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Luís Carlos de Menezes

Universidade sitiada
A ameaça de liquidação
da universidade brasileira

EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO


Fundação Perseu Abramo
Instituída pelo Diretório Nacional
do Partido dos Trabalhadores
em maio de 1996

Diretoria
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Zilah Abramo – vice-presidente
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Editora Fundação Perseu Abramo

Coordenação Editorial
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Revisão
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Vera Lúcia Pereira

Capa e Ilustrações
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Imagem da capa
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Editoração Eletrônica
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Impressão
Cromosete Gráfica Ltda.

Edição especial: janeiro de 2001


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Copyright © 2000 by Luís Carlos de Menezes


ISBN 85-86469-25-4
Sumário
INTRODUÇÃO...............................................................................5

A UNIVERSIDADE BRASILEIRA E A AMEAÇA DE SUA LIQUIDAÇÃO.......7


O que é a universidade e como está sitiada......................................7
Construção, comparações, controvérsias........................................10
Cenários realistas e possíveis desfechos.........................................16

A HISTÓRIA DE UMA IDÉIA E O CERCO POLÍTICO............................20


A idéia de uma universidade pública..............................................20
Pesquisa, pós-graduação e desprestígio..........................................23
Modernização e desmobilização....................................................29

O ENSINO SUPERIOR E O CERCO TERRITORIAL E ECONÔMICO............34


Educação superior, demanda social e mercado...............................34
Qualidade, quantidade e autonomia..............................................37
Perdas e danos: o cerco econômico.................................................43

UM PROJETO ESTRATÉGICO PARA ROMPER O CERCO........................47


Formação superior e pesquisa: ultrapassar a federação de unidades...47
Universidade, serviços e participação social....................................52
Nem ócio, nem negócio: cultura, economia e política....................56

NOTAS..............................................................................................61

BIBLIOGRAFIA............................................................................63
Luís Carlos de Menezes
Professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, trabalhou como físico
pesquisador na Alemanha e depois no Brasil. Especialmente nos últimos 15 anos, se
dedica à formação de professores e à orientação curricular para a educação básica. Diri-
giu atividades de extensão universitária e de pesquisas sobre ensino superior. Tem escri-
to sobre física, educação, questões energéticas e políticas sociais. Tem coordenado ou
assessorado programas de Aperfeiçoamento docente, de reforma curricular e de avalia-
ção em sistemas públicos de educação. Participa do Partido dos Trabalhadores desde
sua fundação.

Agradecimentos
Entre as várias contribuições para a elaboração das idéias aqui
expressas, é justo destacar a de Sônia Salém, pesquisadora em
educação que sistematizou dados e referências, e a de Aytan
Sipahi, médico pesquisador que orientou a discussão relativa ao
sistema de saúde. Este trabalho é dedicado à memória do
engenheiro Jorge Abrahão, um dos mais firmes defensores das
instituições públicas no Brasil, com quem o autor ainda teve o
privilégio de discutir o projeto que resultou neste livro.
UNIVERSIDADE SITIADA 4
Introdução

A universidade brasileira vive um processo de desmobilização, sob uma política geral


de desmonte institucional, que desguarnece serviços essenciais como os de educação e
saúde, debilita instrumentos de apoio à cultura e à economia nacional, desnacionaliza a
infra-estrutura energética, a indústria primária e o sistema de comunicações. Instituições
como a universidade, antes pensadas como constituintes da nacionalidade, são tratadas
com displicência deliberada por um Estado à mercê do mercado globalizado e conduzidas
a um impasse cuja persistência pode se revelar fatal.
A constituição da universidade no Brasil, para a afirmação e o desenvolvimento da
cultura e da economia, a serviço de interesses nacionais e populares, foi um difícil e
contraditório processo que, ao longo de todo o século XX, resultou em muitas dezenas
de instituições, presentes em todos os centros urbanos, provendo formação superior,
associada a produção científica, cultural e tecnológica. A vocação plural da academia já
lhe valeu a oposição de todos os tipos de autoritarismo, mas a ameaça maior a que hoje
é submetida deve-se, em parte, à disputa pelo bilionário mercado do ensino superior
privado e, em parte, à ação de setores políticos que procuram se desfazer dos equipa-
mentos públicos não reconhecidos como integrantes do núcleo essencial do Estado.
Compreender esse processo em seu caráter global e revertê-lo nas condições brasilei-
ras, mais do que condição para a recuperação da universidade pública, pode também
servir à reconstrução das demais instituições ameaçadas. Se souber superar algumas de
suas limitações, que a tem afastado de seu objetivos centrais, a universidade poderá
romper os múltiplos cercos que a sitiam e voltar a assumir, na sociedade brasileira, o
papel histórico que lhe foi previsto, quando de sua criação. Nessa perspectiva, é uma
responsabilidade da própria comunidade acadêmica se mobilizar para enfrentar o impasse
mais geral que conduz a nação a um beco sem saída, apresentando a universidade não
como mais um problema à espera de solução, mas como importante instrumento para o
desenvolvimento da educação, da saúde, da cultura e da economia no Brasil.

5 LUÍS CARLOS DE MENEZES


UNIVERSIDADE SITIADA 6
A universidade
brasileira e a
ameaça de sua
liquidação

O que é a universidade e construção essencial à educação, à cida-


dania, à nação como um todo. Outras ini-
ciativas1, de algumas das principais lide-
como está sitiada ranças acadêmicas da atualidade, confir-
mam e reforçam a convicção sobre a ur-
Afirmar que uma instituição está gência de se reverter a condição de sítio
ameaçada, como dizer que um edifício está que impede a universidade de cumprir seus
para ruir, é algo a ser feito de forma res- objetivos sociais e pode resultar em sua
ponsável, pois um alarme injustificado ou destruição.
exagerado pode causar danos e desmobi- Dizer que nossa universidade está sitiada
lizar ações, prejudicando o que se preten- pode sugerir um cerco físico, uma ameaça
de preservar. A universidade pública, há externa a um estabelecimento de ensino
um bom tempo, tem vivido problemas es- superior, a um determinado espaço de in-
truturais, identificados como parte de uma vestigação científica. De fato, é algo ain-
longa crise, que poderiam ser tomados da mais grave, porque não se trata somente
como reflexos de uma situação mais ge- de uma certa universidade, mas de todas
ral, que atinge outras instituições até mais as universidades as brasileiras, e porque não
duramente e que, talvez, prescindissem de se trata somente de um assalto externo,
atenção específica. A decisão de escre- mas também de ameaças internas.
ver esse texto, no entanto, que adverte para Os diferentes agentes que a sitiam, por
os riscos para toda a sociedade brasileira, dentro e por fora, movidos por muitas e
devidos ao cerco a que a universidade tem contraditórias razões, têm argumentos po-
sido submetida, está baseada na convic- líticos e econômicos, por vezes convincen-
ção de que se chegou a um limite insus- tes. Alguns de seus adversários estão fun-
tentável, de ameaça às fundações de uma dados em base ideológica, apresentada
7 LUÍS CARLOS DE MENEZES
como se fosse uma antiideologia, o que, políticas, inserções sociais, convicções fi-
talvez, lhe tenha permitido se difundir sem losóficas. Por certo, além de ser quem, a
encontrar resistência nos últimos anos, não universidade também é o que. Acontece
só em relação à questão universitária, mas que ela é quem concretamente, o coletivo
em inúmeros outros domínios. Por outro de pessoas que desenvolve e realiza seus
lado, em sua condição de sitiada, entre os objetivos institucionais, mas ela é o que
pontos mais vulneráveis da universidade abstratamente; não prédios e aparelhos
brasileira estão falhas constitutivas, heran- mas sim a instituição, que foi fundada e é
ças das instituições a partir das quais sur- mantida por uma sociedade em função de
giu e do contexto social sobre a qual se uma convicção geral sobre seu caráter es-
ergueu. Isso, ao lado de problemas con- sencial para a vida comunitária ou para o
junturais, pode ser uma combinação fatal sentido da própria nação.
na presente situação de cerco. Talvez pareça sério demais, ou mesmo
Para compreender a razão de ser da uni- exagerado, apresentar a universidade como
versidade brasileira e do cerco que hoje instituição pública dessa magnitude, em
vive, é preciso acompanhar a história de comparação, por exemplo, com a idéia
sua criação, do seu desenvolvimento, ou veiculada em propagandas televisivas de
seja, sabendo que foi concebida como ele- algumas universidades privadas, em que
mento de construção e consolidação do a imagem principal é a de um espaço es-
Estado e da nação. Isso permitirá perce- colar em que se oferece treinamento para
ber que hoje está ameaçada a instituição carreiras de grande demanda e alta remu-
universitária em seu sentido mais geral. neração pelo mercado de trabalho, em vis-
Nesse sentido, todas as nossas universi- tosas instalações e com equipamentos
dades estão sob risco de dissolução, em modernos. Por mais importante que seja a
suas múltiplas dimensões, de produção formação profissional superior, a univer-
cultural, de investigação científica, de for- sidade foi criada para transcender essa di-
mação superior, de diagnóstico e de enca- mensão, não para se restringir a ela, de
minhamento de questões sociais. Nessa forma que talvez não estejamos falando
medida, estariam atingidos com essa des- da mesma instituição, ou nem tudo o que
truição não só o milhão de partícipes per- se denomina universidade efetivamente o
manentes ou transitórios da comunidade seja. No Brasil especificamente, as uni-
acadêmica, mas também toda a cidadania versidades de fato ou com pretensão a
em função da qual ela foi criada e a servi- ser são boa parte das universidades públi-
ço da qual está ou deveria estar. cas e algumas das confessionais e comu-
A universidade não é feita de móveis e nitárias. Em todo o mundo, essa designa-
imóveis, equipamentos e livros, mas de ção é reservada para instituições de inte-
uma comunidade viva que, até por força resse público, ainda que não necessaria-
de ofício, permanentemente pensa e atua. mente estatais, que desenvolvem progra-
Uma ampla diversidade de pessoas, mo- mas de investigação científica e de produ-
vidas por diferentes intenções, desejos, ção cultural, associados a programas de
necessidades, expectativas e ambições; pós-graduação em que se formam mes-
pessoas com diferentes preparos, culturas, tres e doutores.
conhecimentos, experiências, saberes, trei- Há décadas, nos Estados Unidos, uma
namentos, pessoas com diferentes visões rede de franquia de fast-food criou uma
de mundo, valores, princípios, propostas “Universidade do Hambúrguer”, para a
UNIVERSIDADE SITIADA 8
capacitação de seu pessoal e de seus fran- contemporâneas. A Inglaterra no século
queados. Esse centro de treinamento tal- XVII, a França no século XVIII ou a Ale-
vez tenha contribuído para aquela rede ter manha no século XIX têm suas histórias
acumulado lucros imensos e ter mudado políticas e econômicas associadas às de
hábitos alimentares em todo o mundo mas, suas universidades. Na França napoleôni-
independentemente da liberalidade com ca, a Université de France já foi criada para
que a designação foi usada, os norte-ame- ser uma espécie de departamento de for-
ricanos nunca confundiriam esse centro mação de quadros para o Estado.
nem mesmo com as centenas de Colleges, Excetuadas distantes heranças lusitanas,
muito menos com universidades de fato como os ecos de Coimbra e meras formali-
como Berkeley, Columbia ou Harvard, dades protocolares, para dar títulos honoris
menos conhecidas que as redes de ham- causa a visitantes ilustres, a universidade
búrgueres, mas não menos fundamentais brasileira, que é mais do que o ensino su-
à cidadania americana. Diferentemente perior, só foi criada no século XX, com o
dos Colleges, as universidades são muito crescimento das cidades e da cidadania,
mais do que centros de formação superior sobretudo para a produção científico-cul-
ou de treinamento técnico, são instituições tural e para a formação de professores dos
onde, além de educação superior, se pro- vários níveis de ensino. No Brasil de hoje,
duz cultura, se faz ciência e se desenvolve como em quase todas as nações modernas
tecnologia. Aliás, além daquelas mais fa- que têm presença econômica ou cultural
mosas, há dezenas de universidades, como mundial, se formaram nas universidades a
a da Califórnia, a de Colorado ou a de maior parte dos quadros dirigentes, no Es-
Ohio, fundadas em cada um dos estados tado e na economia, a maioria de nossas
americanos. Muitas dezenas de bilhões de lideranças empresariais, culturais e profis-
dólares, de recursos públicos e de funda- sionais. E não é exatamente por acaso que
ções privadas, são anualmente aplicados a universidade tem avançado ou tropeçado
para manter essas universidades e deze- lado a lado com o desenvolvimento do Es-
nas de outras, como a de Chicago, a de tado e, na atualidade, tanto quanto o Esta-
Pittsburgh ou a de San Diego, e pelo me- do, vive uma persistente crise.
nos mais uma em cada grande cidade. Temos hoje, no Brasil, pelo menos uma
A universidade como instituição, aliás, dezena de universidades plenas, no senti-
surgiu junto com as grandes cidades na do de realizarem investigação científica,
Europa do século XI, com o fim da barbá- de produzirem conhecimento em muitas
rie; até o fim do século XV já haviam sido diferentes áreas, lado a lado com o ofere-
criadas cerca de uma centena de universi- cimento de educação superior de gradua-
dades. Pode parecer curioso, mas o ção e de pós-graduação e com a promo-
surgimento da universidade não decorreu ção de serviços de extensão cultural,
da existência de instituições de ensino fun- tecnológica e profissional na região em
damental ou básico mas constituiu sim, ao que estão implantadas. Outras dezenas de
contrário, uma pré-condição para o universidades estão em vias de implanta-
surgimento das demais escolas. A institui- ção, produzindo conhecimento em algu-
ção universitária não é só um marco na mas áreas, mas carecem de autonomia em
história da educação mundial mas, a par- muitas outras, para as quais ainda depen-
tir da Renascença, também é um marco na dem de outros pólos acadêmicos para a
história do Estado moderno e das nações especialização de seus quadros docentes.
9 LUÍS CARLOS DE MENEZES
As demais, mesmo que ostentando alguns destruição. Para alguns, a destruição se
de seus professores com alguma titulação restringe ao fim de determinados regimes
acadêmica, não só não produzem conhe- funcionais, para outros, a preocupação é a
cimento como não poderiam formar ou eliminação da gratuidade do ensino supe-
repor seus docentes especializados, tendo rior, por sua vez defendida por outros ain-
de importá-los continuamente de outras da, para a completa liberação de um mer-
instituições. Independentemente de como cado educacional bilionário. Essa confu-
se designem, não são universidades, ain- são conceitual só facilita a tarefa de quem,
da que possam ser instituições de ensino por razões econômicas ou políticas, quer
superior. se ver livre dessa instituição. Complica e
A confusão intencionalmente provocada, agrava a crise o fato de o cerco atual atin-
que trata o sentido dessas instituições de gir as universidades brasileiras mais no-
ensino superior e o das universidades de vas, em fase de consolidação, e as mais
fato como se fossem o mesmo, é parte do antigas, num momento de reposição de
cerco político, feito em nome de interesses quadros, de transição entre gerações. Es-
táticos de agentes econômicos que escolhe- ses e outros elementos precisam ser leva-
ram a educação superior para investimento dos em conta, ao lado do histórico do de-
financeiro, amparados por uma visão libe- senvolvimento das universidades e do nú-
ral de eficiência, defendida por alguns for- mero de pessoas e recursos envolvidos,
madores de opinião e por agentes do pró- para compreender o que se passa, prever
prio Estado, e corroborados pela própria possíveis evoluções e tentar evitar perdas
ineficácia estrutural e conjuntural de algu- irreversíveis.
mas de nossas univer-
sidades. O risco real de
destruição não se deve, Construção,
portanto, a uma única
causa, nem suas conse- comparações,
qüências se restringi-
rão ao ensino superior. controvérsias
Se concretizada, enfra-
quecerá a capacidade No Brasil do século XX, na Europa
nacional de o próprio do século XI ou nos Estados Unidos do
Estado reagir ao des- século XIX, a história da construção de
monte sistemático que cada universidade é marcada pela épo-
vem sofrendo, do qual os reflexos sociais ca, pelas caraterísticas sociais e culturais
são cada vez mais dramáticos. do centro urbano em que se desenvolveu,
A equivocada identificação entre univer- assim como pelo grupo de poder que a fun-
sidade e ensino superior no Brasil, ora pro- dou, para o que podem ter concorrido inte-
movida por quem busca a autonomia uni- resses políticos, econômicos e eclesiásticos.
versitária por razões empresariais, ora de- Por isso, ao se discutir a construção da uni-
fendida como princípio por quem só reco- versidade, ainda que num único país e num
nhece como ensino superior aquele que se mesmo século, é importante ter-se em con-
pratica em universidades plenas, dificulta ta tal diversidade.
entre nós a compreensão da dimensão da A história da universidade, relativamen-
questão da universidade pública e de sua te recente no Brasil, tem um primeiro pe-
UNIVERSIDADE SITIADA 10
ríodo, do início dos anos 30 até o final dos criação ou consolidação de várias univer-
anos 40, em que foram criadas, nos gran- sidades confessionais, como as Pontifícias
des centros, sobretudo universidades pú- Universidades Católicas (PUCs), assim
blicas estaduais ou federais, freqüentemen- como de outras escolas superiores priva-
te pela reunião de escolas superiores de das, que só vieram a ganhar status univer-
formação profissional preexistentes, agre- sitário no período subseqüente.
gando-lhes um núcleo voltado às ciências O último período, desde os anos 70 até
da natureza e às ciências humanas. Algu- hoje, por um lado viu crescer o número de
mas importantes lideranças intelectuais, universidades estaduais (de nove no iní-
como Fernando de Azevedo e Anísio Tei- cio da década de 1980 para 30 nos dias
xeira, estavam à frente dessas iniciativas, atuais) mas, sobretudo, viu serem reconhe-
que tiveram no Rio de Janeiro e em São cidos como universidades muitos conglo-
Paulo os dois exemplos mais expressivos merados de escolas superiores privadas.
dessa fase, respectivamente com uma ini- A quase totalidade dessas universidades,
ciativa federal e outra estadual, lembran- assim como uma certa percentagem das
do que o Rio era a sede do governo da públicas, começou a operar, e no caso das
República. privadas geralmente ainda opera, com in-
Em um segundo período, do fim dos anos suficientes atividades de pesquisa e pós-
40 até o início dos anos 70, cresceram e se graduação, que nem sequer bastam para a
desenvolveram essas primeiras institui- formação especializada de seus quadros
ções e foram fundadas universidades em docentes. Uma razão central para as esco-
praticamente todos os grandes centros ur- las superiores privadas desejarem seu re-
banos, pelo menos em todas as capitais. conhecimento como universidades, além do
Por vezes, tratava-se de instituições com apelo publicitário, é a autonomia didática e
concepção inovadora, capitaneadas por li- pedagógica que, especialmente de uma
deranças políticas e intelectuais, como perspectiva empresarial, lhes dá mais agi-
Darcy Ribeiro, na fundação da Universi- lidade no atendimento de seu mercado, por
dade de Brasília, ou Zeferino Vaz, na fun- exemplo pela livre definição de cursos e
dação da Universidade de Campinas, res- carreiras. Isso, no entanto, é só uma parte
pectivamente uma fundação federal e uma do “ruído conceitual” que tem sido intro-
autarquia estadual. Em vários dos grandes duzido em torno da idéia de universidade.
centros surgiram universidades confessio- Toda uma série de controvérsias tem
nais; sobretudo no sul iniciativas comuni- cercado a universidade, especialmente em
tárias deram origem a instituições comuni- torno do custo de seu financiamento pú-
tárias, sediadas em municípios, como foi o blico. Essa questão tem tido desdobramen-
caso da Universidade de Ijuí. Na maior parte tos que podem confundir ainda mais o ce-
das vezes, contudo, tratava-se da criação de nário. Por exemplo, questiona-se por di-
universidades federais, atendendo a recla- ferentes razões a gratuidade da instrução
mos de desenvolvimento regional, encabe- superior nas universidades públicas, defi-
çados, às vezes, por oligarquias locais mo- nida em lei. Entre as razões está o fato de,
vidas por interesses menores. O regime precisamente por ser mais seletiva no in-
militar, que dominou boa parte desse pe- gresso, as universidades públicas abriga-
ríodo, deixou a marca de sua política na rem uma percentagem maior de estudan-
constituição original de algumas dessas tes originários de famílias com mais pos-
instituições. Também desse período foi a ses, capazes portanto de financiar seus
11 LUÍS CARLOS DE MENEZES
estudos. Entre os riscos que o fim da universidades e instituições do ensino supe-
gratuidade traria, com a modificação da- rior não universitárias (faculdades isoladas,
quele preceito legal, em tempos de integradas, centros universitários ou fede-
desestatização e de terceirização de servi- rações de escolas), públicas e privadas.
ços, está a possibilidade de que, uma vez Para poder compreender ou interpretar
cobradas mensalidades, o Estado tenda a melhor o sentido do quadro apresentado,
se desobrigar do custeio universitário, o distinguindo o ensino superior em geral
que decretaria o fim definitivo da institui- das universidades especificamente, é pre-
ção produtora de conhecimento, da qual o ciso levar em conta alguns princípios do
ensino é só um aspecto. Por outro lado, trabalho acadêmico e algumas informa-
poderiam estar se fechando definitivamen- ções complementares. Por exemplo, aten-
te as portas ao ensino superior gratuito a do-se aos números educacionais frios, po-
jovens de famílias mais pobres. deria-se inferir que as universidades pri-
Um retrato sintético dessas instituições no vadas são mais eficientes que as públicas.
Brasil pode ser visto no quadro geral do Não obstante possuam pessoal mais bem
ensino superior com números aproximados qualificado (quase cinco vezes o número
de instituições, de docentes e seus de doutores e quase o dobro de mestres),
percentuais de qualificação acadêmica, e as universidades públicas têm a mais bai-
de alunos de graduação, pós-graduação e xa razão alunos de graduação/professor, o
outros cursos (especialização, extensão ou que muitas vezes é interpretado simples-
seqüenciais). A razão entre o número de mente como um maior ônus aos cofres
alunos de graduação e o número de docen- públicos. E mais, em certas escolas priva-
tes completa o quadro. Esses dados permi- das a relação efetiva entre número de alu-
tem algumas comparações entre universi- nos e de docentes é ainda maior, se o nú-
dades públicas e privadas ou ainda entre mero de docentes for efetivamente pon-

Tabela 1 - Números aproximados do ensino superior do Brasil


Instituições Total Docentes Docentes Alunos de Alunos de pós- Alunos de Razão
de docentes mestres doutores graduação graduação outros alunos de
Mest.; Dout. cursos(*) graduação /
docentes
(total)
Universidades 80 75 mil 23 mil 23 mil 700mil 55mil;25mil 200 mil 9
Públicas (30%) (30%) (80 mil)
Universidades 80 45 mil 12 mil 5 mil 700mil 10mil;3mil 100 mil 16
Privadas (25%) (10%) (13 mil)
Outras Ins. Ens. 140 10 mil 2 mil 1 mil 100mil 5mil;2mil 50 mil 10
Sup. Públicas
(20%) (10%) (7 mil)
Outras Ins. Ens. 650 40 mil 8 mil 2 mil 500mil 0;0 50 mil 13
Sup. Privadas
(20%) (5%) (0)

Total 220 85 mil 25 mil 24 mil 800mil 60mil;27mil 250 mil 9


Inst. Públicas (23%) (~90 mil)
Total 730 85 mil 20 mil 7 mil 1200mil 10mil;3mil 150 mil 14
Inst. Privadas (77%) (~15 mil)
Total Geral 950 170 mil 45 mil 31 mil 2milhões 70mil;30mil 400 mil 12
(100 mil)

(*) Cursos de especialização, de extensão e seqüenciais.


