podem ser ti-
liviana, então monopolizado por Simón Pa- imediatamente as milícias, propôs uma fór- rados a partir das teses de 1946 e da atividade
tiño, magnata associado aos grandes grupos mula de recomposição do Exército, com o revolucionária de Lora à frente do POR. Suas
transnacionais – e vastos setores do campesi- objetivo de torná-lo “popular”: criou um sis- advertências sobre os limites do nacionalismo
nato, da juventude e da classe média eram for- tema de cotas que abria as portas do Colégio burguês revelaram-se tragicamente exatas: a
temente influenciados pelo discurso naciona- Militar (centro de formação de oficiais) aos partir do momento em que as lideranças dos
lista radicalizado do Movimento Nacionalista operários (30%), camponeses (20%) e o res- trabalhadores abandonaram a perspectiva de
Revolucionário (MNR), liderado por Victor Paz tante 50% aos filhos da classe média. É ób- manter sua organização autônoma, para cair
Estenssoro. Patiño, ícone máximo da explora- vio que a mera mudança da composição so- no conto de fadas do reformismo “democráti-
ção do povo boliviano, pagava a imensa fortu- cial do oficialato não poderia garantir, por co”, estava aberta a via para o desastre.
na de US$ 50 anuais de Imposto de Renda, se- si só, a transformação do Exército em ins- Trata-se, obviamente, de um debate atualís-
gundo revela Eduardo Galeano. O MNR, em trumento da insurreição popular, mas as simo no contexto contemporâneo latino-ame-
contrapartida, parecia encarnar as mais legí- medidas foram suficientes para disseminar ricano, com a multiplicação de governos que
timas aspirações do povo boliviano, com suas novas ilusões na suposta capacidade revolu- articulam discursos nacionalistas dos mais
promessas de nacionalização das minas, re- cionária do nacionalismo burguês. variados matizes, incluindo a sua versão mais
forma agrária e universalização do direito ao O sucessor de Estenssoro, Siles Suazo profunda, como no caso da própria Bolívia de
voto. Mas os limites do nacionalismo seriam (1956 – 1960), paulatinamente, reconduziu Evo Morales, em que a ideia de nação é for-
escancarados pela revolução de 1952. o Exército ao seu antigo papel de “guardião temente ancorada na participação política dos
Entre 9 e 11 de abril daquele ano, uma po- da soberania e dos interesses nacionais”. Em povos originários. Nesse quadro, vai-se o ve-
derosa insurreição de massas derrubou o go- pouco tempo, os militares estariam novamen- lho revolucionário, mas deixa uma obra teóri-
verno de Hugo Ballivian, representante dire- te engajados na repressão aos movimentos de ca e política de grande valor, uma ferramenta
to das empresas que controlavam a exploração massa, às greves dos mineiros e às milícias de preciosa para aqueles que querem entender e
do estanho. Milícias de operários e camponeses trabalhadores ainda em ação. De volta ao po- transformar Nuestra América.
praticamente destruíram as tropas do Exército der (agosto de 1960 – agosto de 1964), Estens-
nacional. As ruas de La Paz e das principais ci- soro, fortemente financiado por Washington, José Arbex Jr. é jornalista.

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9
falar
Gilberto Felisberto Vasconcellos brasileiro Marcos Bagno

Luta de Lula e SE ISSO É FILOSOFIA,


Krassisociales DEUS NOS SACUDA!

Como caracterizar o governo Lula do ponto de vista da classe so- Um amigo me deu a dica: “já leu o que Olgária Mattos escreveu so-
cial? Que interesses de classe o governo Lula expressa? bre o Acordo Ortográfico?” Fui ler, no site Carta Maior (27/4). Fiquei
Que classes sociais são contempladas pelo Estado petista? perplexo. Primeiro, por causa da forma. A renomada professora de fi-
Serve a que dentro do sistema econômico mundial? losofia da USP produziu um texto anfigúrico, de vocabulário tão em-
É possível estabelecer uma clivagem em termos de representação polado que me deu saudades de ler Platão em grego, mais agradável e
dos interesses de classe, entre os governos FHC e Lula? claro. Depois, pelo conteúdo. Embora eu seja favorável ao Acordo Or-
Quem se deu bem? Quem está se dando bem? Quem se deu mal? tográfico, gosto de ouvir os argumentos em contrário, quando são ela-
Quem está na pior? borados com um mínimo de pé e cabeça. Pé e cabeça, porém, é o que
Se política é economia concentrada, então é preciso destrinchar a teia falta ao texto de Olgária, cuja quase obscuridade não consegue escon-
dos interesses econômicos das classes dominantes no governo petista. der as batatadas e abobrinhas que ela plantou ali.
Que setor da burguesia mais usufrui? A exportadora industrial? Vejam só: “A mais recente reforma ortográfica do português no Brasil
A burguesia agroexportadora? subordina a língua às contingências do mercado e à agramaticalidade de
O proletariado das fábricas multinacionais está satisfeito? sua fala oral, rompendo o equilíbrio entre a anomia e a gramatização que
E os sem-terra apoiam a política petista? caracterizam uma língua viva. Expressionista antes da reforma, ‘idéia’
A classe média está sendo contemplada? ou ‘ idêia’, a pronúncia diferenciava o português do Brasil e de Portugal,
A massa marginalizada encontrou o paraíso com Bolsa Família? suscitando o metron de seu estranhamento e de seu parentesco, revela-
Quem vai levar o governo Lula à esquerda? O Espírito Santo? dor do ethos de um povo. Assim, diferentemente de unificar a palavra es-
O governo PT é uma mescla plebeia burguesa de caridade cristã crita, a reforma neutraliza a língua falada, despersonalizando-a.”
para a massa com o reinado do banco e das multinacionais. Igreja, Santa Epistemologia, orai por nós! Falar de “agramaticalidade
banco, empresa multinacional, latifúndio e televisão. da fala oral” (fala oral?! existe uma escrita oral?) é ignorar que toda
Lula quer competir com FHC: quem será o mais amado pelos EUA? a linguística moderna, desde 1916, nega peremptoriamente a ideia
Eu ou você? de que a língua falada é “agramatical”, isto é, não segue regras, é
Um ex-operário pequeno burguês da aristocracia sindical chega caótica, como supunham os primeiros filólogos gregos, três sécu-
à Presidência da República. O Banco governa o lumpemproletariado los antes de Cristo! Nossa filósofa confunde língua com ortografia
com Bolsa Família e Bolsa motoca. (erro primário que os livros didáticos de 1o ano do fundamental
A mídia cai de pau em Chávez, Morales e Rafael. A mídia, ponta de tentam logo extirpar) ao imaginar que a retirada do acento da pa-
lança do capitalismo videofinanceiro, quer armar um bloco (Colôm- lavra “ideia” vai provocar alguma diferença na pronúncia aqui e em
bia e Brasil) para enfrentar o socialismo bolivariano, ou seja, a unida- Portugal. Ridículo! Antes do Acordo já escrevíamos “titia”, embo-
de de todos os países da América Latina. ra os pernambucanos pronunciem “titia” e os cariocas “tchitchia”.
O mundo é um só e está conectado. A história ensina: quando a Isso por acaso alguma vez “neutralizou” a língua falada? Abobrinha
metrópole entra em crise, há impulso na periferia; quando há impul- pura! Achar também que a língua falada sofre de “anomia” é negar
so na metrópole, a periferia dança. um século e meio de estudos da psicologia cognitiva, da linguística,
Não nos deixemos ludibriar pela dicção Bob Dylan de Mister Oba- da biologia, da psicolinguística, da filosofia da linguagem...
ma: o destino dos EUA, como de todo o império, não é o de ser ama- E a batatada final: “Por valorizar na língua seu caráter sumário, cô-
do, mas temido e acatado. modo e elementar [como é?], esta reforma dissolve a dimensão ética da
A maior arqueóloga norte-americana, Betty Megers, tradutora linguagem, da leitura e da literatura [uau!]. Sob a hegemonia da orali-
para o inglês do livro de Darcy Ribeiro, O Processo Civilizatório, di- dade agramatical e anti-literária, as desgramatizações [hein?!] não se-
zia que os Estados Unidos precisavam aprender com a antropologia guem as ‘tendências da língua viva’, mas obscurecem nuances e refina-
das civilizações do mestre brasileiro. mentos na comunicação oral e escrita”. O que é, meu Santo Tomás, o
Os Estados Unidos podem descambar de vez, se não seguirem o “caráter sumário, cômodo e elementar da língua”? Por favor, me diga,
que Darcy Ribeiro preconizou em vários livros. Os Estados Unidos ti- porque nós linguistas temos uma dificuldade tremenda em convencer
nham que voltar à ideia de missão e democratizar o mundo, rompen- os alunos do caráter complexo, perturbador e intrincado das línguas
do com o imperialismo, a subjugação de outros povos, e, assim, reto- humanas! E, por fim, falar da “oralidade agramatical e antiliterária” é
mar o lance democrático dos pais fundadores. traduzir, em termos mal empregados, o senso comum, para o qual só
Obama refere-se insistentemente aos pais fundadores, porque sem a escrita tem “gramática” e só é possível produzir “literatura” por es-
a ideia da missão os Estados Unidos vão entrar em uma crise espiri- crito. Pré-científico até a medula!
tual, talvez a derrocada final. Pobre Platão! Pobre Aristóteles! Pobres estoicos! Pobre Agostinho!
É claro que a referência de Obama aos pais fundadores dos Esta- Pobre Saussure! Pobre Peirce! Pobre Wittgenstein! Pobre Benveniste!
dos Unidos não é a mesma que faz Darcy Ribeiro, porque para Oba- Pobre Lacan! Todo o vosso trabalho foi em vão!
ma inexiste imperialismo norte-americano. E ainda falam mal das opiniões dos jogadores de futebol...

Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor Marcos Bagno é linguista e escritor. www.marcosbagno.com.br

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Ferréz

Liberdade
O sol parece que vai queimar minha retina. difícil de uns anos pra cá. Ando pelas vielas, pelas ruas principais,

ilustração: guz - www.flickr.com/osamurai


Deixei o saco com a camisa, escova de O telefone não atende mais, talvez te- e não acho nenhuma alfaiataria, foi o que
dente, par de chinelos e o velho short em al- nham cortado, sei que ela batalha muito aprendi na cadeia, ser um alfaiate, logo eu
gum lugar perto do lixo. para manter a casa, eu sei tudo isso, mas né? Que nunca me consertei na vida.
Não vou querer nenhuma lembrança des- tenho um nó na garganta. Eu sou um homem livre, mas sem dinhei-
se passado, agora tenho à minha frente mais Chego em casa, finalmente a porta do ro no bolso isso não importa muito, eu sei.
futuro. barraco ainda me é familiar, na viela alguns O apresentador berra que somos ani-
Tenho liberdade para ir aonde quiser, abraços, saudades, demonstrações de sur- mais, não sabem que em muitas cadeias des-
agora finalmente a tenho. presa, ninguém imaginava que eu ia voltar, se país, os animais como eu doam um dia
Na primeira nota fui humilhado, dormi que um dia eu iria voltar para lá. de sua comida por semana pras pessoas que
no boi, mas o cara que fez a brincadeira, Gente que pensou que eu morri, gente precisam ir lá buscar, quem deles doa um
nunca mais vai fazer com ninguém. que pensou que eu fugi, gente que pensou dia da semana de comida pra alguém.
Entrei por causa de um assalto e me for- que eu não era mais gente que nem eles. Eu vejo, todos pedem pra prender as
mei em homicídio, isso que é faculdade. Dentro de alguns dias serei um incômo- crianças, antes a gente sorria pra elas, ago-
Não tenho o dinheiro da condução e re- do, serei um a mais, um cara que serra ci- ra eu vejo as pessoas com medo, segurando
solvo pedir uma carona. garro, que pede um copo de pinga, que vai a bolsa, eu não sou mais vilão, eu não causo
Talvez pelo rosto desgastado, talvez pe- na casa do parceiro que está melhor e pede mais pavor do que um menino de 12.
las roupas velhas, encardidas, o motorista uma pistola pra fazer um trampo. Eu reflito, tô com fome, mas reflito, as
não se comove e me chama de vagabundo. Dentro de alguns dias eu vou ser a porta crianças não sorriem mais na rua, eu preve-
Foi um julgamento quase tão rápido como fechada na cara, a campainha não atendida, jo mais gente portando pistola, colete, car-
o do juiz, que ria da minha cara, ria como se a conversa não continuada, o sussurro – tá ro blindado.
eu não fosse nada, mas eu era, eu ainda era. vendo esse aí? É um bosta, um nada. Tudo mudou, tudo tá mudado, as coisas
O cobrador emenda outro palavrão. Bato no barraco, não tenho chave, não tenho envelheceram, perderam a beleza, as pessoas
Eu, um ex-157, abaixo a cabeça e fico com como entrar, bato e bato com mais força, uma vi- ficaram frias, olhos para baixo, cabeças para
a vergonha e com a liberdade. zinha sai e pergunta o que estou procurando. o chão, um dia eu ouvi alguém dizer um bom
Tudo está mudado, as coisas mudaram mui- Digo que minha esposa, a vizinha abaixa dia para um jornaleiro, quase chorei.
to, não conheço as ruas, não conheço as lojas, a cabeça e fala baixinho que ninguém mora Eu tô com fome, tento ligar de novo, o te-
nem os novos modelos de carros, os padrões de mais ali, que o barraco tá pra vender. lefone não atende, vou dar um rolê no centro,
roupas e cores também mudaram muito. Não acredito e quero ouvir toda a história, aqui na quebrada eu não arrumo nada, não
As músicas... o que mais estranho são as ela não sabe explicar, diz que a mulher saiu posso mexer em nada, se não vou ser cobrado,
músicas. com um menino e com um taxista, que há al- tem lei por aqui agora, é o que me disseram.
Estou pálido, tiro a camisa para pegar sol, gum tempo estavam namorando, um dia che- Eu tô livre, eu tenho minha liberdade,
muitos que passam pela calçada me olham, gou pegou as poucas coisas, deixou a venda vou chegar no centro, talvez eu a perca.
talvez seja a pele quase verde, talvez as tatu- do barraco sob sua responsabilidade e foi-se. Eu fiquei preso? Quem está solto esse
agens adquiridas com os anos de ócio. Num deixou telefone, nem nada? tempo todo?
Tenho que vê-la, tenho que chegar em Nada! Só um número de conta pra depo-
casa e ver minha pequena, faz tanto tempo sitar o dinheiro do barraco. Ferréz é escritor e hoje vive com a esposa e
que parou de me visitar, talvez tenha ficado Abaixo a cabeça, ela agora pesa uma to- uma filha num país chamado periferia.
doente, talvez voltado a estudar, sei que foi nelada.

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Carolina Rossetti
Pesquisadores brasileiros identificam os locais de
aliciamento e as principais rotas para a Europa.

Degradação e violência
no
Tráf ico de
mu lh eres
Dia 11 de julho de 2007. Aeroporto de Gua- Asbrad, demonstrou indignação “com as ‘pu-
rulhos, São Paulo. Uma mulher é encontrada tas’ brasileiras que não são respeitadas, le-
com a cabeça apoiada numa toalha e pés sobre vam porrada e são obrigadas a se ‘foder’ sem
uma cadeira. São sinais de cansaço, depois dos reagir. ‘Desde que cheguei lá, já disse que
quatro dias “morando” na sala de desembarque queria a minha passagem e meu passaporte
do terminal 2, até que um funcionário da Infra- de volta!.’” “A ‘puta’ tem que se respeitar”, di-
ero percebe sua situação e vai ajudá-la. zia, revoltada. “Muitas mulheres saem da mi-
Deportada de Zaragoza, na Espanha, onde nha cidade para a Espanha. Esse homem que
era trabalhadora sexual, Maria* tenta, sem me levou tinha que me trazer de volta. Agora,
sucesso, entrar em contato com os seus fami- para a Espanha, só vou como turista.”
liares. Descendente de mãe índia, nascida em A história de Maria foi registrada pelas as-
uma cidadezinha localizada a 13 horas de bar- sistentes sociais do Posto da Asbrad, como
co de Belém do Pará, Maria estava a milhares parte do programa de apoio às mulheres e
de quilômetros de casa. transexuais vítimas de tráfico, no aeroporto
Convidada para ser trabalhadora sexual na de Guarulhos, maior fronteira aérea do País.
Espanha, ela aceitou. Saiu do Brasil com passa- Fundado em dezembro de 2006, o Posto pro-
porte e passagem paga pelo “empregador”. cura identificar possíveis casos de tráfico,
O funcionário da Infraero encaminhou a dentre os migrantes brasileiros deportados
mulher ao Posto de Atendimento Humaniza- ou não-admitidos, e ajudá-los em sua chega-
do da Associação Brasileira de Defesa da Mu- da ao Brasil.
lher, da Infância e da Juventude (Asbrad), que Mesmo depois da assistência oferecida,
atende brasileiros deportados ou não-admiti- Maria recusou-se a voltar de avião para Be-
dos no Exterior. Sua história foi identificada lém, dizendo preferir “pegar carona com um
como um caso de tráfico para fins de explora- caminhoneiro qualquer”. A Asbrad, por meio
ção sexual. de convênio com uma companhia de ônibus,
Como consta no relatório da Asbrad, Ma- conseguiu uma passagem para Belém, e a
ria aparentava “abstinência de drogas” e es- moça partiu. Consigo, levou mais R$ 70 para
tava “muito fragilizada”. Tinha muito medo e o barco e o lanche, doados pela própria asso-
ilustração sobre imagem hke.../www.subis.blogspot.com

dificuldade de se comunicar, “pois confundia ciação que recebe apoio de uma organização
o português com o espanhol”.  Uma das coisas humanitária holandesa.
que disse foi que “não queria o cárcere”.
Maria morava em Zaragoza, e trabalhava em Fornecedores e receptores
clubes, onde fazia programas. Recentemente, Resultado da situação de vulnerabilida-
havia mudado para um piso, apartamento pro- de social em que vive parte da população, o
curado por clientes que buscam discrição. Brasil é um país predominantemente “forne-
A mulher foi obrigada a “fazer muitas coisas cedor” de pessoas para o tráfico, enquanto
contra a sua vontade”. Seus documentos foram países como Espanha, Holanda, França, Itá-
apreendidos pelos donos dos clubes e, ela não lia são “receptores”.  Apesar disso, no Brasil
podia escolher com quem fazer sexo, pois tinha também entram pessoas para serem explora-
que pagar a dívida da passagem aérea. das no tráfico, vindas principalmente de pa-
Em conversa com uma assistente social da íses latino-americanos com os quais o Brasil

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Rotas dotráficode
mulheres doBrasil
para outros países

faz fronteira, como é o caso de alguns migran- Tráfico de pessoas em pleno século 21”. sadora também aponta para a deficiência da
tes bolivianos, paraguaios e colombianos que A pesquisadora aponta que as brasileiras legislação nacional que da forma em que está
têm sua força de trabalho explorada aqui. são muito requisitadas para exercer a pros- redigida não faz diferenciação entre a prosti-
As oportunidades de emprego oferecidas tituição em países da Europa. Uma das ima- tuição autônoma e a prostituição forçada.
pelos aliciadores, que prometem gordos salá- gens mais comuns associadas ao País é o trí-
rios em euros e dólares, seduzem pessoas dos plice clichê: praia, futebol e mulher bonita. Aliciadores e redes de tráfico
países de origem, onde vivem destituídos dos Esse estereótipo está presente no imaginário “Eu perguntei a ela, ‘como seria viver na
seus direitos mais básicos como cidadãos. dos estrangeiros que visitam o Brasil em bus- Suíça?’. A resposta foi que a Suíça é um país
Uma das principais causas do tráfico de pes- ca do turismo sexual, em especial nas cida- maravilhoso, que teria tudo o que sempre so-
soas é o abismo socioeconômico existente entre des litorâneas. nhei, liberdade...então, pedi a ela um tempo
os países ditos subdesenvolvidos ou em desen- Segundo pesquisa, geralmente as mulhe- para pensar em tudo.” Esse depoimento, reco-
volvimento e os desenvolvidos, discrepância in- res em situação de tráfico são pertencentes lhido na Pestraf,  é de uma adolescente baiana
tensificada pela globalização recente. às classes mais populares, com baixa escola- de 16 anos que foi convidada por uma tia que
A corrupção de funcionários públicos que ridade, moram nas periferias, onde há carên- morava na Suíça para estudar e trabalhar. 
facilitam o tráfico pelas fronteiras e a inefici- cia de saneamento básico e transporte. Mui- O Exterior, principalmente países da Euro-
ência ou morosidade do Judiciário no julga- tas vezes, moram com familiares, têm filhos pa e América do Norte, é visto como local onde
mento dos casos e na punição dos culpados, e algumas já passaram pela prostituição. Ou- boas oportunidades de emprego, educação e
além da emigração sem documentação tam- tras trabalham em serviços mal remunerados, formação pessoal podem ser encontradas.
bém fortalecem a viabilidade do crime. sem carteira assinada, sem garantia de direi- Tais mulheres partem do Brasil atrás de
  tos em funções subalternas, com alta rotati- seus sonhos, querem mudar as suas vidas
Quem são as vítimas vidade, sem perspectiva de ascensão social e e trilhar um caminho diferente, de ascen-
Em 2002, foi realizada a primeira pesquisa melhoria da qualidade de vida. são. No caso da “Baiana”, como ela era menor
em âmbito nacional para mapear as rotas do As que mais despontam na pesquisa são de idade, a tia conseguiu documentos falsos
tráfico de pessoas. Foram localizadas 241 ro- “afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 para que pudesse sair do País. Os pais, a prin-
tas de tráfico no Brasil, sendo 131 delas com anos”. As adultas são as mais traficadas para cípio não concordaram, mas a menina acabou
destinos internacionais. A Pesquisa Sobre o o Exterior e as adolescentes são mais comu- por convencê-los: “Como a minha tia falava
Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes mente traficadas entre municípios e Estados tanta coisa sobre a Suíça, eu queria ir!”
Para Fins de Exploração Sexual Comercial no da federação. Essas mulheres podem ter sofri- Chegando ao aeroporto de Zurique, a tia
Brasil (Pestraf), organizada pelas sociólogas do abusos sexuais – estupro, sedução, atenta- mandou um homem buscá-la. A adolescente,
Maria Lúcia Leal e Maria de Fátima Leal, da do violento ao pudor, abandono, negligência virgem, foi obrigada a ter relações sexuais
Universidade de Brasília, contou com a parti- ou maus tratos – de membros da família ou de com tal homem. “Ter que transar com um ho-
cipação de pesquisadores de todo o País. conhecidos próximos. mem que eu vi um só dia ... e ainda por cima
De acordo com a socióloga Maria Lúcia Maria Lúcia atenta para o perigo das sim- brutal! Nunca vi coisa igual! Perder a minha
Leal, na época em que o trabalho foi feito “não plificações reducionistas: “Não devemos asso- virgindade com um homem podre como aque-
se falava em tráfico de pessoas, o movimen- ciar pobreza à exploração sexual, mas as situ- le, foi difícil. Daí por diante a minha vida mu-
to de mulheres não tratava disso, muito me- ações de precarização potencializam isso.” E dou totalmente...aí, senti que o pesadelo esta-
nos o movimento de trabalhadoras do sexo”. mais, “se uma mulher sai daqui para exercer va apenas começando para mim.”
A Pestraf deu o pontapé inicial para a intensi- a prostituição, não significa que ela está em Como no caso acima, os aliciadores muitas
ficação do debate no Brasil: “De repente, a so- uma situação de tráfico, que ela está sendo ex- vezes são pessoas da própria família que ins-
ciedade foi surpreendida com um dado dessa plorada, ou violada. O que ocorre é que estão piram confiança na futura vítima de tráfico.
natureza que vai contra a dignidade humana. se fazendo grandes generalizações”. A pesqui- Inclusive, grande parte são mulheres que já

