Você está na página 1de 16

Da constitucionalidade da identificação criminal mediante perfil

genético

» Marcelo Carita Correra

RESUMO: O presente artigo pretende analisar os artigos 1º e 2º


da Lei Federal nº 12.654/2012. O foco principal é a análise da
constitucionalidade da referida norma que, alterando a Lei Federal nº
12.037/2009, permitiu, em alguns casos, a identificação criminal por
meio do código genético (DNA). A questão que se coloca é, diante do
princípio da presunção de inocência e da imunidade à
autoincriminação, é válido referido dispositivo legal? É possível, contra
a vontade do indiciado, obter material genético? Se afirmativo, quais
os limites impostos pelo texto magno? São essas as questões que se
pretende responder no presente artigo.

Palavras-Chave: Direito Processual Penal. Identificação Criminal.


DNA. Constitucionalidade. Vedação.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Da Identificação Criminal; 2 Dos


Princípios Constitucionais; 3 Da Autodefesa; 4 Do Exame de DNA e
da Intangibilidade do Corpo Humano; 5 Conclusão; 6 Referências.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende abordar uma relevante questão na


prática dos operadores do direito, especialmente daqueles afetos ao
direito penal processual e material. A questão torna-se relevante, uma
vez que é de ocorrência frequente em diversas comarcas do país.

Trata-se da análise da constitucionalidade dos artigos 1º e 2º


da Lei Federal nº 12.654/2012. Referida norma modificou a Lei nº
12.037/2009 (dispõe sobre a identificação criminal do civilmente
identificado, regulamentando o art. 5º, inciso LVIII, da Constituição
Federal) para permitir, na identificação criminal, a coleta de material
biológico para a obtenção do perfil genético.

A coleta de material biológico é restrita às hipóteses em que a


identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo
decisão da autoridade judiciária competente. Porém, referida
identificação pode ocorrer mesmo quando exista identificação civil.
Vale dizer, mesmo quando o indiciado ostente documento de
identificação válido.

A questão que se coloca é: a identificação criminal permite a


coleta de material biológico do indiciado, mesmo contra sua vontade?
Se afirmativo, como conciliar tal possibilidade com os princípios
constitucionais da imunidade à autoincriminação e presunção de
inocência?

Teria o Estado Brasileiro, mesmo que de forma excepcional, a


permissão para retirada de material biológico para formação de banco
de dados?

São essas as questões que se pretende responder. É evidente


que o presente artigo não pretende um estudo exaustivo e
aprofundado do tema. Ao contrário, pretende, de forma segura, obter
conclusões úteis aos profissionais da área.

Por fim, note-se que o artigo 3º da Lei nº 12.654/2012


modificou a Lei de Execução Penal (Lei Federal nº7.210/1984) para,
incluindo o art. 9º-A, determinar a obrigatoriedade do exame de perfil
genético nos crimes elencados.

Contudo, referido artigo, por tratar especificamente de


execução penal, não será objeto de estudo.

1 DA IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL

A Constituição Federal de 1988 inaugura a identificação


criminal no ordenamento jurídico ao afirmar, no artigo 5º, inciso LVIII,
que “o civilmente identificado não será submetido a identificação
criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.

A introdução do referido dispositivo no texto magno é fruto da


premissa de que, se houver identificação civil, é desnecessário
qualquer outro procedimento de identificação específico para fins
penais. Salvo, como dito, nas hipóteses previstas em lei.

A verdade é que referido dispositivo foi fruto do momento


histórico. A Constituição de 1988, ainda atenta ao período da ditadura
militar iniciado em 01/04/1964, buscou afastar abusos dos órgãos de
repressão durante a identificação criminal. Sobre o tema, Guilherme
de Souza Nucci afirma:

Trata-se de norma de indevida inserção na Carta Magna, que,


à época da sua elaboração, teve por finalidade corrigir a
publicidade que se costumava dar ao fato de determinada
pessoa – especialmente as conhecidas do grande público – ser
criminalmente identificada, como se isso fosse inconveniente e
humilhante. A norma tem contorno de direito individual,
unicamente porque o constituinte assim o desejou
(formalmente constitucional), mas não é matéria para constar
em uma Constituição Federal. É certo que muitos policiais
exorbitaram seus poderes e, ao invés de garantir ao indiciado
uma colheita corriqueira do material datiloscópico,
transformaram delegacias em lugares de acesso da imprensa,
com direito à filmagem e fotos daquele que seria publicamente
indiciado, surpreendido na famosa situação de ‘tocar piano’.
Ora, por conta da má utilização do processo de identificação
criminal, terminou-se inserindo na Constituição uma cláusula
pétrea que somente problemas trouxe, especialmente ao deixar
de dar garantia ao processo penal de que se está acusando a
pessoa certa. Bastaria, se esse era o desejo, que uma lei fosse
editada, punindo severamente aqueles que abusassem do
poder de indiciamento, especialmente dando publicidade
indevida ao ato, para a resolução do problema[1].