Os dados apresentados nesse quadro foram aproximados, de forma a permitir uma visualização geral das
ordens de grandeza. Os dados que deram origem a essas aproximações foram extraídos de uma publicação
do MEC/ INEP (SCHWARTZMAN, Simon. O Ensino Superior no Brasil - 1998, Série Documental - Textos
para Discussão, 6. MEC/INEP, Brasília, 1999). Esses e outros dados estatísticos sobre o ensino superior no
Brasil podem ser obtidos pelo endereço eletrônico http:://www.inep.gov.br.

UNIVERSIDADE SITIADA 12
derado pelo regime de trabalho. Um pro- atividades de investigação e de produção
fessor pago por hora-aula, por meio perío- científica, tecnológica ou cultural.
do, pesaria ainda menos no denominador É claro que formar especialistas custa
daquela relação, mostrando uma faculda- tempo e dinheiro. Entre cada uma das ca-
de ainda mais “eficiente”. Alguns desses tegorias acadêmicas expressas na tabela
“horistas” chegam a dar oito horas de aula e a categoria imediatamente superior há,
num único dia, trabalhando em diferentes para cada docente, alguns anos de prepa-
instituições; oito horas, aliás, que é o mí- ração e um investimento grande em bol-
nimo exigido por lei como carga didática sas ou salários, equipamentos e infra-es-
dos professores das universidades públi- trutura. Do término da graduação ao grau
cas, só que por semana! Seriam as escolas de mestre leva-se cerca de três anos e se
privadas assim tão mais eficientes? Cer- utilizam investimentos médios em torno de
tamente não é o caso, se o critério de “efi- 50 mil dólares; do grau de mestre para o
ciência” não for exclusivamente financei- de doutor leva-se cerca de cinco anos e o
ro, mas considerar aspectos pedagógicos. investimento médio é de cerca de 100 mil
Também no que se refere a uma maior dólares (em números redondos, é claro,
percentagem de doutores, tal critério de como os números da própria tabela). Con-
eficiência poderia levar à conclusão equi- siderando o número de mestres e de dou-
vocada de representar mais um ônus do tores do quadro apresentado (45 mil e 31
que uma vantagem. No entanto, sem qual- mil, respectivamente) e o tempo de for-
quer dúvida e a despeito de aparentes so- mação (cerca de três e oito anos) pode-se
fismas, os doutores são hoje a medida mais perceber o enorme esforço para formar
imediata da maturidade didática de uma essa relativamente pequena elite, ou van-
universidade e da pesquisa e extensão que guarda, do ensino superior, e isso é muito
ela pode realizar porque, até por princípio mais custoso de repor, se de todo possível,
acadêmico, é o doutoramento que garante do que os muitos bilhões de dólares que
a um docente tornar-se professor e pesqui- esse esforço de construção acadêmica
sador autônomo, ou seja, poder conduzir terá custado em investimentos. Aliás, con-
por iniciativa própria investigação cientí- tinuamente, em qualquer época e institui-
fica ou cultural em geral, propor e coor- ção, mais de 10% do corpo docente das
denar disciplinas em cursos de graduação universidades públicas está temporaria-
e de pós-graduação, orientar a formação mente afastado de suas instituições, em ati-
pós-graduada de futuros mestres e douto- vidade de formação, de aperfeiçoamento
res, aceitar demandas de extensão. Os mes- ou de intercâmbio, o que também não cus-
tres, em princípio e em geral, participam ta pouco.
de pesquisas sob orientação de doutores, Como a produção de conhecimento cien-
coordenam disciplinas em cursos de gra- tífico, tecnológico e cultural demanda per-
duação e de extensão, mas não têm auto- manente intercâmbio e trabalho coletivo,
nomia acadêmica plena, não podendo, por a “unidade” de produção acadêmica autô-
exemplo, orientar nem conduzir cursos na noma e de formação pós-graduada não é
pós-graduação. Os bacharéis, assim como um doutor, isoladamente, mas um grupo de
os licenciados, à parte seu trabalho didáti- pesquisa, que só se consolida em vários
co-pedagógico e sua eventual atuação em anos, e que inclui entre seus participantes
extensão universitária, na melhor das hi- não só os docentes, mas também os esta-
póteses são aprendizes ou iniciantes em giários, os visitantes, os estudantes de pós-
13 LUÍS CARLOS DE MENEZES
graduação e os de iniciação científica. cas ou acadêmicas. Dessa forma, se cons-
Cada uma dessas unidades se relaciona tituem comunidades de cada especialida-
com muitas outras, suas congêneres, por de, que em muito transcendem os muros
correio eletrônico, pela troca de artigos ou da universidade, da cidade, do estado ou
informações diretas, por visitas a labora- do país. Não é difícil ilustrar essa afirma-
tórios, por seminários ou colóquios e por ção com exemplos históricos, que nos en-
meio de conferências gerais, de alcance volvem direta ou indiretamente. Já no co-
nacional ou internacional. Isso tudo, aliás, meço do século, quando o núcleo atômico e
custa muito. Esses custos humanos e fi- o primeiro modelo quântico de átomo fo-
nanceiros de construção e de manutenção ram descobertos, no laboratório Cavendish
de equipes de pesquisa, de desenvolvimen- da Inglaterra, o investigador chefe, Ruther-
to e de formação pós-graduada deveriam ford, era neozelandês, e entre seus princi-
servir para orientar nosso julgamento, numa pais colaboradores estavam Bohr, um dina-
breve nova observação do quadro geral, marquês, e Gamov, um russo. Mais tarde,
comparando os números das universida- noutro espaço, o russo Gamov, o indiano
des propriamente ditas com outras insti- Chandrasekar e o brasileiro Schenberg
tuições de ensino superior, por exemplo cooperaram em trabalhos em que as no-
estabelecendo as proporções entre o nú- vas idéias sobre o núcleo atômico ajuda-
mero de doutores de que dispõem e o nú- ram a desvendar a evolução das estrelas.
mero de doutores que estão formando. Esse mesmo intercâmbio acadêmico, nas
Nesse sentido, cabe ainda uma advertên- ciências humanas, permitiu, por exemplo,
cia relativamente a dados estatísticos. É a vinda da França de Claude Levi-Strauss,
importante ressaltar que as médias e da- Fernand Braudel e Roger Bastide para a
dos globais “escondem” a heterogeneida- formação de um dos primeiros centros de
de: em algumas de nossas universidades investigação social e antropológica no Bra-
públicas, praticamente todos os docentes sil. Em diferentes épocas, é também o meio
são doutores ou, pelo menos, o acadêmico que promove o debate e a di-
doutoramento é condição de ingresso de fusão mundial de idéias de educadores
novos professores. Essas universidades, como o suíço Piaget e o russo Vigotsky.
por um lado, concentram boa parte dos Aliás, entre as mais significativas contri-
recursos de pesquisa do país, por outro lado, buições para o pensamento educacional
são formadoras da maior parte dos docen- em nosso século, está a do brasileiro Pau-
tes pós-graduados para todo o ensino su- lo Freire, em parte desenvolvida durante
perior brasileiro. Quanto às universidades longo exílio, acolhido pela comunidade de
privadas, tirante poucas exceções, a mé- educadores em diferentes partes do mun-
dia expressa sim uma homogeneidade pró- do, como a Europa, a América Central e a
xima dos valores mínimos exigidos por lei África. Esses são só exemplos históricos,
para o credenciamento universitário. vividos há muitas ou há algumas décadas.
A ciência em especial e a cultura aca- Na atualidade, muitos milhares de progra-
dêmica em geral são atividades universais, mas de cooperação e intercâmbio ligam
portanto cada grupo de pesquisa está em nossos grupos de pesquisa, das mais va-
permanente intercâmbio com congêneres riadas áreas de conhecimento, a seus con-
no país e no mundo, em relações diretas gêneres em todos os continentes.
de cooperação e emulação ou em relações Nas primeiras décadas da constituição
indiretas por meio de publicações científi- de muitas universidades brasileiras, espe-
UNIVERSIDADE SITIADA 14
cialmente das que foram implantadas em capacidade de investimento público. Como
regiões economicamente mais frágeis e esse deslocamento não tem acontecido, é
socialmente menos desenvolvidas, o tem- o setor privado, cada vez mais agressivo
po médio de formação pós-graduada foi em seus investimentos e em sua propa-
ainda mais dilatado e dispendioso, deman- ganda, que está se assenhoreando dessa
dando vários anos de estágio em outras demanda. Isso já está acontecendo em todo
instituições; além disso, muitos docentes o país, mas há anos é um processo majori-
só atingiram sua autonomia científica já tário e de improvável reversão nas gran-
com tempo de serviço suficiente para uma des cidades do centro-sul do país. Como
aposentadoria. Isso não só atrasou o pro- vimos, o setor privado tem conseguido
cesso de criação das universidades como credenciar-se com o status universitário
aumentou muito seus custos e, até mes- e, mesmo não possuindo maturidade aca-
mo, houve casos de se desperdiçar o in- dêmica para a formação dos próprios do-
vestimento, quando os grupos de pesqui- centes, os tem atraído do setor público e, o
sa não chegaram a se formar ou não tive- que é pelo menos curioso, já começa a
ram meios para se reproduzir. Em algu- oferecer algumas modalidades de pós-gra-
mas dessas universidades, criadas por in- duação ou especialização, às vezes sob
fluência de interesses mesquinhos de che- franquia de instituições norte-americanas,
fes políticos regionais, foi preciso muito e não se trata de hambúrgueres...
tempo para autonomizar essas instituições Está armado o cenário em que pode se
relativamente à pequenez do clientelismo dar o desfecho do sítio a que se submete a
político, e custou grande esforço, e por universidade pública brasileira. Sua defe-
vezes o sacrifício de jovens lideranças sa não se pode restringir ao domínio da
universitárias, para se conseguir o estabe- quantidade, pois a marca da academia é a
lecimento de um corpo acadêmico efeti- qualidade, mas é preciso cautela contra um
vamente comprometido com os objetivos problema de teor exatamente oposto, o da
institucionais e capacitado para isso. En- elitização, pois o caráter universal da cul-
quanto isso, o mundo não parou, e a mo- tura e da produção científica pode também
dernização produtiva e dos serviços am- apartá-la das problemáticas locais e isolá-
pliou a demanda por educação superior. la estrategicamente, podendo abrir um
O ensino superior fornecido pelas uni- flanco de fragilidade, relativamente a sua
versidades, especialmente os cursos de avaliação pública. A produção intelectual
graduação, é a forma mais tradicional de de uma universidade deveria, em princí-
serviço prestado pela universidade à co- pio, alcançar e interessar toda a comuni-
munidade. Muitos desses cursos têm tam- dade, o entorno social de que é parte e
bém sido oferecidos por instituições não que a mantém. Os problemas sociais, eco-
universitárias, menos dispendiosas, ou pri- nômicos, culturais, educacionais e ambi-
vadas, mantendo-se quase literalmente entais da comunidade e da região em que
como prerrogativa formativa das universi- está a universidade deveriam ser parte de
dades simplesmente os cursos de pós-gra- sua temática de investigação, como ob-
duação. O deslocamento de parte do ensi- jeto de diagnóstico, proposição e desen-
no superior público para instituições públi- volvimento. As questões da sociedade e
cas não universitárias talvez seja inevitá- da região em que se desenvolve a univer-
vel, tendo em vista o crescente descom- sidade deveriam assumir para ela imedia-
passo entre o aumento da demanda e a ta importância, sob o risco de ela se tornar
15 LUÍS CARLOS DE MENEZES
corpo estranho ou, o que dá na mesma,
supérflua. Cenários realistas
A ironia dessa questão está no fato de
que, muitas vezes, justamente a parcela da e possíveis desfechos
universidade mais bem preparada científi-
ca e culturalmente é a que O futuro de qualquer instituição
acaba por distanciar-se mais não é como um cardápio fechado,
das problemáticas locais, dan- com um certo número de escolhas
do menor prioridade aos pro- definidas, mas como o tabuleiro de
blemas educacionais ou soci- um jogo aberto, com incontáveis
ais em geral. Essa postura, na possíveis configurações. Por isso, há
realidade, não é um traço es- uma certa arbitrariedade ao se se-
pontâneo mas sim resultado lecionar uns tantos possíveis cená-
de uma política de décadas, rios sociais e, para cada um deles,
que promoveu a pesquisa e a imaginar eventuais desenvolvimen-
pós-graduação em detrimen- tos, no que se refere à questão da
to da graduação e da extensão. Pode-se universidade. Trata-se aqui, nesse instan-
entender que a intenção dessa política era te, de fazer um exercício de visualização
a promoção de excelência acadêmica, mas das conseqüências de políticas que, em
ela precisa ser contrabalançada rápida e última análise, mantenham o atual curso
lucidamente, sem prejudicar o investimen- de acontecimentos, no mundo acadêmico
to em qualidade que a caracterizou. Essa em particular ou no ensino superior em
e outras necessárias revisões dependem geral. Os cenários apresentados a seguir
de uma vontade política que ainda não se não são mera especulação, mas conseqü-
revelou. Não se revelou nas principais ins- ências da política econômica e social que
tâncias de governo, mais preocupadas com está sendo seguida. O estudo de suas de-
os custos relativos do que com os desem- corrências servirá para compreender me-
penhos efetivos. Não se revelou entre as lhor as ações necessárias para mudar es-
principais lideranças acadêmicas, mais pre- sas perspectivas, quando não para justificá-
ocupadas com a defesa de curto prazo, di- las, uma vez que, sem nenhuma pretensão
ante da asfixia econômico-financeira da a neutralidade analítica, o presente texto
universidade. Não se revelou nas instân- estará propondo ações nesse sentido.
cias representativas da sociedade civil, para Há aspectos gerais e outros bastante
as quais escapa qualquer percepção de específicos na composição do cenário so-
qualquer significado estratégico da univer- cial e econômico em que a universidade
sidade, o que não é de estranhar. Diante pública e as demais instituições de ensino
disso, vale a pena esboçar as decorrênci- superior se desenvolvem, e para os quais
as da continuidade das políticas atuais, ou contribuem. Do geral ao específico, pode-
seja, sem que nada muito significativo seja mos lembrar, por exemplo, condições de
empreendido para mudar o estado de coi- economia nacional e global, que condicio-
sas, ainda que seja para compreender o nem a demanda por ensino superior; defi-
que se estará destruindo e questionar se é nições políticas nacionais ou estaduais, que
isso mesmo que se pretende. proponham a defesa de instituições ou o
“enxugamento” do Estado; decisões legis-
lativas, que podem garantir autonomia fi-
UNIVERSIDADE SITIADA 16
nanceira ou cancelar prerrogativas de pro- sil e noutras partes do mundo. Não só no
fessores universitários; deliberações da que se relaciona à pesquisa, um escanca-
Câmara de Ensino Superior do Conselho ramento ainda mais profundo do Estado à
Nacional de Educação, que podem pressão de interesses privados, nacionais
credenciar ou não como universidades e internacionais, certamente acrescentaria
novos conglomerados de faculdades pri- à longa lista de privatizações, que já in-
vadas; táticas empresariais dos setores de cluiu siderurgia, energia, comunicações, o
capital, operando no ensino superior, que que resta de instalações públicas de saúde
podem atrair para seus quadros docentes e educação, incluídos aí os hospitais uni-
universitários de difícil reposição; estraté- versitários e as próprias universidades
gias dos colegiados de dirigentes universi- públicas. O que se poderia sim discutir são
tários e das associações docentes das uni- as diferentes modalidades e ritmos em que
versidades públicas, que poderiam romper se daria essa privatização, seja pela neces-
o relativo isolamento político a que acaba- sidade de mudanças legais e constitucio-
ram confinados. Todos esses fatores, sem nais, seja pelo interesse em se diluir even-
qualquer exagero, envolvem diretamente tuais resistências.
os destinos de mais de dois milhões de Se esse cenário viesse a se estabelecer
pessoas e, da perspectiva do interesse com ritmo mais lento, começaria com cor-
empresarial, envolvem um mercado atual tes ainda mais profundos que os atuais ao
de bilhões de dólares anuais e um merca- financiamento da pesquisa, até reduzi-los
do potencial muito maior. Indiretamente, à simples compra de eventuais serviços
envolvem toda a nação. Cautelosamente, acadêmicos pelo Estado, acompanhada da
escolheremos nesse momento, com algu- liberação de cobranças, diretas aos usuá-
mas variações, dois cenários possíveis, no rios, de serviços educacionais e outros,
sentido de não implicarem transformações assim como do congelamento nos salários
abruptas, reservando para outro momento e contratações estatutárias, conduzindo as
aqueles que demandem, por exemplo, mu- atuais universidades a serem geridas em
danças radicais na orientação de políticas função de seus interesses próprios de so-
sociais. brevivência, de fato como empresas. Se
Um primeiro cenário leva em conta a esse cenário fosse estabelecido com rit-
possibilidade de um aprofundamento do mo mais rápido, incluiria a mudança de
processo de globalização, acompanhado regimes estatutários, funcionais e insti-
de um correspondente aumento da exclu- tucionais, levando a curto prazo ao em-
são social. O enfraquecimento do Estado presariamento, não só de fato, também de
levaria a uma sua desobrigação maior, re- direito. Há diferentes agentes que defen-
lativamente aos serviços públicos, dem políticas que conduzem a esse cená-
privatizando o que resta de infra-estrutura rio, desde políticos com propostas
material ainda de posse do governo. Para ultraliberais até empresários da educação
um Estado de tal forma enfraquecido, a superior que consideram a universidade
manutenção de instituições públicas de pública uma espécie de “concorrência des-
produção científica e cultural poderia ser leal”. Relativamente à gratuidade, depen-
vista como um luxo desproporcional. Ain- dendo da proposta, seria simplesmente
da que algo mais pessimista, esse cenário abolida, ou substituída por bolsas de estu-
não é improvável, pois corresponde a um do ou crédito educativo, para estudantes
avanço de uma tendência em curso no Bra- carentes.
17 LUÍS CARLOS DE MENEZES
Outro cenário corresponde à simples donar suas pretensões de se tornarem cen-
continuidade das atuais condições e políti- tros de pesquisa e de desenvolvimento
cas sociais e econômicas, assim como da científico e cultural. Aos poucos perderi-
reduzida presença do Estado, ou seja, tam- am sua condição de autonomia carente, de
bém de ausência de políticas mais vigoro- “desenvolvimento dependente”; na melhor
sas para o ensino superior. De certa for- da hipóteses, se consolidariam como insti-
ma, esse é um cenário até menos prová- tuições de ensino superior público, remu-
vel, pois implica a existência de algum freio neradas, em última análise, de acordo com
em lugar da aceleração do desmonte. O o número de alunos atendidos ou gradua-
que poderia viabilizar, a médio prazo, esse dos. Para as universidades maiores, tal-
cenário de continuidade seria a concreti- vez uma dúzia delas, que em certas pro-
zação de alguma das versões de autono- posições seriam os “centros de excelên-
mia universitária, hoje em discussão, que cia”, as modificações seriam de outra na-
estabilizaria um patamar de financiamento tureza; assim como entre empresas num
público às universidades e descentraliza- mundo globalizado – sobrevivem as que
ria amplamente as decisões de gestão aca- se adequarem a um desempenho compe-
dêmica e administrativa das universidades. titivo global –, essas universidades estari-
Uma primeira conseqüência de uma com- am fisicamente no Brasil mas trabalhari-
pleta descentralização, possibilidade nada am em uníssono com congêneres ameri-
surpreendente, seria a descaracterização canas e européias. E, assim como nessa
institucional do conceito de universidade sociedade que consolida a exclusão social
pública, pois, especialmente as federais, e econômica as empresas globalizadas têm
enfraquecido o lastro de sua rede comum, como mercado unicamente os incluídos,
se equilibrariam cada uma como pudesse, essas universidades estariam se relacio-
em suas circunstâncias, ora sucumbindo nando com o Brasil incluído. Por exemplo,
a pressões locais, ora encontrando saídas fornecendo quadros docentes para as uni-
de tipo empresarial, para completar seus versidade privadas...
orçamentos, usando brechas legais que, Em suma, nos cenários realistas que hoje
como parte daquelas propostas de auto- se apresentam, mantidas as demais condi-
nomia, já estão sendo providenciadas. Os ções que levam a eles, a universidade tem
políticos conservadores norte-americanos pouca chance de vitória; no embate em
usavam uma expressão sarcástica, que vive hoje, perde por nocaute ou perde
benign neglect, “negligência benigna”, ao por pontos. Isso acontece lado a lado com
designar sua própria política social, que o que acontece com o Estado, o que nos
contrapunham ao welfare state, para a traz de volta à idéia central de que, pro-
população carente; de certa forma, esse posta como instrumento de construção na-
“largar mão e deixar que se virem” cional, a universidade perde sentido quan-
corresponde ao tratamento para as uni- do a nação perde sentido. Seria útil tentar
versidades e para o ensino superior decor- rever seus fundamentos originais, entrar
rente da continuidade pura e simples das no mérito dos embates que viveu e vive,
políticas hoje esboçadas. para que possamos empreender a difícil
Nesse cenário mais conservador há al- tarefa de sua defesa e reconstrução, não
gumas possíveis alternativas de desdobra- para a glória de si mesma, por certo, mas
mento, mas em qualquer delas as universi- como elemento da própria reconstrução do
dades públicas menores teriam de aban- Estado e da nação. Contudo, a universida-
UNIVERSIDADE SITIADA 18
de só pode ser elemento para a reconstru- dadãos e passa a tratá-la como qualquer
ção do Estado se isso for definido como outro serviço público, que pode ser
projeto nacional. Hoje, pelo contrário, como terceirizado ou privatizado”2, e, ainda que
lembra Marilena Chaui ao discutir a situa- a universidade seja mais do que estrita-
ção atual da universidade, o Estado, “ao mente educação, não há qualquer indica-
colocar a educação no campo de servi- ção de que, mantidos os rumos, venha a
ços, deixa de considerá-la direito dos ci- ter destino diferente.