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foram traficadas e que fornecem “conselhos”

O mercado de gente
de como ganhar muito dinheiro lá fora.
Frans Nederstigt, do Projeto Trama – con-

ões
sórcio de Ongs do Rio de Janeiro que aten-
de vítimas de tráfico –, diz que “muitas mu-

n d e US $ 3 2 b i l h
lheres que são identificadas como traficantes
foram exploradas e, como forma de pagamen- re
to e pressão, aceitam trazer um familiar, uma Diferente do que se pode imaginar, escravi- Marco-regulatório
amiga, uma conhecida” e existe a dificuldade dão não é um fenômeno social que ficou num A convenção das Nações Unidas Contra o Crime
de prender os verdadeiros mandantes das má- passado distante. Inúmeras formas de escravi- Organizado Transnacional, no Protocolo Adicional
fias de tráfico de pessoas. dão moderna geram grande volume de dinhei- Anti-Tráfico Humano (mais conhecido como o Pro-
  ro para o crime organizado de tráfico de pessoas. tocolo de Palermo), de 15 de novembro de 2000, no
Caminhos do Tráfico É difícil precisar números exatos, justamente de- art.3, define o tráfico de pessoas como:
Os principais Estados fornecedores de mu- vido à ilegalidade com que essas máfias atuam, “O recrutamento, transporte, transferência,
lheres traficadas são Ceará e Goiás, tendo um que contam com empresas de fachada para lavar alojamento ou acolhimento de pessoas recor-
número de casos consideráveis no Rio de Ja- o dinheiro do mercado de seres humanos. rendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras
neiro, São Paulo, Minas Gerais e Pará. Os No entanto, segundo relatório da Organi- formas de coação, ao rapto, à fraude, ao enga-
principais destinos são os países de língua la- zação Internacional do Trabalho (OIT), de 2005, no, ao abuso de autoridade ou à situação de
tina, como Espanha, Itália e Portugal. Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado, vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
No Nordeste, muitas partem do Maranhão o lucro anual produzido pelo tráfico de pesso- pagamentos ou benefícios para obter o consen-
para a Holanda, pelo porto de Itaqui, na capi- as gira em torno de US$ 32 bilhões, riqueza ge- timento de uma pessoa que tenha a autoridade
tal São Luís. Ocorre ali o “leilão das virgens”, rada pela exploração do corpo e da força-traba- sobre outra para fins de exploração. A explora-
em que uma agenciadora percorre os povoa- lho dos traficados. ção incluirá, no mínimo, a exploração da prosti-
dos em busca de meninas para os prostíbulos, Cerca de metade disso, US$ 15,5 bilhões, tuição de outrem, ou de formas de exploração
para que sejam leiloadas a clientes de alto po- vai para os países desenvolvidos. O restante é sexual, o trabalho ou serviços forçados, escrava-
der executivo, inclusive políticos.   distribuído para a Ásia (9,7 bi), países do Leste tura ou práticas similares à escravatura, a servi-
Recife, Salvador, Fortaleza e Natal são cida- Europeu, (3,4 bi), Oriente Médio (1,5 bi), Amé- dão ou a remoção de órgãos.”
des onde o turismo sexual é muito forte. Des- rica Latina (1,3 bi), e África Subsaariana (US$ O Brasil foi uma das nações a assinar o Protoco-
te encontro com os europeus, muitas brasilei- 159 milhões). lo de Palermo, e em 29 de maio de 2003 o conceito
ras acabam se apaixonando e se casam. “Eles Ainda pela estimativa da OIT, são 2,4 mi- ali disposto foi aprovado pelo Congresso Nacional
as convidam para ir embora. Mas chegando lhões de seres humanos traficados no mundo. na Resolução nº 231, e posteriormente promulga-
lá nem todas são bem sucedidas, porque se há Desses, 43% são para a exploração sexual e 32% do pelo Decreto presidencial do governo Lula, nº
um conflito familiar, uma violência domésti- são de exploração econômica, além dos 25% de 5.107, em 14 de março de 2004, tornando-se lei or-
ca, elas têm que voltar ou ficar clandestinas. vítimas escravizadas para os dois fins. dinária federal, em âmbito interno.
Muitas dessas mulheres passam por situações
muito difíceis”, conta Maria Lúcia.
Esses casamentos podem ser mais uma
forma de aliciamento, como narra na Pes- De Belém, partem cinco voos semanais para de Coimbra e Universidade Complutense de
traf uma universitária em psicologia e direi- Paramaribo, capital do Suriname. Por essa rota, Madrid, para analisar as histórias de mulhe-
to, do Rio de Janeiro, identificada como “S” Marcel Hazeu, da Ong Só Direitos, identificou res que vão para Espanha e Portugal exer-
que também era stripper e garota de progra- casos de migração voltados para o trabalho es- cer a prostituição.
ma: “Você paga para usar o sobrenome de al- cravo. Lá chegando, muitas mulheres vão se Verônica Teresi, brasileira que também
guém e ter cidadania, e o que acontece? O prostituir nos clubes da cidade, outras são en- participa desta pesquisa, está desenvolvendo
cara passa a cafetizá-la. A exploração sexual caminhadas para as zonas de garimpo, no inte- desde 2007 um trabalho de articulação entre
não é pelo dono do estabelecimento. É quan- rior do Suriname. Ou, o que pode acontecer é as organizações brasileiras e as espanholas.
do a idiota quer ficar no país e casa com um que “muitas pessoas saem daqui para ficar com De acordo com os dados recolhidos junto à
cliente! É ele que vai tentar cafetizá-la, que um surinamês, um brasileiro que se deu bem lá, Guarda Civil espanhola, as brasileiras são as
prende o passaporte, que faz horrores, como ou um holandês, e esses homens se aproveitam imigrantes que mais se prostituem na Espa-
no caso daquela menina que foi para a Ale- delas. Têm uma, duas, três mulheres em casas nha, tendo esse número aumentado de 2004
manha, da Bahia, que o cara matou e enter- diferentes, a serviço deles”, relata. para 2005, e está por volta de cinco mil.
rou no quintal.”  Verônica observou que muitas mulheres em
Na região Norte, Belém e Manaus são as Em terra de espanhol situação de tráfico na Espanha não se enqua-
cidades por onde essas mulheres saem do De todos os países europeus, a Espanha é dram no perfil de baixa renda e escolaridade.
País de avião. Circulou durante um tempo onde chega o maior número de rotas. No to- Pelo contrário: “Existem mulheres de classe-
um folheto em Belém com o seguinte texto: tal, são 32. Para Portugal são mais oito, o que média baixa, inclusive universitárias que vão
“Brasil/Holanda. Quer encontrar um homem se configura como a “conexão ibérica”. para a Espanha em busca de outras possibili-
gentil? Um europeu? Pegue sua chance para A quantidade de brasileiras exercendo a dades de vida, é errado achar que a migração é
ser feliz! Vida nova. ATENÇÃO! Damas a par- prostituição nesses países é tão grande que apenas um fator econômico”, diz.
tir de 21 anos, que sonham em conhecer o as brasileiras são estigmatizadas, conside- Algumas regiões espanholas identificadas
seu príncipe encantado, chegou a hora!!! Co- radas “putas” pelos locais, explica a sociólo- com alta concentração de brasileiras na prosti-
nheça um europeu gentil, carinhoso e com ga Maria Lúcia Leal, que atualmente inicia tuição são a Galícia, no Norte, as Astúrias, Ma-
estabilidade. Ajudamos você.” uma pesquisa conjunta com a Universidade drid, Barcelona, na Catalunha, e na Andaluzia.

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De volta para casa
Em 2004, o Brasil ratificou o protocolo an- teral e multilateral na área de repressão .
titráfico de pessoas.  Em 2006, Lula promul- Mas ainda existe muita dificuldade de se
ga a Política Nacional de Enfrentamento ao elaborar políticas de cooperação entre os paí-
Tráfico de Pessoas, ampliando assim o concei- ses, para melhor atender às vítimas de tráfico
to do Código Penal Brasileiro, que só se refe- na Justiça. “Muitos casos têm trâmites inter-
re ao tráfico de pessoas para a prostituição, e nacionais, e nós não temos informação so-
não a outras formas de tráfico humano. bre quem está defendendo essa mulher”, diz
O Ministério da Justiça lança, no final de Frans Nederstigt, do Projeto Trama.
2007, o Plano Nacional de Enfrentamento ao “São pessoas muito corajosas, que estão fa-
Tráfico de Pessoas que tem dois anos para ser zendo rebeldia, querem mudar o seu caminho
implementado. Estão determinados três eixos de vida. É uma forma de busca de crescimen-
de ação: a prevenção, a atenção às vítimas e a to. Alguns se dão bem, outros não, e acabam
repressão dos atores. sendo explorados e alguns morrem ou desa-
O objetivo é diminuir a vulnerabilidade parecem”, lamenta Frans.
de determinados grupos sociais ao tráfico de

useacuca.com.br
* Nome fictício
pessoas. Para isso, se prevê a cooperação bila- Carolina Rossetti é reporter

Depoimento
o s t i t u ída


Bra s i l e i r a , p r
Eu vim de Naviraí, Mato Grosso do Sul. Eu era meu país, mas não tinha como. E o dono do clu-
estudante, fazia o primeiro ano de educação fí- be me ameaçou, tanto psicologicamente como
sica. Eu trabalhava e estudava e tinha uma vida fisicamente. Ele me ameaçou, disse que se eu
C
de dinheiro curto, entende? não pagasse a dívida com ele, ele viria ao Brasil
Foi um próprio espanhol que me convidou. A e mataria a minha família e que eu nem tentas- M

mulher dele era brasileira e ela exercia a prostitui- se fugir, porque ele me mataria. Y

ção na Espanha. Ele era encarregado de um clu- No Brasil eu tinha uma vida saudável, não CM

be, disseram que eu ia ganhar muito dinheiro. Na fumava, não bebia, nunca tinha usado drogas. MY

época, eu tinha sonhos de fazer uma carreira em Nesse clube, a primeira vez que eu tive que es-
CY
educação física e queria montar uma academia. tar com um homem, tive que usar droga, porque
Ele falou “vai para a Espanha que em seis me- eu não tinha coragem. CMY

ses você vai conseguir dinheiro para sua acade- Eu paguei minha dívida com ele, e através de K

mia, para um carro, uma casa”. uma amiga minha, de Belém do Pará, ela disse
Eu vim por uma máfia de contrabando de para eu ir à Galícia que “era mais fácil de traba-
mulheres, desembarquei no aeroporto de Bil- lhar”. Eu vim trabalhar num clube e conheci um
bao. O dono do clube foi me buscar. A primei- homem, 11 anos mais velho, era policial aqui da
ra coisa que eles fazem quando tu chega é re- Espanha. Antes de conhecer ele, eu estava com
colher sua passagem de volta. De Bilbao, eu fui ideia de voltar ao Brasil porque estava com uma
parar em Torre de La Vega. crise de depressão muito grande. Só conseguia
Eu tinha uma dívida com eles, o meu bilhete eu trabalhar se eu cheirasse coca e tomasse um li-
até considero que foi um valor barato, porque foi tro de uísque. Estava ficando louca.
1,7mil euros, mas tem casos de “chicas” que pa- Então, depois de 21 dias, eu fui morar com
gam 4,8 euros. No piso onde eu estava, tinha que ele. Foram cinco meses de inferno. Porque ele
comprar comida à parte, e tinha que pagar o quar- não me fazia tortura física, mas psicológica. Ele
to que era 90 euros por semana. É uma dívida in- tinha vergonha de andar comigo na rua.
crível que você paga, paga e parece que nunca Aí eu voltei a trabalhar num clube, como cama-
acaba de pagar, você está sempre devendo. reira de copos, e um dia bateu a polícia. Eles che-
No Brasil, eu não trabalhava na prostituição. O gam como se fossem clientes normais. Era a polícia.
dono do clube me batizou como Cristina. Eu ve- Pára a música, pede documentação e passaporte.
nho de família evangélica, nunca tive o hábito de Você vem enganada porque eles te dizem
usar maquiagem e saia curta; quando eu vi aquilo uma coisa, mas a realidade é outra. Se eu pu-
eu fiquei assustada. Muita gente “snifando” [chei- desse voltar atrás... Eu amadureci bastante aqui,


rando] coca, eu pensei que estava no próprio in- mas com muito sofrimento. Eu cheguei com 23
ferno. Foi uma experiência tenebrosa, horrível. anos, hoje tenho 27 e são sequelas que quan-
Eu fiquei 15 dias sem me “acostar” (deitar) do eu tiver 60 e 70 anos isso vai comigo. “É uma
com nenhum homem, porque os homens che- coisa que não compensa, acaba com a pessoa.”
gavam em mim e eu só sabia chorar, chorar, (Depoimento recolhido por Lourdes García, da
chorar. Eu queria ir embora, queria voltar para o Ong Vagalume, em Santiago de Compostela.)

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15
João Pedro Stedile
memórias de um
jornalista não-investigativo
Renato Pompeu
O PETRÓLEO
TEM QUE SER NOSSO!

“Eu sou do tempo em que não havia televisão Na década de 50 a sociedade brasileira fez uma das maiores
e a gente ou ia ao estádio ou ouvia o jogo pelo campanhas de massa de sua história, tendo como resultado a lei
2004 que instituiu o monopólio estatal da exploração do petróleo
rádio. Pelo rádio, como até hoje, os jogos eram
e criou a empresa pública PETROBRAS para explorá-lo em nome
muito mais emocionantes do que ao vivo.”
de toda a sociedade.
Mesmo assim, as elites brasileiras subordinadas aos interesses
do imperialismo estadunidense e aglutinadas ao redor da UDN
União Democrática Nacional (UDN) foram contra, e usavam dados
científicos falsos fornecidos pelos Estados Unidos para dizer que
As matérias feitas no “hospício” no Brasil não havia petróleo.
Certamente os leitores da revista Veja nos anos 1970 não tinham a Passaram-se quase 50 anos e a Petrobras foi um sucesso. De-
menor ideia de que algumas matérias que leram haviam sido escritas senvolveu tecnologia para encontrar petróleo em nosso subsolo e
por um redator, eu, que estava internado, primeiro numa pequena clíni- em alto mar. Hoje somos autosuficientes.
ca psiquiátrica, o Instituto de Psiquiatria Comunitária-IPC, em São Pau- No governo FHC, as elites subalternas ao imperialismo voltaram
lo, com lotação máxima de 20 pacientes, e depois num grande hospital, à carga, e derrubaram o monopólio da exploração do petróleo. Pri-
o Hospital Espírita de Marília-HEM, em Marília-SP, com 300 pacientes. vatizaram a Petrobras. Hoje, 62% de suas ações são de propriedade
Em janeiro de 1974, passei a sofrer de alucinações e delírios logo de capitalistas privados. Estima-se que 42% delas sejam de capital
antes de entrar em férias na revista. Eu não sabia que estava sofrendo estrangeiro. Nas ações com direito a voto, o governo federal ainda
dessas patologias, apenas achava muito estranho e hostil o mundo à tem 51% delas, e portanto nomeia o presidente e a maioria do con-
minha volta e procurei um amigo, Carlos Alberto Sardenberg, que era selho de administração. Mas, na hora de dividir os lucros, 62% vão
estudante de filosofia e depois se tornou jornalista, tendo a vida nos para os capitalistas e entre eles 42% vão para o Exterior.
afastado. Ele me internou no IPC, no bairro do Itaim-Bibi. Ao quebrar o monopólio sobre o petróleo, criaram um monstrengo
Fiquei internado até agosto de 1975, os últimos seis meses chamado Agência Nacional do Petróleo (ANP), que apenas “leiloa”
no HEM. Livrei-me das alucinações com o remédio haloperidol e para as empresas estrangeiras a exploração de reservas encontradas
aprendi por meio da terapia analítica a lidar com os delírios, ou pela Petrobras. Hoje, se estima que ao redor de 40% das reservas em
seja, a distinguir entre o que é uma imaginação e o que é um pen- alto mar, estejam sendo exploradas por empresas estrangeiras.
samento comprovado pela prática. Depois de muitas pesquisas da Petrobras, no ano passado foi
Tanto a clínica como o hospital eram comunidades terapêuticas, em revelado que a sete mil metros sob o nível do mar há uma imensa
que cada paciente, além de tomar remédios e fazer terapia individual e camada de petróleo, que os geólogos chamaram de pré-sal. Seu
em grupo, também ajudava na administração. Assim, fui porteiro exter- valor? Ninguém sabe ainda, mas certamente são de vários bilhões
no, recebendo os visitantes (que não sabiam que quem lhes abria as por- de barris, que representam trilhões de dólares.
tas era também paciente), fui atendente de pacientes – lhes dava banho e Dezenas de entidades, movimentos sociais, partidos políticos, sin-
ouvia suas queixas, participei das organizações de jogos e campeonatos. dicatos de petroleiros articulados na FUP e na FNP estão se reunindo
As atividades tinham horário determinado e havia discussões sobre o para desencadear no Brasil uma nova mobilização popular para ga-
bom cumprimento das tarefas. rantir que o petróleo e sobretudo as reservas do pré-sal sejam recupe-
Durante todo esse ano e meio de internamento, não deixei de traba- rados para o povo brasileiro. Que mudanças são urgentes?
lhar na Veja, com exceção das férias e de seis dias em que faltei. Quan- 1. Parar qualquer leilão e suspender os já realizados.
do eu estava no IPC, fazia hospital-noite, ou seja, saía para trabalhar e 2. Mudar a lei do FHC e voltar a ter o monopólio do petróleo
voltava à clínica. Quando estava no HEM, recebia material por malote, para o povo.
escrevia no hospital e enviava por malote, e logo fiquei no esquema de 3. Reestatizar a Petrobras para que seja uma empresa pública.
passar um dia por semana em São Paulo, para fechar. 4. Fim das exportações de petróleo cru, e incentivo à indústria
Assim, quando estava no IPC, participei da elaboração dos textos fi- petroquímica, para produzir bens mais úteis do que simplesmente
nais da cobertura da Copa do Mundo de 1974 na Alemanha, juntamente queimar gasolina e diesel e gerar mais poluição.
com Sebastião Gomes Pinto, o Tão, e depois cumpri a rotina de editor- 5. Criar um fundo social soberano para usar a riqueza do pe-
assistente. Quando estava no HEM, fiz, por exemplo, uma reportagem tróleo na solução dos problemas urgentes do povo, de emprego,
sobre psiquiatria comunitária, aproveitando que os cantores e compo- distribuição de renda, moradia, educação e reforma agrária.
sitores Vinícius e Toquinho, que estavam fazendo shows em Marília, A convocação da CPI da Petrobras é também uma resposta de-
atenderam um pedido partido dos pacientes (não de mim) e fizeram um les, para tentar embaralhar o debate e transformar a empresa em
show no auditório do hospital. Essa matéria ganhou o Prêmio Abril de ré, quando ela é vitima de uma política irresponsável e vende-pá-
Matérias sobre Psicologia de 1975. tria realizada pelo governo FHC.

Renato Pompeu é jornalista e escritor. João Pedro Stedile é membro da coordenação nacional do MST e da Via
rrpompeu@uol.com.br Campesina Brasil.

caros amigos junho 2009


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Marcelo Salles

Gênio
BRASILEIRO
“Teatro do Oprimido é revolução.
Boal nos ensinou e a gente ensina

foto: martha dias/ed.48 caros amigos


as pessoas a serem revolucionárias.”
(Helen Sarapack, curinga do Teatro do Oprimido)

Diretor, dramaturgo, ensaísta, autor, com- estavam as raízes do Teatro do Oprimi-


positor, escritor, poeta. É ideia sua o Teatro do. Sediado no Rio de Janeiro, o teatro
do Oprimido – técnica para uns, filosofia de criado por Boal é praticado em 70 paí-
vida para outros, forma de libertação para to- ses, nos cinco continentes e traduzido
dos. Apesar da (compreensível) falta de espa- para 20 idiomas. Trata-se da apropriação das desses curingas: Helen, Cláudia, Claudete e
ço nas corporações brasileiras de mídia, sua ferramentas do teatro para a libertação do ser Olivar. Poucas vezes ouvi depoimentos tão
genialidade e opção pelos oprimidos o fez re- humano. Na prática, funciona mais ou menos apaixonados sobre alguém, no caso Augusto
conhecido internacionalmente. Entre os mui- assim: um grupo encena uma história de opres- Boal. “O ser humano mais lindo que já conhe-
tos prêmios que recebeu no Exterior encon- são real, que ocorreu ou ocorre com pelo menos ci. Ser humano! Tudo o que ele falava, tudo o
tram-se o Officier de l’Ordre des Arts et des um de seus integrantes. A partir daí, quem as- que ele via na gente, era sempre estimulador.
Lettres, outorgado pelo Ministério da Cultu- siste também pode interagir e atuar propondo Você podia ter todas as dificuldades do mun-
ra e da Comunicação da França, em 1981, e a soluções para o problema apresentado. do, mas ele sempre acreditou em cada ser hu-
Medalha Pablo Picasso, atribuída pela Unes- Na verdade, o Teatro do Oprimido é mais mano, isso é superimportante, porque a gente
co em 1994. Em 2009, foi nomeado pela ONU que isso. Para ser revolucionário, revoluciona resgatou o amor ao próximo, a gente se apro-
embaixador mundial do teatro. o próprio teatro. O que antes era propriedade priou de coisas que foram nossas e o tempo
Augusto Pinto Boal nasceu em 16 de março de uma determinada classe social passa a ser todo foram usurpadas”, conta Cláudia.
de 1931, no Rio de Janeiro. Carioca da Penha, acessível a todas as pessoas. No teatro tradicio- Como compreender que um cidadão brasi-
na zona norte da capital, era da época em que nal atuam, dirigem e produzem aristocratas e leiro com todas essas características e, além
não existia a Av. Brasil. Conheceu as primei- burgueses. No teatro de Boal são as emprega- de tudo, alguém responsável pela primeira tec-
ras injustiças na padaria do pai, onde lancha- das domésticas, os camponeses sem-terra, os nologia sócio-cultural desenvolvida no Tercei-
vam os operários que passavam o dia com pão homossexuais, os presidiários, os usuários da ro Mundo, utilizada no Primeiro Mundo, quase
e café com leite. Formou-se em química aos 21 saúde mental, enfim, todos aqueles que as clas- não tivesse espaço nos meios de comunicação
anos, mas não praticou. “Optou pela química ses dominantes identificam como os párias da de massa? Quem opina é Claudete: “Conhecer
do teatro”, lembra Claudete Felix, que traba- sociedade. Além disso, Boal aproveita – e po- esse revolucionário brasileiro não interessava,
lhou com Boal por mais de duas décadas. Em tencializa – o movimento intrínseco ao teatro para não estimular as pessoas a pensar. Porque
1955 foi cursar teatro na Universidade Colum- e usa isso para tirar o sujeito da passividade. as pessoas não podem pensar e se manifestar.”
bia, nos Estados Unidos, para no ano seguin- Daí o lema “Paz sim, passividade não”. Helen vai mais além: “Perguntar por que a
te ir a São Paulo dirigir, no Teatro de Arena, “Essa filosofia deu vez e voz a essa multidão mídia não fala sobre Boal e sobre o Teatro do
as peças Ratos e Homens, de John Steinbeck, de oprimidos no mundo. [O teatro é trabalhado] Oprimido é o mesmo que perguntar por que
além de Revolução na América do Sul, Arena não como arte decorativa, mas como ferramenta o Roberto Marinho não iria apoiar a Revolu-
contra Zumbi, Arena contra Tiradentes. Daí para transformar a realidade”, diz Olivar Bende- ção. A gente trabalha com pobre, ferrado, fu-
em diante dirigiu espetáculos escritos por Ro- lack. Claudete Felix complementa: “O Teatro do dido, marginalizado, maluco, preto, morador
berto Freire, Oduvaldo Vianna Filho e Benedi- Oprimido não é uma pintura, é uma ação. Uma de rua, gente que não interessa a ninguém,
to Ruy Barbosa, entre outros. ação coletiva.” Os dois, ao lado de Cláudia Simo- gente que já está eliminada no mundo.”
Após o golpe civil-militar de 1964 patroci- ne, Helen Sarapeck, Geo Britto, Barbara Santos,
Além do boicote midiático, a burocracia tem sido ou-
nado pela CIA, foi preso, torturado e expul- Flávio Sanctum, Cláudio Rocha, Yara Toscano e tra inimiga do Teatro do Oprimido. Poucos dias antes
so do País. Mas não sossegou. Por onde pas- Kelly di Bertolli, são os chamados curingas do de morrer, no dia 2 de maio de 2009, mesmo interna-
do num hospital, Boal perguntava sobre a investida do
sou dirigiu espetáculos com o Arena: Estados Teatro do Oprimido, pessoas que foram nomea- Departamento Penitenciário Nacional, que bloqueou as
Unidos, México, Peru e Argentina. das por Boal após adquirir todo o conhecimento contas do teatro e o está inviabilizando financeiramente.
Em 1986, Darcy Ribeiro o convidou para or- do Método e que são as principais responsáveis Escreva para apoiocto@gmail.com ou telefone para (21)
2232-5826/2215-0503 e informe-se sobre como ajudar.
ganizar grupos populares de teatro nos CIEPs, por sua difusão no Brasil e mundo afora.
projeto do governo Leonel Brizola. Inicialmen- Na sede do teatro, pertinho dos arcos da Marcelo Salles é jornalista e coordenador da
te com o nome de Fábrica de Teatro Popular, ali Lapa, tive a oportunidade de conhecer quatro Caros Amigos no Rio de Janeiro.