Apesar da lucidez e precisão dos argumentos acima expostos,


o fato é que a Constituição introduziu verdadeira cláusula pétrea
garantindo, ao identificado civilmente, a impossibilidade de
identificação criminal, salvo nas hipóteses legais.

A lei pode prever hipóteses em que a identificação criminal é


devida, mesmo ao civilmente identificado. Trata-se de norma
constitucional de eficácia contida. Ou seja, enquanto não existir a
norma regulamentadora, não há possibilidade de limitação do direito
individual insculpido na Constituição Federal.
Fernando Capez afirma que ”a autoridade policial não pode
mais submeter pessoa civilmente identificada, e portadora da carteira
de identidade civil, ao processo de identificação criminal”[2].

Julio Fabrini Mirabete, ao tratar do dispositivo constitucional em


testilha, afirma: “é norma de aplicabilidade imediata e eficácia contida,
tendo eficácia plena até que o legislador ordinário edite a lei
restritiva” [3].

A regulamentação do dispositivo constitucional só foi feita pela


Lei Federal nº 10.054/2000. Atualmente, a regulamentação se faz pela
Lei Federal nº 12.037/2009, com as modificações perpetradas pela Lei
Federal nº12.654/2012.

A Lei Federal nº 12.037/2009 elenca as hipóteses em que,


apesar de identificado civilmente, a identificação criminal é devida:

Art. 3º Embora apresentado documento de identificação,


poderá ocorrer identificação criminal quando:

I – o documento apresentar rasura ou tiver indício de


falsificação;

II – o documento apresentado for insuficiente para


identificar cabalmente o indiciado;

III – o indiciado portar documentos de identidade distintos,


com informações conflitantes entre si;

IV – a identificação criminal for essencial às investigações


policiais, segundo despacho da autoridade judiciária
competente, que decidirá de ofício ou mediante representação
da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa;

V – constar de registros policiais o uso de outros nomes ou


diferentes qualificações;

VI – o estado de conservação ou a distância temporal ou


da localidade da expedição do documento apresentado
impossibilite a completa identificação dos caracteres
essenciais.

Parágrafo único. As cópias dos documentos apresentados


deverão ser juntadas aos autos do inquérito, ou outra forma de
investigação, ainda que consideradas insuficientes para
identificar o indiciado.

Não se vislumbra inconstitucionalidade nas hipóteses de


identificação criminal dos identificados civilmente. Isso porque, em
todas as hipóteses, foram respeitados os princípios constitucionais da
dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, que são os
limites do legislador ordinário.

Conforme artigo 5º da Lei Federal nº 12.037/2009: “na hipótese


do inciso IV do art. 3o, a identificação criminal poderá incluir a coleta
de material biológico para a obtenção do perfil genético”.

Guilherme de Souza Nucci, mais uma vez, nos traz importante


lição sobre o tema: “a identificação criminal é a individualização física
do indiciado, para que não se confunda com outra pessoa, por meio
de colheita das impressões digitais, da fotografia e da captação de
material biológico para exame de DNA”[4].

Note-se que, segundo a lição de Guilherme de Souza Nucci, a


identificação criminal consiste na colheita de impressões digitais e
fotos. Por fim, conforme modificação da Lei Federal nº 12.654/2012,
há a possibilidade de obter de material biológico para exame de DNA.

2. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A maior importância dos enunciados construídos a partir da


Constituição Federal decorre do fato de que referidos enunciados
veiculam verdadeiros princípios, que orientam a interpretação dos
demais, bem como orientam a construção, pelo intérprete, das normas
jurídicas.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Melo:

O princípio é, por definição, mandamento nuclear do


sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental
que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o
espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a
lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe
confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o
conhecimento dos princípios que preside a intelecção das
diferentes partes componentes do todo unitário que há por
nome sistema jurídico positivo[5].
José Afonso da Silva, explicita a diferença entre normas
jurídicas e princípios:

A palavra princípio é equívoca. Aparece com sentidos


diversos. Apresenta a acepção de começo, de início.
Norma de princípio (ou disposição de princípio), por
exemplo, significa norma que contém início ou esquema
de um órgão, entidade ou de programa, como são as
normas de princípio institutivo e as de princípio
programático. Não é nesse sentido que se acha a palavra
princípios da expressão princípios fundamentais do Título
I da Constituição. Princípio aí exprime a noção de
mandamento nuclear de um sistema.
As normas são preceitos que tutelam situações
subjetivas de vantagem ou de vínculo, ou seja,
reconhecem, por um lado, a pessoas ou a entidades a
faculdade de realizar certos interesses por ato próprio ou
exigindo ação ou abstenção de outrem, e, por outro lado,
vinculam pessoas ou entidades à obrigação de submeter-
se às exigências de realizar uma prestação, ação ou
abstenção em favor de outrem[6].

A Constituição Federal, ao tratar dos direitos e garantias


fundamentais, estabelece diversos princípios implícitos e expressos.
Diversos deles estipulam garantias do cidadão frente ao Estado-
acusação.

Para fins do presente artigo, é necessário um estudo mais


aprofundado do Princípio da Presunção de Inocência e do Princípio da
Imunidade à Autoacusação.

Guilherme de Souza Nucci afirma:

Conhecido, igualmente, como princípio do estado de inocência


(ou da não culpabilidade), significa que todo acusado é
presumido inocente, até que seja declarado culpado por
sentença condenatória, com trânsito em julgado. Encontra-se
previsto no art. 5º, LVII, da Constituição.
Tem por objetivo garantir, primordialmente, que o ônus da
prova cabe à acusação e não à defesa. As pessoas nascem
inocentes, sendo esse o seu estado natural, razão pela qual,
para quebrar tal regra, torna-se indispensável que o Estado-
acusação evidencie, com provas suficientes, ao Estado-juiz, a
culpa do réu. Por outro lado, confirma a excepcionalidade e a
necessidade das medidas cautelares de prisão, já que
indivíduos inocentes somente podem ser levados ao cárcere
quando realmente for útil à instrução e à ordem pública[7].

A premissa central que se extrai da lição acima exposta é que


o Princípio da Presunção de Inocência imputa, ao Estado-acusação, o
dever de produzir provas que comprovem a culpa (lato sensu) do
agente. Vale dizer, cabe à acusação afastar a presunção de inocência.

Em consonância com o princípio acima exposto, há o princípio


da imunidade à autoacusação. Sobre o tema, mais uma vez,
Guilherme de Souza Nucci:

A imunidade à autoacusação significa que ninguém está


obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se
detegere). Trata-se de decorrência natural da conjugação dos
princípios constitucionais da presunção de inocência (Art. 5º,
LVII) e da ampla defesa (art. 5º, LV) com o direito humano
fundamental que permite o réu manter-se calado (art. 5º, LXIII).
Se o indivíduo é inocente, até que seja provada a sua culpa,
possuindo o direito de produzir amplamente prova em seu
favor, bem como se pode permanecer em silêncio sem
qualquer tipo de prejuízo à sua situação processual, é mais do
que óbvio não estar obrigado, em hipótese alguma, a produzir
prova contra si mesmo. O Estado é parte mais forte na
persecução penal, possuindo agentes e instrumentos aptos a
buscar e descobrir provas contra o autor da infração penal,
prescindindo, pois, de sua colaboração. Seria a admissão de
falência de seu aparato e fraqueza de suas autoridades se
dependesse do suspeito para colher elementos suficientes a
sustentar a ação penal[8].

Em síntese, a imunidade à autoacusação garante o silêncio do


acusado/indiciado e a impossibilidade de obrigá-lo a produzir provas
contra si mesmo.

Seria possível, portanto, afirmar que o indiciado não é


obrigado, em nenhuma situação, a fornecer material biológico para
identificação. Isso porque, como é notório, o exame de DNA pode,
com segurança, provar a presença do indiciado no local do crime,
dentre outras provas capazes de demonstrar a autoria. Contudo, a
conclusão não é a que melhor reflete o ordenamento jurídico vigente.
3 DA AUTODEFESA

O Princípio da Imunidade à Autoacusação gerou controvérsia


jurisprudencial envolvendo o crime de falsa identidade.