19 LUÍS CARLOS DE MENEZES


A história
de uma
idéia e o
cerco
político
versidade Federal do Rio de Janeiro. Es-
A idéia de uma sas instituições e sua evolução têm sua
importância não só por sua antiguidade,
universidade pública mas por terem balizado a criação e o de-
senvolvimento de muitas outras
A universidade pública no Brasil, como congêneres.
em muitos outros países, foi proposta para Os pressupostos que presidiram à cria-
suprir elementos essenciais para a cons- ção dessas universidades podem ser per-
trução nacional que estavam ausentes nas cebidos nos principais documentos da épo-
instituições isoladas de ensino profissio- ca, como o projeto de reforma do ensino
nal superior, como a formação de lideran- superior, firmado pelo ministro da educa-
ças culturais e de quadros docentes, assim ção Francisco Campos em 1931, ou como
como para a realização de investigação o Manifesto dos pioneiros da Educação
científica e para a produção cultural. Con- Nova, firmado em São Paulo, em 1932,
cretamente, sua criação se inicia na déca- pelas mais expressivas lideranças da edu-
da de 1930, com várias instituições de ca- cação e da cultura de então, entre as quais
ráter universitário, entre as quais a Uni- Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira.
versidade de São Paulo, em 1934, com sua A reforma de Francisco Campos preten-
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, dia que se promovesse “caráter propria-
assim como a Universidade do Distrito mente universitário, permitindo que a vida
Federal, em 1935, transformada pouco universitária transcendesse os limites do
depois na Faculdade Nacional de Filoso- interesse puramente profissional, abran-
fia da Universidade do Brasil, hoje Uni- gendo, em todos os aspectos, os altos e

UNIVERSIDADE SITIADA 20
autênticos valores da cultura...”3. Essa crí- somente subentendido por seus proposi-
tica à limitação cultural das escolas pro- tores:
fissionais está igualmente presente no
Manifesto: “A organização de universidades é, pois,
tanto mais necessária e urgente quanto
“É que a cultura, como a ciência, exige mais pensarmos que só com essas insti-
uma iniciação. Não se improvisa o obser- tuições, a que cabe criar e difundir ideais
vador, de espírito científico. Toda a cul- políticos, sociais, morais e estéticos, é
tura superior, no Brasil, nunca ultrapas- que podemos obter esse intensivo espí-
sou os limites das ambições profissio- rito comum, nas aspirações, nos ideais e
nais. Mas, organizada exclusivamente nas lutas esse ‘estado de ânimo nacio-
para a formação profissional, sem qual- nal’, capaz de dar força e coerência à ação
quer aparelhamento de cultura livre e dos homens, sejam quais forem as diver-
desinteressada, ela constituiu, no impé- gências que possa estabelecer entre eles
rio e na república, o único sistema de ins- a diversidade de pontos de vista na so-
trução superior, cujas deficiências em vão lução dos problemas brasileiros”6.
se procurava suprir [...]”4.
Se, por um lado, vêem a universidade
Em seguida, o Manifesto já aponta como como essencial em um sentido geral – “não
transcender a condição dada: há sociedade alguma que possa prescindir
desse órgão especial [...] para enfrentar a
“A educação superior, que tem estado, variedade dos problemas que põe a com-
no Brasil, exclusivamente a serviço das plexidade das sociedades modernas ”7 –,
profissões ‘liberais’ (engenharia, medi- por outro lado explicitam a importância
cina e direito), não pode evidentemente particular da universidade na formação dos
erigir-se à altura de uma educação uni- professores, “tratada entre nós [...] como
versitária, sem alargar para horizontes se a função educacional, de todas as fun-
científicos e culturais [...] Ao lado das ções públicas a mais importante, fosse a
faculdades profissionais existentes, re- única para cujo exercício não houvesse
organizadas em novas bases, impõe-se a necessidade de qualquer preparação pro-
criação simultânea ou sucessiva, em cada fissional”8.
quadro universitário, de faculdades de O embate político que envolve as uni-
ciências sociais e econômicas, de ciênci- versidades, entre interesses gerais de na-
as matemáticas, físicas e naturais, e de ção e interesses particulares, religiosos,
filosofia e letras que [...] deverão abrir às profissionais ou corporativos, é de fato tão
universidades que se criarem ou se reor- antigo quanto a criação das universidades.
ganizarem um campo cada vez mais vas- Francisco Campos já deixa entrever que
to de investigações científicas”5. sua proposta de reforma “representa um
estado de equilíbrio entre tendências
O sentido social e político dessa univer- opostas [...] auscultadas todas as corren-
sidade pública, tanto quanto seu caráter tes e expressões de pensamento, desde
necessariamente plural, não foi deixado as mais radicais às mais conservadoras”9.
21 LUÍS CARLOS DE MENEZES
Equilíbrio, efetivamente, é o que nunca versidade quanto para a democracia, é que
houve. O que tem havido desde então é lhe tem custado seus mais duros golpes
uma periódica alternância de hegemonias. políticos.
Sempre que posições mais progressistas É claro que não se pode depositar na
prevalecem, durante algum período, em universidade a responsabilidade isolada na
defesa de interesses nacionais e democrá- defesa da democracia social e econômica,
ticos, elas têm promovido instituições uni- nem faz sentido colocá-la à parte da pro-
versitárias compatíveis com essas posi- blemática política, como se a academia
ções. Alternativamente, sob inspiração fosse uma ilha ou um mero posto de ob-
religiosa, “liberal” ou autoritária, essas ins- servação. Certamente, os fundadores da
tituições têm sido dissolvidas, combatidas universidade depositavam nela grandes
ou manietadas, quando o poder político esperanças, mesmo sabendo que ela car-
muda de mãos. regaria as contradições do meio em que se
O ataque conservador, capitaneado pela desenvolveria. Em recente entrevista, An-
Igreja, a Fernando Azevedo e a Anísio tonio Candido de Mello e Souza, um dos
Teixeira, que resultou entre outras coisas intelectuais íntegros e lúcidos de nossos
no sacrifício da Universidade do Distrito tempos, por um lado considera ilusória a
Federal criada por Anísio, foi só um pri- idéia da revolução pela educação:
meiro exemplo. A criação da Universida-
de de Brasília por Darcy Ribeiro em 1962, “Num país como o nosso, o entrosamento
e a intervenção nessa universidade pela indispensável entre projeto educacional,
ditadura militar, em 1964, é outro exemplo ação governamental e vontade coletiva
dessa alternância. Finalmente, a interven- só ocorrerá se houver transformação so-
ção na USP em 1968, com a cassação do cial profunda da sociedade, [...] ao con-
reitor Hélio Lourenço e de intelectuais trário do que pensavam os educadores
como o médico Alberto Carvalho da Silva, progressistas das décadas de 1920 e
o sociólogo Florestan Fernandes e o físico 1930, não é a instrução universal que
Mário Schenberg, ilustra o quanto a produz a mudança social num sentido de-
pluralidade e a autonomia de pensamento, mocrático; é a mudança social profunda
características da universidade, incomo- que permite chegar a uma verdadeira ins-
dam qualquer autoritarismo obscuro. A trução para todos”.
universidade, em seu “conceito moderno”
já preconizado no Manifesto, foi combati- Por outro lado, ele entende que só parte
da pelos conservadores de 1935 ou pelos do papel de sua geração na universidade
reacionários de 1964 e 1968 não por ser foi cumprido, “pois construímos uma cul-
“de esquerda” mas sim por sua vocação tura universitária, [...] fator decisivo de
de “criar e difundir ideais políticos, sociais, progresso cultural [...]” mas, prestando
morais e estéticos [...] sejam quais forem homenagem a seus mestres e contempo-
as divergências que possa estabelecer [...] râneos que mais batalharam por uma edu-
a diversidade de pontos de vista”10. A idéia cação básica pública de qualidade, como
vigorosa de que a nação se constrói pela Fernando de Azevedo, Florestan Fernan-
diversidade, que é tão fundante para a uni- des e Darcy Ribeiro, reconhece que essa
UNIVERSIDADE SITIADA 22
missão ainda não foi cumprida e respon-
sabiliza a elite, a quem competia “intervir
Pesquisa, pós-graduação
na sociedade, a fim de contribuir para a
sua melhoria ou a sua transformação no
e desprestígio
campo da instrução e da cultura”11.
Nesse momento, há novos desafios A universidade é uma instituição mile-
apresentados à luta social, um impasse e nar, mais velha mesmo que o Estado-na-
mesmo um retrocesso na questão da de- ção, mas a universidade moderna é sim-
mocracia social, por conta de um verda- plesmente centenária e um de seus mar-
deiro programa de exclusão cos conceituais foi a busca
associado à globalização do saber, apartada das vi-
econômica. A ameaça à de- cissitudes imediatas da
mocracia e à universidade, vida. O cardeal John Henry
contudo, não está vindo nem Newman, fundador da Uni-
de uma direita autoritária versidade de Dublin, que já
nem de uma esquerda sec- em meados do século XIX
tária, mas de um novo caracterizou os traços prin-
postulante a “pensamento único”, um cipais da universidade contemporânea,
pragmatismo ultraliberal, que pretende tentou definir essa universidade, na qual a
erigir as forças de mercado como critério busca da verdade fosse independente das
último de razão, para além dos direitos agruras humanas, de forma a abrigar e pro-
do indivíduo ou dos interesses da nação, mover “todo o conhecimento e ciência, de
que, aliás, pode vir a sucumbir junto com fato e de princípio, de investigação e des-
a universidade. Contudo, para ver como coberta, de experimento e especulação”12.
e por que a universidade poderá sucum- Essa definição, se, por um lado, constituiu
bir e tentar impedir que isso aconteça, é uma armadura protetora, relativamente às
preciso saber de que forma está ameaçado turbulências dos debates conjunturais, per-
hoje seu núcleo conceitual, que é a pes- mitindo a constituição de uma espécie de
quisa, como esse núcleo foi construído e sacrário do saber, por outro, deu margem
compreender como se deram os principais a uma visão da universidade como estru-
lances do desenvolvimento e da manuten- tura alienada dos dramas humanos, que se
ção da qualidade acadêmica, da capaci- expressa pejorativamente na expressão
dade de investigação e produção do sa- “torre de marfim”. Essa contradição ori-
ber, e, ao mesmo tempo, entender como ginal tem ecos até nossos dias, mas está
foi se alijando e se distanciando dos pro- longe da realidade de qualquer universi-
blemas nacionais, ainda que contradito- dade contemporânea, pois o século XX
riamente vivendo-os em seu próprio in- trouxe dois elementos novos que opera-
terior. ram no sentido exatamente oposto, de
envolvimento visceral da universidade
com a vida econômica e social.
O primeiro desses novos elementos foi
a exponencial emergência da ciência e do
23 LUÍS CARLOS DE MENEZES
conhecimento em geral como componen- “Oxford respirou fundo, tapou o nariz e,
te central da produção e dos serviços, no depois de muita dissimulação, decidiu
que hoje já se denomina terceira revolu- aceitar uma dotação financeira de um mi-
ção industrial; o segundo elemento foi a lionário saudita para estabelecer, por de-
emergência da democracia moderna, que manda deste, nada menos que uma esco-
trouxe consigo uma demanda crescente por la de administração de empresas.
educação, para a qual a universidade é Cambridge, sua rival, se encheu de or-
imediatamente convocada, quando não gulho quando Bill Gates a escolheu para
explicitamente concebida, como vimos na local do primeiro laboratório de ciência
seção anterior. Um levantamento amplo da computação que a Microsoft estabe-
sobre as universidades no mundo de hoje, leceu fora de seus domínios próprios”14.
assunto recente de uma das mais presti-
giosas revistas da atualidade, The É inútil tentarmos nos consolar, vendo
Economist, afirma que o brio inglês sucumbir à força do capital
internacional, pretendendo com isso nos
“essas duas forças – o triunfo da ciência convencer de que, já que é inevitável, é
e a demanda por educação superior de melhor relaxar... Interessa sim saber que
massa – respondem por muito do suces- não só no Brasil a universidade vive a tur-
so e da durabilidade da universidade no bulência da transição de paradigmas, mas
século XX. Ambas promoveram uma é preciso saber que o que se passa entre
vasta expansão no número de universi- nós é bem mais grave, pois não está em
dades, criaram centenas de milhares de cogitação o financiamento internacional de
empregos acadêmicos e atraíram grandes cursos profissionais em nossas universi-
somas de recursos públicos para os sis- dades públicas, muito menos se discutem
temas de educação superior”, propostas de grandes parcerias dessas uni-
versidades com grandes multinacionais
mas aponta com a mesma ênfase que, pre- para o desenvolvimento de tecnologia de
cisamente por atrair muitos recursos, tem ponta. O que está hoje em jogo é a
trazido maior supervisão e restringido a desmobilização gradual de nossos grupos
“autonomia intelectual, que alguns vêem de pesquisa, ou até a possibilidade de seu
como uma característica definidora da desmonte abrupto, a pretexto de serem
universidade”13. menos produtivos que os de outros países,
Ao lado dessas limitações à independên- ou porque sua utilidade estaria sendo vis-
cia acadêmica, o sentido prático do ensi- ta como cada vez mais discutível e, mais
no superior e da pesquisa científica e a do que todas as outras razões juntas, por-
“força do mercado” têm também condu- que seriam demasiadamente caros. De toda
zido a modificações profundas em alguns forma, qualquer que seja a razão ou o pre-
pressupostos básicos da universidade. O texto, se estará cancelando um esforço
referido artigo ilustra isso com exemplos nacional de mais de meio século.
marcantes de duas das mais tradicionais Nas origens da universidade brasileira e
universidades do mundo: de seus grupos de pesquisa, nos anos 30 e
40, foi essencial a participação de cientis-
UNIVERSIDADE SITIADA 24
tas europeus na formação de seus qua- poder nas duas décadas seguintes, até a
dros acadêmicos, sendo natural assim que revolta estudantil antiautoritária que eclodiu
ela se tenha desenvolvido de acordo com em todo o mundo ocidental e que, no Bra-
um padrão europeu, que se manteve até sil, polarizou o movimento contra a ditadu-
os anos 60. Nessa década, muitas trans- ra militar e influiu na própria reforma uni-
formações concomitantes, de diferentes versitária. Aprovada em versão muito dis-
naturezas, interferiram na evolução sub- tante do sonho libertário dos estudantes
seqüente. No âmbito da pesquisa e da es- sublevados, a reforma comprometeu mes-
pecialização dos docentes, houve a cria- mo certos aspectos da autonomia univer-
ção de duas agências federais de fomen- sitária, mas o fim das velhas cátedras e a
to, que sistematizaram o acesso ao finan- introdução dos ciclos básicos esboçava
ciamento da pesquisa e a bolsas de aper- uma estrutura algo mais articulada, para
feiçoamento. Uma delas, o CNPq, Con- uma universidade que fora criada como
selho Nacional de Pesquisas, hoje deno- colcha de retalhos das escolas profissio-
minado Conselho Nacional de Desenvol- nais anteriores, com as faculdades de filo-
vimento Científico e Tecnológico, e, a ou- sofia, ciências e letras que lhes foram agre-
tra, a CAPES, Coordenação de Aperfei- gadas. É difícil estabelecer claramente o
çoamento de Pessoal de Nível Superior. que mais contribuiu para frustrar definiti-
Nesse período e com a ajuda desses no- vamente a reforma universitária dos anos
vos instrumentos, o Brasil acompanha ten- 60, se os militares no poder ou se os acadê-
dência internacional, adotando um outro micos retrógrados que assumiram muitas
modelo de relação entre a pesquisa e o das universidades; o que é certo é que es-
aperfeiçoamento, com nova sistemática de ses dois grupos se articularam, permitindo
cursos de pós-graduação, de padrão mais submeter a maior parte de nossas universi-
norte-americano, que propiciou um cres- dades a direções submissas ou diretamente
cimento em escala do público que passou envolvidas com o governo autoritário, como
a atender a esse novo nível, assim como Gama e Silva na USP e outros intervento-
ampliou o intercâmbio internacional e nú- res de triste memória.
mero de bolsas para estada no exterior. O Bem ou mal, a configuração dada pela
sentido prático ou aplicado de parte signifi- reforma universitária pautou o período
cativa das pesquisas era indiscutível, com o mais importante para a consolidação da
apelo nuclear nas áreas físicas e com o apelo pós-graduação e da pesquisa no Brasil, dos
médico nas áreas biológicas. Essas áreas anos 60 aos 80, seja nas poucas universi-
científico-tecnológicas também contaram dades que já tinham tradição de trabalho
por décadas com uma terceira agência, a acadêmico, seja nas recém-criadas ou que
FINEP, Financiadora de Estudos e Proje- foram fundadas nesse mesmo período.
tos, que ainda existe mas com objetivos dis- Assim como, 30 anos antes, dezenas de
tintos dos que teve em passado recente. jovens vocacionados vieram de todo o país
Muito mais aconteceu na década de 1960, para compor as equipes de pesquisadores
que foi determinante para o desenvolvi- das primeiras universidades, no Rio de
mento subseqüente, desde o golpe de Es- Janeiro e em São Paulo, e alguns deles,
tado, que estabeleceu a centralização do como Cesar Lattes, foram ao exterior in-
25 LUÍS CARLOS DE MENEZES
tegrar equipes científicas de vanguarda, a Essa ameaça não vem só de fora da uni-
partir dos anos 60 já somam milhares os versidade, nem é coisa recente. Algumas
jovens acadêmicos que passam a freqüen- universidades, aliás, já surgiram macula-
tar pós-graduações nos grandes centros no das por seu próprio processo de criação,
Brasil e no exterior, obtendo seus mestra- em que chefes políticos da região promo-
dos e doutoramentos e passando a consti- veram sua fundação para ampliar seus pri-
tuir o corpo de pesquisadores que, ainda vilégios, combateram ostensivamente
hoje, conduz a investigação científica, a aqueles que pretendiam uma efetiva cons-
produção cultural e novos cursos de pós- trução acadêmica dessas instituições e ten-
graduação, em nossas universidades, mui- taram décadas a fio submeter o mérito ci-
tas desenvolvidas nesse mesmo período. entífico e os interesses educacionais ao
Isso foi, por assim dizer, o período “ro- fisiologismo político ou ao nepotismo puro
mântico” da construção universitária bra- e simples. Por ter aceito, com certa natu-
sileira. Os muitos milhares de doutores que, ralidade, como aponta Marilena Chaui, “a
como vimos, constituem um quarto dos forma com que elas foram criadas para
docentes da universidade pública foram servir aos interesses e ao prestígio de oli-
formados nesse período ou em imediata garquias locais, que as transformaram em
decorrência dele. Isso custou cerca de cabides de emprego para clientes e paren-
uma dezena de anos de trabalho de cada tes...”15, parte da própria comunidade aca-
um dos professores envolvidos, freqüen- dêmica acabou conivente com desvios éti-
temente deslocando com eles as suas fa- cos desse processo. A luta contra esses
mílias em seus estágios, e um enorme in- adversários internos, não de todo encerra-
vestimento de recursos públicos. A esse da, tem sido um dos principais obstáculos
custo é que muitas instituições públicas na construção acadêmica em certos esta-
brasileiras de pesquisa e de ensino supe- dos brasileiros. A importância dessa luta
rior atingiram a condição de se denomina- é maior do que parece. Nela, o meio aca-
rem universidade. Como é tão novo esse dêmico tem sido só um cenário de um
país, não há nele nenhum centro urbano embate mais geral, em defesa dos interes-
cuja história recente não esteja marcada se sociais, promovendo a autonomia ins-
por esse esforço de formação especializa- titucional relativamente à manipulação
da, não só por conta de suas universida- política espúria. Especialmente em centros
des, mas pela presença das lideranças in- urbanos econômica e culturalmente mais
telectuais que produziu, atuando na vida atrasados, esse tipo de embate se deu e está
política, em seus periódicos, em seus ser- se dando em todas as instituições, sejam
viços médicos, em seus tribunais, em sua de educação, de saúde ou de justiça. É pre-
vida cultural em geral. Isso tudo, no en- ciso ter isso em vista, pois muitas vezes a
tanto, está sendo ameaçado por uma con- defesa da privatização, de forma aparen-
tínua restrição do investimento e do cus- temente contraditória, expressa uma revol-
teio da pesquisa, já há cerca de 15 anos, e ta contra o desvio de objetivos de equipa-
com indicações recentes de que mudan- mentos públicos, a serviço de interesses
ças qualitativas podem vir a acelerar o privados. Por outro lado, a luta pela
desmonte. “desprivatização” das instituições públicas
UNIVERSIDADE SITIADA 26
produziu o que há de melhor entre as no- mento, mas é também inegável que ela o
vas lideranças políticas em muitas regiões realizou em detrimento do crescimento em
do Brasil. quantidade e qualidade dos cursos de gra-
O processo de desarticulação institucio- duação, assim como pelo virtual abandono
nal, que resulta na ameaça explícita atual, ou não-desenvolvimento, em quase toda
se iniciou nos anos 80, com uma inflexão aquela fase, das atividades de extensão
naquele sistema de financiamento criado universitária. Noutras palavras, a constru-
20 anos antes, acompanhado de uma re- ção de longo prazo foi feita a custo da perda
dução relativa nos percentuais de recur- de contato com a demanda social de mé-
sos destinados à educação pública em ge- dio e curto prazos, ou seja, falta de vagas
ral e à educação superior em especial. Esse para os jovens em cursos superiores e bai-
fato, para analistas como Jacques Velloso, xo engajamento da universidade em pro-
parece não ser independente da ação de blemas nacionais, como o do atendimento
agências internacionais, apontando os ru- básico de saúde e o da educação funda-
mos do mercado para nosso ensino supe- mental e média, que exigiam e continuam
rior, cujo “cerne das recomendações a exigir grande mobilização da parcela mais
gravita em torno da idéia de sujeitar o en- consciente da população. Se é indiscutível
sino aos ditames de um mercado suposta- que esse distanciamento foi promovido por
mente concorrencial, com o que se aumen- políticas explícitas das agências de fomen-
tariam a eficiência e a eqüidade no siste- to, é não menos verdade que a comunida-
ma educacional”16 , ou ainda resultar de de acadêmica se acomodou durante um
uma articulação ou convergência de visões longo intervalo. A universidade talvez te-
e de interesses de grupos nacionais com nha perdido, ou esteja perdendo, as mais
agências internacionais, que tratavam de preciosas oportunidades de exercer fun-
nos impor seu receituário de privatização. ções de diagnóstico social e de proposição
Veremos que muitas variáveis diferentes de políticas públicas, que talvez nenhuma
parecem ter contribuído para a grande outra instituição possa exercer em seu lu-
privatização do ensino superior, mas inte- gar, e que também por isso resgatasse pro-
ressa aqui já registrar que essa questão messas feitas já quando de sua fundação.
interferiu no financiamento da pesquisa e Agrava esse quadro de desprestígio o
da pós-graduação e, por essa via, numa fato de a mística da relação ciência &
interrupção do esforço de construção do tecnologia em cada nação estar sendo
corpo acadêmico de dezenas de universi- trocada pela idéia de produção e mercado
dades públicas. globais. Há hoje, em toda a parte, um com-
Do ponto de vista de sua imagem públi- preensível deslumbramento com a chama-
ca e de seu significado social mais geral, a da sociedade do conhecimento, que con-
universidade possivelmente até mesmo centra o valor no saber e na capacidade
perdeu prestígio precisamente nessa fase, de sua renovação, não nos materiais, e esse
que lhe foi tão importante, de investimento conhecimento parece brotar, sem ende-
em qualidade, de formação pós-graduada reço nem nacionalidade, de uma pervasiva
de seus docentes. É inegável que ela não teia, vivida individualmente através de
se forma de fato sem realizar esse investi- redes informáticas sem fronteiras, cuja
27 LUÍS CARLOS DE MENEZES
estrutura tentacular e a agilidade de con- cunstâncias. Uma das conclusões do le-
tato ponto a ponto constituem uma inédita vantamento mundial já mencionado é de
democracia de acesso a informações. Isso, que
de um lado, difunde uma idéia sedutora
de um saber disseminado, sem locus, que, “o advento do espaço cibernético tem
em princípio, dispensaria centros de pro- menos chances de destruir a universida-
dução e difusão como a academia; de ou- de do que de colocá-la ao alcance de mais
tro, leva a desprezar instituições de pes- estudantes a menor custo. E, ao invés de
quisa, exceto aquelas capazes de, conti- desmantelar a comunidade de estudiosos,
nuamente, gerar conhecimento prático, pode é lhe facilitar a vida, criando novas
assim como de “incubar” e lançar no mer- conexões entre acadêmicos que traba-
cado empresas de base tecnológica, glo- lhem em disciplinas adjacentes, mas em
balmente competitivas. locais distantes”18.
Essa configuração convence muita gen-
te de que nossos duramente conquistados Não se deve excluir a hipótese de que a
centros universitários de pesquisa só têm nossa universidade possa mesmo vir a se
como destinos possíveis um pátio de obso- beneficiar das novas disponibilidades
lescências ou um museu de reminiscênci- tecnológicas, ganhar uma nova e mais vi-
as. Quem pensa ter aprendido essa nova gorosa configuração e ver seus estudos e
“revelação”, vê como mera relíquia a de- serviços novamente prezados e mesmo
fesa de um desenvolvimento científico na- reconhecidos como essenciais. No entan-
cional, como a que fazem a bioquímica to, dificilmente alguma solução surgirá
Glaci Zancan e os físicos José Leite Lopes espontaneamente para o problema que está
e Roberto Salmeron em recentes manifes- vivendo, até porque não se trata de
tações17. Mesmo que percebamos que o impasses conjunturais. Tão importante
conhecimento e a capacidade de sua re- quanto pesquisa científico-tecnológica, e
novação, mais do que endereço tenham pelo menos como condição para conduzir
preço, pago à vista na compra do remédio uma formação profissional de alto nível,
de última geração, do computador de últi- seria essencial reconquistar o sentido ori-
ma geração ou da última geração de seu ginal da universidade como espaço de in-
software, da semente transgênica de últi- vestigação cultural, de criação, de inven-
ma geração, da injeção eletrônica de com- ção e de proposição, de debate das gran-
bustível automotivo de última geração, res- des questões sociais, como educação e
taria uma espécie de consolo de que, se as saúde públicas ou como a exclusão eco-
transnacionais que dominam esse conhe- nômica, mas também questões de alcance
cimento são mais fortes que nações ou que filosófico, de interesse mais estritamente
as tradições de Oxford e Cambridge, afi- cultural, cosmologia evolutiva, ou de re-
nal de que nos serviria tentar produzir sa- percussão em questões práticas, como li-
ber para competir globalmente com elas? mites éticos da bioengenharia. Sem a prá-
A esperança, de uma perspectiva global, tica da pesquisa, por outro lado, dificilmen-
da sobrevivência da academia se basearia te a condução desses debates seria signi-
na hipótese de sua adaptação às novas cir- ficativa, se de todo possível.
UNIVERSIDADE SITIADA 28
Reconquistar o espaço do debate inte- que atinge quase todas as instituições pú-
lectual de interesse social não será fácil, blicas ou de interesse público, que é a su-
pois, de todas as fases por que passou, a jeição ao mercado de seus serviços e de
universidade brasileira nunca viveu um suas potencialidades, ao lado da busca no
isolamento político tão acentuado quanto mercado do suprimento de suas necessi-
o atual em que, por questões ideológicas dades, como forma de racionalização de
de fundo ou por conflitos entre diferentes suas práticas. Isso não acontece por de-
grupos de interesse, está em xeque ao creto ou, pelo menos, não só por decreto,
mesmo tempo seu núcleo conceitual, que mas também e sobretudo por uma postura
é a pesquisa19 e a produção cultural, e sua que vai sendo introjetada pelos próprios in-
razão de ser política, que é a capacidade tegrantes da universidade, diante da difi-
de atender às demandas de diferentes se- culdade de equacionar suas questões e
tores sociais por conhecimento, informa- realizar seu trabalho dentro dos velhos
ção, formação e cultura. Para diferentes marcos institucionais, buscando as saídas
agentes sociais, nossa universidade esta- possíveis, e as saídas possíveis têm sido
ria antiquada e atrasada, mas isso pode sig- as de mercado.
nificar julgamentos muito diversos: pode Talvez nem pudesse ser muito diferente,
simplesmente expressar uma avaliação em nossos dias, pois são tantas as institui-
de que ela é cara e, portanto, careça de ções responsáveis por serviços públicos
mais eficiência, no sentido da relação que têm sido literalmente substituídas por
entre seu custo e o serviço que presta, serviços oferecidos pelo mercado, no pro-
mas pode também significar uma avalia- cesso usualmente denominado terceiriza-
ção de que o que ela produz ção, que a universidade talvez
é impróprio ou desnecessá- devesse se dar por satisfeita
rio e, portanto, ou se muda o em só ter parcialmente sido
que faz, ou simplesmente dei- alcançada por esse processo
xa de existir, pelo menos e ainda ter de certa forma so-
como instituição autônoma, brevivido. Talvez, em última
que tem a prerrogativa de análise, o mercado seja mo-
escolher suas tarefas. dernizador de muitos serviços,
pelo menos na medida em que
o usuário possa escolher o que
Modernização e melhor lhe sirva. Talvez o li-