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Eduardo Matarazzo Suplicy Ana Miranda

Vozes da Floresta Lembranças de

Salvar a Amazônia se tornou dever de todos nós brasileiros. Mui-


Raduan
Guardo recordações de Raduan as mais bonitas, pois ele era Ra-
tos, como a atriz Christiane Torloni e os atores Juca de Oliveira e duan, sempre foi, com sua risada que é uma nota diferente, com
Victor Fasano, têm levado esse dever ao pé da letra. Tanto que co- sua profundidade constante, sua beleza mediterrânica, seu perfu-
lheram mais de um milhão de assinaturas pela preservação da Ama- me oriental... e essas recordações alcançam minha juventude, eu
zônia. Engajando nesse dever as Comissões de Meio Ambiente, Defe- não era tão jovem assim, mas ainda usava tranças grossas nos ca-
sa do Consumidor e Fiscalização; de Direitos Humanos e Legislação belos, e cultivava muitas esperanças na vida, nas pessoas, em mim
Participativa e a Comissão Mista Permanente sobre Mudanças Cli- mesma. Eu era jovem de qualquer forma, era como os jovens, e ti-
máticas realizaram, no último dia 13 de maio, uma vigília em prol nha diante de mim o desafio de terminar um primeiro romance que
da Amazônia. me tomava todos os pensamentos e me fazia arder em noites de
Foi uma oportunidade de grande aprendizado para mim. Pude in- insônia, em pesadelos, delírios, coisas assim, sempre com o sen-
teragir com todos aqueles que participaram trazendo suas experi- timento de dúvida: conseguir ou jamais conseguir. E ele era o es-
ências em defesa da floresta. Além disso, fiquei especialmente emo- critor de dois romances belíssimos, lavrados, arrancados da terra,
cionado com o livro que recebi de Zezé Weiss, intitulado Vozes da arcaicos, que eu tinha lido mais de uma vez tentando encontrar a
Floresta, uma homenagem mais que merecida para Chico Mendes. fonte daquelas palavras tão radicais, ternas, daquela construção
O livro foi lançado em dezembro de 2008 na Biblioteca do Estado tensa, a corda de um alaúde esticada até o limite, de que se po-
do Acre, ocasião para a qual o grande poeta Thiago de Mello prepa- dia tirar uma nota afinadíssima, como ele mesmo escreveu, e ain-
rara um poema muito especial – O sonho que cresce no chão da Flo- da Raduan carregava o mistério do abandono da escrita. O misté-
resta, e que, por uma ironia do destino, não pode declamar. Thiago rio mais inquietante para um escritor. Foi um encontro simples,
precisou ser hospitalizado naquele dia, pois sofrera um AVC. Raduan faria uma palestra em local vizinho à minha casa, ele, que
Diante de tudo isso resolvi, neste encontro de defesa da Amazônia, nunca fazia palestras, e eu, que quase nunca saía, resolvi assistir.
fazer minhas as palavras de Thiago de Mello, um verdadeiro hino de Raduan tinha os olhos pequenos, úmidos e cheios de luz, um hu-
amor e homenagem a Chico Mendes e à Amazônia: mor excelente, e estava bem disposto para responder às pergun-
tas, mesmo às mais investigadoras, como as que eu fiz, querendo
Não frequentas mais, saber quem era a Ana de seu livro, quem era a sua irmã, quem era
de corpo comovido, ele, e no final declarei que, esperando que ele escrevesse outros li-
os espaços do mundo. vros, e ele não os escrevendo, eu me sentia uma noiva abandonada
A medida do tempo não te alcança. ao pé do altar, todos riram de minha imagem brincalhona, mas po-
Já ganhaste a dimensão do sonho, ética e afetuosa. No final, quis me aproximar de Raduan para uma
és luzeiro da esperança. palavra a mais, porém ele estava cercado de pessoas, e fui embo-
ra. Anos depois, quando publiquei um romance com personagens
Vinte anos são só um sinal que eram imigrantes libaneses em São Paulo, Amrik, ficamos ami-
que a memória nos serve gos. Ele não sabia que eu era a noiva abandonada daquela noite
para dizer que te amamos, perdida na lembrança. Crio teorias e fábulas para tentar entender
irmão dos mananciais. o enigma de Raduan com a literatura, e continuo com meus dile-
mas criativos. Mas tenho essas boas recordações.
A tua própria morte
nos alcança a fundura Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias
mais azul do peito & Dias, e outros romances, editados pela Companhia das Letras. Suas
com um brado companheiro, crônicas estão reunidas no volume Deus-dará, da Editora Casa Amarela.
que nos chama, nos clama, amliteratura@hotmail.com
é chama que nos chama ...

E termino este aceno de mão agradecida


com o abraço das crianças amazônicas
que ainda vão nascer, abençoadas
pelo majestoso arco-íris do amor,
que se ergue úmido de seiva
das terras firmes do alto Xapuri
com as cores de todas as raças humanas.

Que a poesia de Thiago de Mello desperte a magia da floresta no


coração de todos nós brasileiros, para que nossas mãos possam sem-
pre acenar amor à terra, mãe da vida.

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador.

caros amigos junho 2009


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entrelinhas a mídia como ela é Cesar Cardoso
Hamilton Octavio de Souza

VOCÊ ACREDITA
EM PESQUISAS?
AVANÇO NO AR Você vai abrir um restaurante? Uma boca
Reivindicação antiga dos metalúrgicos do de fumo? Vai se candidatar a senador, a ho-
ABC paulista, finalmente o presidente Lula mem-bomba, a miss? Vai trazer a pessoa
anunciou que vai autorizar a concessão de amada em três dias? Seja qual for o caso, faça
emissoras educativas de rádio e TV para enti- uma pesquisa. Se em vez de ficar conversan-
dades ligadas ao sindicato da categoria. Como do com cobra, Adão tivesse consultado um
esses pedidos têm mais de 20 anos, é preciso instituto de pesquisas, podia ter deixado a
esperar a conclusão do processo para come- maçã quietinha, comido um jiló e a gente es-
morar. Mesmo por que o Ministério das Co- tava no paraíso até hoje. Deus mesmo, se não
municações não merece a menor confiança! fosse tão onipotente, podia ter consultado o
Datafolha sobre a criação do universo. Não
TERRA SEM LEI é por nada não, mas bota água em Júpiter,
Ao revogar a Lei de Imprensa, entulho da com aquele tamanhão todo, e vê o que dá pra
Ditadura Militar, sem colocar nada no seu lu- fazer de civilização lá dentro. Sem falar que
gar, o Supremo Tribunal Federal deu uma de noite ainda tem quatro luas no céu pra
tremenda ajuda para a mídia oligárguica-ne- gente olhar. E duvido que uma pesquisa en-
oliberal. Agora os juízes e tribunais podem ar- tre todos os seres vivos fosse apontar os hu-
quivar todos os processos de pedidos de retra- manos pra crescer e se multiplicar. Nós não
tação e indenização baseados na extinta lei. O sabemos voar, não conseguimos viver em-
prejuízo será de quem é perseguido e crimi- baixo d’água, somos completamente incapa-
LIXO NAS ESCOLAS nalizado por essa mídia. zes de dormir por seis meses e não conse-
A rede paulista de ensino público está re- guimos nem cair sempre em pé de qualquer
cebendo os jornais O Estado de S. Paulo e CRIMES MIDIÁTICOS altura. Quem ia votar na gente pra ser a raça
Folha de S. Paulo e as revistas Época, Isto É Os jornais de São Paulo não demonstraram superior do planeta?
e Veja, todos defensores do programa neoli- o menor interesse em apurar as informações di- As pesquisas também podiam ter ajuda-
beral dos partidos PSDB e DEM. A Secreta- vulgadas pelo Conselho Regional de Medicina, do a História. Imaginem essa carta-respos-
ria Estadual da Educação gasta o dinheiro no dia 12 de maio, sobre os crimes ocorridos ta do Ibope: “Caro senhor Che, em resposta
do povo com publicações que só reforçam os dois anos antes, em 2006, quando a polícia pau- à pesquisa encomendada, informamos que
valores da sociedade de consumo, não aju- lista e grupos de extermínio assassinaram 564 a Bolívia ficou em vigésimo lugar quanto
dam em nada para a construção de um Bra- pessoas no Estado de São Paulo, especialmen- a possibilidades revolucionárias, sem falar
sil melhor. As escolas deveriam exigir publi- te negros, pobres e jovens da periferia. Essa na desvantagem de não ter mar pra se fu-
cações críticas ao neoliberalismo. “obra” dos governos tucanos está sendo omiti- gir de barco se tudo der errado.” Ou ainda:
da pela mídia. “Exmo. Sr. Jesus, nossas pesquisas reco-
AMEAÇA À DEMOCRACIA mendam que o Senhor diminua o número
Transformada em espaço de liberdade e SÓ VALE TEATRINHO de convidados para a ceia da próxima se-
interação na comunicação social, a internet Depois que os ministros Joaquim Barbo- mana. Um por cento dos apóstolos quer lhe
tem sido alvo de abusos comerciais e baixa- sa e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal pegar pra Cristo.”
rias, assim como de censura, perseguição e Federal, bateram boca ao vivo na TV Justiça, Mas isso tudo é passado. Agora mesmo
cerceamento político e cultural. Já o projeto a mídia gorda propôs que as sessões do STF nós, do Data-Amigos, estamos aqui na ave-
de lei do senador Eduardo Azeredo, do PS- fossem gravadas e editadas antes de ir ao ar. nida Paulista pesquisando. E vamos aos pri-
DB-MG, é nitidamente fascista, pois crimina- Os ministros não aceitaram, preferem a ex- meiros resultados. Sobre a confiança da po-
liza quem pensa diferente da visão conserva- posição direta, desde, é claro, que a encena- pulação na polícia, por exemplo, 98% dos
dora e moralista das elites brasileiras. Chega ção seja bem comportada. entrevistados olharam pra um lado, pro outro
de censura! e responderam que é claro que confiam, ima-
EPIDEMIA ANTIÉTICA gina! E só 2% fugiram correndo. Não é uma
FARSA GLOBAL Uma repórter da Veja chupou matéria do beleza? Quanto à gripe suína, todos os entre-
A TV Globo quis criar as condições para Wall Street Journal, dos Estados Unidos, des- vistados iam responder que estavam tranqui-
que os jagunços do banqueiro Daniel Dan- mentiu o plágio, mas foi desmascarada pelo los, mas como eles não tiraram as máscaras,
tas, em sua fazenda no Pará, transformas- site Comunique-se, que checou diretamente não conseguimos entender as respostas. E,
sem a ocupação dos sem-terra num banho com uma fonte que não havia dado entrevista por fim, perguntamos se a população acredi-
de sangue semelhante ao massacre de El- para a revista da Abril. Pelo visto, dentro da ta na moralização do Legislativo e do Judiciá-
dorado dos Carajás. A farsa só não deu cer- editora, a mentira é doença contagiosa. rio brasileiros. E 100% dos entrevistados ain-
to porque o repórter da emissora desmentiu da não conseguiram parar de rir.
que tivesse sido sequestrado pelos trabalha- Hamilton Octavio de Souza é jornalista.
dores. A TV Globo não aprende! hamilton@uol.com.br Cesar Cardoso é 100% escritor.

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19
entrevista Charles Trocatee

GOVERNO
ABANDONOU
A REFORMA
AGRÁRIA
Integrante da coordenação do MST, Charles Trocate fala
da prioridade que o governo federal dá ao agronegócio
Entrevista de Tatiana Merlino | fotos Yann Vadaru.

O governo Lula optou pelo agronegócio prada de forma ilegal. Em abril, o local foi pal- bitantes: três vezes mais gado do que gente. A
em detrimento da reforma agrária. A avalia- co, segundo o MST, de uma tentativa de mas- segunda é a frente madeireira, que existe há 20,
ção é de Charles Trocate, da coordenação na- sacre, pintado como “confronto” pela grande 30 anos no sul do Pará, e que está se deslocan-
cional do Movimento dos Trabalhadores Ru- mídia. “Confronto” que deixou oito feridos: do para o oeste do Estado. Há a frente mineral.
rais Sem Terra (MST), que acredita que a um segurança privado e sete camponeses. O sul e o sudeste do Pará têm aproximadamen-
política de distribuição de terra vive uma en- te 17 mil títulos minerais, que variam de 50 a
cruzilhada no Brasil. “Eles fizeram uma op- Caros Amigos - Como está a situação da reforma 10 mil hectares, todos em posse da Companhia
ção pela ampliação do capital na agricultura, agrária no Pará hoje? Vale do Rio Doce, ou de empresas associadas a
querendo extrair uma nova renda da terra, Charles Trocate – Como em todo o País, ela. Então, há uma guerra de monopólio do tí-
e impedindo que se crie um ambiente favo- a reforma agrária vive um impasse extraordi- tulo minerário e da extração minerária. É uma
rável para a existência dos movimentos”, de- nário, porque o Estado possui vários mecanis- disputa acirradíssima do subsolo. A outra fren-
nuncia, em entrevista à Caros Amigos. mos para fazê-la, como também possui vários te é a da soja, que também atua no oeste para-
Trocate afirma que os primeiros qua- mecanismos para negá-la. Dependendo da atu- ense, transformando áreas de florestas nativas
tro anos do governo Lula foram medíocres: ação dos governos, mais progressista ao tema em campos de soja, com pesadas perdas para a
“Houve uma briga de estatísticas, mas, no fi- ou mais conservador, acaba-se criando encru- sociedade local, para o bioma local e para o bio-
nal, eles não assentaram mais do que 65 mil zilhadas. Então, na prática, no Brasil inteiro, ma amazônico. E a última frente está monta-
famílias.”No segundo mandato, para justifi- a reforma agrária vive uma encruzilhada. A re- da no modelo de desenvolvimento econômico
car os parcos números, priorizou-se o discur- forma agrária foi derrotada ideologicamente da região, que é a apropriação indevida da bio-
so de se fazer a reforma agrária de qualidade, no governo Lula porque eles fizeram uma op- diversidade, com pesquisas de laboratórios de
ou seja, com melhores condições nos assenta- ção pelo agronegócio, portanto, pela amplia- empresas transnacionais que atuam na região e
mentos. No entanto, a realidade é outra. “Não ção do capital na agricultura, querendo ex- se apropriam dos conhecimentos naturais e da
se enfrenta o latifúndio e nem se tem dado a trair uma nova renda da terra, e impedindo essência farmacêutica da região sem que isso
infraestrutura fundamental, essencial para os que se crie um ambiente favorável para a exis- tenha um controle. Todas essas partes conver-
assentamentos que já existem”, lamenta o di- tência dos movimentos. Nós estamos enfren- gem para um modelo, o uso do território para
rigente do MST. tando muitas dificuldades nessa conjuntura. a reprodução do capital e da sua taxa de lucro.
No Pará, Estado onde vive, a situação é Lá no Pará, a questão central é a terra públi- Isso provoca uma desterritorialização das co-
uma das piores do Brasil. Nos seis anos do go- ca. Foram se estabelecendo latifúndios de toda munidades ribeirinhas, quilombolas e dos indí-
verno Lula, nenhuma área ocupada pelo mo- e qualquer natureza, com documentos irregu- genas. Sem território, estes não se reproduzem
vimento foi desapropriada. Ao mesmo tempo, lares atestados por todos os cartórios. E o Ju- socialmente. Aí está a natureza do conflito.
a organização denuncia um processo de re- diciário não está disposto a rever esses títulos,
concentração fundiária no Estado, encabeça- que são fraudulentos e de origem duvidosa. Quais grupos que encabeçam essas frentes?
do pelo banqueiro Daniel Dantas, dono do Op- Além disso, há uma disputa pela posse da Há uma associação de pelo menos três gru-
portunity, que nos últimos anos comprou 52 terra, porque o modelo de desenvolvimento do pos distintos. Primeiro, os latifundiários de ori-
fazendas em 11 municípios do Estado. Entre Pará tem cinco grandes frentes. Uma é a pecu- gem paulista e sulista que nos últimos 30 anos,
elas, a fazenda Espírito Santo, ocupada pelos ária extensiva: temos aproximadamente 20 mi- pela relação com o Estado, conseguiram obter
sem-terra, que alegam ser área pública, com- lhões de cabeças de gado e sete milhões de ha- títulos fraudulentos dos cartórios, e que nos im-