O artigo 307 do Código Penal determina:

Art. 307 - Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade


para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para
causar dano a outrem:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa, se o


fato não constitui elemento de crime mais grave.

Diante do referido dispositivo legal, surgiram vozes defendendo


sua inaplicabilidade quando o acusado/indiciado utiliza identidade
falsa para evitar a persecução penal. Segundo essa linha de
pensamento, o direito à imunidade à autoincriminação e ao silêncio
garantiria ao acusado/indiciado a negativa em fornecer sua identidade
ou até mesmo a possibilidade de utilizar identidade falsa.

Deveria, segundo essa linha de pensamento, prevalecer o


direito do acusado/indiciado à autodefesa. Houve decisões judiciais
que adotaram esse entendimento:

HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. PENAL. PACIENTE


CONDENADO POR FALSA IDENTIDADE. ATIPICIDADE DA
CONDUTA DE ATRIBUIR-SE FALSA IDENTIDADE PERANTE
AUTORIDADE POLICIAL, QUANDO PERPETRADA COMO
INSTRUMENTO DE AUTODEFESA. PRECEDENTES DO STJ.
PARECER DO MPF PELA DENEGAÇÃO DA ORDEM.
ORDEM CONCEDIDA, NO ENTANTO, PARA ABSOLVER O
PACIENTE DA IMPUTAÇÃO DO CRIME DE FALSA
IDENTIDADE. 1. Segundo a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, não comete o delito previsto no art. 307 do
CPB o réu que, diante da autoridade policial, atribui-se falsa
identidade, em atitude de autodefesa, porque amparado pela
garantia constitucional de permanecer calado, ex vi do art. 5o.,
LXIII da CF/88. 2. Ordem concedida para absolver o paciente
da imputação do crime de falsa identidade, não obstante o
parecer ministerial em contrário. Prejudicados os demais
pedidos[9].
Essa linha de entendimento contou com fortes críticas da
doutrina pátria. Rogério Grecco sintetiza os argumentos:

O agente pode até mesmo dificultar a ação da Justiça Penal no


sentido de não revelar situações que seriam indispensáveis à
elucidação dos fatos. No entanto, não poderá eximir-se de se
identificar. É um direito do Estado saber em face de quem
propõe a ação penal e uma obrigação do indiciado/acusado
revelar sua identidade[10].

Com o passar dos anos, vários casos envolvendo o tema


chegaram a Supremo Tribunal Federal, que assim fixou o
entendimento:

EMENTA CONSTITUCIONAL. PENAL. CRIME DE FALSA


IDENTIDADE. ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL.
ATRIBUIÇÃO DE FALSA INDENTIDADE PERANTE
AUTORIDADE POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA.
ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO. MATÉRIA
COM REPERCUSSÃO GERAL. CONFIRMAÇÃO DA
JURISPRUDÊNCIA DA CORTE NO SENTIDO DA
IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE DA CONDUTA
CONFIGURADA. O princípio constitucional da autodefesa (art.
5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa
identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar
maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada
pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade
constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes[11].

Prevaleceu, portanto, a orientação no sentido de que a


autodefesa e os princípios constitucionais da Presunção de Inocência
e da Imunidade à Autoacusação não afastam a tipicidade do crime de
falsa identidade.

Assim, ainda que exista prejuízo à autodefesa (mesmo


indireto), não pode o acusado/indiciado negar sua identificação ou
atribuir falsa identidade buscando dificultar a atividade do Estado-
acusador.

Deve prevalecer o direito e dever do Estado de intentar a


persecução criminal contra a pessoa correta. Vale dizer, a
confiabilidade do sistema de persecução criminal deve prevalecer.
Pois bem, como a coleta de material biológico para exame de
DNA é parte da identificação criminal e, conforme norma de regência,
somente tem cabimento quando for essencial às investigações
policiais; é de rigor a conclusão de que o indiciado não pode se negar
a fazê-la sob o fundamento de autodefesa.

Ou seja, por ser procedimento ligado ao processo de


identificação (individualização do indiciado), a alegação de
autodefesa, princípio da inocência e imunidade à autoacusação não
tutela a negativa do indiciado.

O que não se pode fazer é obrigar o indiciado a realizar exame


de DNA com a finalidade precípua de produzir provas. O objetivo do
exame de DNA é a plena identificação do indiciado e não a produção
de provas.