desmobilização mite para o império do mer-


cado não seja muito fácil de
estabelecer. Se a previdência social pudes-
Há uma forma de “modernização”, com se mesmo ser deixada ao sabor do merca-
ou sem aspas, que começa a comprome- do, como querem alguns, poderiam tam-
ter ou a alterar significativamente a alma bém a diplomacia e a segurança pública?
da universidade, para além dos problemas Se as comunicações, como correio e telefo-
crônicos que ela sempre teve. É o mesmo nia, podem ser totalmente entregues à inici-
mal – ou o mesmo bem, dirão alguns – ativa privada competitiva, como se está ten-
29 LUÍS CARLOS DE MENEZES
tando pôr em prática, poderiam também a Essa questão continua aberta. Em mui-
justiça e o parlamento? tas universidades públicas, a idéia de con-
É algo assim que se deve discutir ao se federação chega a ser um eufemismo, pois
analisar a universidade como instituição, e funcionam mais como um condomínio de
tem sido insuficiente essa discussão, mes- faculdades, institutos ou escolas, que
mo dentro dela, pois sua crescente expo- loteiam seus campi e instalações, fazem a
sição ao mercado pode ser, a um só tem- partilha dos recursos comuns, pouco amis-
po, o instrumento de sua mais completa tosamente, e só se articulam por ocasião
modernização mas, com a mesma rapidez, de eleições, quando o que está em jogo é a
o veículo de sua dissolução. Antes de tra- divisão de recursos... O fracionamento de
tar de contemplar mais diretamente essa algumas unidades resulta em federações
questão, vejamos as outras discussões que de departamentos, disputando entre si a
a universidade tem travado, sobre sua for- divisão dos recursos condominiais e, na
ma de ser e sobre sua razão de ser, como maior parte dos departamentos, há vários
sobre seu papel social, sobre seu relacio- grupos autônomos, buscando separada-
namento com o Estado, sobre a indepen- mente o financiamento de suas pesquisas
dência de suas muitas unidades, ou seja, nas agências financiadoras. Os colegiados
sobre sua própria constituição, que foi seu de departamento, as congregações de uni-
debate original, como o bíblico pecado dade e os conselhos centrais universitári-
original. Nenhum desses debates foi efe- os teriam a função agregadora, mas rara-
tivamente resolvido, nem mesmo o origi- mente dedicam tempo significativo a ela-
nal, cujo ponto central é a oposição das borar políticas universitárias gerais, o que
escolas superiores à sua efetiva integração seria seu papel legislativo mais nobre, mas
nas universidades, se reproduz mesmo nas sobretudo assumem papel de câmaras de
universidades de hoje, não só nas escolas recursos, ao dirimir disputas e querelas, ou
profissionais, mas igualmente nos institu- de cartórios, ao legitimar procedimentos
tos de ciências, de letras, de educação. regulamentares.
Anísio Teixeira, em texto retrospectivo Esse ponto fraco de muitas universida-
escrito no final dos anos 60, se refere as- des, em que o predomínio das partes im-
sim a essa resistência: pede a realização do universal, do coleti-
vo, não se estabelece unicamente em fun-
“As escolas de Medicina guardaram seu ção de disputas mesquinhas. Há elemen-
isolamento e sua auto-suficiência, exis- tos ideológicos que levam à valorização da
tindo dentro da universidade, mas não especialidade em detrimento da universa-
pertencendo à universidade. Constituí- lidade, o que foi até dominante em muitos
am, em verdade, o modelo para a univer- aspectos da ciência moderna e que já foi
sidade-confederação-de-escolas [... e ...] uma postura até “progressista”, num pas-
na medida em que se fecha e se isola sado relativamente remoto, em que univer-
dentro da universidade fornecem o mo- sidade lembrava algo medieval e atrasa-
delo para as outras escolas igualmente do. Debates desse teor, em congresso de
isoladas”20. educação no século XIX, são descritos no
mesmo texto de Anísio, mostrando o
UNIVERSIDADE SITIADA 30
desapreço de intelectuais e governantes veis, no entanto a polarização leva a que
pela instituição universitária como um “de- ora se despreze o trabalho intelectual dis-
senvolvimento puramente ornamental”. tanciado das necessidades humanas ime-
Muitos cientistas, ainda hoje, parecem con- diatas, por ser considerado “alienado”, ora
cordar com esse julgamento secular e, se condene qualquer engajamento social
mesmo não tendo outro espaço senão o explícito, por ser considerado uma perver-
acadêmico para a realização de seu tra- são da isenção ou do distanciamento aca-
balho, se entediam de tal forma com a dêmico. Uma variante dessa questão de
vivência institucional, com os colegiados e “elite versus base” é a discussão da políti-
com toda a conversa que demandam, que ca interna para a escolha dos dirigentes da
prefeririam ter seus laboratórios em órbita instituição, a “direita” defendendo a
no espaço sideral. Essa tensão das partes meritocracia, ou seja, o poder acadêmico
contra o todo é um dos principais inimigos restrito aos mais preparados, detentores de
internos da evolução institucional da uni- mais títulos, a “esquerda” defendendo a
versidade e prejudicam diretamente a rea- democracia representativa, ou seja, o po-
lização de seus objetivos. Um exemplo der acadêmico para quem expressar a von-
desse prejuízo é o conservadorismo didá- tade da maioria. Há todas as variantes, é
tico-pedagógico reinante em inúmeros cur- claro, em torno de quem tem mérito sufi-
sos, mesmo em muitos voltados à forma- ciente para ser dirigente, ou de quem inte-
ção de professores, quando a universida- gra aquela maioria e com que peso.
de não se revê a si mesma coletivamente Debater é parte da natureza acadêmica
em suas práticas, como se a forma com e mesmo o debate político-ideológico tem
que uma unidade educa para a ciência não sido freqüente polarizador da comunidade
devesse ser objeto de análise e proposi- universitária, tanto em sentido geral, rela-
ção de outra que, em princípio, pesquisa a tivo aos partidos e à condução da nação,
ciência da educação... como em seus reflexos em questões es-
Um outro debate, que mobilizou setores pecíficas, da autonomia universitária, de sua
acadêmicos em alguns períodos, diz res- avaliação interna ou externa, conduzida
peito a seu principal interlocutor social; pelo Estado ou não, dos critérios de seu
se é a elite intelectual, com que a univer- financiamento, em função de seu desem-
sidade dialogaria, pois seria capaz de in- penho ou independente dele. É precisa-
terpretar seu trabalho e apreciar seus re- mente por ter autonomia que a universida-
sultados, ou se, pelo contrário, por se cons- de precisa debater o que faz, como faz e
tituir a universidade numa elite preparada por que faz o que faz. Para que a acade-
e crítica, mantida pela sociedade, não de- mia debata, discuta, decida, não pode rei-
veria estar permanentemente atenta para nar absoluto o fracionamento, que inviabi-
servir aos interesses sociais, a serviço tal- liza a comunidade que debate. Para que
vez sobretudo daqueles mais necessitados possa a academia interferir nos problemas
de políticas sociais de saúde, educação e do mundo, que interferem nela, não pode
cultura. É claro que produção cultural e reinar absoluta a “torre de marfim”, para
proposições crítico-sociais ou elaboração a qual o mundo pouco interessa. Para que
de políticas públicas não são incompatí- possa ser relevante o debate, nele deve
31 LUÍS CARLOS DE MENEZES
ser dominante a qualidade, a marca aca- resultado, ao tentar-se argumentar no âm-
dêmica, que não pode portanto sucumbir bito de cada fatia, perde-se o sentido do
ao ativismo. Mais grave, contudo, que o todo, dissolve-se o conceito, como um ani-
elitismo ou que o ativismo, é o esvaziamen- mal de corte ou ordenha que perde senti-
to do debate, porque não haveria com do enquanto espécie de um ecossistema
quem interessasse debater ou porque já não quando analisado em termos da proteína
se veria sentido no debate. que fornece ou da melhor forma de criá-
Desalento ou desmobilização, algo assim lo, solto ou confinado. Dissemos, há pou-
está se passando com a universidade bra- co, que se tratava da lógica do mercado,
sileira, e isso num momento em que esse mas podemos explicá-la em termos da ló-
debate é vital, porque o que está em jogo gica das funções, pois, antes que o merca-
não é como será a universidade, mas se do venha a ser convocado, quebra-se a ins-
haverá universidade. Essa é a questão tituição em funções ou em serviços. Em
central do cerco político, mas isso parece seguida, verifica-se para cada função ou
não estar sendo percebido, por diferentes serviço qual seu valor de mercado ou, o
razões. Quem não distingue a instituição que é mais grave, se “há ou não mercado”
universidade de outros conjuntos de esco- para cada função ou serviço. É fácil
las superiores vê crescer o número des- exemplificar esse desmonte conceitual.
ses conglomerados, denominados univer- Já se questiona o investimento no de-
sidades, sem se dar conta de que algo de senvolvimento científico-tecnológico na-
essencial está se perdendo. Quem consi- cional, pois a ciência é reconhecidamente
dera ilegítimo sequer pensar em ensino su- internacional e não faria mais sentido
perior que não seja universitário só conse- tecnologia nacional, até porque as últimas
gue se mobilizar no sentido da reconstru- empresas que ainda se consideram nacio-
ção de todo o sistema, tomando a univer- nais há muitos anos compram tecnologia
sidade pública atual como o molde que dará no mercado internacional. Isso já mostra
forma às demais, sem se dar conta de que como se põe na berlinda uma das funções
o molde poderá estar rapidamente se cor- centrais para o conceito de universidade,
roendo. Cresce, além do mais, o número mas há ainda outras, como a relativa à
dos que já não se importam, ou porque se comparação entre o custo para o Estado
cansaram de debater as questões internas, de um aluno numa universidade pública e
como as descritas acima, ou porque não o valor de uma bolsa de estudos que o
vêem sentido ou chance de sucesso na de- mantivesse numa faculdade privada. Não
fesa de uma instituição, quando vai se tor- basta fazer uma simples conta porque, se
nando obsoleto o próprio conceito de insti- a universidade investe em produção cul-
tuição. tural e em desenvolvimento científico-
O cerco político, que, aliás, pode ser tam- tecnológico, seu aluno é formado de outra
bém denominado cerco conceitual, é rea- maneira, mas se esse investimento deixar
lizado por diferentes agentes, movidos por de ser feito por ter perdido sentido mu-
visões parciais, com suas razões restritas, dam-se os termos da comparação. Esse
que seccionam o sentido da universidade seccionamento poderia ser feito para to-
em fatias de seu particular interesse. Como das as “funções”, desde a extensão de ser-
UNIVERSIDADE SITIADA 32
viços à produção cultural, passando pela do mercado? Se a universidade produz
formação de professores. Em todos os ca- cultura e tecnologia para as quais não há
sos, chegaremos a algum impasse na mercado, faz sentido manter essa produ-
quantificação, a uma comparação de qua- ção? Aliás, mantê-la à custa do Estado,
lidade nem sempre muito clara, especial- que é mantido pela população, à qual fal-
mente quando complicada por fraquezas tam muitos serviços aparentemente mais
que a universidade realmente ostenta, a essenciais, de saúde básica, de educação
exemplo do conservadorismo didático- fundamental, torna cada vez mais urgente
pedagógico mencionado há pouco. o debate institucional. Se a desmoraliza-
A falta de discussão da proposta ção do parlamento, do judiciário, pela mo-
institucional maior tem reduzido o debate rosidade e pela atuação em causa própria,
a domínios em que a universidade é facil- e do executivo, pela inoperância e pela
mente confinada ou acuada, pois sua de- corrupção, já põe em dúvida o próprio sen-
fesa, que é a qualidade, é contraposta ao tido das instituições centrais do Estado, que
questionamento de quem há de reconhe- se dirá das demais, cujo conceito se perde
cer sua qualidade: ela mesma ou a socie- em construções de há um século, ou de há
dade? E quem seria esta sociedade, ou 11 séculos. Isso tudo nos impõe o debate
como se daria sua manifestação, relativa- conceitual da instituição, e mesmo do pró-
mente à universidade? Se os jovens que prio projeto de nação, mas antes é preciso
almejam estudar numa universidade públi- avaliar os estragos feitos pelo cerco
ca são barrados, em sua maioria, e entre- territorial e econômico, para que o plano
gues ao mercado do ensino superior pri- de combate leve em conta também a con-
vado, não seria justo que a voz da socie- dição real de partida, não só a idealização
dade ao julgar a universidade seja a voz do futuro.