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põe esse impasse hoje. O segundo são os empre- damente 800 milhões de hectares de terra na desapropriada para o MST.
sários regionais que encabeçam a siderurgia, região, e isso demarca uma aceleração da con- E no segundo mandato?
que produz ferro-gusa a partir do uso da flo- centração fundiária. As próprias investigações Nesse segundo mandato, o governo tem fa-
resta e do ferro extraído da Companhia Vale do a que o grupo está submetido levantaram aqui- lado que o MST perdeu o foco, que nós esta-
Rio Doce. E o terceiro é o grande capital, base- lo que para nós era hipótese, de que o verda- mos destoando da nossa missão histórica que
ado em megaempreendimentos da Vale, da Alu- deiro fundamento para essa concentração fun- é pressionar os governos para fazer a reforma
mínio Alunorte e da Alcoa. Eles representam o diária não é o maior projeto de criação de bois agrária, porque passamos a enfrentar o gran-
modelo hegemônico e vão hegemonizando tudo do mundo, nem melhoramento genético, mas de capital na agricultura que monopoliza as
e todos, a sociedade e os governos, para obter sim o minério do subsolo. Essa é a questão cen- sementes, a terra e a política agrícola do go-
juridicamente o favorecimento para implemen- tral, que tem provocado reação da sociedade verno. Nesse segundo momento, até as metas
tar esses megaempreendimentos. local e do próprio governo do Estado. No caso foram esquecidas. Eles priorizaram um discur-
do MST, nós somos contra o latifúndio e contra so de fazer a reforma agrária de qualidade, que
Houve uma piora da concentração fundiária a concentração fundiária. Portanto, uma das não enfrenta o latifúndio e nem tem dado a
nos últimos anos? formas de denunciarmos a existência do lati- infraestrutura fundamental, essencial para os
Nos últimos dez anos houve uma reconcen- fúndio é ocupando a terra. assentamentos que já existem. A reforma agrá-
tração fundiária na região, e isso é medido em ria no governo Lula tem caráter e orçamen-
função do crescimento da pecuária. De um lado, E como foi a ocupação das áreas do to marginais, porque a política prioritária é o
há busca de novas terras e, portanto, de novos Daniel Dantas? agronegócio. Seus instrumentos, o Ministério
desmatamentos. É assim que se amplia o núme- Decidimos ocupar as fazendas da Agropecu- de Desenvolvimento Agrário e o Incra, nessa
ro de fazendas produtoras de gado. E, se a re- ária Santa Bárbara para levantar os seguintes conjuntura, também são marginais. Estão ope-
forma agrária é marginal, os camponeses são elementos para o debate geral: a necessidade rando coisas que nós não vemos concretizar. E
marginais dentro desse processo. Assim, es- de se fazer a reforma agrária; a transformação eu diria que é o período em que a reforma agrá-
tes vão perdendo suas terras para as grandes de dinheiro sujo em capital limpo, que é o ob- ria e os movimentos sociais foram mais ataca-
fazendas, para o grande projeto de criação de jetivo da compra dessas fazendas; e a denúncia dos pela direita. CPMI da terra, em que a di-
gado. Ou então, para as florestas industriais de de que o verdadeiro projeto que está por trás reita queria transformar a ocupação da terra
eucalipto, que eles chamam de reflorestamento, dessa reconcentração fundiária é o uso do sub- em crime hediondo ou em ato terrorista; CPMI
mas elas não recompõem o ecossistema e a bio- solo, portanto, o uso mineral dessas terras. Ou das ONGs; e, agora, o enfrentamento que o Su-
diversidade. Muitos trabalhadores têm perdido seja, o Dantas tem mil títulos minerários que premo Tribunal Federal está fazendo, na figu-
suas terras para esses grandes espaços. vão de 50 a 10 mil hectares. Desde 25 de ju- ra do presidente Gilmar Mendes. é um período
lho do ano passado, quando se revelou que a em que a reforma agrária refluiu.
Como tem sido a atuação no Estado do grupo Agropecuária Santa Bárbara tinha aproxima-
Santa Bárbara, que é ligado ao Opportunity, damente 52 fazendas em 11 municípios do Es- Então dá para dizer que o nosso presidente
do banqueiro Daniel Dantas? tado do Pará, vários outros grupos de traba- resolveu apoiar o agronegócio?
Nós estamos diante de conflitos que assu- lhadores fizeram ocupações das fazendas do Pessoalmente, não sei qual é a posição dele.
mem proporções muito grandes. Primeiro, grupo. São 21 ocupações em toda região sul e
é uma região em que não há outra alternati- sudeste, algumas na área do Dantas. Isso ace- E o governo?
va senão o uso racional do capital natural que lera o conflito e o enfrentamento. Enquanto governo, já está claro.
se tem. Portanto, é necessário criar um mar-
co legal. Está evidente que o governo federal Como você avalia a reforma agrária que está Por quê?
não está disposto a fazer isso, pois, nessa con- sendo feita pelo governo Lula? Faltou uma perspectiva histórica para esse
juntura, apareceram dois temas que são am- O governo assume para si uma posição dú- governo, as transformações que deveriam ocor-
plamente desfavoráveis à região, sobretudo na bia. Não aceita enfrentar o latifúndio, não rer não ocorreram porque eles fizeram uma op-
questão ambiental e na questão agrária: um é a constroi mecanismos jurídicos para enfrentá- ção: em vez da ruptura de interesses de classe,
regularização fundiária proposta, que é trans- lo. Quando faz a reforma agrária, faz em áreas houve um consentimento de classe. Em segun-
ferir para o latifúndio, instituir juridicamente e em que os trabalhadores possam se tornar as- do lugar, a sociedade brasileira está muito dis-
passar para eles outros 80 milhões de hectares sociados do capital, esse é o dilema central. Vi- persa e despolitizada. Ela dá tanta importância
de terras; o segundo é baixar a área de reser- vemos um momento em que o governo federal para a sobrevivência diária que não se preocu-
va florestal de 80% para 50% (porcentagem da fez uma opção: derrotar ideologicamente a re- pa com os destinos que o País possa ter. O Lula
terra que o proprietário deve manter intacta). forma agrária. Para gerar superávit primário. aceitou governar para os desorganizados. Isso
Então, são dois ataques centrais que a região Nos primeiros quatro anos, os resultados foram aumenta o terreno da passividade. Qual a tarefa
está sofrendo. O poder econômico e o megain- medíocres, nada daquilo que nós esperávamos. dos trabalhadores? Qual a tarefa de todos? Não
vestimento que a Vale e as empresas transna- Mesmo sabendo que eles não iam fazer aquele tem. A tarefa é deixar o homem trabalhar para
cionais fazem na região têm capacidade de se- assentamento de um milhão de famílias, acha- eu continuar ganhando 150 reais. Em tercei-
questrar as instituições, como as Secretarias de mos que iam fazer um esforço de assentar aqui- ro lugar, as forças sociais do País estão extre-
Meio Ambiente dos Estados ou o próprio Ibama, lo que eles disseram ter condições: 515 mil fa- mamente divididas. Nós vivemos um período
para que tudo aconteça a seu favor. mílias (no período de 2003 a 2007, objetivo do de profunda deseducação social, e isso signifi-
E a sociedade amazônica, e em especial a segundo Plano Nacional de Reforma Agrária). ca que não há forças suficientes para provocar
paraense, está cooptada por esse modelo de Essa opção não se concretizou. Nos primeiros saídas mais dignas.
progresso. Em relação ao Dantas, a maioria quatro anos, houve uma briga de estatísticas, Alguns dias após conceder essa entrevista,Charles Tro-
cate foi indiciado por incitação à violência por se decla-
do capital da Agropecuária Santa Bárbara per- mas, no final, eles não assentaram mais do que rar publicamente favorável à ocupação de terras.
tence ao grupo Opportunity. Em menos de 65 mil famílias. Nós passamos os primeiros seis
dez anos, o grupo se apropriou de aproxima- anos do governo Lula no Pará sem ter uma área Tatiana Merlino é jornalista.

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O Bolsa Família é um dos principais programas de transferência Isso contribui para que o gerenciamento do programa se torne
de renda do Brasil. Tão grande quanto o programa é o desafio cada vez melhor.
de contribuir para a redução da pobreza, da fome e da desigualdade
em nosso país. Dessa forma, o Bolsa Família ajuda a garantir um direito:
a conquista da cidadania para as famílias brasileiras.
Para atingir quem realmente precisa, é importante que as famílias
mantenham sempre os dados atualizados junto aos responsáveis Bolsa Família. A vida vai melhorar.
pelo Bolsa Família nos municípios.

Apoio: www.mds.gov.br
0800-7072003
Ulisses Tavares Guilherme Scalzilli

Quem quer sexo A internet


levante a mão sob controle
Levante a mão e use o dedo. A tipificação de crimes virtuais constitui uma tendência
Isso. Agora tecle www.sexlog.com.br na barra do buscador. mundial irreversível. Em meio a debate acalorado na comu-
Pronto. Veja, confira. Lá tem tudo, como em muitos outros sites nidade digital, o Brasil também elabora legislação para moni-
da internet. torar a conduta do internauta e regulamentar a utilização de
Tem pra punheteiros, tem pra safadinhas, tem pra casais entedia- equipamentos, insumos e arquivos eletrônicos. Mas o necessá-
dos, tem para solteiro e solteira safados. rio combate a práticas lesivas, como pornografia infantil e frau-
Não existe o disk pizza, quando você está com fome e com pre- des diversas, ameaça criar um sistema de vigilância sobre os
guiça de sair? usuários, atingindo a manifestação da opinião, a troca de in-
Pois a internet fez essa revolução em nossa vida sexual. formações e a privacidade.
Inventou o disk sexo, o pênis e a buça delivery. Evidentemente, a medida favorece interesses corporativos
Como eu sou xereta, carente e curioso, fui testar. diversos. Produtores e distribuidores das mídias tradicionais
Olha, conferi que é pra valer sim, é vida real extraída do mun- tentam resguardar seus vultosos lucros. As instituições finan-
do virtual. ceiras não querem mais arcar sozinhas com o ônus da seguran-
Funciona, pode dar certo. ça digital. E o jornalismo impresso, que vive uma crise inédita
Quem está nesse tipo de sítio, quer sexo ao vivo, e a maioria pa- de credibilidade, precisa limitar o trânsito de informações para
rece que consegue. garantir o monopólio da propaganda dissimulada a serviço dos
Igual acontece aqui fora, longe do computador, depende de quí- seus apadrinhados políticos.
mica, sorte, acaso, compatibilidade. Além do pendor despótico, a investida repressora é marcada
Mas bem mais fácil e rápido. pela inviabilidade prática original. A fiscalização do universo
O cardápio é variado, conferível, pré-avaliado. virtual beira o impossível, e a idéia de que todo usuário (espe-
Tem mulher gostosa querendo dar para o marido ver. Tem ho- cialmente o malfeitor) poderá ser identificado e punido equiva-
mem pintudo querendo mulher para comer. Tem de tudo e mais um le a um delírio totalitário. Não há sequer consenso doutrinário
pouco. Difícil é escolher. sobre a propriedade intelectual e o direito de acesso a bens cul-
O impacto que esse tipo de facilidade provoca em nossas vidas, turais ou educativos. Ademais, apesar da enganadora facilida-
só o tempo dirá. de do manuseio cotidiano, a enorme complexidade técnica da
Mas, pessoalmente, acho que esse impacto já é sentido e, sem dú- rede escapa ao entendimento de seus tutores legais.
vida, nos assusta a todos. Ocorre que as legislações aparentemente inúteis possuem
A arte da sedução deixa de ser uma habilidade pessoal, olho no desdobramentos que ultrapassam os objetivos professados. A
olho, mão na mão, e passa a ser mera habilidade de digitar a mensa- simples pretensão de enquadrar a internet nos mecanismos co-
gem certa, colocar a foto certa. ercitivos do Estado burocrático revela o autoritarismo dos pro-
Só por brincadeirinha, coloquei uma foto minha num desses ponentes. O controle sobre a individualidade pode mudar os
chats, trocando-a por uma do ator Sean Connery, aquele dos antigos métodos, mas não sua essência.
filmes do James Bond.
Resultado: ninguém se deu ao trabalho de conferir o original (eu, Guilherme Scalzilli, historiador e escritor. Autor do roman-
também uma figura pública, embora de menor proporção – escritor ce Crisálida (editora Casa Amarela).
brasileiro versus ator internacional), ao me contatar. www.guilhermescalzilli.blogspot.com
Sei lá onde isso pode nos levar.
Mas aquela paquera antiga. Essa já era.

Ulisses Tavares é um amante à moda antiga, mas vai se adaptando ra-


pidinho. Coisas de poeta.

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Jesus Carlos
Relegados aos confins do esquecimento pela mídia no geral e pelos poderes públicos em particular, o atleta
e o boxe são tidos como esporte de menor valor dentre todas as modalidades esportivas. No projeto “Garrido-Boxe”,
os atletas encontram a oportunidade de desenvolverem suas aptidões esportivas e, em particular, a autoestima.
Através da fotografia, mostro os aspectos humanos, as relações interpessoais, os combates entre os lutadores,
a vida cotidiana e a comunidade como um todo. Guerreiros do Viaduto é a minha contribuição para mostrar,
através da IMAGEM, a contraposição a essa realidade em que se encontram atualmente o boxe e seus atletas.
entrevista WAGNER MOURA
Bruna Buzzo, Carolina Rossetti, Leandro Uchoas, Luciana Chagas,
Marcelo Salles, MC Leonardo e Sheila Jacob | fotos Ângelo Cuissi

“O cineasta quer
entender
que país é este”
Um dos atores mais premiados do cinema, teatro e
televisão, Wagner Moura recebeu a Caros Amigos em
sua produtora, no Jardim Botânico, bairro acolhedor da
zona sul carioca.
Nesta entrevista ele fala sobre sua infância em Rode-
las, no sertão baiano, a timidez que lhe valeu o apelido de
OVNI numa escola de Salvador, os primeiros passos no
teatro e a vinda para o Rio de Janeiro – de onde passou a
fazer trabalhos reconhecidos internacionalmente.
Com entusiasmo, defende a importância de Tropa de
Elite e fala sobre a montagem de Hamlet e a produção
do filme Tropa de Elite 2, que vai abordar a questão dos
grupos criminosos formados por policiais, vulgarmente
conhecidos como “milícias”. O ator comenta ainda o cer-
camento, com muros, das favelas do Rio, uma iniciativa
conjunta do governo estadual e de empresas privadas.

Marcelo Salles - Wagner, a gente sempre começa choram, querendo voltar. Quando fechou o As pessoas todas cuidando daquele santo,
pedindo para o entrevistado falar desde a ciclo dele, quis voltar para Rodelas, voltamos daquela imagem. Eu me lembro que o san-
infância, como foi sua criação, seus pais, em todos pra lá, isso nos anos 80. to bambeou, parou, aí uma senhora gritou
que cidade. E aí a gente vai desenvolvendo... “São João Batista quer que caia!”, aí todo
Wagner Moura - Meu pai é militar da reserva, Luciana Chagas – Isso foi um pouco antes da mundo “quer que caia, quer que caia!”. Lem-
da Aeronáutica. Serviu 32 anos, era sargen- enchente? bro da minha mãe chorando.
to. Veio de Rodelas, interior da Bahia, com Um pouquinho depois, na verdade. A en-
17 anos, no pau-de-arara, como os nordesti- chente foi em 88, e a gente se mudou em 89 Marcelo Salles – Como é que foi o seu encontro
nos que vêm para ser porteiros, trabalhar na para Salvador. Isso é um negócio que está gra- com o teatro?
construção civil. Até que entrou como sol- vado na minha cabeça de uma forma violenta... Então, eu era esse cara que não tinha ne-
dado para a Aeronáutica, fez carreira mili- nhum amigo, muito só. Meu apelido na es-
tar, mas a onda dele era estudar. Durante Luciana Chagas – A perda da cidade natal é uma cola era OVNI, sentava sozinho. Eu não me
esse tempo ele conseguiu estudar Direito e referência? sentia incluído, não me sentia parte daqui-
se formar. Nunca exerceu. Se formou e fa- Rapaz, não. Pra mim, criança, eu achava lo, sabe? Quando eu comecei a fazer teatro
lou: sou doutor. Eu nasci em Salvador, a mi- um barato aqueles peões na cidade, as casas eu tinha 14, 15 anos. E musicalmente Salva-
nha mãe também é baiana de Rodelas, era quebradas. Ficava brincando naqueles escom- dor era, no início dos anos 90, uma ditadura
dona de casa. Meu pai tinha sido transferido bros, na lama, mas eu me lembro das pesso- do axé. Nenhuma rádio tocava outra coisa,
do Rio para Salvador, fiquei lá dois anos, aí as, mais velhas principalmente, sem entender e os jovens eram muito fascinados por essa
ele foi transferido de volta para o Rio. Morei o que estava acontecendo. cultura do axé, de ir pra festas e pegar me-
cinco, seis anos em Marechal Hermes [bairro nininhas, de pegar o carro do pai. Aqueles
da zona norte da capital fluminense]. Fui al- Luciana Chagas – Você estava com quantos anos? blocos de Carnaval sectários, onde uma pes-
fabetizado aqui no Rio, tenho uma irmã mais Nove, dez anos. Tinha uma coisa religio- soa preta não pode entrar, uma pessoa feia
nova, médica pediatra de UTI. Meu pai é bem sa muito forte. Eu me lembro da mudança do não podia. Eu era muito só, ficava em casa,
mais velho que minha mãe, tem 73 anos, e santo padroeiro da cidade, Santo Antônio, estudando. Aí eu estava na escola e uma me-
sempre foi um nordestino saudoso, desses da cidade velha para a nova. Foi uma coi- nina chamada Micheline, que era mais velha
que ficam ouvindo Luis Gonzaga em casa, e sa que antropologicamente era muito forte. e fazia parte de um grupo de teatro, num lu-

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gar chamado Casa Via Magia, na Federação mostra oficial, nas paralelas estão sendo ven- encantado com a profissão de jornalista, gosta-
[bairro de Salvador], achou que eu levava didos os nossos filmes lá. va muito de escrever, e tinha uma coisa român-
jeito, e me levou. Lá eu fiquei encantado e tica. Repórter investigativo, que resolve, aju-
não parei nunca mais. Carolina Rossetti – A
temática social é uma da a população, descobre falcatruas, tem uma
característica... coisa social nisso. Cheguei a trabalhar em jor-
Leandro Uchoas – Como esses personagens Sempre foi, né? Eu acho que isso é uma he- nal na época, e os caras me davam umas pautas
da sua infância alimentam a construção dos rança do Cinema Novo. Inclusive, essa é uma que eu tinha preguiça de fazer, cobrir buracos.
seus personagens hoje? herança de que a gente está se desligando ago- Trabalhei um tempo em jornalismo, tive asses-
O homem, o artista que eu sou é entranhado ra. O cineasta quer falar de tudo. Entender que soria de imprensa... E a faculdade foi muito le-
disso. Eu sou esse cara que veio dali. Meu DNA Brasil é este, que País é este, que pessoas são gal pra minha vida como ator, aprendi muita
é esse. Então um jeito de eu fazer Shakespeare essas? Então, o público gosta. Os grandes su- coisa. E também ter lido os caras da Teoria da
é entranhado dessa minha... A forma como eu cessos do cinema brasileiro foram feitos sobre o Comunicação: Marcuse, Benjamin, Adorno, os
leio uma peça dinamarquesa, a porta de entra- quê? O Carandiru, a situação penitenciária, Ci- caras da Escola de Frankfurt, só que quando
da é minha percepção, minha cultura. dade de Deus, são mazelas sociais, mas são fil- eu pensava naquilo aplicava diretamente à in-
mes que tentam entender, de certa forma, que dústria cultural, ao meu trabalho como ator, à
Luciana Chagas – Acho que ainda
em Salvador País é esse, que pessoas são essas. Lá em Ber- minha vida como artista.
você poderia falar sobre a banda. lim o cara me perguntou: “por que vocês che-
Eu saí de uma escola e fui para uma outra gam assim, fazendo filmes sobre favela? Por Sheila Jacob – Você falou que pensa diferente
que estava começando. Aí eu conheci Gabriel, que João Moreira Salles, que é um banqueiro, em relação ao artista. Mas tem alguma outra
meu parceiro que foi cover do The Cure, de- está fazendo um filme sobre favela?” Ô cara, o profissão da mídia que você pensa diferente?
pois incorporou essa melancolia de música problema mais sério do Brasil é porque o ban- A mídia é um negócio grande e complexo.
de puteiro, bodegas, de compositores que eu queiro não olha pra favela. Quando o banqueiro Existem veículos de comunicação aos quais
admiro muito, que fizeram alegria, compõem olha pra favela, você acha ruim por quê? Estou eu não falo. Eu não falo com a revista Veja,
de forma apaixonada, sem medo de parecer esperando o dia que o cara da favela vai fazer por exemplo.
isso ou aquilo. um filme sobre o banqueiro. É, por que não?
Sheila Jacob – Porquê?
Bruna Buzzo – Como estava sua carreira no teatro Luciana Chagas – E do teatro em Salvador, como Muitos motivos. A linha editorial da revista
nessa época? é que foi a escolha do jornalismo? Veja, uma revista de extrema direita brasilei-
O auge do teatro baiano, desde a fundação Quando eu resolvi fazer vestibular, não ti- ra. Eu me lembro claramente de uma capa da
da Escola de Teatro nos anos 50, até hoje, fo- nha certeza se queria teatro. E eu era muito revista Veja que me indignou profundamente,
ram os anos 90. O governo da Bahia sobre o desarmamento, que dizia assim:
investia, as Secretarias de Cultura “Dez motivos para você votar ‘Não.’ Eu
e Turismo andavam juntas, hoje em me lembro claramente da revista Veja
dia é separado. E o turismo na Bahia elogiando Tropa de Elite pelos motivos
dá muito dinheiro. Havia um dinhei- mais equivocados do mundo. E semana
ro mais disponível e havia uma inte- sim, semana não está sacaneando co-
ração dos artistas do teatro baiano, lega nosso: Fábio Assunção, Reynaldo
principalmente depois do sucesso da Gianecchini, de uma forma escrota, ar-
Bofetada, no final dos anos 80, de rogante, violenta. Outro motivo é que
produzir coisas assim. Então Fer- na revista Veja escreve Diogo Mainar-
nando Guerreiro, Paulo Dourado, di! Eu não posso compactuar com uma
Márcio Meireles, foram os diretores revista dessas, entendeu? Conservado-
que criaram as melhores coisas nos ra, elitista. Então não falo com a revista
anos 90. Foi quando eu apareci, apa- Veja, assim como não falo para a revis-
receu Lázaro Ramos, apareceu Vla- ta Caras. Agora, a mídia é um negócio
dimir Brichta, Fábio Lago, uma sé- complexo, importante. A imprensa bra-
rie de atores de Salvador. Foi aí que sileira, nesse episódio agora do Con-
o João Falcão me viu fazendo uma gresso, cumpre um papel sensacional.
peça e me chamou para fazer A Má- Achei ótimo o fim dessa lei de impren-
quina e aí fiquei. sa, careta, antiga. Acho que a impren-
sa tem que se sentir livre e trabalhar, e
Marcelo Salles – E em termos de cinema quem se sentir agredido por ela entra
nacional, como você está vendo? em juízo e processa.
Outro dia eu vi uma entrevis-
ta com um diretor em Cannes, que MC Leonardo – Você falou sobre a revista
disse que cinema brasileiro é o ci- Veja ter elogiado o Tropa de Elite. Você
nema do futuro. Eu acho que tem sentiu, em algum momento, lendo os
ótimos cineastas, ótimos técnicos, primeiros roteiros que chegaram a suas
ótimos atores, eu vejo com super mãos, que você iria prestar um serviço
bons olhos. E estamos sendo respei- à sociedade?
tados nos festivais internacionais, Eu achei de cara que era algo impor-
nos grandes, Berlim, Veneza, sem- tante. Tendo em vista, principalmente, o
pre tem filme brasileiro lá, se não na outro filme do Zé Padilha, o Ônibus 174.

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174. Eu falei, esse cara não faz filme eu tomava aquela pílula pra saber da
de bobeira. Foi um dos melhores do- realidade. Eu quero saber, você não
cumentários que eu já vi. E eu fiquei quer saber? Ah, é assim? O que a gen-
muito surpreso quando o filme come- te pode fazer pra mudar?
çou a ser tachado como de direita, por-
que da mesma forma eu diria que o Ôni- Sheila Jacob – O presidente daCPI
bus 174 é dirigido por um deputado do das Milícias aqui do Rio, deputado
PSOL. Quando o Arnaldo Bloch disse Marcelo Freixo, disse que o filme foi
(e foi o primeiro) que o Tropa de Elite é antipedagógico. Você acha que houve
fascista, eu fui o primeiro a responder. um erro de estratégia?
Escrevi um artigo, que saiu na primei- Eu acho que antipedagógico foi ter
ra página de O Globo, dizendo, não é crianças assistindo. Uma criança de oito
fascista! Me parecia bobo o cara achar ou nove anos assistindo a esses filmes...
que um realizador compactua com seus Mas eu acho que para o adulto, que sabe
personagens. Ah, o Copolla pensa como o que é realidade, o que é ficção... Te-
o D. Corleone. Ah, o Fernando Meirel- nho o maior respeito pelo Marcelo Frei-
les pensa como o Zé Pequeno. Eu sei o xo, acho ele um dos últimos. É um herói.
filme que eu fiz. Porque eu não sou fas- Mas eu acho que o filme foi pedagógico
cista. Muito pelo contrário. no bom sentido.

Carolina Rossetti – Você estavapreparado Leandro Uchoas – Wagner, como você


para o filme, ou a complexidade... recebe a notícia do Tropa de Elite 2 , que
Não, o filme não tem complexida- vai ser lançado?
de. As pessoas não são burras. O cara Cara, eu acho que Tropa de Elite
pode ser o mais ético do mundo, não se 2 vai ser um filme mais interessante
corromper financeiramente, mas você que o primeiro, porque agora a gen-
se corrompe moralmente quando você te vai poder falar de milícia, porque
bota um cara dentro do saco. Então, mais assustador que a promiscuidade
para mim, para o Zé Padilha, isso era da polícia com os bandidos é a polícia
muito claro. Quando a gente começou com a política. O poder público, os ba-
a ver que a revista Veja e outras pes- talhões policiais dominados, a milícia
soas da sociedade estavam se identifi- elegendo vereadores. Crime organiza-
cando com aquilo, eu entendi que era do é a milícia, não é o tráfico. O Mar-
uma questão mais séria. Mas por quê? celo Freixo é um personagem do Tro-

que
Quando é que surgem os regimes de pa de Elite 2, não sei se vocês sabem.