De qualquer forma, o indiciado não é sempre obrigado a se


submeter ao exame de DNA. É preciso analisar, ainda, o direito do
indiciado à integridade física.

4 DO EXAME DE DNA E DA INTANGIBILIDADE DO CORPO


HUMANO

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Vida


garantem ao cidadão a liberdade de disposição do próprio corpo,
dentro dos limites legais.

O Código Civil, ao tratar dos direitos da personalidade,


determina:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de


disposição do próprio corpo, quando importar diminuição
permanente da integridade física, ou contrariar os bons
costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido


para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a


disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para
depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente


revogado a qualquer tempo.
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se,
com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção
cirúrgica.

A interpretação conjunta dos dispositivos do Código Civil e dos


princípios constitucionais acima apontados implica a conclusão de que
o indiciado não é obrigado a se submeter ao exame de DNA quando
referido exame for feito de forma invasiva.

Vale dizer, não pode se opor à coleta de material biológico


quando essa é feita sem interferir na integridade física. Contudo,
quando referida coleta demandar procedimento invasivo (coleta de
sangue, por exemplo), é direito do indiciado a negativa.

O STF, em ação investigação de paternidade, assim se


manifestou sobre o exame de DNA:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - EXAME DNA -


CONDUÇÃO DO RÉU "DEBAIXO DE VARA". Discrepa, a mais
não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas -
preservação da dignidade humana, da intimidade, da
intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da
inexecução específica e direta de obrigação de fazer -
provimento judicial que, em ação civil de investigação de
paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser
conduzido ao laboratório, "debaixo de vara", para coleta do
material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa
resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a
dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao
deslinde das questões ligadas à prova dos fatos[12].

Apesar do julgado do STF ter sido proferido diante de exame


de DNA para processo de identificação de paternidade, a mesma
conclusão se aplica para o processo penal. A condição de indiciado
não afasta o direito à preservação da dignidade da pessoa humana e
da intangibilidade do corpo humano.

A negativa não se baseia na autodefesa, mas na preservação


do direito constitucional à vida (integridade física) e livre disposição do
próprio corpo.
É por essa razão que o indiciado não pode se negar à coleta
quando feita de forma não invasiva e que não afete a integridade
física.

Também não se vislumbra violação do direito à intimidade e


vida privada, na medida em que a Lei Federal nº 12.037/2009 impõe o
caráter sigiloso para o exame de DNA:

Art. 7o-B. A identificação do perfil genético será


armazenada em banco de dados sigiloso, conforme
regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.

Verifica-se, portanto, que, diante da intangibilidade do corpo


humano e do princípio da dignidade humana, o exame de DNA para
fins de identificação criminal não poderá ser feito à revelia do
indiciado, quando se tratar de exame invasivo.

5 CONCLUSÃO

A Constituição Federal de 1988 inaugura a identificação


criminal no ordenamento jurídico, ao afirmar, no artigo 5º, inciso LVIII,
que “o civilmente identificado não será submetido a identificação
criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”.

Trata-se de norma constitucional de eficácia contida. A


regulamentação do dispositivo constitucional só foi feita pela Lei
Federal nº 10.054/2000. Atualmente, a regulamentação se faz pela Lei
Federal nº 12.037/2009, com as modificações perpetradas pela Lei
Federal nº 12.654/2012.

O inciso IV, do artigo 3º, da Lei Federal nº 12.037/2009


estabelece que, quando a identificação criminal for essencial às
investigações policiais, a autoridade judiciária pode autorizar sua
realização.

O artigo 5º da Lei Federal nº 12.654/2012 afirma que, na


hipótese do inciso IV do art. 3o da Lei 12.037/2009, a identificação
criminal poderá incluir a coleta de material biológico para a obtenção
do perfil genético.

Não se vislumbra inconstitucionalidade nas hipóteses de


identificação criminal dos identificados civilmente. Todas as hipóteses
respeitaram os princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana e da proporcionalidade, que são os limites do legislador
ordinário.

A Constituição Federal veicula o Princípio da Presunção de


Inocência, que imputa, ao Estado-acusação, o dever de produzir
provas que comprovem a culpa (lato sensu) do agente.