33 LUÍS CARLOS DE MENEZES


O ensino
superior e o
cerco
territorial e
econômico

lucrativas, ainda que parte delas não se


Educação superior, identifique assim; há décadas, como é sa-
bido, muitas das entidades denominadas
demanda social “mantenedoras” são de fato mantidas por

e mercado meio de uma variedade de formas de re-


muneração. Essa observação, que não
constitui nenhuma novidade, não foi feita
O cerco territorial é uma alegoria, pois o para se atacar mais uma forma de acu-
que mais interessa discutir não é a conhe- mulação de capital, ou para pretender-se
cida especulação imobiliária ao redor dos afirmar que ganhar dinheiro com educa-
campi das universidades públicas, nem a ção superior seja, em qualquer medida,
curiosa coincidência de, tão freqüentemen- mais condenável do que fazê-lo com edu-
te, eles estarem cercados de quartéis. O cação infantil, fundamental ou média, se-
que está em questão é o histórico encolhi- não para esclarecer os interesses envol-
mento percentual da parcela do ensino vidos, sem o que a análise seria prejudi-
superior brasileiro atendida pelas universi- cada.
dades públicas, que não deu lugar a outras Em primeiro lugar, é preciso marcar a
modalidades de ensino superior público, ou diferença entre demanda social e merca-
mesmo comunitário e confessional, mas do, ou seja, distinguir entre as necessida-
sim ao crescimento do mercado propria- des nacionais de educação, saúde, segu-
mente dito do ensino superior, ou seja, de rança ou justiça, de um lado, e, de outro,
faculdades ou universidades privadas, dos mercados nacionais para empresas de
geridas majoritariamente como empresas educação, medicina, vigilância ou advo-

UNIVERSIDADE SITIADA 34
cacia. Quando essa diferença houver de- Nacional de Educação, sua pressão direta
saparecido, já terá sido absorvido o Esta- exercida sobre o executivo eleito, ou o
do e leiloada a nação, definitivamente su- apoio à eleição de forças políticas que adi-
cumbidos ao apetite ultraliberal, capaz de ram a seus objetivos. Pode-se discutir se
reduzir a mercadoria qualquer necessida- esse cerco territorial realmente ameaçaria
de humana, individual ou coletiva e pron- a universidade pública ou se, dirão alguns,
to a terceirizar qualquer instituição, públi- a protegeria da pressão numérica, que po-
ca ou não, sagrada ou profana. Em segun- deria vir a consumir muito de sua capaci-
do lugar, cumpre esclarecer que, ao come- dade de trabalho em só uma de suas fun-
çarmos esse livro mencionando grandes ções, a de formação superior, particular-
universidades americanas como Berkeley, mente na formação profissional, desvian-
Columbia ou Harvard, como instituições do seu esforço de qualidade, concentrado
em que, além de educação superior, se pro- durante décadas na implantação, no aper-
duz cultura, se faz ciência e se desenvolve feiçoamento e na ampliação da pesquisa e
tecnologia, explicamos que são mantidas da pós-graduação. Pode-se também discu-
com recursos públicos e fundacionais pri- tir se o atendimento público ao crescimen-
vados; não se excluindo a hipótese de que to da demanda por ensino superior não
os aportes de recursos privados nessas fun- poderia ser absorvido pelo crescimento do
dações mantenedoras sejam, de um lado, número de vagas no ensino superior pú-
uma forma de imposto indireto, de outro, blico não-universitário, que minimizaria
até mesmo elemento de prestígio institu- aquele desvio de capacidade. Esses e ou-
cional de corporações, mas por certo não tros pontos podem, por certo, ser discuti-
são espaços de acumulação direta de lu- dos. O que é indiscutível é o significado
cros. Esclarecida essa questão conceitual, financeiramente estratégico do mercado.
voltemos a discutir o mercado para o en- O significado desse mercado é fácil de
sino superior. quantificar; há dois milhões de estudantes
A idéia de que, nesse sentido, haja de em cursos de graduação, dos quais bem
fato um cerco consciente, intencional, não mais de um milhão estão em estabeleci-
é fantasiosa, pois quanto mais efetivo esse mentos privados. Isso já significa um
cerco, ou seja, quanto menos crescer o faturamento anual de alguns bilhões de
atendimento da demanda do ensino supe- dólares. O crescimento inercial já obser-
rior público, tanto mais poderá crescer o vado do ensino superior no Brasil, acres-
mercado atendido pelo setor privado. cido da pressão devida à ampliação do
Pode-se discutir se não seria legítimo esse ensino médio, que dobrou em dez anos, já
cerco, pois é da natureza do capital a bus- sinaliza a possibilidade de o tamanho do
ca do domínio estratégico de seu merca- mercado do ensino superior também do-
do. Pode-se discutir quais instrumentos brar em pouco mais de uma década, agre-
seriam aceitáveis ou não para esse cerco, gando outros tantos bilhões de dólares
como os representantes no parlamento dos àquele faturamento anual. Seria tolice,
segmentos de capital atuando em educa- portanto, subestimar o interesse do capi-
ção superior, seus representantes na Câ- tal em restringir o atendimento público à
mara de Ensino Superior do Conselho demanda crescente ou ignorar sua deter-
35 LUÍS CARLOS DE MENEZES
minação em disputar a curto e médio pra- ção das universidades públicas, que incor-
zos o novo milhão de alunos e, a longo pra- poraram boa parte das escolas profissio-
zo, os muitos milhões de novos alunos e os nais superiores. Ainda hoje é tratada, em
muitos bilhões de dólares. Seria ingenui- boa medida, como uma questão de Esta-
dade imaginar que esses mercados, o efe- do, uma vez que em estabelecimentos pú-
tivo e o potencial, atraiam menos interes- blicos de ensino superior há cerca de 800
se que siderurgia, energia, medicamentos mil alunos em cursos de graduação, cerca
ou telefonia. de 80 mil alunos fazendo mestrado ou dou-
Antes que se torne cansativa a explici- torado, cerca de 250 mil em cursos de es-
tação desse mercado e de seus protagonis- pecialização, de extensão ou seqüenciais.
tas, discutamos os aspectos centrais que Acrescentem-se a isso todos os progra-
interessam ao cerco territorial vivido pela mas de bolsas de estudo para pós-
universidade pública e aos eventuais pa- graduandos e graduandos e já não poderia
péis que ela pode ou deve desempenhar haver dúvida de que o ensino superior ain-
relativamente ao ensino superior. É preci- da é considerado uma questão de Estado.
so estabelecer claramente se a demanda Em contrapartida, o crescimento do en-
social por ensino superior é algo que pos- sino superior privado e, especialmente, o
sa ser simples objeto de mercado ou se é grande crescimento do número de institui-
também algo que se deva considerar uma ções privadas credenciadas como univer-
necessidade nacional, merecedora de uma sidades, que já vai ultrapassando o núme-
estratégia de Estado, de um programa de ro de universidades públicas, pode ser in-
metas específico ou de uma supervisão de terpretado como uma política ostensiva de
ações, ou se, pelo contrário, como a fast- privatização do ensino superior e univer-
food, trata-se de uma opção individual que sitário ou como um simples reconhecimen-
resulta numa demanda coletiva, cuja to do empobrecimento relativo do Estado.
contrapartida é uma oferta competitiva, Deixa-se à iniciativa privada o investimen-
regida pelas leis de mercado e por órgãos to que já não consegue fazer ou, pelo con-
de defesa do consumidor. Se ficarmos com trário, como uma efetiva entrega ao mer-
a primeira hipótese, é preciso tentar de- cado da demanda por educação superior,
terminar se o ensino superior precisa da estando o Estado complementarmente ga-
universidade pública e para quê, se a uni- rantindo a parcela que a iniciativa privada
versidade pública precisa do ensino supe- ainda não conseguiu abarcar? Seria con-
rior e para quê, e em que medida uma iden- cebível acreditar que se esteja encami-
tificação entre ensino superior lato sensu nhando uma proposta híbrida, em que a
e universidade stricto sensu é desejável, complementaridade entre ensino superior
defensável ou praticável. Em suma, deve- público e privado fosse buscada como um
se decidir se deve o Estado cuidar disso. equilíbrio desejável, que não deveria ser
Certamente ensino superior era uma descompensado nem em favor do público
questão de Estado no século XIX, quando nem em favor do privado? Como se posi-
da criação das escolas profissionais supe- cionaria a universidade pública diante des-
riores públicas, e certamente continuava a sas várias possibilidades, ou ainda, que
ser no início do século XX, quando da cria- papéis estaria disposta ou preparada para
UNIVERSIDADE SITIADA 36
assumir, se preservasse sua autonomia, ou ção brasileira – e se esboçam os contor-
seja, se lhe fosse dada escolha? Das res- nos de um sistema educacional que inclu-
postas a perguntas como estas pode depen- ísse a universidade”. Por um lado, ele elo-
der o destino da universidade. gia a Medicina, que “introduz na cultura
brasileira o espírito científico moderno,

Qualidade, quantidade caracterizado pelo método experimental”,


por outro lado aponta que
e autonomia “a Escola de Medicina [...] do Rio
de Janeiro chegava a ter 500 alu-
A tomada de posição do Estado, nos no primeiro ano. Pois bem,
relativamente ao ensino superior, passou a ter cem... Vejam a redu-
assim como a responsabilidade da ção drástica. O fato pode ser ob-
universidade relativamente a esse servado na simples evolução da
ensino não são questões que se matrícula médica a partir de 1930
devam situar simplesmente no pla- [...] a restrição da matrícula [...]
no dos princípios, em que os pro- embora represente preocupação
blemas se resolvem com declara- pelos padrões de qualidade do
ções de princípios. Além do mais, ensino, não se pode dizer que
não é uma questão do âmbito es- seja somente esse o motivo de
tritamente acadêmico, não se po- sua adoção. Pois, ao mesmo tem-
dendo pretender que a universidade possa po que as escolas assim fecham suas por-
assumir isoladamente seu enquadramento tas, adota o país, para vencer a pressão
e sua resolução. O que, sim, se pode es- invencível da procura educacional, a so-
perar é um posicionamento da universida- lução de criar novas escolas em vez de
de pública relativamente a essa questão, e ampliar as existentes”21.
isso pode significar tanto uma definição de
cada universidade em seu entorno social e Ele vê esse mesmo posicionamento da
em seu contexto de ensino superior como universidade se repetir quase 40 anos de-
uma tomada de posição coletiva e institu- pois, no final dos anos 60, quando o cen-
cional, em escala nacional, contribuindo tro-sul brasileiro viveu, como é sabido, a
para uma efetiva política para o ensino “crise dos excedentes”, com grandes ma-
superior que leve em conta a universida- nifestações públicas de estudantes apro-
de, e vice-versa. Isso é uma questão difí- vados mas não selecionados para univer-
cil para a universidade brasileira, coloca- sidades públicas. Essa crise foi “resolvi-
da para ela desde seu início ou, de certa da” na região mais desenvolvida do país
forma, mesmo antes disso. pela liberalização do ensino privado e não
No já mencionado depoimento retros- com a ampliação das universidades públi-
pectivo de Anísio Teixeira, ele trata dessa cas existentes.
questão em diferentes períodos da história
do ensino superior no Brasil. No que se “Há que se apreciar as forças contraditó-
refere aos anos 20, “aí começa a inquieta- rias que se entrechocam no processo
37 LUÍS CARLOS DE MENEZES
incoercível de expansão em que entra- fusão de instituições em federações e uni-
ram as escolas superiores. De um lado, versidades privadas.
temos a resistência das escolas existen- É importante salientar que Anísio Tei-
tes à mudança, de outro lado, a pressão xeira de certa forma inverte o aparente
da população estudantil à ampliação de dilema em que a qualidade se opõe à quan-
oportunidades do ensino superior.”22 tidade. Seu julgamento é de que, por ter-
se recusado ao salto de qualidade que rom-
Em seu diagnóstico, não se tratava sim- pesse o isolamento relativo de suas unida-
plesmente de a universidade não querer se des, a universidade não adquiriu a articu-
abrir para a ampliação, mas sobretudo de lação e a flexibilidade que lhe permitiriam
ter resistido a mudanças necessárias, man- poder crescer em quantidade para o aten-
tendo o modelo de escolas independentes. dimento da demanda social crescente por
“Dentro desse molde, a expansão não se ensino superior. Mantido o “molde” da
poderia fazer nem pela fusão, nem pela “confederação de escolas”, aí sim, a úni-
integração, nem pela cooperação entre as ca forma de preservar a qualidade foi o
escolas, mas somente pela criação de no- cerco territorial auto-imposto. Vale lembrar
vas escolas. E foi o que se deu.”23 o contexto em que esse julgamento foi fei-
Essa observação de Anísio Teixeira é to, num momento em que se acalentava a
consubstanciada no gráfico, construído a esperança de que uma nova reforma uni-
partir de dados dispostos de outras formas versitária viesse a dar realidade à univer-
no Censo do ensino superior (INEP/MEC/ sidade que, desde sua fundação, não che-
1999), que mostra o número de institui- gara a investir-se da universalidade que se
ções criadas em cada qüinqüênio, ao lon- lhe propunha. As Faculdades de Filosofia,
go das várias décadas. O quadro identifi- Ciências e Letras não teriam cumprido o
ca claramente o surto de criação de novas papel integrador que se esperava delas,
instituições correspondentes à reação à tendo simplesmente assumido a função de
denominada crise dos excedentes, do fi- formar professores, ou mais explicitamente
nal dos anos 60, assim como o aprofunda- com “sua aceitação do papel de escola
mento do “cerco territorial” das últimas profissional de formação de magistério
duas décadas, nas quais esses números tem secundário desapareceu o seu caráter de
de ser vistos de forma a levar em conta a escola para a reforma universitária”.

CRIAÇÃO DE INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR

200
No. APROXIMADO DE

150
INSTITUIÇÕES

PRIVADAS
100 PÚBLICAS

50

0
até 1 930 30-35 35-40 40-45 45-50 50-55 55-60 60-65 65-70 70-75 75-80 80-85 85-90 90-95 95-00

PERÍODO

UNIVERSIDADE SITIADA 38
Como sabemos hoje, a nova reforma funções, no crescimento dos grupos de
desmembrou aquelas faculdades em uni- pesquisa e dos projetos de extensão uni-
dades menores, possivelmente não me- versitária. Isso talvez tenha também con-
nos isoladas entre si do que o isolamento tribuído para recompor em parte a imagem
antes reinante entre as FFCLs e as esco- externa da universidade, pois esses proje-
las profissionais. tos se desenvolveram lado a lado com um
A alternativa adotada pela e para a uni- novo entrelaçamento ou enraizamento, ain-
versidade, a partir desse período e até re- da que incipiente, das temáticas universitá-
centemente, acabou sendo, em última aná- rias de investigação com as problemáticas
lise e uma outra vez, a promoção da quali- sociais, culturais e produtivas locais. Foi um
dade em detrimento da quantidade. O de- ensaio significativo de romper o cerco
senvolvimento da pós-graduação e a im- territorial e político mas, curiosamente, ten-
plantação dos grupos de pesquisa foi o que tando romper na lateral, pelos flancos, a
efetivamente deu consistência acadêmica partir da qualidade do conhecimento e das
à universidade pública, não obstante a per- especialidades, o que aliás é pertinente à
sistência de seu fracionamento interno. natureza da universidade.
Essa política geral, a partir das agências O cerco numérico mais importante foi o
centrais de fomento, baseada nos ministé- do ensino de graduação; não só foi literal-
rios, talvez tenha se “apoiado” inicialmen- mente negligenciado, do ponto de vista
te no centralismo próprio do regime mili- quantitativo, não tendo havido um movi-
tar. Em cada universidade, a procura de mento das instituições públicas no senti-
uma articulação mais orgânica ao seu do da ampliação de suas vagas, como tam-
loteamento de unidades tomou a forma de bém não houve significativa moderniza-
pró-reitorias, no sentido de se estabelecer ção didática ou outras mudanças qualita-
ou pelo menos se esboçar uma política tivas. A maior parte dos cursos continuou
central para a pesquisa, uma para a pós- engessada em sua natureza e na designa-
graduação, uma para a extensão e, é claro, ção de suas disciplinas, não obstante mo-
também uma para o ensino de graduação, dificações perceptíveis na demanda, que
enquanto os ciclos básicos e, dependendo levaram a se superlotarem muitos cursos
da instituição, os “Centros”, de ciências e se esvaziarem tantos outros. Não
exatas, de ciências humanas etc., foram obstante as teorias educacionais tenham
pré-nucleações da desejada organicidade, trazido nova compreensão dos processos
mas nada disso resultou num ensino de de aprendizado, mantiveram-se as disci-
graduação efetivamente mais ágil ou mais plinas confinadas às velhas metodologias
atento às demandas sociais. de trabalho, às exposições tradicionais e
O crescimento interno das universida- aos laboratórios convencionais. Não
des que de fato ocorreu, não só mas espe- obstante a evolução das próprias ciências
cialmente em um bom número de novas e da realidade tratada no curso como um
universidades que foram desenvolvidas todo, em muitos cursos, os mesmos currí-
entre os anos 60 e os anos 80, deu-se so- culos, seqüências e textos foram mantidos
bretudo na ampliação do número de do- por inércia décadas seguidas, por gerações
centes efetivamente qualificados para suas de professores. Já há algumas poucas boas
39 LUÍS CARLOS DE MENEZES
exceções, mas será preciso segui-las e ge- formação e comunicação. No entanto, já
neralizá-las. se entrou nos anos 90 em clima de desmo-
Em todo esse período, contribuiu para o bilização e, se hoje cresce a consciência
autoconfinamento numérico e o descaso do problema, é tímida sua retomada pela
pela graduação o fato de as avaliações universidade, que ainda não reuniu ener-
docentes e seus planos de carreira e crité- gia e clareza suficientes para empreender
rios de promoção somente considerarem novas e vigorosas iniciativas.
as atividades de pesquisa e pós-gradua- Antiga e séria que possa ser essa difi-
ção, nunca a atividade didática de gradua- culdade de lidar com a demanda social por
ção ou extensão. A desvalorização do en- ensino superior, o cerco territorial tem con-
sino de graduação foi reforçada por vári- seguido efetivamente sitiar a universidade
os instrumentos, como a concessão, por pública não só por esses seus problemas
agências como o CNPq, de “bolsas de internos, mas por ações externas consci-
pesquisa” em longos períodos de depreci- entes e articuladas do setor privado, para
ação dos salários, tendo por único critério o qual a graduação é precisamente a fatia
as publicações científicas dos docentes. de mercado mais importante, além de ser
Essa sinalização convenceu a maior parte a única em que tem conseguido ser relati-
dos docentes de que uma dedicação mai- vamente competitivo, não em qualidade
or ao ensino era institucionalmente toma- mas, pelo menos, em oferta de variedade
da como uma espécie de “desvio de fun- e de quantidade. As iniciativas desse se-
ção”. Parte das lideranças universitárias tor em busca do controle estratégico da
tem consciência desse cerco territorial, ao demanda de educação superior incluem a
perceber a parálise conceitual do ensino promoção e a consolidação institucional,
de graduação no setor público e ao ver por meio da reunião de faculdades isola-
crescer em número o setor privado do en- das em federações e, em seguida, pelo
sino superior, isso em uma época de pro- credenciamento universitário dessas fede-
fundas modificações em todos os setores rações. Por essa via, o número de univer-
da vida humana, no plano político e econô- sidades privadas cresceu de 20 para 80,
mico internacional, nas tecnologias de in- em duas décadas, enquanto o número de