“A gente sabe
força? O fascismo surge quando a situação é

rupta”
caótica. Vivemos uma situação caótica em re-
r
MC Leonardo – Você acha que a arte, de maneira
lação à segurança pública. Então, a tendência
ap olícia é co geral, a novela, poderia estar cumprindo um
do cara que já foi assaltado cinco vezes e vê al- papel mais social...
guém metendo a porrada no bandido e matan- incorporava o Capitão Nascimento, Eu acho que isso é muito de quem tá fa-
do é dizer: “É isso. A solução é essa.” A solução, você ficava preocupado com o que a gente zendo. Você é um cara que mora na comuni-
pra mim, está muito longe. Enquanto o único vive na favela. Como é que isso mexeu dade, você quer que a garotada jovem não
poder público a subir na favela for a polícia, dentro de você? entre para o tráfico. Então, isso faz parte de
não vai ter solução. Na favela não sobe esco- Eu ficava o tempo todo achando que estava quem você é. Eu, particularmente, quero fa-
la, não sobe hospital, não sobe livro, não sobe fazendo um filme importante. zer um filme sobre a questão agrária. A par-
parquinho pras crianças brincarem, não sobe tir do momento em que eu sei que nenhum
biblioteca, só sobe polícia? MC Leonardo – Quando eu li o roteiro pensei mandante de nenhum crime agrário no Bra-
assim: vai mostrar que a polícia é assim, que a sil está preso, ou jamais foi preso. Mas eu
Marcelo Salles – O filme apresenta
uma realidade polícia é corrupta, que a polícia vende droga, acho que a arte é livre, entendeu, cada um
concreta. Quem conhece um pouco da arma, que a polícia é assassina, então, vou faz da arte o que quiser.
realidade da polícia do Rio... entrar no projeto. Nunca pensei que iria chegar
A gente sabe que a polícia é corrupta. em São Paulo e ouvir dos Racionais: “ Aí, rapá, Sheila Jacob – Como você encara o trabalho de
Quem não sabe que a PM é corrupta? Ago- Tropa de Elite não tá maneiro não.” publicidade?
ra, existem bons policiais? Existem. Os poli- Os Racionais acharam isso? Ótimo, adoro publicidade.
ciais do Bope que eu conheci, eu vou dizer a
você: eles todos são homens de bem! Incor- Marcelo Salles – Uma superprodução, Sheila Jacob – E você escolhe?
ruptíveis, eles têm suas famílias, e eles real- um super-roteiro, ninguém contesta a Escolho, fazer comercial de dentadura não
mente acreditam que estão fazendo um puta sua atuação, um fi lme que mostra uma dá. E escolho também se não é um produto que
bem pro Brasil matando bandido. realidade impregnada de fascismo. Mas vai fazer mal às pessoas, porque a imagem vai
também a reforça. V ocê não acha que, por contribuir para aquilo. Mas eu te confesso que
MC Leonardo – No meio da gravação, quando isso, o fi lme foi pelo menos irresponsável? adoro, é um dinheiro ótimo de ganhar, você vai
te via fardado ficava com medo de você, até Eu acho que é importante o Brasil en- lá, grava um dia só e ganha um bom dinheiro.
porque sou morador de favela. Quando você tender que existe, se eu estivesse no Matrix Sheila Jacob – Porque tem a questão da arte

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incentivando o consumismo, como você vê isso?
“Tem muita gente d
Todo mundo consome aqui, no mundo as
espreparada
pessoas consomem, compram coisas. Eu não
escrevendo sobre
sou da ala radical do Partido Bolchevique, eu
acho que as pessoas têm que comprar coisas
teatro”
mesmo, adquirir bens, claro que cada um no tal. Tudo o que o Daniel Pires disse que achava Depende, se eu estiver no Teatro Casa Gran-
seu limite financeiro e ideológico. ruim eu achava ótimo, ele disse que Guildens- de [na zona sul do Rio de Janeiro], como estou,
tern e Rosencrantz pareciam Oscarito e Gran- o teatro me cobra R$ 9.500 por dia. A gente
MC Leonardo – A
gente tá convivendo com de Otelo... Que ótimo! O que eu acho da crí- renegociou para 30% da bilheteria, o resto eu
a questão do muro nas favelas, o governo tica, e isso eu ouvi muito aqui no Rio, é que tenho que pagar, para os técnicos... Mas essa
usando a desculpa da Mata Atlântica pra poder tem muita gente despreparada escrevendo so- pergunta que você faz é típica das pessoas que
murar os favelados, qual a sua opinião? bre teatro, parece que o teatro é um terreno que acham que a gente está ganhando o dinheiro
Acho qualquer muro uma coisa horroro- todo mundo pode falar. E no teatro tem aquele da lei do incentivo à cultura e está cobrando
sa. Mas acho que é necessário haver uma con- cara esperto da faculdade, que leu umas coisas, um preço absurdo em detrimento da população
tenção porque senão a favela pode crescer e tem uma opinião, chega na redação e o editor pobre que não pode ver a peça. Eu já botei no
desmatar a floresta desordenadamente. O que fala assim: “Você gosta de teatro?”, “Gosto sim”, meu espetáculo mil jovens de escolas públicas
você acha disso? “Você quer escrever alguma coisa?”, “Quero”, aí de graça porque eu quero, porque é uma deci-
começa a história da crítica [risos]. são minha, de artista. Eu podia não fazer isso
Sheila Jacob – Wagner, você falou do Hamlet , e viver tranquilamente, porque o teatro é uma
que teve muita crítica em relação à tradução Carolina Rossetti – Mas você acha
que é popular arte que se sustenta pela bilheteria.
do texto. O que você acha de criticar a mesmo custando R$ 80 em São Paulo?
popularização dessa arte? Essa é outra questão. Popular no sentido de Marcelo Salles – Como é a
reação, eu fiquei
Vou te falar uma coisa, a nossa tradução que as pessoas estão indo ao teatro. Se as pes- curioso?
não simplificou nada, ela é muito mais próxi- soas não têm acesso de uma forma econômica É a coisa mais linda do mundo, nós já fize-
ma da original do que as traduções que temos é outra questão. O teatro não é uma arte popu- mos duas sessões exclusivas. E estou botando
aí. Shakespeare era muito claro, Hamlet foi su- lar nesse sentido. Na época de Shakespeare até 50, 100 jovens no meio da platéia. Nas sessões
cesso de público em 1600. O que a gente fez foi era, mas com o teatro burguês no século XIX exclusivas um cara que nunca viu nem peça in-
tirar a poeira de cima. Por que traduzir “go” deixou de ser e virou uma arte de quem pode fantil, nem entrou no teatro, assiste Hamlet e
por “ide”? Eu acho que foi a melhor coisa que pagar, o próprio Shakespeare sobrevivia com no final vem perguntar coisas incríveis: “Por
eu já fiz na minha vida. Meu melhor trabalho, o que as pessoas pagavam. que não mata logo esse cara?”, “Por que a mãe
uma das peças mais bem feitas do teatro ociden- Bruna Buzzo – Mas com preços baixos? casou com ele?”.

junho 2009 caros amigos


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Leandro Uchoas

Comunicação popular
mobiliza a juventude
cursos realizados no Rio resgatam o idealismo e o papel
transformador dos jornais foto Arquivo NPC.

Arraial do Cabo é uma cidade pacata de 26 perceberam um idealismo surpreendente bro- çado, de tendência progressista. Era muito
mil habitantes, no litoral do Rio de Janeiro. tando, aos poucos, em Izabelle. diferente”, conta a jornalista Raquel Junia.
Conhecida como Capital do Mergulho, o jo- Principal fruto das aulas, o jornal O Ca- A maioria dos cursos do NPC é voltada
vem município que até 1985 era distrito de bistão já vai para sua quarta edição. Segun- para militância de sindicatos e movimen-
Cabo Frio tem sua economia estruturada, es- do a jornalista do NPC, Cláudia Santiago, tos sociais. Costumam encontrar um públi-
sencialmente, no turismo. Seria natural que tanto as pautas, relativas ao cotidiano da re- co mais velho, com maior embasamento in-
seus habitantes fossem alheios às questões gião, quanto a orientação gráfica do periódi- telectual devido à participação política mais
contemporâneas, isolados em suas ativida- co “evoluem a cada número”. Os estudantes efetiva. Formar jovens do interior a partir de
des de pesca, hotelaria e culinária. Mas a ex- já buscam parcerias para montar uma rádio conteúdos complexos foi um desafio para o
periência de um grupo de adolescentes mos- na região. “A comunidade está muito anima- Núcleo. “Logo no primeiro dia, o Vito Gian-
tra que é possível romper essa barreira. da com a possibilidade de termos uma rádio notti deu uma aula de História dos Traba-
Em julho de 2008, o Núcleo Piratininga de só nossa”, comenta Izabelle. lhadores no Brasil”, conta Cláudia, rindo. A
Comunicação (NPC) iniciou na região um cur- A estudante frisa que os assuntos aborda- equipe temia que a desistência fosse grande,
so de Comunicação. Tratava-se de uma par- dos têm, quase sempre, uma perspectiva crí- principalmente porque as aulas tomavam os
ceria com o Ressurgência, projeto da UFRJ tica. O curso inicialmente previsto encerrou sábados integralmente. Entretanto, o índice
que leva o nome de um fenômeno oceânico co- este mês com uma grande festa na praça cen- de presença superou dois terços da audiên-
mum na cidade. Os jovens selecionados para tral da cidade. Números musicais, apresenta- cia inicial. Segundo Raquel, o curso teve ain-
as aulas passaram a assistir palestras sobre ções de balé e exibição dos filmes realizados da o mérito de reforçar “a autoestima dos jo-
geografia, história, audiovisual, redação e os pelos estudantes somaram-se ao lançamento vens e seu amor pela cidade”.
mais variados temas. Professores da região da quarta edição do jornal. Entretanto, sur-
e da capital fluminense foram selecionados giu a proposta, na comunidade, de que as au- Histórico
para oferecer uma ampla formação. las fossem estendidas por mais dois meses. A O exemplo de Arraial sublinhou um traba-
“Os cursos abriram nossa cabeça, princi- aceitação foi quase unânime. lho que vem sendo feito no Rio de Janeiro há
palmente para a questão social. Tomamos co- O processo não foi simples desde o início. mais de seis anos. O NPC criou seu curso de
nhecimento de quem somos, de onde podemos Quando desembarcou na cidade, a equipe do formação de comunicadores populares após a
chegar”, relata Izabelle Felix. A estudante foi NPC se surpreendeu com um cenário diferen- Chacina do Borel, em 2003. Numa operação
a quase todas as aulas, que ocorriam quinze- te do que esperava. “A gente se deparou com policial em 16 de abril daquele ano, quatro jo-
nalmente aos sábados. Fala do projeto com ní- uma turma muito nova, de 15 a 17 anos. Tí- vens haviam sido injustamente assassinados.
tido entusiasmo. Os professores contam que nhamos preparado um conteúdo super-avan- A revolta com a crueldade dos homicídios le-

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vou os moradores do morro do Borel, na zona pulares (Renajorp) foi lançada no mesmo pro- faculdade me preparou para o mercado. Não
Norte da cidade, a organizar uma manifesta- cesso. Uma série de comunicadores oriundos me deram uma visão de como a comunicação
ção de rua. “Foi a primeira vez que a favela de comunidades formados pelo NPC. O jor- pode transformar. É um poder que a gente
desceu para protestar contra a violência. Eles nal O Cidadão, premiada iniciativa de comu- tem nas mãos e não sabe muito bem como
fizeram uma linda manifestação, com a pre- nicação do complexo da Maré, solidificou-se usar”, comenta Katarine. A jovem jornalista
sença das mães”, lembra Cláudia, que ainda com os cursos do Núcleo. Renata Souza e Gi- frequenta o Núcleo diariamente.
mora nas proximidades do morro. zele Martins, respectivamente coordenadora Outro exemplo é o jardineiro Jorge. No sá-
Até então, o NPC era uma entidade es- e editora do periódico, formaram-se no Nú- bado, dia em que o curso é realizado, ele teria
pecializada em comunicação de sindica- cleo. Em maio, o NPC e O Cidadão foram, seu momento de maior lucro. Jorge teve que
tos. Nas discussões resultantes da chacina, ambos, premiados pelo Ministério da Cultura fazer um reajuste em sua atividade profissio-
constatou-se que a pauta do movimento sin- (MinC) como Pontos de Mídia Livre. nal para poder participar das aulas, sem com-
dical estava desatualizada. “Foi uma coisa prometer sua renda. Há alguns dias, comuni-
muito marcante o fato do marido da Dalva, Mídia alternativa cou ao NPC que vai fazer o curso novamente,
uma das mães que perderam o filho para a Quando o participante dos cursos mostra trazendo cinco companheiros para participar.
violência policial, ser químico de um sindi- interesse mais efetivo, a tutela do Núcleo ten- Cláudia Santiago pensa em fazer do curso
cato filiado à CUT. A questão do filho do tra- de a ser ainda mais significativa. Katarine Flor um polo de aglutinação na formação dos jor-
balhador que mora na favela não chega ao chegou ao curso por vias tortas. Um primo nalistas populares do Rio de Janeiro. Imagina
sindicato. Não se pode ficar falando só de dela havia participado, numa edição anterior, o NPC centralizando a formação da comunica-
questões corporativas”, diz Claudia. já por indicação de um jornal da Cidade de ção voltada para as lutas sociais dos movimen-
“A gente viu que os jornais sindicais não Deus. Logo nas primeiras aulas, ele comentou tos de massas. “A gente tem na cidade o Fa-
falavam sobre as grandes questões da vida: que tinha uma prima recém-formada em jorna- zendo Media (também premiado pelo MinC), o
saúde, educação, transporte e violência. No- lismo que adoraria fazer o curso. “Ela gostou NPC, a Pulsar, o Brasil de Fato, a Caros Ami-
tamos a importância de ter uma pauta am- tanto que está com a gente até hoje”, comen- gos. Se você analisar, são as mesmas pessoas
pla. A cidade deveria estar presente, com sua ta Cláudia. Katarine saiu do curso já tomando fazendo tudo. Eu acho que a gente pode reunir
vida pulsante, e seus problemas trágicos. E parte no Núcleo informalmente, como colabo- esses jornalistas aqui”, sintetiza Cláudia.
o mais trágico deles não é o desemprego. É a radora. Já faz parte também da Pulsar, projeto A julgar pelo sucesso dos cursos de Ar-
violência”, explica Vito Giannotti, do NPC. de rádio também premiado pelo MinC. raial e do complexo da Maré, a mídia popu-
A partir de então, o curso bianual aprimo- “Eu tinha acabado de terminar a faculda- lar é uma ferramenta que agrega, empolga e
rou-se a cada edição, até o modelo que revo- de, e estava sem rumo. O curso me deu um mobiliza a juventude.
lucionou a ação social do grupo de jovens de norte. Foi abrindo meus olhos, mostrando
Arraial. A Rede Nacional de Jornalistas Po- novas possibilidades de fazer jornalismo. A Leandro Uchoas é jornalista.

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Luana Schabib

Festival da América do Sul,


do sol e da saltenha... Argentinos, bolivianos,
paraguaios, peruanos,
gringos participaram
da sexta edição do
encontro cultural
ocorrido em Corumbá
(MT), onde se come
muita saltenha...
voltou para casa, criou uma receita nova e de-
cidiu homenagear Salta, a cidade do outro lado
da fronteira que o acolheu. Daí surgiu a salteña,
que em Salta ficou conhecida como empanada
boliviana. Sua massa é feita de trigo, óleo, sal,
açúcar e colorau. Fica alaranjada depois de as-
sada, a trança que fecha o recheio fica queima-
dinha, e o recheio é uma mistura de sabores:
frango ou carne, ovo cozido, azeitona, uva pas-
Enquanto os bailarinos de La Paz encan- da época. Depois de nove meses, estavam sendo sa, batata e um caldo apimentado.
tam com uma versão do Lago dos Cisnes, dan- distribuídos os panfletos de um sonho roubado. Maria Adila Ruiz, ou Dila simplesmente,
çado nas pontas dos pés descalços, a carioca Era a primeira edição do FAS. nasceu no Paraguai por acaso – sua mãe é bo-
Isabel Torres conta as insatisfações, dores e Mesmo com um começo inapropriado, liviana, mas já morava no Brasil quando en-
insucessos dos últimos 27 anos como baila- a missão não foi abandonada. O motivo era gravidou. A menina cresceu e hoje comanda a
rina do corpo de baile do Theatro Municipal maior: homenagear, discutir, pôr em pauta “Saltenharia da Dila”, há dez anos em Corum-
do Rio de Janeiro. No teatro, montado embai- nomes como Mercedes Sosa, Domitila Barrios bá, e que emprega sete pessoas, mais seus
xo de uma árvore, a risada do garoto marca de Chungara, Manoel de Barros. Não era pou- três filhos e a nora. Dila conta que a diferen-
o final da peça. Enquanto isso, o grupo fol- ca coisa. Imagine o que significou Milton Nas- ça da saltenha boliviana para a que é feita no
clórico Caporales, tradicional no carnaval da cimento, Gabriel García Márquez e Eduardo Brasil é que “não dá pra colocar bastante pi-
cidade de Oruro, na Bolívia, desce a aveni- Galeano no centro do Pantanal, no calor in- menta, o pessoal não tem costume”. A empre-
da central de Corumbá. E na praça principal, fernal, cidade branca pelo calcário, e multico- endedora participou de todos os festivais em
réplica de uma quase milenar praça venezia- lorida pela presença de índios brasileiros, bo- Corumbá e sempre contrata mais três funcio-
na, onde há um coreto bonito, são projetados livianos, de árabes e flamenguistas. nários temporários para dar conta, pois ven-
filmes como o cubano Guantanamera. As ati- Nos primeiros anos eram nove dias de festi- de até cinco mil saltenhas por noite no festi-
vidades da sexta edição do Festival América val nas ruas, no porto geral, em prédios histó- val. Um sucesso total. Assim como a música
do Sul (FAS), ocorrido entre 30 de abril e 3 ricos e na fronteira, que contava com salas de que tocava ao fundo:
de maio, aconteceram por toda a cidade de debates sobre mídias, política, afinidades e di- “Si me pides que vuelva al lugar donde nací,
95 mil habitantes, que parou durante cinco ferenças culturais, importante parte do even- yo pido que tu empresa se vaya de mi país. Y así
dias. Argentinos, bolivianos, paraguaios, pe- to que foi abandonada com o tempo e as ges- será, de igual a igual” (Se me pede que eu vol-
ruanos, gaúchos, gringos... todos nas ruas tões de governos de siglas diferentes. Hoje, as te para o lugar onde nasci, te peço que sua em-
bicentenárias de paralelepípedo de Corumbá, atrações principais são quase todas brasilei- presa se vá do meu país. E assim será, de igual
Mato Grosso do Sul, no coração do Pantanal, ras, as palestras e grupos de discussões não para igual) – proclamavam os versos do argen-
logo ali na fronteira com a Bolívia. têm mais a visibilidade de outrora. tino León Gieco, que compartilhava palco com
A história do festival começou em 2003, na Víctor Heredia na memorável noite de primei-
casa de uma figura política do Estado. Alguns Comida para os ouvidos ro de maio. Cantores argentinos de renome e
dos participantes queriam fazer um evento cul- “Saltenhaaaaa!!!” principalmente de história, mas tal qual a sal-
tural simultâneo em três cidades – Corumbá, Será que algum paulistano, ao ouvir essa tenha boliviana, não reconhecidos pela maior
Campo Grande e Santa Cruz de la Sierra, na Bo- palavra, iria parar um segundo de sua desvai- parte dos brasileiros. “Antes havia entre Bra-
lívia – para promover a integração da América rada jornada rumo ao metrô e trabalho para sil, Uruguai, Chile, Argentina e Bolívia uma in-
do Sul por meio da cultura. Uma delas não quis atender ao chamado gastronômico? tegração econômica, política e assassina: eram
esperar a construção plena do projeto e decidiu Conta a história que um salgadeiro bolivia- os tempos da ditadura, dirigida pelos interesses
vender a ideia para o gestor estadual da cultura no foi morar vários anos na Argentina. Quando norte-americanos. Agora, existe uma nova inte-

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gração – todos os governos da América do Sul ro paraguaio e as toucas de lhama boliviana. Todos os povos originários têm uma co-
estão mais sensíveis”, observa León Gieco. Marcos Ortiz é artesão de Mato Grosso do Sul. nexão muito forte com a terra. Ao tecer, es-
Gilberto Gil, Chico Buarque, Kleyton e Ele faz colares com osso de boi e mandalas in- tão expressando o que sentem e como veem o
Kledir, Renato Teixeira, Almir Sater, Sérgio fluenciadas por sinais indígenas. É a quinta vez mundo. No norte do Chile, noroeste da Bolí-
Reis, Fagner... Eles falam nome por nome dos que participa do festival, e conta: “Há uma troca via e sudoeste do Peru, habita o povo Aimara,
artistas brasileiros com quem já dividiram os entre os artesãos, o artesão vive disso. Eles se dividido administrativamente, mas não cultu-
palcos, e Victor Heredia sentencia: “Os argen- inspiram na gente e a gente se inspira neles.” ralmente. Por isso são tão parecidos seus cin-
tinos amam a música brasileira, já os brasilei- Enderson Rodríguez é venezuelano. Primei- tos e tecidos. “Os cintos aimaras têm escritos
ros conhecem apenas Mercedes Sosa e Astor ra vez que vem ao Brasil. Ele faz redes e tecidos, – antigamente tinham a história da família es-
Piazzola. Talvez a maior barreira seja o idio- muito coloridos. Conta que na Venezuela, além crita nos cintos que usavam. Parece uma es-
ma. É necessário o ensino de espanhol nas de Hugo Chávez, o que há de bom são as arepas, tampa, mas é uma história”, revela Ximena.
escolas brasileiras para ajudar na formação um pão de mandioca, no formato de um pão ára- E o tear que trança fios da história do povo,
cultural e na informação, e ao mesmo tempo be, assado na chapa. Silvia Rinque é argentina. da mesma forma que fibras entrelaçadas num
os países de língua espanhola devem ensinar Ela é mapuche, um povo originário que habita a tear, é o objeto de trabalho do projeto criado
português. A música está integrada, mas os província de Buenos Aires, a Patagônia argenti- por uma professora da Universidade Federal
povos não – mas nós vamos semeando.” na e parte do Chile. Silvia faz jóias em prata e fi- de Mato Grosso do Sul, Wadia Hanny. A ge-
E, então, os argentinos fecham o show, à cou admirada de como se come no Brasil. “Aqui ração de renda de uma comunidade ribeirinha
meia-noite, com a praça lotada – já que o próxi- se come demais, mas o churrasco brasileiro é o e a inclusão social são buscadas em conjunto
mo seria o da nova sambista Maria Rita. “Sólo melhor”, diz a artesã. para a recuperação de áreas degradadas por
le pido a Dios, que el engaño no me sea indife- Enquanto as pessoas passam, senhoras co- atividades de mineração, exploração crescen-
rente, si un traidor puede más que unos cuan- rumbaenses caminham e participam de todos te no Estado. Elas produzem biomantas que
tos, que esos cuantos no lo olviden fácilmen- os eventos, entre hippies fazendo trampos e suprem a carência do solo, fazendo com que a
te”, profetizava a canção de León Gieco, que gringos tirando fotos, ao som daquela salsa cobertura vegetal do solo seja reposta.
fazia o senhor catador de latas girar, com seu comendo solta no palco, a filósofa chilena Xi- Mesmo conhecendo pessoas de histórias
saco pesado, no grau daquela batida de violão mena Prado faz, com seu tear, cintos coloridos, importantes para o estreitamento dessa rela-
– ou no grau do álcool, tanto faz. Com a cara e geométricos, bolsas charmosas. Um senhor se ção entre povos irmãos separados por divisões
os punhos fechados, olhava para o céu. agarra a um de seus cintos, roxo de fios de lha- territoriais, é preciso mais investimento nesse
ma, e lhe pergunta qual é o preço. Ximena diz festival. É preciso cuidar desses laços que co-
No tear dos fios e da terra que não estão à venda. Ela quer despertar o meçam a ser feitos, e que deveriam ser mais
Entramos agora nas tendas de artesanato interesse das pessoas pelos trabalhos manu- divulgados, para que todos possam participar
dos países. Cada nação tem um estande, onde ais: “Mente e sistema nervoso trabalham junto e os brasileiros saibam que há vida além do
um representante expõe os trabalhos de uma com as mãos. Quando um povo perde o traba- sertanejo do Centro-Oeste, dos separatistas na
cooperativa. É tanta coisa. Caixinhas de guar- lho com as mãos, começa a perder a sensibi- Bolívia e do tráfico de drogas, armas e pessoas
dar jóias uruguaias feitas de cascas de laranjas lidade. Nos dedos estão todas as terminações em nossa pobre América Latina.
secas. Enfeites de parede venezuelanos. O cou- nervosas.” É o que ensina a filósofa. Luana Schabib é jornalista.