Em consonância com o Princípio da Presunção de Inocência,


há o Princípio da Imunidade à Autoacusação, que garante o silêncio
do acusado/indiciado e a impossibilidade de impor a produção de
provas contra si mesmo.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que não pode o


acusado/indiciado negar sua identificação ou atribuir falsa identidade
buscando dificultar a atividade do Estado-acusador. Nessa situação,
deve prevalecer o direito e dever do Estado de intentar a persecução
criminal contra a pessoa correta. Vale dizer, a confiabilidade do
sistema de persecução criminal deve prevalecer.

Pois bem, como a coleta de material biológico para exame de


DNA é parte da identificação criminal e, conforme norma de regência,
somente tem cabimento quando for essencial às investigações
policiais; é de rigor a conclusão de que o indiciado não pode se negar
a fazê-la sob o fundamento de autodefesa.

Portanto, por ser procedimento ligado ao processo de


identificação (individualização do indiciado), a alegação de
autodefesa, princípio da inocência e imunidade à autoacusação não
permite a negativa do indiciado em sua identificação.

Note-se que a identificação mediante exame de DNA não é


regra geral, mesmo quando presente a necessidade de identificação
criminal. Assim, tornando o exame de DNA excepcional e somente
quando essencial à investigação, não parece existir qualquer violação
ao Princípio Constitucional da Proporcionalidade.

O que não se pode fazer é obrigar o indiciado a realizar o


exame de DNA com a finalidade precípua de produzir provas. O
objetivo do exame de DNA é a plena identificação do indiciado e não a
produção de provas.

Contudo, essa constatação não permite a conclusão de que,


presentes os requisitos, o indiciado sempre é obrigado a se submeter
ao exame de DNA.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Vida
garantem ao cidadão a liberdade de disposição do próprio corpo,
dentro dos limites legais. Assim, o indiciado não é obrigado a se
submeter ao exame de DNA quando referido exame for feito de forma
invasiva.

Vale dizer, não pode se opor à coleta de material biológico


quando essa é feita sem interferir na integridade física. Contudo,
quando referida coleta demandar procedimento invasivo (coleta de
sangue, por exemplo), é direito do indiciado a negativa.

6 REFERÊNCIAS

BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Parte Geral. 3ª. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1967.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 1º Volume. 9ª. ed. São


Paulo: Saraiva, 2005.

______________. Curso de Processo Penal. 4ª ed. rev. São


Paulo: Saraiva. 1999.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23ª ed.


São Paulo: Editora Atlas. 2010.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Civil


Brasileiro Interpretada. 17ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012.

GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 4ª ed. São Paulo:


Max Limonad. 1975.

GOMES, Luis Flávio. Princípio da insignificância e outras


excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2010.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume


I. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume I. Rio


de Janeiro: Forense, 1949.

______________. Comentários ao Código Penal. Volume V. 5º


ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
MASSON, Cleber. Direito Penal. 1º Volume. 6ª. ed. São Paulo:
Editora Método, 2012.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito


Administrativo. 11ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 150

MIRABETE, JÚLIO FABRINI. Código de Processo Penal


Interpretado. 5ª ed. São Paulo: Atlas. 1997.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª ed., São


Paulo: Atlas, 2005.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 1º Volume. 15ª ed. São


Paulo: Saraiva, 1978.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e


Execução Penal. 10ª ed. São Paulo: RT, 2013.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 1º Volume.


11ª. ed. São Paulo: RT, 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.


27ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 2006.

Notas:

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e


Execução Penal. 10ª ed. São Paulo: RT, 2013. P. 173.

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 4ª ed. rev. São Paulo:
Saraiva. 1999. P. 81

[3] MIRABETE, JÚLIO FABRINI. Código de Processo Penal


Interpretado. 5ª ed. São Paulo: Atlas. 1997. p. 47/48.

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e


Execução Penal. 10ª ed. São Paulo: RT, 2013. P. 172

[5] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito


Administrativo. 11ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 150.

[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.


27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 91/92.
[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e
Execução Penal. 10ª ed. São Paulo: RT, 2013. P. 90.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e


Execução Penal. 10ª ed. São Paulo: RT, 2013. P. 91/92.

[9] STJ. HC 162576/SP. Quinta Turma, DJe 09/08/2010.

[10] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Volume I.


Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2007. P. 142.

[11] STF. RE 640139 RG / DF. Rel. Min. DIAS TOFFOLI. Dje


22/09/2011

[12] STF. HC 71.373. Tribunal Pleno. DJ 22-11-1996.

Você também pode gostar