Tabela 2 - Quadro Geral de Evolução de Instituições


de Ensino Superior no Brasil
Instituições Federações Universidades Universidades
ANO Isoladas de de Faculdades Públicas Privadas
Ensino Superior ou Similares
Públicas Privadas Públicas Privadas Número (%) Número (%)
1980 150 650 0 20 45 70% 20 30%
2000 130 500 0 80 80(*) 50% 80 50%
(*)
incluídas 30 novas estaduais.
Os dados apresentados nesse quadro são arredondados e aproximados, de forma a permitir uma visualização
geral das ordens de grandeza. Os dados que deram origem a essas aproximações foram extraídos do Censo
do Ensino Superior, 1998, MEC/ INEP (SCHWARTZMAN, Simon. O Ensino Superior no Brasil - 1998, Série
Documental - Textos para Discussão, 6. MEC/INEP, Brasília, 1999). Esses e outros dados sobre o ensino
superior podem ser obtidos pelo endereço eletrônico do INEP (http://www.inep.gov.br).

UNIVERSIDADE SITIADA 40
públicas cresceu de 45 para 80, e ainda sos que tiveram as três melhores coloca-
assim sobretudo pelo crescimento signifi- ções24. Outro resultado bastante significa-
cativo de universidades estaduais. Essa tivo apresentado pelo INEP mostra que,
evolução comparativa pode ser acompanha- de 16 cursos que obtiveram a nota máxi-
da numa tabela simples dos números arre- ma em três anos consecutivos, 15 são ofe-
dondados de instituições de cada natureza, recidos por instituições públicas e um por
existentes há 20 anos e atualmente. instituição particular25. Se, mesmo não
Os números do quadro falam por si mes- valorizando a graduação, o ensino supe-
mos, sendo ostensiva a migração das ins- rior público consegue lhe imprimir quali-
tituições privadas da condição de isoladas dade razoável, melhor em todas as espe-
para a condição de “federação”, usualmen- cialidades do que as empresas que cobram
te designada como “faculdades integra- de seus usuários por esse serviço, que se
das”, que vão pleitear seu credenciamen- poderia esperar, em qualidade e quantida-
to e completar sua migração para a condi- de, se fosse dada prioridade a essa tare-
ção de “universidade”. Mantida a tendên- fa? Principalmente se a universidade fizer
cia, as universidades públicas se tornarão uso de sua autonomia didático-pedagógi-
rapidamente minoritárias. Quanto ao nú- ca para realmente inovar seus cursos, em
mero de alunos em cada instituição, o cres- forma e conteúdo, articulando de fato ele-
cimento relativo das universidades priva- mentos educacionais inovadores, visão de
das é ainda mais significativo. Há duas mundo, valores humanos e excelência téc-
décadas, as dez maiores universidades nico-científica, poderá estar iniciando uma
eram todas públicas. Hoje, seis das dez revolução educacional que, na realidade,
maiores universidades brasileiras são pri- está sendo há muito esperada.
vadas e a maior delas tem dez mil alunos Trataremos disso nas conclusões desse
de graduação a mais do que a maior uni- texto, pois agora vale a pena aproveitar a
versidade pública! oportunidade para discutir dois temas, le-
A comparação em que a universidade vantados nos últimos parágrafos, cuja dis-
privada continua indiscutivelmente pior é cussão tem conseguido sensibilizar, nem
ainda a da qualidade na formação, mesmo sempre da melhor maneira, vários setores
nos cursos de graduação, em que tem con- acadêmicos: avaliação e autonomia. A
centrado seu esforço numérico, sobretudo idéia de universidade é inseparável da de
pela importância desse segmento, como autonomia, no sentido de poder, autonoma-
mercado. A despeito da baixa prioridade mente, escolher os objetos de estudo e as
que a graduação tem recebido nas univer- formas de estudá-lo, estabelecer os mo-
sidades públicas, seus cursos têm mantido dos de convívio e de debate intelectual, de
níveis não alcançados pelos congêneres promover e de credenciar o aprendizado
privados. O último Exame Nacional de básico ou especializado, de orientar e ava-
Cursos ou “provão”, como foi apelidado, liar trabalhos de pesquisa e atribuir títulos
foi aplicado pelo MEC a cursos de 13 di- acadêmicos que, por sua vez, credenciam
ferentes carreiras. Em 12 delas, os cursos para o trabalho acadêmico; e isso é uma
que tiveram a melhor colocação são públi- compreensão quase unânime. Há, no en-
cos e, em dez, são públicos todos os cur- tanto, perguntas que têm sido reiteradas,
41 LUÍS CARLOS DE MENEZES
relativamente à autonomia universitária, e do governo – do Ministério da Educação,
que estão longe de ter encontrado respos- no caso das federais, ou dos governado-
ta consensual. res, no caso das estaduais – na escolha
Uma delas é quanto a poder a universi- dos reitores. Todas essas questões, em
dade estabelecer de quanto necessita, ou princípio, poderiam vir a ser retomadas,
seja, qual deve ser sua margem de autono- mas grande parte delas se diluiu, a ponto
mia financeira. A outra questão, que não de algumas delas terem perdido sentido.
é independente da primeira, é sobre quem Ao longo da última década, novas ques-
poderia dizer se, ou em que medida, a uni- tões foram trazidas com a entrada em cena
versidade está de fato cumprindo seus ob- de um grande número de universidades
jetivos, ou seja, quem poderia avaliá-la: privadas, cujas pretensões de autonomia
ela mesma, os beneficiários de sua produ- tem um sentido incomensurável com o sen-
ção educacional, científica, cultural ou tido do que tem sido pleiteado pelas uni-
tecnológica, ou o Estado. É preciso dis- versidades públicas.
tinguir as muitas autonomias, didático- A Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
pedagógica, política, administrativa e fi- ção Nacional (Lei 9.394, de 20/12/96)
nanceira, para compô-las em uma propos- credencia instituições de ensino superior,
ta que mostre por que o interesse público em geral, e autoriza seus cursos, por pra-
seria prejudicado por certas restrições à zo limitado, dependendo de periódicas
autonomia universitária e protegido por avaliações, mas reserva às universidades
outras, explicitando processos de avalia- ampla autonomia para a condução de suas
ção externa e interna que podem ser utili- atividades, tanto no plano didático-peda-
zados para legitimar a autonomia, não para gógico, ao criar ou extinguir cursos e de-
cancelá-la. finir seus currículos, como no plano cien-
É discutível a universalidade desse tema, tífico e cultural, ao definir planos de tra-
como se pode exemplificar com a varie- balho e projetos ou ao conferir títulos, e
dade de óticas sob as quais ele foi debati- mesmo no plano político e administrati-
do, em sua dimensão política e administra- vo, na elaboração de estatutos, na contra-
tiva, em diferentes períodos. Nos anos 60, tação e dispensa de professores ou na de-
essa dimensão era expressa pela defesa finição de planos de carreira, cargos e sa-
de uma maior representação dos estudan- lários, no estabelecimento de contratos e
tes e até dos funcionários nos colegiados de convênios, na elaboração de orçamen-
centrais e nos das unidades; nos anos 70, tos. A atribuição de autonomia universi-
o divisor de águas era a representação tária depende de avaliação, realizada pelo
docente nesses colegiados, especialmente poder público, e é óbvio o interesse das
a proporção das outras categorias funcio- empresas dedicadas ao ensino superior em
nais relativamente à dos professores titu- poderem contar com a ampla autonomia
lares; nos anos 80, a ênfase maior foi pos- de gestão oferecida pela lei às universida-
ta nas eleições diretas para os cargos exe- des, razão pela qual se empenham em de-
cutivos acadêmicos, ou seja, a interveniên- ter poder político nas instâncias decisórias,
cia dos reitores na escolha de diretores de como no antigo Conselho Federal de Edu-
unidade e, especialmente, a interveniência cação e na Câmara de Ensino Superior do
UNIVERSIDADE SITIADA 42
atual Conselho Nacional de Educação. “provão”, que avaliou precisamente o que
Trata-se de questão de estratégia empre- as diferentes universidades em princípio
sarial, procurando a liberdade de oferecer fazem de mais semelhante, os cursos de
ao mercado uma linha diversificada de graduação, parecem corroborar sua idéia.
produtos, de poder alterar tais produtos de Que se diria de uma avaliação mais
acordo com a demanda, de deixar de ofe- abrangente? Claro que será preciso cuida-
recer produtos ou serviços se a relação do ao se aplicar critérios comuns a coisas
lucro/investimento não for compensadora, diferentes mas, antes de se mostrar teme-
elaborar programações de médio prazo, rosa de qualquer verificação externa, a
sem a interveniência de permanente audi- universidade pública deveria se adiantar,
toria externa. promovendo permanente e rigorosa auto-
Compreensível que seja, isso é comple- avaliação, revelando o que faz bem e o que
tamente diferente da autonomia desejada faz mal, os custos reais de tudo quanto faz,
pela universidade pública. Na realidade, é o que ela tem, o que lhe sobra e o que lhe
só mais um exemplo de como a designa- falta...
ção universidade, atribuída a instituições
tão distintas, acaba por promover uma con-
fusão conceitual e por dificultar a defesa Perdas e danos:
da instituição pública. Luiz Antônio Cunha,
que classifica as universidades em efetivas, o cerco econômico
potenciais e nominais, acredita que a uni-
versidade pública, ao invés de resistir à ava- Se o cerco territorial é uma alegoria, o
liação externa, na realidade deveria propô- cerco econômico é uma realidade palpá-
la, até como mecanismo de autodefesa: vel. Em parte, o cerco
econômico está associ-
“a avaliação externa [...] propiciará ado ao cerco territorial
o descredenciamento das uni- exercido pelo ensino su-
versidades nominais e a perior privado, mas so-
identificação dos se- bretudo resulta de mu-
tores dinâmicos das danças no regime previ-
universidades po- denciário dos servidores
tenciais, em es- públicos, assim como da
pecial os que de- adoção de políticas de
senvolvem pós-graduação e pesquisa, os contingenciamento financeiro, que signi-
que são suporte da nova identidade, hoje ficam cortes no número de bolsas de pós-
ameaçada [...] A universidade pode não graduação, redução no apoio à pesquisa e
ficar de imediato mais forte com a avali- no custeio das universidades públicas.
ação, mas, com certeza, sairá dela me- Cada um desses fatores já seria, isolada-
nos fraca”26. mente, razão de preocupação; combinados,
têm efeito devastador. Algumas perdas po-
Ele escreveu isso há alguns anos, e os derão, talvez, ser recuperadas em caso de
mencionados resultados do recente rápida reversão da política de cortes. Há
43 LUÍS CARLOS DE MENEZES
danos, contudo, que são irreversíveis; como sintetizou as duas principais razões do cerco
um desastre que acontece em um breve a esses centros; a razão política:
instante mas deixa seqüelas definitivas.
Contudo, diferentemente de um desastre, “uma universidade voltada para a cria-
não se trata de incidente isolado ou de cri- ção científica e cultural deve necessaria-
se conjuntural. mente propiciar uma visão crítica da so-
Não há qualquer exagero em afirmar que ciedade e das políticas oficiais, o que em
o cerco econômico já dura duas décadas; si é valioso e deveria ser bem recebido
toda uma geração de pesquisadores tendo pelas autoridades governamentais”;
convivido com seu torniquete e, em parte,
sobrevivido a ele. O que tem permitido e a razão econômica:
essa sobrevivência é o fato de a academia
ter constituído, nacionalmente, como que “Essa universidade que temos e quere-
um sistema de “vasos comunicantes”, em mos aperfeiçoar tem custos mais eleva-
torno de alguns pólos. Um desses pólos, dos do que sua alternativa que procura
especialmente até os anos 80, foi a Socie- apenas transmitir ‘pacotes’ de ciência
dade Brasileira para o Progresso da Ciên- importada. A relação professor-aluno
cia, SBPC, que atuou como um importan- deve ser necessariamente mais alta e as
te núcleo político, de denúncia do cerco e pesquisas em geral são mais ‘caras’ por-
de apoio recíproco. As demais sociedades que enfrentam problemas para os quais
científicas, associações de educadores, de não há paradigmas disponíveis. Diante
profissionais e de especialistas das muitas desses dois ‘tipos’ de universidade de-
áreas até hoje constituem pólos importan- vemos optar”27.
tes, por meio dos quais se tem conseguido
exercer pressão política, obtendo recursos Vinte anos depois, o docente que denun-
para encontros nacionais de pesquisado- ciava se fez ministro, mas esse cerco está
res e de pós-graduandos, por onde fluem se fechando sobre uma universidade que
as relações de cooperação científica e se continua justificando seus custos, que não
articulam as propostas de trabalho mais ge- está mais conseguindo preservar-se e, can-
rais. sada de batalha, ainda manifesta sua “vi-
A resistência da universidade foi tam- são crítica da sociedade e das políticas
bém beneficiada pelo fato de os principais oficiais”.
centros de formação pós-graduada, sobre- Como se trata de uma situação e de um
tudo nas grandes universidades, até recen- processo que se arrastam há décadas, é
temente, terem conseguido administrar preciso mostrar o que está acontecendo
suas perdas, de forma a preservar “massa hoje, por uma correlação entre efeitos que
crítica” acadêmica, ou seja, terem evitado se acumularam e outros devidos a uma
o desmonte de seus grupos de pesquisa, o nova configuração, o que pode vir a des-
que, para a pesquisa brasileira, equivaleria fechar um golpe de misericórdia na resis-
a sacrificar a semente. No tempo em que tência da universidade pública. Entre os
atuava no movimento docente, o atual mi- efeitos cumulativos, o mais grave é o pro-
nistro da Educação, Paulo Renato Souza, blema previdenciário. Como o Estado nun-
UNIVERSIDADE SITIADA 44
ca constituiu um fundo de pensão, no qual docentes relativamente jovens, com pou-
recolhesse as contribuições previdenciá- co mais de 50 anos, no ponto mais alto e
rias das universidades públicas, o custo produtivo de suas carreiras. Esse é um des-
crescente da folha dos aposentados das fecho trágico de um processo cumulativo,
universidades não fica por conta da previ- agravado por uma reforma conduzida de
dência social, que também não viu a cor maneira infeliz e açodada por declarações
da contribuição recolhida, mas passa a irresponsáveis. Mas é importante ver como
onerar o orçamento universitário, dividin- esse desfecho do cerco econômico é com-
do os mesmos recursos para o pagamento binado com o cerco territorial: as institui-
do pessoal em serviço, para custeio ou para ções de ensino superior privado, interes-
investimento. Como diferentes universida- sadas entre outras coisas em garantir o
des cresceram particularmente num perí- mínimo de 30% de docentes titulados, exi-
odo entre 40 e 20 anos atrás, o momento gido por lei para conseguir ou manter seu
atual é tal que muitas aposentadorias têm status universitário, está tratando de atra-
condições legais para acontecer, ainda que ir para seus quadros precisamente estes do-
a tradição universitária sempre tenha sido centes altamente qualificados, sub-remu-
de os docentes só se aposentarem mui- nerados, estimulando-os a deixar a univer-
tos anos mais tarde, 20 ou mais às vezes, sidade pública.
do que a lei permite. Essa tradição tem Atualmente, um docente com doutorado
sido fundamental para a vida universitá- tem salário básico em torno 1.500 dólares,
ria, pois são os anos mais preciosos, em numa universidade pública, e não conse-
termos de experiência, maturidade inte- gue dobrar seus ganhos em 30 anos de
lectual, capacidade de liderança. A insti- serviço. Não é de estranhar, portanto, que
tuição da aposentadoria compulsória, aos milhares de docentes universitários de São
70 anos de idade, é a prova mais cabal Paulo, alguns deles no topo de suas car-
dessa tradição. reiras, tenham participado recentemente
Pois bem, esse é o cenário geral em que de um concurso de seleção, aberto por
um processo particular está acontecendo, uma universidade privada, que oferece
atingindo mais diretamente muitas insti- para doutores salários iniciais da ordem de
tuições, entre as quais as universidades 3 mil dólares, o dobro do que se pagaria
mais maduras, que têm atuado como for- como salário inicial a essa categoria numa
madoras dos docentes de muitas outras. As universidade pública. Calculemos o prejuí-
recentes mudanças previdenciárias que zo produzido na universidade pública, com
atingiram os servidores públicos têm sido a saída de um professor, que decida se
promovidas e alardeadas, com um certo aposentar aos 55 anos, com salário final
terrorismo moral, ameaçando não só ex- da ordem de 2.500 dólares, para acrescen-
pectativas pessoais mas também direitos tar a seus ganhos o novo salário oferecido
adquiridos até há pouco considerados pela instituição privada. O custo mínimo de
intocáveis. Isso, somado aos salários aca- formação, que já avaliamos anteriormente
dêmicos congelados há vários anos, tem nesse mesmo texto, não é inferior a 100
promovido a quebra naquela tradição, le- mil dólares. O mínimo dispêndio em salári-
vando a incontáveis aposentadorias de os para substituí-lo, supondo que, noutras
45 LUÍS CARLOS DE MENEZES
circunstâncias, ficasse mais 15 anos no Trata-se realmente de uma perda, não
serviço público, somaria 450 mil dólares. de uma transferência, pois as condições
Assim, só o custo financeiro, que certa- de trabalho de pesquisa, hoje disponíveis
mente é o menor dos custos com a perda na universidade, não serão encontradas em
de um só desses docentes, seria bem maior seu novo emprego, onde as prioridades são
do que meio milhão de dólares! outras. Não importa o ângulo sob o qual
Se voltarmos a observar o quadro geral se observe o processo a que está sendo
apresentado, de números aproximados do submetida nossa universidade, se esse cer-
ensino superior do Brasil, veremos que se co econômico continuar, imporá danos
o atual processo, de asfixia financeira com- crescentes e de tal forma irreversíveis que,
binada com sangria de competências, le- possivelmente, nada mais poderá ser feito
var o ensino superior público a perder, em para salvar a universidade. Reverter a atual
função desse tipo de migração, 5% de seus situação de cerco econômico não é algo
docentes, precisamente entre os mais qua- que possa ser equacionado só no plano eco-
lificados, só a perda financeira de curto nômico, pois sem se enfrentar e superar o
prazo seria de cerca de 5 bilhões de dóla- cerco político e o cerco territorial não ha-
res. Mesmo que a questão fosse “só” o veria como afastar o cerco econômico. É
dinheiro, seria algo muito difícil de se con- preciso portanto agir agora, nesses vári-
seguir em curto prazo, pois quantias dessa os planos, para romper o múltiplo cerco,
ordem só têm sido mobilizáveis para sane- antes que os danos se tornem irreversí-
ar o sistema bancário... Contudo, os pre- veis. Para essa ação, medidas governa-
juízos não se resumiriam a isso, nem seri- mentais e novas políticas oficiais são in-
am “saneáveis”, pois além de ser preciso dispensáveis, mas para que elas ocorram
uma década, pelo menos, para formar cada é preciso que a universidade se mobilize e
pesquisador perdido, e duas décadas, pelo também mobilize vontades políticas mais
menos, para reconstituir cada grupo de pes- amplas, mostrando como a retomada do
quisa desmontado, seriam essenciais, para sentido maior da universidade servirá ao
essa formação e reconstituição, quadros interesse público e à reconstrução da pró-
acadêmicos de grande experiência, justa- pria nação, que, de certa forma, também
mente os mais atingidos pelas perdas. está sitiada.