Frei Betto

SOCIALISMO, CONTRADIÇÕES E PERSPECTIVAS


O socialismo é estruturalmente mais justo que o capitalismo. Porém, (IDH) estabelecido pela ONU (o Brasil é o 70º) e não apresentar bol-
em suas experiências reais não soube equacionar a questão da liberda- sões de miséria (embora haja pobreza) nem abrigar uma casta de ri-
de individual e corporativa. Cercado por nações e pressões capitalistas, cos e privilegiados. Se há quem se lance no mar na esperança de uma
o socialismo soviético cometeu o erro de abandonar o projeto originário vida melhor nos EUA, isso se deve às exigências, nada atrativas, de
de democracia proletária, baseado nos sovietes, para perpetuar a maldi- se viver num sistema de partilha. Viver em Cuba é como habitar um
ta herança da estrutura imperial czarista da Rússia. mosteiro: a comunidade tem precedência sobre a individualidade.
Não surpreende, pois, que o socialismo real tenha ruído na União Quanto à liberdade individual, jamais foi negada aos cidadãos, exceto
Soviética, após 70 anos de vigência. Com o excessivo controle estatal, quando representou ameaça à segurança da Revolução. Jamais as deno-
não conseguiram oferecer à população bens de consumo elementares minações religiosas foram proibidas, os templos fechados, os sacerdotes
de qualidade, mercado varejista eficiente e uma pedagogia de forma- e pastores perseguidos por razões de fé. A visita do papa João Paulo II à
ção dos propalados “homem e mulher novos”. Ilha, em 1998, e sua apreciação positiva sobre as conquistas da Revo-
O socialismo caiu no engodo do capitalismo ao projetar o futuro lução, mormente nas áreas de saúde e educação, o comprovam.
da sociedade em termos de produção, distribuição e consumo. O ob- No entanto, o sistema cubano dá sinais de que poderá equacionar
jetivo dos dois sistemas se igualou. melhor a questão de socialismo e liberdade através de mecanismos mais
O socialismo só se justifica, como sistema e proposta, na medida democráticos de participação popular no governo, de interação entre
em que tem por objetivo, não o bom funcionamento da economia, e Estado e organizações de massa, maior rotatividade no poder, para que
sim das relações humanas: a solidariedade, a cooperação, o respeito as críticas ao regime possam chegar às instâncias superiores sem se-
à dignidade do outro, o fim de discriminações e preconceitos. rem confundidas com manifestações contrarrevolucionárias.
Nesse cenário, Cuba é uma exceção e um sinal de esperança. O re-
gime cubano é destaque no que concerne à justiça social. Prova disso Frei Betto é escritor, autor de Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura
é o fato de ocupar o 51º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano militar brasileira, que a editora Rocco faz chegar este mês às livrarias.

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Bruna Buzzo, Camila Martins, Felipe Larsen, Luana Schabib | foto Jesus Carlos

Serviços privados
enrolam os cidadãos

Empresas de telefonia, bancos e outros setores não respeitam as normas


de atendimento e fazem de tudo para burlar o Código de Defesa do Consumidor
A partir da década de 1990, com a explosão das empresas de te- reclamações mais frequentes é o limite de tempo de dois minutos,
lemarketing, grandes companhias de todas as áreas aderiram aos estipulado pelo Decreto nº 6.523, que acaba superado na maioria
Serviços de Atendimento ao Cliente, SACs. A ideia original era es- das ligações. Outro abuso recorrente é o do usuário ser obrigado
treitar a comunicação entre usuário e empresa. a relatar seu problema seguidas vezes, com o número de protocolo
Com o tempo, a área tornou-se a que mais (sub) emprega. Hoje, servindo apenas como formalidade.
há milhares de trabalhadores que atuam nesses serviços, e, perto A partir das denúncias, o Procon já fez duas fiscalizações diretas
de outros segmentos, a oferta é espantosa. Com pouca ou nenhuma em SACs, ação que resultou na autuação de boa parte das empresas
exigência de experiência, um exército de pessoas corre em busca de call center, que atualmente respondem processos pela não adapta-
das vagas. A maioria delas são vítimas do desemprego ou jovens em ção à lei em suas centrais. Alguns setores conseguiram se adequar,
busca do primeiro trabalho. Nas centrais, todas terceirizadas, os ainda que a melhora não signifique excelência. Outros permanecem
atendentes passam por diversas provações, desde duras restrições muito ruins.
quanto a pausas, até a missão de transmitir procedimentos absur- De acordo com a assessoria do Procon, o setor financeiro, ban-
dos aos clientes. Tudo isso sem falar nos baixos salários. cos e cartões de crédito são os campeões da categoria do mau aten-
Já os usuários enfrentam verdadeiras via-crúcis quando tentam dimento. Já em relação à dificuldade de resolução dos problemas, o
o contato nos call centers que mais se assemelham a “caos centers.” primeiro posto fica com a telefonia. Num distante segundo lugar (a
Muitas vezes, conseguir ser atendido é praticamente impossível. telefonia teve 2.700 reclamações, mais da metade das denúncias do
Quantas vezes não ouvimos a seguinte gravação: “Todos os aten- Procon) aparecem planos de saúde e TV por assinatura.
dentes estão ocupados, ligue mais tarde.” As reclamações referentes A espanhola Telefonica – que inclusive é dona da compatriota
às centrais de atendimento dividem-se em duas categorias: no atendi- Atento, uma das maiores do Brasil no ramo dos call centers –, é a
mento em si, e na resolução dos problemas dos usuários. “Há sempre empresa que mais tem reclamações, autuações e dificuldades para se
problemas na fatura, no pagamento ou no serviço. Quando o consumi- adaptar às novas regras.
dor entra em contato com o SAC, não consegue solucionar o problema”,
revela Carlos Coscarelli, assessor do Procon São Paulo. Desserviço
Até o ano passado, não havia estatísticas das principais ocorrências Na época do Carnaval deste ano, a professora de inglês Cláudia
ocorridas nas centrais de atendimento. Então, em 31 de julho de 2008 Seabra teve problemas de conexão com o serviço do Internet Ilimi-
foi editado o Decreto Federal nº 6.523, que define critérios mínimos no tada, pelo qual paga R$ 29,90 por mês. Na página da empresa na
atendimento de serviços regulados pelo governo, como telefonia, TV a internet, a Telefonica divulga que o serviço “foi criado justamen-
cabo, planos de saúde, energia elétrica, aviação. te para você utilizar a internet sem se preocupar com o tempo de
No período de 1º de dezembro de 2008 até hoje, o Procon rece- sua conexão”.
beu mais de quatro mil reclamações sobre o atendimento. Uma das No primeiro contato, a atendente lhe disse que “esse tipo de re-

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clamação tinha que ser feita por e-mail”. Cláudia respondeu: “Como centrais de atendimento não podem demorar mais de 60 segundos para
eu vou passar um e-mail se eu estou sem o serviço?” No segundo dar início ao atendimento, fazendo coro ao Decreto Federal nº 6.523.
contato, ouviu do atendente que o problema acontecia por excesso A assessoria de imprensa informou que desde que o decreto entrou
de usuários no serviço durante toda a madrugada. Quando questio- em vigor, em dezembro de 2008, fez um trabalho de fiscalização dentro
nou se a Telefonica previa algum reparo na rede, escutou que não. das centrais de atendimento, que durou até o fim de janeiro de 2009, e as
A orientação da empresa foi para Cláudia migrar para o serviço do principais irregularidades encontradas foram: atendimento condiciona-
Speedy, que é mais caro. do ao fornecimento de dados, falta de um canal único para atendimento
O Procon registra que os serviços de call center eram de péssima qua- dos diversos tipos de serviços, menu inicial sem as opções obrigatórias
lidade e melhoraram um pouco após a promulgação do decreto. “Mesmo de cancelamento, reclamação e contato com o atendente, mensagens
a telefonia que é muito ruim, melhorou. Antes não conseguia nem se fa- publicitárias, não fornecimento do número do protocolo após o atendi-
lar. Os processos estão em andamento. Temos que continuar cobrando, mento, tempo de atendimento de transferência de chamada superior a
aplicando sanções, para que eles mudem essa postura”, explica Carlos. 60 segundos, não divulgação dos números dos calls centers, principal-
Além da multa, que pode chegar a R$ 3 milhões, as empresas mente ao destinados ao atendimento de deficientes auditivos e de fala.
também estão sujeitas a outras punições mais graves, como sus- No entanto, a assessoria não soube informar os nomes das empresas, e
pensão do serviço, retirada dos produtos do mercado ou interdi- quais as irregularidades cometidas, já que o relatório final da fiscaliza-
ção. No entanto, tais medidas são muito difíceis de aplicar, já que ção não está completo.
tais serviços são essenciais, e estão sob a regulação de órgãos do Se as informações incompletas da Anatel incomodam, a falta de
governo. informação fornecida pelo Banco Central indigna. Criado em 1964,
Por conta da lentidão, o Procon divulga a lista de empresas e quais além de emitir moeda, regular a taxa de juros, e a política cambial,
são os problemas de cada uma, única alternativa para incomodá-las, a instituição também é responsável pela fiscalização dos bancos, ou
pois certamente não pagarão as multas tão cedo. como diz a assessoria de imprensa, “pelos serviços bancários pres-
Algumas empresas foram procuradas para se manifestar sobre tados, independentemente do canal que ele é oferecido”.
seus serviços de atendimento e sobre o ranking geral das 50 empre- Isso quer dizer que as centrais de atendimento não são preocu-
sas mais reclamadas, divulgado este ano pelo Procon. Entre elas, pações para o Banco Central. Enquanto nada de efetivo é feito, con-
estão a Telefonica (1º lugar), a TIM celular (3º), o banco Bradesco tinuamos reféns do “aguarde, a sua ligação está sendo transferida
(8º) e a Net São Paulo (23º). A escolha foi feita levando em conta as para um dos nossos atendentes”.
diversas áreas de atuação.
Durante duas semanas, a reportagem tentou contatá-las. Uma Do outro lado da linha
delas foi a TIM, que tem 892 reclamações registradas. Na Central Tão vítimas quanto os que aguardam na linha pela resolução de pro-
de Atendimento, a ligação foi transferida inúmeras vezes e nenhum blemas são os que mal pagos e extremamente pressionados, tentam so-
dos atendentes sabia informar qual era o número da assessoria de lucionar as centenas de casos que chegam a suas centrais de atendimen-
imprensa. Já o banco Bradesco, que conta com 656 reclamações, to todos os dias.
concordou em conversar com a reportagem, mas até o fechamen- Enquanto se preocupa com o problema não resolvido, grande par-
to da edição não havia enviado as respostas. A única empresa que te da população descarrega sua raiva no atendente da Central Telefoni-
se pronunciou foi a Telefonica, com 3.615 reclamações no Procon. ca, uma das menores e mais mal remuneradas peças do complexo siste-
Por e-mail disse “que implementou todas as medidas necessárias ma de um call center.
para o cumprimento das determinações, a partir de 1º de dezem- Júlio (nome fictício) trabalhou durante três anos e dois meses
bro de 2008”. na central de atendimento do Banco 24h, serviço prestado pela ter-
Segundo a empresa, o serviço recebe mensalmente uma média ceirizada TNL Contax S.A., uma das grandes do setor. Assim como
de seis milhões de chamadas, cerca de 200 mil por dia, entre recla- o serviço, o SAC também está sempre disponível. Embora o núme-
mações, informações e compra de produtos. A Telefonica ainda afir- ro de ligações pela madrugada seja bem pequeno, sempre há pelos
ma que contratou mais de dois mil profissionais, totalizando mais menos dois ou três atendentes de plantão.
de 22 mil pessoas em sua central. Além do Banco 24h, a Contax também é responsável pelos SACs
da rede de supermercados Carrefour, Fininvest, banco Bradesco e da
Lentidão do governo Companhia Telefônica Oi, dentre outros.
No mês de março, o site do Procon disponibilizou a lista das em- Cerca de 50 pessoas trabalham na operação do Banco 24h du-
presas que tiveram mais reclamações durante o ano de 2008. As rante o dia, atendendo em média 50 usuários cada, em uma jornada
cinco primeiras posições são ocupadas pelos grupos Telefonica, de trabalho que varia de quatro a seis horas. Em semanas de paga-
Itaú, Tim, Unibanco, e Brasil Telecon. mento, épocas de pico nesse SAC, Júlio se recorda de ter atendido
Como as queixas são feitas por meio das centrais de atendimento, mais de 100 casos. Mas ele lembra que a central de atendimento do
serviços terceirizados que ficam nas mãos das empresas de telemarke- Banco 24h é pequena, se comparada com os 500 operadores da Fi-
ting, na maioria dos casos em que há um problema a ser resolvido, o ninvest ou os 200 do Carrefour.
usuário acaba encontrando dificuldade, ao invés de solução. Fábio (nome fictício) trabalha em outro setor da mesma Con-
A reportagem entrou em contato com as agências fiscalizado- tax, no SAC da Fininvest. Há um ano e quatro meses na empresa,
ras dos serviços de telefonia, Anatel, e bancário, Banco Central, agora não atende mais telefone. É auxiliar administrativo. Traba-
para tentar esclarecer que atitudes as instituições tomam em rela- lha no setor responsável por solucionar os problemas dos clientes
ção aos call centers. ou encaminhá-los para que o banco os resolva. “Este trabalho tam-
Criada em 1997, em decorrência das privatizações feitas na era bém acaba se tornando estafante. O cliente não entende a posição
FHC, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) tem por ob- do banco e o banco não entende a posição do cliente”, afirma. Ele
jetivo fiscalizar os serviços prestados de telefonia fixa, móvel, inter- conta que a pior parte é entrar em contato com o cliente quando
net, e TV a cabo. necessário. Como nem sempre o setor administrativo traz boas no-
Como política de trabalho, a Anatel estabeleceu um plano geral de me- tícias, agressões e xingamentos são comuns.
tas de qualidade para os serviços que fiscaliza, onde está previsto que as Quando estava na linha, Fábio saía esgotado do trabalho. “Você

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35
Gershon Knispel

Reflexões
acaba levando os problemas do cliente com você. Sai de lá com o mun-
do nas costas. É algo que vai cansando, depois você não consegue
nem ver telefone direito. Vai acumulando os problemas dos clientes e
também a cobrança dos superiores.” sobre minha
Ele lembra que sem a variável – o bônus recebido pelo trabalha-
dor que cumpre as metas propostas pela empresa – o serviço na li- última viagem a Israel– 3
nha não valeria a pena, “é muito desgastante”, desabafa. Na linha,
Fábio era do setor de retenção. “O cliente liga para cancelar o car-
tão e nossa missão era convencê-lo do contrário.” A meta imposta
(final)
era reter 60% dos usuários que ligavam. Cada setor tem suas me-
tas específicas, mas em todos eles, se essas não são cumpridas, o

Gerações que vêm e vão


operador não ganha a variável no final do mês.
O salário beira os R$ 470 e com a variável, o operador pode re-
ceber cerca de R$ 800, R$ 900. “É bom como primeiro emprego, é
um serviço fácil, sobra tempo pra estudar ou fazer outra coisa, e Quando voltei do Ministério dos Assuntos Interio-
ali você convive com várias pessoas diferentes, faz boas amizades, res, com minha nova carteira de identidade, meus filhos
mas é difícil aguentar por muito tempo.” me perguntaram: “O que acontece com a sua cidadania
Júlio também reclama da agressividade dos clientes. “Nós aten- alemã?” “Pra quê?”, eu queria perguntar. Mas imedia-
díamos um serviço 24h, que recebe muitas reclamações absurdas. tamente me lembrei dessa nova catástrofe da nação, a
São berros, gritos, palavras ofensivas, de baixo calão mesmo.” Ele epidemia que levou nossos jovens a procurar nos velhos
conta que os homens do atendimento eram vítimas de menos gros- documentos nas gavetas cheias de poeira, em busca dos
serias, “mas as meninas recebiam ofensas pessoais graves, algumas passaportes dos avós e dos pais. Ficar na mão com um
chegavam a chorar”. passaporte da União Européia significa hoje um privilé-
A regra número um da Contax é que o cliente tem sempre razão. gio. Falei com ira a meus filhos: “Vocês não têm vergo-
Mas fazer tal afirmação não é tão simples. Júlio lembra que alguns nha de ficar com um passaporte alemão na mão? Uma
usuários chegavam a ameaçar os atendentes. O menosprezo dos usu- nação que expulsou teu avô, teu pai e acabou com a nos-
ários para com os operadores é comum. Discriminação trabalhista sa árvore genealógica?”
faz parte da rotina de quem trabalha na linha: “Muitos clientes di- Meus pensamentos sobre o destino do orgulho de fa-
zem coisas como ‘é por isso que você está aí’”, conta Júlio. “Quando zer parte de um país, que tínhamos nos inícios do Esta-
o cliente liga, o acesso do operador é muito restrito, não dá para re- do, sobre a nossa identidade, me ocupam cada vez mais.
solver o problema. Não há solução imediata”, diz. Fábio percebe que Lembro-me vagamente dos dias da minha adolescência, o
o banco às vezes “dá uma enrolada” para resolver o problema do usu- modo pelo qual recebemos nossos “irmãos” sobreviventes
ário, mas afirma que em sua maioria os casos são solucionados. do Holocausto da Europa, ainda na Palestina do mandato
Apesar da pequena carga horária, Júlio conta que a situação era britânico. Hoje entendo por que as pessoas que chegavam
complicada: “Os chefes pressionam: ‘Fulano, você demora muito na de lá não falavam sobre o que sofreram, por que não fala-
linha.’ A cobrança é demasiada. Cada vez mais diminui o salário e ram mais, nem a seus filhos, nem a seus netos. Nem bem
aumenta a cobrança. Eles exigem muito e não oferecem apoio ao tinham posto o pé na nossa “Terra Prometida”, chegando
trabalhador.” de um inferno pior do que o de Dante, eram perguntados:
“A estrutura física também é ruim. Mesas e cadeiras eram velhas, “Por que vocês aceitaram ser levados pelos alemães como
quebradas. A pessoa não podia sentar por que se sentasse o apoio para gado para o matadouro e não se revoltaram? Por que não
as costas machucava a coluna.” Para Júlio, em qualquer empresa, bri- escolheram morrer uma morte de heróis, levando o máxi-
gas são corriqueiras neste tipo de serviço. mo de alemães para o túmulo?”
Apesar do desgaste e da demasiada cobrança, o pior do trabalho no Aqui me lembro da fala do general Moshe Dayan, o isra-
SAC para Fábio eram as pausas automáticas. No começo do expedien- elense que mais bem conhecia a mentalidade árabe. Dayan
te, já aparece no computador a escala do dia: são três pausas, duas de conviveu desde o nascimento com os árabes dos vilarejos
dez minutos e uma para o lanche, de vinte, com horários controlados e da região. Sempre que saíamos para a guerra, ele procla-
gerados automaticamente pelo sistema. mava: “Nunca ofendam o orgulho dos árabes, esmagando
Fábio conta que como os horários variam, as pausas não são sem- sua honra, o único patrimônio que eles têm. Ferir o orgu-
pre no mesmo horário. “E às vezes são horários absurdos. Você entra lho deles vai deixá-los enfurecidos, eles vão se tornar os
às 8h, faz a primeira pausa às 9h, a pausa lanche às 10h e a última mais perigosos inimigos e nunca serão vencidos.”
pausa às 11h. E aí fica até as 14h sem comer ou ir ao banheiro.” Os árabes não têm nada a perder, fora do inferno em
A vontade de abandonar o emprego nos call centers predomina en- que estão afundados. Essa sabedoria de Dayan já foi es-
tre os funcionários, acredita Fábio. “As pessoas são legais, mas o tra- quecida há muito tempo; essa fruta apodrecida já come-
balho acaba te levando a querer sair”, diz. Júlio acredita que sua ex- mos na Segunda Guerra do Líbano e agora na invasão de
periência na Contax foi positiva: “No call center é possível perceber Gaza, em que o único objetivo que foi alcançado foi au-
o modo como as pessoas agem. Dá para avaliar a educação do nosso mentar ainda mais o prestígio dos líderes do Hamas, ao
país, que ainda precisa melhorar muito. Boa parte das pessoas, mes- invés de reduzi-los a pedaços, além de entregar as rédeas
mo aquelas que você percebe que são mais instruídas, são muito mal do poder a esses irmãos siameses que são Bibi Netanyahu
educadas.” As vítimas estão dos dois lados da linha. e Avigdor Liberman, liberados para executar seu plano de
limpeza étnica.
Bruna Buzzo, Camila Martins, Felipe Larsen, Luana Schabib são
repórteres Gershon Knispel é artista plástico