UNIVERSIDADE SITIADA 46
Um projeto
estratégico para
romper o cerco

instituições, em que a nação enfrente ao


Formação superior cerco a que hoje é submetida. Para sua
reestruturação, a universidade precisará se
e pesquisa: ultrapassar mobilizar e revelar vontade política, mos-
trando como o interesse público é servido
a federação de unidades quando uma instituição e os cidadãos que
a compõe expõem seus problemas e insu-
ficiências, assumem com inteireza seu
A proposta que esboçaremos ao concluir papel, atualizam suas funções ou a manei-
este livro é a da recuperação de uma insti- ra como as exercem e, dessa forma, se
tuição a serviço da recuperação de outras qualificam para exigir as condições huma-
e, por desempenhar múltiplas funções, a nas e materiais para realizá-las. No caso
universidade pode ser um dos pontos de da universidade, ao serem revistas essas
partida de uma retomada nacional mais funções, pode-se começar pela condução
geral, desde de uma perspectiva humanis- e orientação do ensino superior, central
ta, contra a submissão da nação ao merca- para um projeto de nação, como percebe-
do, e não vice-versa. Veremos primeiro o ram Anísio Teixeira e Fernando de Aze-
que pode nossa universidade fazer para vedo há 70 anos.
estruturar melhor a si mesma, naquelas A formação profissional nas mais dife-
funções centrais para as quais ela foi con- rentes especialidades, de professores, de
cebida, para em seguida compreender que técnicos e de intelectuais, assim como a
papel ainda mais amplo pode ela ter em formação cultural e artística, científica e
um processo no qual o Brasil repense suas tecnológica, social e política dos diferen-