caros amigos junho 2009


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Mc Leonardo

Joel Rufino dos Santos

Não ao muro! amigos


papel

de
Todos aqueles que nasceram e foram criados em favelas têm O que é um bom romance?
algumas histórias de pessoas que foram em nossas casas e ao Para começar, um bom romance não pode ser chato.
sair sofreram algum tipo de abordagem preconceituosa por par- Na moda do nouveau roman, anos 1960, pulularam na Eu-
te de algum policial. ropa e, por imitação, no Brasil, romances chatos, ilegíveis.
A mais comum é a que o policial, depois de ter tirado até os Clarice Lispector tem um romance chato, A Maçã no Escuro.
sapatos da pessoa ali mesmo no meio da rua, levanta o queixo O romance chato sobrevive do leitor pretensioso: se os peri-
da pessoa e com uma lanterna apontada pra dentro do nariz, faz tos literários dizem que é bom, tem de ser.
a seguinte pergunta: Um bom romance é escrito no melhor idioma do país.
– O que você faz aqui? Melhor idioma do país não é o que falam as pessoas cul-
E seja lá qual for sua resposta, se ele notar que você não é dali tas, do Sudeste, universitários etc. Ele se situa numa espécie
vai finalizar a péssima abordagem com a seguinte frase: de base idiomática, presente em todo o país, uma língua mé-
– Isso aqui não é lugar pra você. dia que qualquer um – inclusive os iletrados – pode acompa-
Sabemos que todas as pessoas que frequentam as favelas es- nhar. Vejam a trilogia O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo.
poradicamente, por ter parentes, amigos ou desenvolver algum O tema é o povoamento do Rio Grande do Sul, certas perso-
tipo de trabalho nessas localidades, reclamam dos constrangi- nagens só se encontram naquela região, alguns episódios só
mentos que passam nessas situações. lá fazem sentido – como a matriarca Ana Cambará na cadei-
Atitudes como essa nos mostram que o muro que envolve a ra de balanço ouvindo a voz do vento no pampa sem frontei-
favela é muito antigo, grande, resistente, mas não é impossível ra. Mas qualquer brasileiro pode viajar naquela saga, senti-
de ser derrubado, pois cada vez mais as favelas estão sendo fre- la como sua.
quentadas por muita gente de diferentes lugares. Érico dá, aliás, em Solo de Clarineta (memórias), uma boa
O governo do Rio está com um projeto de murar as favelas definição de literatura. O pai era médico em Cruz Alta, no in-
com a argumentação de preservação do meio ambiente. terior do Rio Grande, e uma madrugada aparece um baleado
O presidente da Associação de Moradores da Rocinha (Chaulin) na barriga, precisando operação urgente. O pai acorda Érico,
deu a sugestão de um anel viário, que serviria de calçada para visi- lhe dá a tarefa de segurar a lamparina enquanto opera: “Não
tação turística na favela, como também de visitação dos favelados à vacila, Érico, ou o cara morre.” Quando termina, diz: “Pron-
floresta, e a secretária do Meio Ambiente respondeu que a decisão to, acabou, pode ir dormir.” O garoto desmaia. Mais tarde tira
do governador (de botar um muro de mais de dois quilômetros e daí uma metáfora: a função da literatura é iluminar as entra-
três metros de altura em volta da Rocinha) é irreversível. nhas da sociedade moribunda para outros a salvarem. Ela pró-
O governo diz que vai fiscalizar de helicóptero constantemen- pria não salva.
te para que os muros não virem a primeira parede de novas casas O bom romance deve sondar a nossa humanidade.
dos dois lados do muro, se vai haver fiscalização pra que murar? Podemos distinguir dois tipos de romance: o de puro en-
Proponho que enquanto o assunto não for plenamente dis- tretenimento e o de proposta. Do primeiro, como são os best-
cutido com quem vai conviver com esse apartheid, não se cons- sellers, que já deram lucro antes de chegar aqui, não se deve
trua muro nenhum. pedir muito. Para isto foram produzidos: entreter. Com os ro-
Enquanto isso, que tal despoluir a Baía de Guanabara, a La- mances de proposta devemos ser exigentes, pois são uma for-
goa Rodrigo de Freitas, a Lagoa de Marapendi... ma de conhecimento do homem. Forma superior, que não se
confunde com a sociologia, a história, a psicologia etc. Aliás,
MC Leonardo é compositor, autor, com seu irmão MC Junior, de o bom romance de proposta é também de entretenimento, vide
funks de protes-to, como o Rap das Armas. mcleonardo@carosami- D. Quixote (1605/1615), de Cervantes, pai de todos os roman-
gos.com.br - http://mcjunioreleonardo.wordpress.com ces, e Viva o Povo Brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro. O
romance, nesse sentido, é uma forma de mais-saber.
O bom romance comprova a unidade forma-conteúdo.
Pode o conteúdo existir independente da forma, e vice-ver-
sa? Por exemplo, que conteúdo quis expressar Graciliano Ra-
mos no romance Angústia (1936)? A angústia do homem-pa-
rafuso, condenado a dar voltas no mesmo lugar. Seria possível
dizer esse conteúdo de outra forma? Claro, mas o efeito so-
bre o leitor, seu significado para nós passaria a ser outro, não
mais o que Graciliano pretendeu. Conteúdo e forma não são a
mesma coisa, mas um não existe sem o outro.
Vejo daqui, apertado entre grandes romances, o Tristessa,
de Jack Kerouac. Não obedece a quase nenhuma dessas re-
gras. Mas é um grande romance.

Joel Rufino é historiador e escritor.

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Camila Martins

Mulheres
de coragem
Vítimas da violência doméstica, elas encontram
nas casas-abrigos a proteção e a chance de mudar de vida
Ana é a responsável pela limpeza do cen- casa quando o marido apareceu. Tinha fugi- Enquanto isso, ele dormiria em um colchone-
tro social de uma igreja na grande São Paulo. do. “Fiquei com medo, mas deixei que ficas- te na cozinha. As agressões só pioraram.
Morena bonita, beirando os 35 anos, conversa se lá porque eu ainda gostava dele. Foi dessa “Ele me xingava o dia inteiro de puta, de
bastante e sorri enquanto trabalha. Quando vez que eu engravidei. Em nenhum momento vagabunda, dizia que eu só estava fazendo
dá meio-dia, hora de seu almoço, avisa: “Va- ele aceitou a gravidez, me batia e xingava toda aquilo porque estava com outro homem. Era
mos porque só tenho uma hora.” Enquanto hora, dizia que ia abrir minha barriga com a tanto palavrão que o meu filho falava: ‘Respei-
seguimos em direção a uma das salas, explico faca e tirar a criança de dentro.” ta a minha mamãe, meu papai’”.
que a matéria é sobre abrigos para mulheres Com o tempo, as agressões foram aumen- Muitas noites, Ana acordava assustada
que sofrem violência doméstica. Ana começa tando. Ana era agredida verbalmente. Tapas e achando que estava sendo alisada. “Tinha cer-
a tremer, e assim que sentamos ela diz, com pontapés também eram comuns. Até que che- teza que ele estava fazendo isso, mas fazia eu
voz engasgada: “Falar disso ainda é muito di- gou a vez do abuso sexual. me passar por louca.” Certa vez, acordou no
fícil pra mim.” Depois de um assalto que D. e os amigos meio da noite com um barulho de faca raspan-
Baiana de Salvador, Ana conheceu seu ex- fizeram, eles foram comemorar com uma fes- do no chão. “Fui correndo na cozinha ver o que
marido, D., quando ainda era menina. “Ele ta na casa de Ana, que durou o dia todo. “Eles estava acontecendo, abri uma das gavetas e vi
sempre ficou atrás de mim, dizendo que me usaram muita droga. Fiquei esperando do que o facão de cortar coco tinha sumido. Ele
amava, até que, aos 18 anos, aceitei namorar lado de fora, até que anoiteceu e eu precisava começou a dar risada e me mostrou o facão es-
com ele.” Depois de um tempo juntos, D. mu- colocar meu filho pra dormir. Quando entrei condido embaixo do colchão, disse que ia me
dou-se para São Paulo para “tentar a vida”. em casa, ele olhou pra mim e disse: ‘me espe- matar naquela noite. Acho que ele só não me
Sete meses depois, Ana foi fazer uma visita ao ra lá em cima porque hoje eu estou animado matou porque meu filho ajoelhou nos pés dele
namorado, e acabou ficando. Nunca suspeitou e quero transar com você a noite inteira’. Dei- implorando pra ele não fazer nada.”
da agressividade do companheiro. tei na cama e fingi que estava dormindo, es- O ponto final chegou no dia em que Ana
O primeiro soco aconteceu depois de qua- tava morrendo de medo. Quando ele chegou virou a agressora. “Mais uma vez, durante a
tro meses na capital paulista. “Estávamos em perto, cumpriu o que disse. Me estuprou du- noite, acordei com ele querendo se masturbar
uma festa quando percebi que ele estava me rante toda a noite.” em cima de mim, com o meu filho deitado do
desrespeitando, dando em cima de outras mu- meu lado. Fiquei maluca, fora de mim. Cravei
lheres na minha frente. Falei isso pra ele, mas Mais violência minha unha na bochecha dele até sair sangue.
ele não respondeu nada. Assim que chegamos Ana não reagia. Entrou em depressão, lar- Ele não teve reação nenhuma, só pedia para eu
em casa, ele se transformou. Trancou a porta gou o emprego, parou de tomar banho e che- parar de fazer aquilo em nome do nosso filho
do quarto e me deu um soco na cara. Me fez gou a pesar 38 quilos. Só saía de casa às segun- – argumento que eu sempre usava quando ele
ilustração ricardo reis/www.reisricardo.com

deitar de lado no chão, sem roupa, e disse que das-feiras, para levar o filho na fonoaudióloga. me batia. Enquanto isso, eu enchia ele de soco,
se eu me mexesse ia me esfaquear. Fiquei as- Nunca buscou ajuda, até o dia da inauguração de mão fechada mesmo. Mordia com tanta for-
sim das 6 da manhã até as 7 da noite”, recorda de uma Casa de Referência em sua rua. No en- ça, que tirava os pedaços de carne da boca. Só
Ana. A alegação que D. dava para bater na es- tanto, mesmo sabendo dos seus direitos, Ana parei quando meu filho acordou chorando e
posa era que Ana não era mais virgem quan- não quis fazer boletim de ocorrência. viu o pai todo ensanguentado. Foi ali que eu
do começaram o relacionamento. Só depois da terceira fuga de D. da peniten- vi que não podia mais continuar naquela vida,
Também foi nessa época que D. ficou de- ciária, Ana começou a mudar de opinião. Mes- dentro daquela casa. Quando amanheceu, o D.
sempregado e entrou para a vida do crime. mo sem ter mais nenhum vínculo afetivo com saiu, eu peguei algumas peças de roupa, filho,
Não demorou muito para que fosse preso. No o marido, ela aceitou a permanência dele na cachorro, e fui direto pra Casa de Referência.
feriado de sete de setembro, Ana estava em casa até que arrumasse um lugar para ficar. De lá, fui levada pra um abrigo.”

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Hoje, o País conta com 70 abrigos, sendo 16 de- Ausência de dados
les no Estado de São Paulo. Graziela lembra também que “outra coisa
A casa-abrigo é o local onde são levadas muito importante que não existe é uma política
mulheres que estão sendo ameaçadas de mor- de aluguel social, que seria uma alternativa ao
te por seus companheiros. Com endereço si- abrigo, pois a mulher, recebendo a ajuda do Es-
giloso, a mulher que procura esse serviço já é tado, conseguiria reconstruir sua vida com au-
vítima de violência doméstica crônica. tonomia”, afirma.
Quando consegue identificar essa situação, O trabalho com mulheres vítimas de violên-
é necessário que ela deixe tudo pra trás: casa, cia se torna mais complicado, pois no Brasil não
emprego, amigos. É recomendável, até, que tire existem dados oficiais sobre a violência domés-
o filho da escola. Só assim consegue preservar tica. De acordo com a psicóloga Paula Prates,
sua vida. E foi isso que aconteceu com Ana. que foi coordenadora do abrigo Casa da Ma-
mãe, “como nunca fizeram uma pesquisa para
Políticas públicas ser usada como referência nos atendimentos,
Mas o abrigo não é um hotel, nem um mero resolvi fazer o mestrado pra entender a violên-
depósito de mulheres. Quem explica a função cia de maneira teórica”.
do serviço é a teóloga Haidi Jarschel. De acor- Paula relata que durante os anos de traba-
do com ela, para apresentar resultados, uma lho no abrigo, “o que mais me intrigava era o
política de abrigo deve estar ancorada em fato de que o número de mulheres que passa-
um tripé: “Na segurança e proteção das mu- vam por lá e conseguiam depois reconstruir
Luta do movimento feminista lheres e seus filhos, garantindo boas instala- uma nova vida, era quase o mesmo daquelas
“Mas o que é um abrigo?”. Tal pergun- ções, alimentação, higiene, e ética dos profis- que voltavam para o agressor”.
ta, que não saía da cabeça de Ana durante sionais em relação ao sigilo absoluto do lugar; Na avaliação da pesquisadora, o foco do
o percurso entre a Casa de Referência e o no trabalho psicossocial, no sentido de forta- trabalho dos abrigos deve ser a desconstru-
local, também é uma questão obscura para lecer essas mulheres para elaborar um novo ção da maneira como as abrigadas se reco-
maioria da população. Geralmente confundi- projeto de vida que rompa com o ciclo de vio- nhecem como mulher, e a construção de uma
do com albergues para pessoas que estão em lência; e na rede de políticas públicas em vol- nova identidade, tentando “fazê-las entender
situações de desamparo social, como andari- ta que possam oferecer suporte quando ela sai que sofrem violência de gênero”.
lhos e meninos de rua, as casas-abrigos são do abrigo. E este é o grande problema.” Para a teóloga Haidi Jarschel, a casa-abrigo
resultado dos anos de luta do movimento fe- Haidi foi por vários anos coordenadora do não é apenas um lugar de esconderijo e prote-
minista no Brasil. Abrigo Regional do ABC, projeto bem suce- ção, mas também representa uma grande opor-
Durante a década de 1970, o Brasil vivia dido que, através de um consórcio entre as tunidade das mulheres refazerem suas vidas.
seus anos mais duros. A ditadura militar asso- sete cidades da região, já atendeu centenas Foi isso mesmo que Ana fez. Um mês vivendo
lava o país com repressão e tortura. Enquanto de mulheres. no abrigo foi suficiente para que ela se reer-
o debate sobre o tema fervilhava, o movimen- Para a teóloga, o trabalho regional é inte- guesse. Cheia de força e vontade de lutar, foi
to feminista trazia a público outro tipo de vio- ressante não só pelo fato de os municípios di- atrás de emprego. Desde então, está trabalhan-
lência que acontecia no âmbito privado, a vio- vidirem os gastos com o serviço, que custa, do no centro social.
lência contra a mulher. em média, de R$ 800 a R$ 1.000 por pessoa Apesar do prazo estipulado para permane-
O período foi marcado por dois assassina- (esse valor inclui apenas alimentação, água, cer no abrigo ser de seis meses, como seu caso
tos que ganharam grande repercussão. Em luz, e pagamento dos profissionais que traba- envolvia um parceiro criminoso, Ana ficou
1970, o procurador da Justiça Augusto Car- lham na casa); mas porque também contribui abrigada por 11. Durante esse tempo, apro-
los Eduardo da Rocha Monteiro Gallo ma- com a segurança da mulher. veitou para juntar dinheiro, e, quando saiu,
tou com 11 facadas a esposa Margot Proença No entanto, mesmo com todos os benefí- alugou uma casa para ela e o filho, pagando
Gallo. Em 1976, Doca Street atirou três vezes cios que o abrigo pode proporcionar, ele não três meses adiantados.
no rosto e uma na nuca da namorada Ângela deve ser entendido como um fim, nem mes- Desde então, toda sua atenção está voltada
Diniz. Ambos os assassinatos foram motiva- mo trabalhar sozinho, apontam especialistas. aos tratamentos psicológicos que seu filho rece-
dos por ciúmes e supostas traições, e, quan- Hoje, o serviço de apoio à mulher encontra-se be. O histórico de violência desencadeou crises
do levados à justiça, foram justificados como ancorado na tríade: casa de referência, dele- nervosas e de ansiedade, que o faz comer tudo
legítima defesa da honra. gacia da mulher e casa-abrigo. Porém, todas que vê pela frente, como lápis de cor e cola.
No entanto, foi só na década de 1980 que as entrevistadas registraram o sucateamento Mas mesmo com todas essas vitórias, Ana
os assassinatos de mulheres pelos seus par- das delegacias, que trabalham com funcioná- ainda é uma mulher em risco. Seu ex-marido
ceiros foram reconhecidos como crime. Mais rias mal treinadas. está preso em Recife, Pernambuco, por latrocí-
uma vez, as feministas tomaram à frente, na De acordo com a coordenadora da Casa de nio (roubo seguido de morte), e ameaça, de den-
ausência de políticas públicas para o tema. As- Referência Eliane de Gramont, Graziela Ac- tro da prisão, à família de Ana.
sim, criaram, em 1980, o SOS Mulher, centro quaviva, o abrigo também tem que estar ligado Por isso, seus familiares não sabem onde ela
de apoio que contava com trabalho de advo- a uma rede de políticas públicas em sua volta. mora, nem têm seu número de telefone. Ana
gadas, psicólogas e grupos de reflexão, tudo No entanto, na prática, não é isso que aconte- olha no relógio, 13 horas em ponto: “Agora eu
com trabalho voluntário. ce, pois “em tempo de Lei Maria da Penha, o preciso ir, vou almoçar rapidinho pra voltar ao
Pouco depois, foi criada a Delegacia da abrigo deveria ser o último dos recursos. Se a trabalho.” Trocamos um abraço forte, agradeço
Mulher, e em 1986, a Secretária de Seguran- polícia garantisse a segurança daquela mulher pela entrevista, ela responde: “Eu que agrade-
ça Pública montou o Centro de Convivência que conta com a medida de proteção que impe- ço por me deixar falar.”
para Mulheres Vítimas de Violência Domésti- de a aproximação do marido, ela não precisa-
ca (Comvida), primeira casa-abrigo do Brasil. ria deixar tudo pra trás”, critica. Camila Martins é repórter.

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Tatiana Merlino

Será que ele


pode mesmo?
Obama chegou à presidência dos Eua com promessas
de mudanças. após cinco meses de governo o slogan da campanha
“Yes, we can” está sendo deixado de lado
A vitória do primeiro presidente negro da palavras mais proferidas em seus discursos dores ao fazerem-nos pensar que ele repre-
história dos Estados Unidos, homem de nome (change, ou mudança) e a um inegável caris- senta uma mudança maior do que realmen-
árabe, filho de um queniano e uma estaduni- ma, reforçou, internamente e externamente, te é. Ele representa algo diferente do Bush,
dense, despertou esperança em todo o mundo a certeza de reais transformações. Cinco me- mas não fundamentalmente novo, porque
quanto a possíveis alterações nos rumos da ses após sua posse, a pergunta é inevitável: em muitas coisas é um tradicional membro
política interna e externa da maior potência será que ele pode mesmo?   do Partido Democrata”.
mundial. A eleição de Barack Hussein Obama, Howard Zinn, historiador e professor de
carregada de simbolismo, é emblemática num ciência política da Universidade de Boston, Declínio político
país tradicionalmente marcado pela discrimi- nos EUA, acredita que a vitória de Obama O historiador e cientista político Luiz Al-
nação racial, nação que somente em 1965 per- indica que o país da América do Norte pro- berto Moniz Bandeira vai além. Para ele, a
mitiu aos negros o direito de votar. Significa, grediu bastante na superação do racismo, e eleição para a Presidência dos Estados Unidos
também, o fim da truculenta era Bush. é resultado da aversão dos estadunidenses à de um homem negro revela “mais um sinto-
“Yes, we can”. “Sim, nós podemos.” Eco- administração George W. Bush. No entanto, ma do declínio político do Império americano,
ado por todo o planeta, o slogan da campa- na sua avaliação, a eloquência e o carisma até então governado por uma elite chamada
nha eleitoral de Obama, somado a uma das de Obama enganam muitos dos seus segui- de WASP (white, anglo-saxon, protestant),

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isto é, branca, anglo-saxônica e pro- dunidense, prometeu rejeitar as
testante, a elite “loira, de olhos azuis” comissões militares e respeitar a
que controla o sistema financeiro e à Convenção de Genebra. “Nossa Cons-
qual o presidente Lula se referiu como tituição e Código de Justiça Militar
responsável pela debacle da economia já nos dão uma estrutura para jul-
mundial. Essa elite fracassou. Mas não gar terroristas.” Na mesma ocasião,
significa que perdeu o poder.” Obama declarou também que as co-
Em certa medida, o fenômeno Oba- missões militares de exceção da era
ma é semelhante ao de Lula, sindica- Bush eram um fracasso, e afirmou
lista do ABC, nordestino e perten- que seria melhor julgar os presos de
cente a um partido originariamente Guantánamo em cortes marciais ou
vinculado às causas populares. Dados tribunais federais. Ao assumir a Pre-
biográficos que, num outro momento sidência, decretou a suspensão por
histórico, não lhe permitiriam chegar quatro meses dos julgamentos em
à Presidência do Brasil. Assim como comissões militares. Com isso, espe-
Lula foi o primeiro operário a vencer rava-se que os casos fossem transfe-
as eleições para o cargo mais impor- ridos para cortes federais. No entan-
tante do seu país, Obama foi o pri- to, Obama anunciou, em 15 de maio
meiro negro a ocupar a Casa Branca. de 2009, que retomará as tais comis-
Ambos superaram preconceitos. Am- sões, decisão que provocou críticas
bos suscitaram uma esperança enor- duras de ativistas de direitos huma-
me. Possivelmente injustificada. nos e entidades de esquerda.
É o que pensa a intelectual estaduni- Dias depois, garantiu que as mes-
dense radicada na França, Susan George, dou- mitar a atuação do governo”. Assim, apesar mas serão reformadas, para oferecer mais
tora em política pela École des Houtes Études das promessas de Obama de alterar as dire- proteção legal aos réus. Com as mudanças,
en Sciences Sociales, de Paris, França. Para trizes políticas estabelecidas pelo presiden- as comissões militares não poderão mais
ela, Obama representa uma mudança em rela- te George W. Bush, ele “só promoveu mu- usar provas obtidas a partir de métodos de
ção aos últimos 30 anos, pois possui “políticas danças cosméticas”. Até agora, com cinco interrogatório desumanos ou cruéis e darão
mais progressistas do que muitos presidentes meses no governo, “não fechou o campo de mais liberdade para o detento escolher um
durante um longo período. Então, é bem vin- concentração de Guantánamo e recuou em advogado. Apesar das alterações, a manuten-
do”. “Mas não é um político radical, ao contrá- diversas outras medidas”. ção das comissões é vista como uma “traição”
rio do que muita gente pensa.” Mal tomou posse, o presidente Barack Oba- por alguns apoiadores do presidente.
Ou seja, pondera Moniz Bandeira, embo- ma anunciou o fim das torturas nos interroga- Obama também deu um passo atrás em re-
ra seja um político carismático e tenha sina- tórios de “suspeitos” de terrorismo, o fecha- lação à divulgação de fotos de torturas e abu-
lizado medidas progressistas durante a sua mento da prisão de Guantánamo, localizada na sos que teriam sido cometidos por soldados
campanha, em termos de diretrizes políticas, base militar estadunidense em Cuba, e a trans- estadunidenses em prisões no Iraque ou no
as diferenças em relação a Bush não são fun- ferência dos 241 presos do local para outros Afeganistão durante a gestão de seu anteces-
damentais, devido às relações reais de poder cárceres nos Estados Unidos e em outros pa- sor. A nova administração havia afirmado, em
existentes nos Estados Unidos. “Obama, por íses. A medida recebeu loas em todo mundo. abril, que liberaria, até 28 de maio, as ima-
exemplo, não pode cortar substancialmente Obama parecia, de fato, ser diferente. gens. Porém, dia 13 de maio, o presidente re-
as encomendas do Pentágono a fim de redu- No entanto, o tempo foi passando e sua cuou e proibiu a publicação “imediata” destas
zir o déficit fiscal dos Estados Unidos, que equipe foi percebendo que fechar Guantá- fotos, para, segundo ele, não atrapalhar e co-
cresce ano a ano. Se tentasse fazê-lo, diver- namo até janeiro de 2010, como anuncia- locar em perigo o trabalho das tropas estadu-
sas indústrias de material bélico logo que- do, é uma tarefa bem mais difícil do que se nidenses no Iraque e no Afeganistão.
brariam, aumentando o desemprego e arrui- imaginava inicialmente. O golpe mais duro
nando os Estados onde estão instaladas. No ocorreu em maio, quando a Câmara de Re- Campo retórico
entanto, o complexo industrial-militar é uma presentantes (o equivalente, no Brasil, à Câ- Se as mudanças prometidas por Obama
bolha inflada pelos recursos públicos, e mais mara dos Deputados) se recusou a incluir, no tema direitos humanos permanecem, até
dia menos dia vai estourar, como aconteceu dentro do Orçamento de US$ 96,7 bilhões agora, muito mais no campo da retórica,
com a bolha do sistema financeiro e a indús- para as ocupações no Iraque e no Afeganis- o mesmo se pode afirmar quando o assun-
tria automobilística”, explica. tão, uma verba de US$ 50 milhões que Oba- to é diplomacia. O novo presidente estadu-
ma havia solicitado para a transferência dos nidense garantiu que, com os EUA sob seu
Correlação de forças presos de Guantánamo. comando, o mundo voltaria à era do multi-
Desse modo, independentemente do per- lateralismo na resolução de impasses e con-
fil, partido e tendência política do chefe de Julgamento de “suspeitos” flitos. Prometeu, também, estabelecer diá-
Estado dos EUA, há limites praticamente ins- Outro recuo de Obama no mesmo tema se logos com países “inimigos”, como Cuba,
transponíveis para a sua atuação, impostos deu em relação às comissões militares cria- Venezuela, Síria e Irã. 
pela correlação de forças presente na socie- das por Bush para julgar os “suspeitos” de Mas, em abril, o relatório anual sobre ter-
dade estadunidense. Como exemplo, Moniz terrorismo, duramente criticadas por orga- rorismo do Departamento de Estado estadu-
Bandeira cita “os lobbies, que representam nizações de direitos humanos por não res- nidense incluiu justamente Cuba, Irã, Síria,
poderosos interesses econômicos, sociais e peitarem o pleno direito de defesa do réu. além do Sudão, como “Estados patrocinado-
políticos nos Estados Unidos, são muito po- No ano passado, o então candidato a pre- res de terrorismo”. Os quatro já constavam
derosos, e tendem sempre a pautar e deli- sidente do EUA disse ter fé na Justiça esta- dos relatórios de Bush, que removeu a Co-

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réia do Norte da lista em 2008. “O Irã con- Terreno perdido quistão” e “para o povo norte-americano, a
tinua sendo o mais ativo dos Estados que A postura conciliatória de Obama pode- região fronteiriça [entre as duas nações] tor-
apoiam movimentos terroristas”, diz o do- ria ser interpretada como uma tentativa de nou-se o local mais perigoso do mundo”.
cumento divulgado. recuperar o terreno perdido diplomatica- Na ocasião, Obama esqueceu-se de men-
O informe foi apresentado depois que o go- mente pela gestão Bush. Para o historiador cionar que os dois países estão localizados
verno dos EUA havia levantado as restrições e cientista político Moniz Bandeira, o presi- bem na rota de importantíssimos gasodu-
de viagens e envio de dinheiro por parte de dente estadunidense busca ajustar a políti- tos, e que o crescimento da influência geo-
cubano-estadunidenses à Cuba. Muitos apos- ca externa de seu país à nova realidade. “Ao política da Rússia e da China sobre a Ásia
tavam que a retirada da ilha caribenha da lis- longo das últimas três décadas, os Estados central preocupa os estadunidenses.
ta seria o passo seguinte. Estar presente em Unidos sofreram acentuado enfraquecimen-
tal relação impede automaticamente o país de to econômico, moral e político. Sua hege- Nova estratégia
comercializar com os Estados Unidos. monia na América Latina desvaneceu-se em Em artigo, o sociólogo estadunidense
O relatório aponta, ainda, a Venezuela consequência, entre outros fatores, do fra- Immanuel Wallerstein aponta que, apesar
como um país que “não coopera totalmente” casso das ditaduras militares e do insuces- da luta contra a Al-Qaeda não ser mais cha-
com os estadunidenses na “guerra contra o so das políticas neoliberais, implementadas mada de “guerra contra o terrorismo”, como
terror”. A preocupação do governo dos EUA por governos democráticos, em conformida- na era Bush, é difícil distinguir a diferen-
é a aproximação de Hugo Chávez com o Irã. de com o consenso de Washington”, analisa. ça entre elas. “Obama afirma que a admi-
Segundo ele, Obama procura “evitar que o nistração Bush perdeu o ‘foco’ e que agora
Futuro comum anti-americanismo continue a recrudescer, ele instalou uma ‘nova e abrangente estra-
Os termos do documento entram em con- como ocorreu, sobretudo, no governo de Ge- tégia’. Em resumo, Obama vai fazê-la me-
fronto com a retórica conciliatória da atual orge W. Bush, e prejudique cada vez mais os lhor que Bush.”
administração, desenhada na Quinta Cúpu- interesses econômicos e políticos dos Esta- Entre os novos elementos da “nova” guer-
la das Américas, realizada entre 17 e 19 de dos Unidos na região”. ra, estão o aumento do envio, para o Afega-
abril, em Trinidad e Tobago: “Não vim falar Para tal, ter o Brasil como aliado na Amé- nistão, de tropas – 17 mil soldados estadu-
do passado, mas sim discutir o nosso futuro rica Latina é fundamental. Se com os líderes nidenses e quatro mil  instrutores militares
comum”, disse Obama a seus pares. latinoamericanos em geral Obama sinalizou – e  de mais dinheiro, para “construir esco-
Embora tenha sido fraca em resultados amabilidade, com Lula e o Brasil ele foi ain- las, estradas e hospitais”. Em resumo, “o ob-
específicos e concretos, a cúpula foi marca- da mais longe. Basta lembrar a “declaração jetivo de Obama de ‘romper, desmantelar e
da por sorrisos, apertos de mão e pela cor- de amor” feita ao presidente brasileiro no derrotar a Al-Qaeda no Paquistão e no Afe-
dialidade do presidente dos EUA para com começo de abril, durante a reunião do G20: ganistão, e evitar o seu regresso a qualquer
líderes tratados como inimigos pela admi- “Esse é o cara! Eu adoro esse cara!”, segui- dos dois países no futuro’ está provavelmen-
nistração Bush. Obama sinalizou uma apro- dos de “Esse é o político mais popular da ter- te mais longe que nunca de se atingir. As-
ximação com chefes de Estado que costu- ra” e “é porque ele é bonito”. sim, onde estaremos daqui a seis meses?
mam proferir discursos anti-imperialistas, Na avaliação de Zibechi, “o Brasil é uma Haverá mais tropas estadunidenses no Afe-
como Chávez, da Venezuela, Evo Morales, peça-chave para os Estados Unidos. É o úni- ganistão, e os comandos norte-americanos
da Bolívia, Rafael Correa, do Equador e Da- co país que pode competir com os estaduni- provavelmente dirão que os 21 mil solda-
niel Ortega, da Nicarágua. “Temos muitas denses na região. É autossuficiente em pe- dos não são suficientes. Haverá mais retira-
diferenças em relação a vários assuntos, tróleo e gás, em mineração e agricultura, das de tropas da Otan de lá, uma repetição
mas na medida em que pudermos respei- e é a única nação que tem uma burguesia do cenário do Iraque. Haverá mais bombar-
tar as regras democráticas poderemos en- com interesses próprios, um empresariado deios no Paquistão, e, consequentemente,
contrar o que temos em comum”, defendeu. que não tem nada que invejar a nenhum ou- ainda mais intensos sentimentos anti-esta-
O novo presidente estadunidense também tro do mundo”. dunidenses por todo o país”, critica.
afirmou ter chegado ao fim o tempo em que Se a postura em relação à América La- A “previsão” de Wallerstein já vem se con-
Washington se limitava ao uso de seu pode- tina mudou, mas a política e os interesses firmando. Os ataques do governo paquista-
rio militar e que a cúpula foi a oportunida- continuam os mesmos, não é muito diferen- nês no vale do Swat, que seria reduto de ta-
de de mudar a visão que os EUA têm de seus te com o que vem acontecendo nas diretri- lebãs, já causaram o deslocamento forçado
vizinhos do sul. Disse ainda que, em sua me- zes estadunidenses para o Oriente Médio e de centenas de milhares de pessoas. O his-
lhor versão, seu país representa “os melho- a Ásia Central. “Não é novo o papel impe- toriador estadunidense Howard Zinn lem-
res valores e ideais”. “Mas é preciso aceitar rial como o que está ocorrendo nestes dias bra que, assim que assumiu, Obama apro-
que outros têm diferentes culturas e outros no Paquistão, onde os militares do país fa- vou o envio de mísseis ao Paquistão, “que
valores com os quais se pode conviver. Ou- zem a guerra [contra os talebãs] por ordem até agora mataram centenas de pessoas ino-
tros países têm boas ideias também, e deve- de Washington. Não há nenhuma mudança centes e criaram mais hostilidade em rela-
mos escutá-las”, concluiu.   na guerra, apenas uma alteração de cená- ção aos EUA”. Além disso, aponta Zinn, o
“Pelo visto, mudaram os modos na rela- rio, pois a ênfase não é mais o Iraque, e sim novo governo mantém um orçamento mili-
ção entre América Latina e EUA. Já não se o Afeganistão e o Paquistão”, explica o jor- tar imenso e se manteve em silêncio com
dizem algumas grosserias como antes. Ten- nalista uruguaio. os bombardeios israelenses à Faixa de Gaza,
ta-se dar mais prioridade ao diálogo, mas o Em março, Obama apresentou um novo em janeiro. “Tudo isso sugere que ele será
diálogo não tem sentido se não for para ce- plano para a “guerra ao terror” nos dois paí- um típico presidente de Partido Democrata,
der algo, para entregar algo para o outro”, ses, com o objetivo de “dividir, destruir e der- um pouco mais reformista em política inter-
avalia o jornalista uruguaio Raúl Zibechi, rotar a Al Qaeda” na região. Segundo o novo na, mas ainda agressivo e violento em polí-
editor do semanário Brecha e pesquisador presidente estadunidense, a situação é “cres- tica externa”, resume.
da Multiuniversidade Franciscana da Amé- centemente perigosa”, “o futuro do Afeganis-
rica Latina. tão está ligado ao futuro do seu vizinho, o Pa- Tatiana Merlino é jornalista.

caros amigos junho 2009


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Fidel Castro Ruz Emir Sader

O que informou Saúde pública


a revista Science contra epidemias

Quando li uma notícia publicada no México por Mark Stevenson e Em tempos de tanta insegurança na saúde pública, quando uma
David Koop, transmitida pela AP, vi que nela não havia intenção algu- epidemia causa pânico global, revela-se com clareza a fragilidade
ma de me dar razão, quando mais de uma vez reiterou que eu tinha acu- das nossas sociedades diante de problemas dessa ordem. Nunca
sado o México de ocultar a epidemia até depois da visita de Obama. como nesses momentos ressalta a diferença entre sociedades marca-
Que diz a notícia textualmente? das por sistemas de saúde pública frágeis, com um predomínio das
“A visita de Obama, em 16 de abril, aconteceu uma semana antes empresas de saúde privada, e aquelas fundadas na saúde publica.
que os funcionários da saúde anunciassem que a influenza suína se es- Conto uma experiência muito distinta, vivida em Cuba, que
tava propalando, o que levou ao eventual fechamento em massa de lo- demonstra a diferença de atuação de uma sociedade fundada na
cais de trabalho, que praticamente paralisou muitas partes do país. saúde pública. Houve uma epidemia de conjuntivite hemorrágica.
“Uma pesquisa publicada em maio na revista Science calculava Parecia estranho, talvez o vírus tivesse sido inoculado pelos EUA,
que, em 23 de abril, data em que foi anunciada a epidemia, pos- o que já tinha acontecido muitas vezes.
sivelmente o México já tivesse 23 mil casos de influenza suína. A A ação do governo não se fez esperar: imediatamente foi proi-
enquete considera que a influenza suína causa a morte de entre bida a venda de colírio nas farmácias, obrigando a todos se dirigi-
0,4% e 1,4% de suas vítimas. rem aos centros de saúde, que existem em todos os bairros, com
“A pesquisa publicada pela Science sugere a existência de muitos excelente atendimento gratuito. Uma vez constatados sintomas da
mais casos que os confirmados nos laboratórios, entre seis mil e 32 mil doença, imediatamente se decidiu por licença de uma semana do
no México, desde 23 de abril. A influenza se alastrou desde essa data trabalho – possível, por ser uma economia socializada. Como resul-
por todo o mundo e, segundo o estudo, parece ser muito mais contagio- tado, a epidemia foi controlada e terminou rapidamente.
sa que a influenza comum que se apresenta em cada temporada. Tudo isso foi possível porque se trata de uma economia socializada,
“Os cientistas também compararam o DNA dos vírus em 23 ca- de uma sociedade não fundada no lucro, mas no bem-estar das pessoas.
sos confirmados e fizeram a estimativa de que em 12 de janeiro Uma sociedade que tem melhores índices de saúde do que os EUA, tanto
devem ter aparecido os primeiros casos, provavelmente contagia- de expectativa de vida ao nascer, como de mortalidade infantil.
dos de pessoa a pessoa. Vê-se a diferença, por exemplo, com o México, em que foram suspen-
“Os cientistas indicaram que, ao que parece, a influenza H1N1 sas missas, aulas, jogos de futebol, mas em que os trabalhadores conti-
de 2009 será tão severa quanto a de 1957, contudo, menos que a nuaram a estar sujeitos a pegar a gripe suína, porque não foi suspenso
mortal de 1918. o trabalho. Em que a pressão dos donos de bares e restaurantes para
“No entanto, seis dos 31 Estados mexicanos adiaram mais outra se- não diminuir seus lucros foi enorme, não importando se a convivência
mana a reabertura das escolas por causa do aumento dos casos de in- pública deixaria os fregueses passíveis de pegar a gripe.
fluenza em nível local e um sétimo Estado a adiou mais um dia, isto é, Diante disso, é mais absurda ainda a resistência de colegiados mé-
até a terça-feira. O Departamento de Educação anunciou que acrescen- dicos no Brasil para que o nosso país reconheça os diplomas cubanos e
tará sete dias ao ano letivo para recuperar o tempo perdido. possa dispor já de três gerações de médicos formados na melhor saúde
“Enquanto os funcionários elogiam os sistemas de educação e pública do mundo. As primeiras gerações de médicos pobres no Brasil
de saúde pela sua resposta à crise, constata-se que o já sobrecar- e em toda a América Latina se formaram nas Escolas Latinoamericanas
regado sistema de saúde do México começa a dar sinais de estar de Medicina, em Havana e na Venezuela, e não no Brasil.
sob grande pressão.
“‘O governo nos pediu ajuda para combater a epidemia da in-
sugestões de leitura
fluenza, agora nós pedimos ao governo que faça justiça’, disse a en-
fermeira Mariana Cortés, uma das organizadoras do protesto.” A REVOLUÇÃO VENEZUELANA
Tantos esforços que fiz para demonstrar que, desde o final de Gilberto Maringoni
março, já estavam aparecendo sintomas, cinco semanas antes do Edunesp
anúncio oficial da epidemia! A revista Science expressa sua opi- MARX: INTÉRPRETE DA CONTEMPORANEIDADE
José Carlos Ruy, Sergio Lessa, Antonio Carlos Mazzeo e outros
nião de que, possivelmente, entre janeiro e março de 2009, apare-
Quarteto Editorial
ceu a doença no México.
Não fui eu quem escreveu essa notícia nem escrevi o artigo da INTRODUÇÃO AO TEATRO DIALÉTICO
Sergio de Carvalho (org.)
Science. Como o que afirma equivale a mais de dez vezes o número de
Editora Expressão Popular
doentes que eu disse, e está avaliado por uma das revistas científicas
A CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL
mais prestigiosas do mundo, pergunto-me se o presidente e os líderes Istvan Meszáros
do seu partido já visitaram o embaixador dos Estados Unidos no Méxi- Boitempo Editorial
co e o ameaçaram de romper relações diplomáticas com esse país.

Fidel Castro Ruz Emir Sader é cientista político.

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Renato Pompeu I idéias de botequim

LIVROS PARA TODOS


OS INTERESSES

Este mês vamos tentar pôr em dia a pensamento de Karl Polanyi, pedidos a alta-
estante. Para quem gosta de artes plásti- dena@altadena.com.br. Souza transpõe para
cas, um lançamento oportuno é Bonfan- os tempos de agora as constatações do autor
ti – através do espelho, um álbum de um húngaro do clássico A grande transformação,
artista expressionista contemporâneo que descreveu como o capitalismo corroeu
que, segundo a patrocinadora da edi- periodicamente as próprias bases da sobre-
ção, a Eletrobrás, ilumina “um país de vivência da sociedade desde o século 19 até a
várias cores e de povo tão diverso que Segunda Guerra Mundial. Senão a instaura-
poderia ser muitos”, o brasileiro. ção do socialismo, torna-se de novo pelo me-
Para quem se interessa pela his- nos necessária a concretização de “diques de
tória recente desse mesmo povo contenção” ao capitalismo, tal como foi feito
brasileiro e pelas irracionalidades pela instauração de controles públicos do se-
do capitalismo, é útil examinar Al- tor financeiro e estatização de serviços como saúde, educação e trans-
canorte, da farsa às cinzas, de Cláu- porte, que se seguiram à Segunda Guerra, em grande parte por influ-
dio Guerra, edição do Sebo Verme- ência do livro de Polanyi.
lho de Natal, sebovermelho@yahoo.com.br. Narra a história Que os regimes comunistas foram repressivos contra os dissiden-
de “patifarias” da construção, inacabada após mais de três décadas, tes não é novidade. Mas o teólogo Miroslav Volf, radicado nos EUA,
da Fábrica de Barrilha da Álcalis do Rio Grande do Norte S/A no ist- conta, em “O fim da memória – interrompendo o ciclo destrutivo das
mo de Macau, uma “história de dumping”, de “ataque à nossa so- lembranças dolorosas”, publicado pela Mundocristão, como perdoou
berania” e de “irresponsabilidade com o dinheiro do povo, aqui con- seus interrogadores na Iugoslávia natal, onde era suspeito de espio-
cretizada com o abandono da fábrica, o engodo da privatização e a nagem por ser casado com uma americana.
‘doação’ para os operários quando só restavam cinzas”. O desperdí- Igualmente sobre religião, a Revista 18, editada pelo Centro de Cul-
cio, segundo Guerra, foi de R$ 500 milhões. tura Judaica de São Paulo, revista@culturajudaica.org.br, tem no nú-
E para quem se interessa pela história do Brasil Colônia é um mero 27 como reportagem de capa Judaísmo em Portugal, que nos
prato cheio o livro Andanças pelo Brasil Colonial – Catálogo comentado revela como, tendo os judeus não-convertidos ao cristianismo sido ex-
(1503-1808), de Jean Marcel Carvalho França e Ronald Ruminelli, pulsos da Terrinha na passagem do século 15 para o século 16, sobre-
editado pela Unesp. A obra apresenta uma lista de relatos escritos viveram lá vestígios do judaísmo, hoje de novo florescente em Lisboa.
por viajantes que estiveram no Brasil, com comentários sobre cada E para quem está interessado no bolivarianismo, temos, pela
um dos textos, desde o francês Binot Paulmier de Gonneville, de Unesp, A Revolução venezuelana, de Gilberto Maringoni, dentro da Co-
1503 a 1505, até os britânicos Thomas O’Neil e Sidney Smith, em leção Revoluções do Século 20, dirigida pela conceituada historiadora
1808. Uma obra preciosa. Emília Viotti da Costa. A apresentação: “Frequentemente caricatura-
Também da Unesp e da Brazilian Busi- da como perigoso resultado de exotismos personalistas do presidente
ness School é o trabalho Abolicionistas bra- Hugo Chávez, a revolução venezuelana – ‘revolução em andamento’ –
sileiros e ingleses – A coligação entre Jo- é a expressão de um passado rico, complexo e tumultuoso”.
aquim Nabuco e a British and Foreign Finalmente, para quem gosta de ficção (sur)realista, um romance
Anti-Slavery Society (1880-1903)”, em que original: Tempo seco, da Geração Editorial, em que a jornalista Clara
o pesquisador Antonio Penalves defende, Arreguy romanceou histórias que ouviu da boca de taxistas de Bra-
com muita documentação, a tese de que o sília e do cerrado. No pano de fundo das conversas, a reeleição de
abolicionismo de Nabuco não foi tão desin- Lula: “Política, amor, violência – memórias do passado e do que está
teressado assim, pois sua ação estava es- por vir, ainda a ser inventado. Entre uma corrida e outra no táxi, en-
treitamente ligada a interesses britânicos. contros e desencontros entre personagens que existem ou que sim-
Já para entender como o endeusamento plesmente foram sonhados”. Vale a pena conferir.
do mercado leva periodicamente à barbárie
da sociedade, como na atual crise, convém Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O
ler, de Ailton Benedito de Souza, forma- Mundo como Obra de Arte Criada pelo Brasil, Editora Casa Amare-
do em letras e em engenharia civil, A so- la, e editor-especial de Caros Amigos. Envio de livros para a revista,
ciedade no mercado – Ensaios em torno do rua Paris, 856, cep 01257-040, São Paulo-SP.

caros amigos junho 2009


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Não importa a dificuldade. Não importa a distância.
A gente não mede esforços para levar
desenvolvimento a cada canto do Nordeste.

Desenvolvimento é financiar cadeias produtivas, gerar emprego e oportunidades.


É mudar a vida das pessoas. Aumentar sua auto-estima e recuperar sua dignidade.
Desenvolvimento é fazer o Nordeste crescer. E ser do tamanho do seu povo.
Cliente Consulta | Ouvidoria: 0800 728 3030 - www.bnb.gov.br

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