47 LUÍS CARLOS DE MENEZES


tes agentes sociais de uma nação, se reali- nal. No entanto, elas têm feito pouco uso
zam e se completam em muitos e diferen- de sua autonomia pedagógica, para inovar
tes ambientes, na escola básica e na esco- os cursos que oferecem, assim como pou-
la profissional, em diferentes instituições co têm se mobilizado para ampliar seu nú-
de ensino superior, nas atividades profis- mero de estudantes, sendo cúmplices, des-
sionais da indústria, da agricultura, do co- sa forma, do “cerco territorial” que so-
mércio, dos serviços e das artes, na vida frem. Nos últimos anos e especialmente
política, nas atividades sindicais. No en- no momento atual isso começa a mudar. É
tanto, esse amplo conjunto de espaços, animador, por exemplo, o recente anúncio
onde a educação formal e a informal se da constituição de redes de universidades
realizam, não substitui a universidade, es- públicas, para oferecer ensino superior a
paço privilegiado de aprendizado, inves- distância. A Universidade de Brasília tem
tigação, debate e proposição. A universi- capitaneado iniciativas e já acumula algu-
dade é insubstituível não porque todos ma tradição de trabalho nessa direção. Seja
deveriam se formar em universidades, mas em cursos de extensão universitária, de
porque a presença dela é essencial no es- difusão cultural, de graduação ou mesmo
pectro dos espaços formativos de uma na- de especialização pós-graduada, essa mo-
ção, por sua condição de autonomia de dalidade pode fazer uso da competência
investigação e de ensino, assim como pela pedagógica, científica e cultural concentra-
universalidade com que conduz o traba- da em cada uma das instituições consorci-
lho intelectual, mantendo permanente o adas para a elaboração dos materiais e das
debate interdisciplinar. No entanto, quan- rotinas de instrução, e aproveitar a boa dis-
do a própria universidade se limita, como tribuição regional dos seus muitos campi
ouvimos do mesmo Anísio Teixeira, a ser para o atendimento presencial periódico,
uma “federação de unidades”, ela frustra conduzido por monitores ou docentes. Em
a mais importante das características que muitos países, como a Austrália, a Espanha
justificaram sua criação e retrocede a ou- ou a Inglaterra, universidades públicas con-
tras épocas, em que a pesquisa competia a duzem com sucesso, há décadas, progra-
institutos isolados e a formação superior mas dessa natureza. Mesmo começadas
às faculdades isoladas. Ainda hoje, há pro- com atraso no Brasil, essas oportunidades
blemas decorrentes desse isolamento em formativas podem, em pouco tempo, ampli-
todos os fazeres acadêmicos, no ensino de ar significativamente o número dos atendi-
graduação e de pós-graduação, na pesqui- dos pelo ensino superior público, alcançando
sa e na extensão universitárias, que negam aqueles sem condições econômicas de se
o sentido estratégico da universidade, deslocar para cidades onde esteja disponí-
como pensada por Anísio ou por Darcy vel, ou os que, já envolvidos no mundo do
Ribeiro, e que precisam ser superados. trabalho, não dispõem de tempo para acom-
No ensino de graduação, mesmo sem dar panhar os cursos regulares, ou ainda parte
prioridade a esse nível de ensino, as uni- dos anteriormente excluídos por vestibu-
versidade públicas têm apresentado me- lares seletivos.
lhores resultados do que o ensino superior Ao lado dessas iniciativas de ensino a
privado, em avaliações de âmbito nacio- distância e, de certa forma, mais urgente
UNIVERSIDADE SITIADA 48
que elas, está a revisão do projeto peda- entre formação cultural e profissional, en-
gógico de nossos cursos de graduação, dos tre teorias pedagógicas e práticas educa-
bacharelados, das licenciaturas e dos de- cionais.
mais cursos de formação profissional. Essa A pós-graduação e a pesquisa, em prin-
revisão, frustrada em pelo menos duas re- cípio, são os domínios em que a universi-
formas universitárias, não pode esperar dade pública poderia se sentir soberana,
indefinidamente se quisermos, no que se pois ela concentra no Brasil a pesquisa cien-
refere ao ensino de graduação, justificar a tífica, participa reconhecidamente da pro-
própria criação da universidade, como algo dução e da crítica cultural, congrega gran-
mais do que o ajuntamento de escolas su- de parte dos centros de ensino de pós-gra-
periores. A proposição do ciclo básico, por duação. Essas são, contudo, as atividades
exemplo, foi uma medida integradora do mais diretamente ameaçadas pelos cercos
trabalho das várias unidades acadêmicas, à academia, porque são aquelas cuja per-
mas revelou-se insuficiente para se con- da definitivamente descaracterizaria a ins-
ceber e praticar uma formação superior tituição universitária. A fragilidade do atual
ampla, como só a universidade poderia modelo de pesquisa e pós-graduação já foi
fazer. É importante despertar a universi- em parte percebida pela própria universi-
dade para seu papel educacional, superan- dade e pelas agências financiadoras. Sua
do a idéia de cursos como reunião de dis- revisão é urgente não só por questões de
ciplinas, ou de disciplinas como seqüênci- custo ou de eficácia, mas por não garantir,
as de aulas. A atualização pedagógica não no conjunto das universidades, nem mes-
deve se resumir a mudar os livros ou dis- mo sua manutenção e sua reprodução. No
cursos, a adquirir novos equipamentos ex- atual modelo, todas as unidades de todas
perimentais ou informáticos. Na revisão do as universidades deveriam, em princípio,
ensino de graduação, além de substituir as crescer em quantidade e qualidade, até
rotinas dos cursos, é preciso substituir parte atingir o número e o grau de excelência
das aulas por atividades dos alunos, ampli- suficientes para ser consideradas autôno-
ar e promover vivência cultural universi- mas, na condução de suas pesquisas e,
tária e efetiva prática intelectual e profis- portanto, maduras para abrigar programas
sional, como partes centrais do processo específicos de pós-graduação. Essa foi a
de formação, explicitando e articulando no idéia que presidiu à formação de muitos
projeto pedagógico de cada curso todo o dos grupos de pesquisa e programas de
elenco de atividades previstas para os es- pós-graduação em universidades de maior
tudantes. A universidade conta, para re- porte, mas só excepcionalmente funciona
ver sua graduação, com bons pontos de bem em unidades acadêmicas menores, ou
partida, como competência científica e em grupos de pesquisa pouco numerosos,
cultural, além de sua autonomia didático- mesmo que em instituições maiores. Quan-
pedagógica, mas precisa deixar de ser “fe- do, por exemplo, a possibilidade de con-
deração de unidades” ou “condomínio de tratação dos novos quadros não acompa-
faculdades”, para superar a distância atual nha o ritmo da perda de pesquisadores ex-
entre educação e produção de conheci- perientes, seja por migração acadêmica,
mento, entre ciências humanas e naturais, seja por aposentadoria, o tempo conspira
49 LUÍS CARLOS DE MENEZES
contra a autonomização, levando alguns universidades, e se distinga do modelo no
grupos de pesquisa e programas de pós- qual, fora os “centros de excelência”, o
graduação a entrar em decadência pouco que resta se condena a “resto”.
depois, quando não antes, de terem atingi- Uma nova proposta para o desenvolvi-
do sua maturidade. mento da pesquisa e da pós-graduação de-
Um outro modelo, vislumbrado para subs- veria incluir redes interinstitucionais, regi-
tituir o atual, procura ser mais “realista”, onais ou nacionais que credenciassem pes-
apostando na impossibilidade da consoli- quisadores, individualmente ou em grupo,
dação de grupos de pesquisa e de progra- como partícipes de programas amplos, nos
mas de pós-graduação em grande parte quais os centros maiores, em termos de
das atuais universidades, distinguindo de pesquisa e de oferta de cursos, atuariam
um lado os “centros de excelência”, de como polos ou “nós” de convergência da
outro lado “o resto”. Noutras palavras, rede. Articulados por meio da internet e
haveria instituições ou unidades que seriam demais formas de comunicação, os mui-
tratadas como efetivamente universitárias tos pontos de cada rede poderiam estar
e aquelas nas quais o caráter universitário desenvolvendo pesquisas, orientando pós-
já seria decretado como de segunda cate- graduandos e oferecendo cursos nos pro-
goria. Talvez nem todo o ensino superior gramas comuns, de acordo com sua dispo-
possa ser necessariamente universitário, nibilidade humana e material. Um grupo pe-
mas seria lamentável abrir mão da exis- queno e secundário poderia crescer em
tência de universidades de fato, em todos quantidade e qualidade, tornando-se um
os centros urbanos, em todos os estados novo pólo. Cada rede temática demandaria
da União, consideradas as funções sociais às agências de fomento os recursos para a
que essas universidades desempenham no manutenção ou expansão de seus progra-
desenvolvimento cultural das muitas regi- mas, de forma unificada, credenciaria seus
ões, especialmente em um país das dimen- participantes de acordo com suas qualifi-
sões do nosso. Além disso, não é difícil cações, redistribuindo as parcelas corres-
mostrar que esse outro modelo também pondentes a seus subprogramas ou a seus
não se sustenta, em termos de sua manu- grupos associados. Os simpósios temáticos
tenção e reprodução, pois a maior parte e os encontros periódicos de pesquisa por
dos docentes pesquisadores formados nas especialidade, nos moldes dos que ocor-
universidades “excelentes”, e que não se- rem hoje, seriam momentos também utili-
rão empregados nelas próprias, acabarão zados para discussões e decisões coleti-
por ser subutilizados e frustrados nas ou- vas dos programas e das redes. As avali-
tras instituições, que constituem “o resto” ações e as decisões de mérito seriam fei-
das universidades. É preciso, portanto, tas no interior dessa comunidade interuni-
conceber uma nova proposta para o de- versitária, com critérios de qualidade con-
senvolvimento da pesquisa e da pós-gra- solidados na parceria da produção cientí-
duação, que não se restrinja ao atual mo- fica e cultural, simplificando também a tra-
delo de “desenvolvimento por conta pró- mitação burocrática.
pria” dos grupos e programas, modelo que Entre outras vantagens, esse novo mo-
tem inviabilizado a consolidação de muitas delo permitiria a um jovem pesquisador, ou
UNIVERSIDADE SITIADA 50
a um pequeno número deles, mesmo ten- des”, o ensino de pós-graduação amadu-
do se formado em grandes centros, poder receria uma articulação de universidades
trabalhar em centros menores, mantendo que, em alguns casos, poderá resultar em
permanente interligação com sua área de programas nacionais de pós-graduação.
investigação e intercâmbio e sua ligação Outra evolução há muito demandada é
com a atividade de formação pós-gradua- uma distinção de objetivos e exigências
da, sem ter de esperar o desfecho de uma entre o mestrado, que deve ser tratado sim-
longa e freqüentemente frustrada batalha plesmente como uma etapa de especiali-
pela consolidação de seu próprio grupo de zação, e o doutorado, que revela a maturi-
pesquisa e de seu próprio programa de pós- dade para o trabalho acadêmico indepen-
graduação, sem privar a universidade onde dente e, portanto, credencia para a auto-
trabalha de efetivamente contar com do- nomia na docência e na pesquisa.
centes pesquisadores efetivos. Outra van- Essas propostas nos permitem tocar num
tagem, associada à anterior, seria uma ponto talvez nevrálgico do ensino superior
maior tranqüilidade das instituições quan- brasileiro, a relação entre a universidade
do da migração de quadros acadêmicos pública e o ensino superior privado, de ca-
entre elas. Claro que grupos autônomos ráter universitário ou não. O mercado
deverão continuar existindo, eventualmente bilionário do ensino superior no Brasil é hoje
interagindo com as novas redes, como par- palco, como vimos, de acirradas batalhas
tes de um sistema universitário co-respon- entre diferentes empresas e corporações,
sável, solidário e cooperativo, não só como disputas nem sempre benéficas ao interes-
elementos antagônicos disputando os mes- se público. Mesmo considerados os preju-
mos e limitados recursos. É claro que isso ízos que essa fúria empresarial promove
exigirá amadurecimento, para um enten- ao próprio conceito de universidade, de que
dimento pactuado entre as universidades já tratamos ao discutir o cerco político,
consorciadas, assim como uma revisão das assim como os danos estruturais à univer-
linhas de trabalho e financiamento das agên- sidade devido à predação de que tratamos
cias de fomento, o que não deve constituir no cerco territorial e econômico, é pre-
obstáculo, se houver vontade política. Na ciso encontrar formas de convívio entre
realidade, grandes “redes de pesquisa”, al- universidade pública e ensino superior pri-
gumas delas internacionais, já operam há vado, uma vez que, assim como na rela-
tempo, por exemplo realizando a análise ção entre saúde pública e saúde privada,
de dados experimentais obtidos em gran- são distantes as hipóteses de se suprir com
des laboratórios centrais. Algumas inicia- ensino superior público, a curto ou médio
tivas parciais nesse sentido também já têm prazo, a formação da já majoritária parce-
sido propostas, em diversas instâncias, para la dos alunos que recorrem às escolas pri-
programas de pós-graduação, e não é ilu- vadas. A vexatória situação atual do ensi-
sório contar com a possibilidade da disse- no superior, que chega às manchetes de
minação dessas redes e desses programas jornais com resultados inaceitáveis na ava-
interinstitucionais28. Nessa hipótese, assim liação de muitas faculdades ou com as
como o ensino de graduação ultrapassaria guerras entre magnatas do ensino supe-
as limitações das “federações de unida- rior privado, poderá se agravar ainda mais,
51 LUÍS CARLOS DE MENEZES
muito rapidamente, se não for encontrada tais propriamente ditas, ou comunitárias e
uma solução de Estado para a moralização confessionais, as escolas superiores priva-
e a fiscalização do sistema já implantado e das, com ou sem o título de universidade,
para o credenciamento de novas escolas. geralmente não têm plano de carreira, nem
O Conselho Nacional de Educação tem oportunidades para formação pós-gradua-
revelado a dificuldade de fazer prevalecer da em serviço, nem mesmo atividades de
critérios de uma boa educação superior pesquisa remuneradas como parte das atri-
diante dos interesses dos lobbies empre- buições docentes. Ora, definir, promover
sariais, que se instalam e supervisionar uma mínima defini-
em seu próprio interior. ção profissional do trabalho dos
Para enfrentar essa situ- docentes já seria um importante
ação é preciso preservar aperfeiçoamento da relação entre
competência educacional a universidade pública e as demais
não atrelada aos interes- instituições de ensino superior. A
ses particulares, com au- própria universidade pública pode
toridade para exercer fun- modificar seus serviços, como re-
ções de supervisão e avaliação, tanto para sultado dessa discussão. Por exemplo, se
o acompanhamento permanente como for percebido que a pós-graduação nos
para o julgamento de questões e pendên- moldes atuais não é a melhor ou a única
cias. A destruição da universidade pública maneira de suprir quadros para o ensino
decretaria definitivamente a impossibilidade superior em geral, seria possível diversificá-
de se exercer tal supervisão. Aliás, na au- la ou reorientá-la.
sência de ensino superior público, também
não haverá ensino superior para alunos sem
condições de pagamento, nem mesmo ha- Universidade, serviços
verá oferta de ensino superior em regiões
em que o mercado não justificar o investi- e participação social
mento realizado.
À parte disso, para se garantir alguma Sempre foi importante, no Brasil, a rela-
qualidade ao ensino privado, é preciso dar ção entre a universidade pública e os ser-
formação superior e pós-graduada a seus viços básicos de educação e de saúde, mas
quadros docentes, que não é suprida pelo se torna ainda mais vital em momentos
próprio ensino privado, mas sim pela uni- como o atual, quando esses direitos da ci-
versidade pública. Atualmente, aliás, o dadania têm sido deixados à mercê do
ensino superior privado tem sido compreen- mercado, à medida que o Estado se deso-
dido como um dos “mercados de traba- briga de garanti-los. Não se trata somente
lho” para os licenciados, mestres e douto- de um empobrecimento do Estado, de sua
res formados na universidade pública e essa incapacidade de financiar os serviços pú-
relação, hoje de fornecedor e empregador blicos, mas também de uma ideologia de
de professores, é insuficiente para o aper- depreciação do que é público, como se tudo
feiçoamento do ensino superior. Diferen- quanto não se expõe ao filtro de um mer-
temente das universidades públicas, esta- cado concorrencial fosse fadado à inefici-
UNIVERSIDADE SITIADA 52
ência ou à baixa qualidade. Na realidade, para a saúde pública, além de cobrir par-
a oposição antagônica entre o público e o cela significativa do atendimento nacional,
privado nem sempre serve ao interesse associado ao SUS (Sistema Unificado de
público e, conforme o caso, a função da Saúde), ao qual muitos hospitais da rede
instituição pública, relativamente às insti- privada também estão filiados. Esses hos-
tuições privadas, pode ser de complemen- pitais universitários, os HUs, não “selecio-
taridade, de fiscalização, de coordenação nam pacientes” de acordo com interesses
ou de credenciamento, como vimos ao tra- de pesquisa, pois precisam atender com
tar do ensino superior. qualidade e quantidade o fluxo de deman-
A relação da universidade com a saúde da, da forma com que este se apresenta.
pública, por meio do ensino médico e dos Essa ação complementar do atendimento
hospitais universitários, é pelo menos tão público, hoje em geral terceirizado, de certa
importante quanto aquela relação com o forma muda o sentido de “hospitais de pes-
ensino superior. A história do sistema de quisa”, mas tem como vantagem formar
saúde no Brasil é inseparável da história médicos para as condições reais da saúde
da universidade pública e, antes dela, da no país. Há nisso, no entanto, outro senti-
história das faculdades de medicina ou dos do pelo menos tão importante, que permi-
institutos públicos, que associaram pesqui- te aos HUs exercer funções que, no Bra-
sa e serviços, como o Oswaldo Cruz, o sil, só poderiam mesmo ser exercidas por
Adolfo Lutz e tantos outros cuja memória hospitais onde há pesquisa e desenvolvi-
vai se apagando. Os tradicionais hospitais mento, a exemplo da elaboração das cha-
universitários e as santas casas, que tam- madas condutas, ou seja, parâmetros de
bém são hospitais de formação, sempre procedimentos médicos em determinados
estiveram entre os maiores e melhores grupos de doenças, ou o estabelecimento
hospitais no Brasil e, até por isso, entre os de bioequivalência para os medicamentos
mais demandados e sobrecarregados. Mui- denominados “genéricos”, ou ainda a in-
tos dos hospitais da rede pública, como os corporação de novas tecnologias de ima-
dos antigos institutos de aposentadoria e gem em processos diagnósticos e curati-
pensão, os IAPIs, IAPCs, foram absorvi- vos e sua difusão para a rede pública em
dos pelas universidades públicas, sendo geral. Hospitais públicos não-universitári-
salvos assim do sucateamento por que pas- os, centros de saúde ou hospitais privados
sou e continua a passar aquela rede. Pois não têm como exercer essas funções, ou
bem, falar do destino do atendimento e da como realizar investigações de epidemio-
supervisão do sistema de saúde brasileiro logia clínica, que permitiram, por exemplo,
é, necessariamente, falar do destino des- compor uma rede nacional de estudos de
ses hospitais e, portanto, das universida- doenças, inadiável com o agravamento da
des públicas, que são sede de quase uma poluição ambiental e do caos urbano. O
centena deles, atendendo mensalmente projeto estratégico deve, portanto, explici-
mais de 1 milhão de pacientes. tar essa e outras tarefas da universidade,
Como no exemplo anterior, da educação demandar os recursos para realizá-las, mas
superior, o sistema de hospitais universitá- também estabelecer condições internas
rios tem significado estratégico múltiplo para exercê-las, como planos de carreira
53 LUÍS CARLOS DE MENEZES
para os médicos, de forma a permitir sua engajamento de diferentes setores sociais
dedicação em tempo integral nos hospitais e de instituições como a universidade.
universitários. Tanto quanto na questão da saúde públi-
Uma das razões principais para a cria- ca, a universidade tem nisso uma função
ção de nossas universidades, expressa no estratégica a cumprir, começando por re-
já mencionado Manifesto dos pioneiros, construir seu vínculo com a escola públi-
tinha sido prover formação superior ade- ca. Os pontos de partida para essa recons-
quada para os professores da educação trução são a boa distribuição geográfica
básica e, de fato, até há umas três déca- das universidades públicas brasileiras, a
das, as escolas públicas de nível médio ti- competência científica e cultural concen-
nham seus professores formados na uni- trada nelas e seus cerca de mil cursos de
versidade pública e, em contrapartida, for- formação inicial de professores. É preci-
mavam a maioria dos estudantes que che- so modernizar esses cursos, hoje esvazia-
gavam à universidade. Desde então, no dos por razões de mercado, dobrar seu
entanto, a relação da universidade com o número de alunos e aproximá-los da esco-
ensino público fundamental e médio foi la e dos sistemas estaduais e municipais
objeto de uma persistente desconstrução: de educação. Universidade e escola têm
por razões salariais, os professores forma- de trabalhar juntas numa reformulação
dos na universidade pública passaram a que promova um salto de qualidade na edu-
trabalhar nas escolas privadas de elite, cação básica, conduzindo lado a lado for-
contribuindo para que, na seleção no ves- mação inicial e formação continuada de
tibular, os estudantes que chegam a uni- professores, nesse momento em que, en-
versidades públicas venham dessas esco- quanto 100 mil recebem formação inicial,
las. Ao mesmo tempo, dada a intensa ur- 1 milhão necessitam de formação conti-
banização, houve um grande crescimento nuada. Esse esforço nacional pela educa-
da escolarização, não acompanhada pela ção pública, para o qual a universidade
formação de mais professores, nem em pode ser peça central, é condição essenci-
adequação da escola aos novos contingen- al para revertermos nosso histórico de ex-
tes populares que chegam a ela, produzin- clusão social, sem o que nosso país conti-
do carências cada vez mais agudas. Na nuará a regredir em termos de autonomia,
última década, por exemplo, dobrou o con- nessa era em que geração de conhecimen-
tingente de alunos da escola média, que to é pressuposto de capacidade produtiva.
hoje já são 7 milhões, a maior parte deles É preciso admitir, no entanto, que, nesse
nas escolas públicas. mesmo período em que a universidade
Hoje, cerca de um quarto dos 160 mi- pública tem se distanciado da escola pú-
lhões de brasileiros está na escola e não blica, o desemprego e o subemprego, de-
há dúvida de que, em geral, essa escola é vidos à globalização acelerada, têm leva-
pouco eficaz. É unânime a compreensão do à marginalidade parcelas crescentes da
de que a educação é um de nossos proble- população trabalhadora. Nessa conjuntu-
mas centrais, de que o futuro da nação ra perversa, a educação por si só não bas-
depende da qualidade de sua escola, mas ta, ainda que continue a ser essencial. Sem
falta transformar essa compreensão em programas de inclusão e de reinclusão so-
UNIVERSIDADE SITIADA 54
cial e econômica, não há como promover versidades, em várias regiões do país, aten-
sequer a escolarização fundamental dos dem nacionalmente centenas de consultas,
setores sociais mais gravemente necessi- todos os dias, por meio desses serviços de
tados. Os programas de bolsa-escola, que assessoria e consultoria. Com base em le-
remuneram famílias carentes para manter vantamentos baseados nessas consultas,
suas crianças na escola, são o absoluta- podem-se conceber cursos de atualização
mente mínimo que se pode garantir, pois gerencial e profissional e mesmo kits de
para educar os filhos é preciso que os ar- apoio para novos empresários ou para tra-
rimos de família possam sustentá-los. Em balhadores em busca de novas qualifica-
nossos dias, isso exige que se apóiem ati- ções. A participação de alunos de gradua-
vidades econômicas autônomas de traba- ção e de pós-graduação nesses programas
lhadores desempregados, que se subsidiem de atendimento estabelece a necessária
setores empresariais intensivos em mão- ponte entre ensino de graduação, ensino de
de-obra, que se promova a reforma agrá- pós-graduação, pesquisa e extensão. Esse
ria, fixando no campo famílias de traba- é só um exemplo do que a universidade
lhadores rurais sem terra. Também nesse pode fazer, a serviço da inclusão social e do
esforço pela inclusão social e econômica, apoio a agentes econômicos na produção e
é preciso pensar qual pode ser o papel da nos serviços, nas áreas urbana e rural. É
universidade. claro que ela não deve fazer isso sozinha, e
Algumas universidades oferecem asses- sim subsidiada e apoiada por agências e
soria e atualização tecnológica e adminis- programas públicos de defesa e promoção
trativa a microempresas e pequenas em- da economia nacional, mas, de uma forma
presas, lado a lado com atualização pro- ou de outra, ela deve se engajar em ações
fissional para algumas categorias de tra- contra a exclusão social e, portanto, na pro-
balhadores. É uma ação de caráter edu- blemática do emprego, da produção e dos
cacional mas que é parte do que usual- serviços.
mente se denomina extensão universitá- Essa exclusão é estrutural, um quadro
ria. Pode-se dizer que esse trabalho de crônico sem superação à vista, e não bas-
extensão formativa e de difusão técnico- ta um envolvimento conjuntural da univer-
produtiva é, para as unidades universitá- sidade para enfrentá-la. Por isso, parte da
rias da área tecnológica e administrativa, pesquisa, do ensino e da extensão deve
o que o atendimento de extensão de saúde estar permanentemente a serviço da trans-
é para suas faculdades de medicina e formação desse desumano panorama so-
odontologia. A diferença é que é mais an- cial, em que a marginalização nas cidades
tiga a tradição de extensão na área da saú- e no campo parece já estar sendo consi-
de e que o usuário da formação empresa- derada condição normal. Instituição públi-
rial e profissional não é um paciente mas ca que é, seria pelo menos natural que a
um agente econômico. É preciso perce- academia, fazendo uso de sua autonomia,
ber que o microempresário de hoje é o enfrentasse alguns dos problemas da so-
desempregado de ontem e que, sem apoio ciedade que a mantém. Práticas sociais so-
técnico, gerencial e comercial, sua micro- lidárias podem, por exemplo, ser parte re-
empresa poderá estar falida amanhã. Uni- gular da formação de todos os estudantes
55 LUÍS CARLOS DE MENEZES
durante todo o seu curso, não como bene- skholé, ócio em grego, cujo oposto,
merência oficial, mas como formação éti- askholía, corresponde ao trabalho de ma-
ca e social regular, em campanhas e situa- nufatura; correspondentemente, ócio, do
ções emergenciais, assim como em ações latim otium, é o tempo livre, o oposto a
permanentes em escolas, museus, sindica- negócio, necotium, como nos lembra um
tos, hospitais, creches, veículos de comu- texto de Carneiro Leão sobre a universi-
nicação, comunidades rurais e urbanas, sis- dade29. Mais de dois milênios nos sepa-
temas públicos ou comunitários de saúde, ram da Grécia clássica, que criou aquela
de previdência, de segurança, de justiça, academia, e o termo ócio ganhou a
de cultura, de lazer, de turismo. Quanto conotação de indolência, negócio não é
mais avançado estiver o estudante em seus mais seu oposto, mas permanece na nova
estudos, mais próximas poderão estar tais academia a idéia do culto ao conhecimen-
práticas da competência específica que ele to, da cultura, enfim. A universidade, que
houver adquirido e menor será a supervi- surgiu com a cidade e que participou do
são docente de que necessitará. O desenvolvimento do Estado moderno, con-
aprofundamento de sua própria constru- tinuou a ter sua essência na produção e na
ção como cidadão será, para cada estu- difusão da cultura, mas ganhou, ao longo
dante ou professor, tão importante quanto dos séculos, duas novas dimensões, a po-
a contribuição social que dará, para a lítica e a econômica, ou seja, passou a ocu-
melhoria das condições materiais e cultu- par-se da vida social também no que se
rais da comunidade. Em um movimento refere ao poder e à produção.
dessa natureza, a universidade estará se Na realidade, a própria cultura, ou o co-
deslocando no sentido oposto ao da com- nhecimento, cada vez mais faz parte da
petição individualista de uma sociedade produção e do poder. Nas ciências contem-
que hoje ela reflete e reproduz, seja nos porâneas, naturais ou sociais, é pouco
exames seletivos, seja em práticas distinguível o que é
educacionais avessas à cooperação. visão de mundo do
que é construção de
mundo. As questões
Nem ócio, nem econômicas, cultu-
rais e socioambien-
negócio: cultura, tais de nossos dias,
associadas às revo-
economia e política luções tecnológicas,
ganham um ritmo
A academia da Antiguidade grega vertiginoso, em que
era concebida como o espaço para o se agigantam impé-
cultivo de conhecimentos não-pragmáticos, rios corporativos, se multiplicam guerras
o ócio, considerado superior às atividade sectárias, se marginalizam nações e conti-
práticas e essencial ao desenvolvimento do nentes. Um enorme poder de intervenção
espírito humano. Não por outra razão, a no mundo natural convive com uma au-
palavra escola, do latim schola, vem de sência de propostas para a pacificação da
UNIVERSIDADE SITIADA 56
existência. Os problemas políticos nacio- informações e de especialistas das varia-
nais e internacionais deste período, de sen- das áreas, das ciências humanas às ciên-
tido ideológico ou estratégico, assim como cias naturais, das matemáticas às línguas,
os problemas filosóficos, de sentido éti- das artes aos esportes; não se apresenta
co, epistemológico ou ontológico, não po- nenhuma outra instituição pública ou pri-
dem ser tratados à parte do conhecimento vada que se proponha a substituí-la em seu
científico, da capacidade de cindir ou fun- todo ou em cada uma das suas funções.
dir núcleos atômicos, de investigar a evo- Um ou outro museu, uma ou outra funda-
lução universal em escala de bilhões de ção pública de pesquisas, alguns até anteri-
anos, de arquitetar processadores de infor- ores à criação da universidade, se ombreiam
mação sobre cristais semicondutores, de com ela em algumas atividades culturais ou
manipular genes, elaborar e cultivar no- tecnológicas. Contudo, as universidades
vas formas de vida. A própria discussão públicas tiveram mesmo de absorver algu-
sobre os destinos de cada nação é parte do mas dessas instituições, para impedir que
debate mais amplo sobre os rumos da so- fossem fechadas. Algumas fundações e al-
ciedade humana, debate que já se iniciou guns institutos privados têm também desen-
nos bastidores da vida social, abafado pelo volvido atividades de interesse cultural, fi-
ruído do mercado. A universidade deve se nanciados com excedentes do capital ban-
apresentar para essa discussão, até porque cário ou industrial, mas sempre contando
abriga muitos de seus elementos com quadros intelectuais formados nas uni-
conceituais, mas, para isso, precisa enfren- versidades públicas, ou seja, como no caso
tar o cerco externo das “forças de merca- do ensino superior privado, sem efetiva
do” e, internamente, reencontrar sua vo- autonomia de formação e reprodução.
cação para o debate. O projeto estratégico precisa, portanto,
Em países como o Brasil, em que são consolidar o papel de referência cultural
poucas e nem sempre estáveis as institui- da universidade, tendo em vista que as
ções voltadas à cultura, a revitalização cul- ameaças à cultura nacional, em última aná-
tural da universidade é essencial e urgen- lise, são as mesmas que afrontam a uni-
te para, além de promover a discussão dos versidade, ou seja, a partir de uma idéia
graves impasses sociais, econômicos e po- mais ou menos geral de que cultura tam-
líticos, atuar como partícipe e testemunha bém tem mercado, de que é algo que se
da cultura nacional. Mesmo com todos os produz, se vende e se compra, fica “natu-
seus problemas, a universidade pública ral” a discriminação da cultura produzida
tem sido no Brasil, durante mais de meio em função de sua demanda e de seu custo
século, a mais assídua e confiável sede de de produção, que é o passo anterior à des-
promoção e de registro da produção cul- continuação de muitas linhas de investi-
tural e científica. Mesmo insuficientes as gação e produção cultural. Ora, as insti-
condições de que dispõe a universidade, tuições que aprenderem a se entender
não há quem se disponha a substituir seus com o mercado seriam, em princípio, aque-
laboratórios, suas bibliotecas, seus mu- las capazes de sobreviver; as demais se-
seus, seus acervos etnoculturais, seus in- riam suprimidas por seu custo considera-
tercâmbios nacionais e internacionais de do excessivo, ou por não atenderem a uma
57 LUÍS CARLOS DE MENEZES
demanda bem especificada. Por outro lado, ocupação. É preciso, agora, compreender
exatamente as que se adaptarem ao mer- melhor o papel da universidade, em sua
cado cultural e nele sobreviverem não te- relação com aquela parte da economia
riam razão para ser mantidas como insti- nacional que efetivamente participa do
tuições públicas. Completa-se assim a mercado global. Em boa parte, isso tem a
equação do desmonte cultural: o que faz ver com a participação de docentes e de
sentido para o mercado pode ser privatiza- laboratórios acadêmicos em projetos de
do, já que tem mercado; o que não faz sen- investigação tecnológica, em cooperação
tido para o mercado não tem sentido, pode com ou sob demanda de grandes empre-
ser desativado. Para se dar maior concre- sas privadas ou estatais.
tude a essa equação, onde se lê cultura, em As grandes empresas privadas, que no
geral, leia-se cultura científica, cultura ar- Brasil são hoje sobretudo multinacionais,
tística, cultura tecnológica; onde se lê mer- fazem sua pesquisa e seu desenvolvimen-
cado, em geral, leia-se mercado internacio- to em centros europeus e norte-america-
nal, condicionado pela demanda global. A nos, sendo muito marginal a participação
dimensão cultural de projeto estratégico, de outros centros, em países de economia
portanto, também não pode ser algo só da dependente, geralmente só chamados para
universidade, precisa ser parte de um pro- difusão e adaptação de produtos e siste-
jeto estratégico nacional, não importa quão mas. Somente as empresas públicas res-
“anacrônico” isso possa parecer. Se a cul- tantes no país, como a Petrobrás, que faz
tura não for compreendida como um desenvolvimento tecnológico autônomo,
patrimônio nacional, se não precisar ser pro- como a prospeção e exploração de petró-
movida e preservada como bem da nação, leo em águas profundas, continuam a tra-
não haverá mesmo razões para instituições balhar regularmente com centros nacionais
públicas a cargo dessa cultura. Estará per- de tecnologia, a exemplo da COPPE
dida a batalha e também a guerra. (Coordenação de Pesquisa e Pós-Gradu-
A dimensão econômica ou econômico- ação em Engenharia) da Universidade
produtiva da participação da universidade Federal do Rio de Janeiro. Este e outros
pública em um projeto estratégico nacio- centros são, por vezes, também convoca-
nal é hoje tanto ou mais complexa que a dos para atividades de avaliação, licitação
dimensão cultural e ou a relacionada aos e credenciamento, na elaboração de análi-
serviços, de que já tratamos. A rapidez ses, laudos, auditorias e pareceres, para
com que evolui a terceira revolução indus- serviços públicos nas áreas energéticas,
trial e a ampliação de seus efeitos pela ambientais e de serviços em geral. É indis-
globalização econômica mudou, no mundo cutível, contudo, a percepção de que, com
todo, a relação da produção científico- raras e localizadas exceções, se encolhe e
tecnológica de base acadêmica com o sis- se estreita a demanda pelo desenvolvimen-
tema produtivo. Já discutimos, há pouco, o to de conhecimento tecnológico nacional.
papel da universidade na atualização O desafio central, de fato, não está em
tecnológica e administrativa da micro e continuar dando emprego à pesquisa e ao
pequena empresa nacional ou na capaci- desenvolvimento de tecnologias nos labo-
tação do trabalhador em busca de nova ratórios acadêmicos brasileiros ou em ou-
UNIVERSIDADE SITIADA 58
tras instituições públicas de finalidade se- mover condições de vida aos cidadãos,
melhante; isso seria um aspecto lateral da assim como da afirmação da cultura e dos
questão. Se reconhecemos que, numa eco- valores nacionais. No entanto, no Brasil, a
nomia mundial fundada na permanente amplitude hoje alcançada pela internacio-
renovação do conhecimento, o sistema nalização da mercadoria, denominada
produtivo brasileiro não produz o conheci- globalização, fragiliza de forma inédita o
mento de que faz uso, o problema é com- controle nacional sobre o mercado e difi-
preender qual futuro terão ou como evo- culta ou mesmo impede a promoção de
luirão a economia nacional, o nível de em- condições de vida e trabalho para parcela
prego, as trocas internacionais, a balança cada vez maior da população, excluída da
de pagamentos, o comprometimento do vida econômica e do acesso a bens cultu-
orçamento nacional com a dívida pública rais pela novas formas de produção. A
e a própria independência política nacio- cultura e a educação vão se tornando mer-
nal, sem o que não há como promover po- cadoria e, tanto quanto o trabalho, deixam
líticas sociais, sem o que se torna irreal o de ser direitos de todos para se tornar pri-
conceito de nação. Essas não são ques- vilégios de uma fração da população. Esse
tões colocadas unicamente para o Brasil, processo, que promove e acelera o des-
mas nosso país tem porte suficiente para monte institucional, se apresenta como uma
tratá-las em termos de suas características nova etapa de “modernização”, que troca
nacionais. Não são questões que se res- políticas nacionais por liberalização de
trinjam à economia pois, nessa escala, eco- mercado e restringe o campo de ação do
nomia e política não são separáveis, e dada Estado nacional. Nessa medida, ao reto-
essa dimensão política devem ser debati- mar seu papel na promoção da cultura, da
das com toda a sociedade. Nesse debate, educação e da saúde públicas e mesmo
que também tratará de uma nova compreen- em políticas públicas de inclusão social, a
são do Estado e da nação, não há como universidade também se credencia como
abrir mão da participação da universidade, interlocutor para o debate do Estado e da
reiterando a referência já feita anteriormen- nação.
te ao Manifesto, quando diz que “não há As perplexidades diante da nova confi-
sociedade alguma que possa prescindir guração mundial na qual se inaugura o sé-
desse órgão especial [...] para enfrentar a culo XXI são maiores do que as preocupa-
variedade dos problemas que põe a com- ções com o futuro das nações, mas têm
plexidade das sociedades modernas”30. muito a ver com isso. A nova compreensão
Basta rever os conceitos de nação e de do universo e da biosfera, a capacidade de
sítio, para compreender que não há qual- processamento e intercâmbio de informa-
quer exagero na afirmação de que a pró- ções e a proporção de pessoas que acom-
pria nação também está sitiada, no mes- panham a evolução do conhecimento cien-
mo sentido amplo, não só metafórico, em tífico são, de forma tão promissora, inédi-
que a universidade está sitiada. Desde suas tas na história humana. Por outro lado, con-
origens, a existência do Estado-nação de- siderados os últimos séculos, nunca foram
pende de sua possibilidade de controlar o tão frágeis as propostas para se alcançar um
mercado nacional, da capacidade de pro- convívio de paz e prosperidade entre as
59 LUÍS CARLOS DE MENEZES
nações, para a afirmação cultural dos po- O bom convívio acadêmico, entre as uni-
vos, para o encontro de um equilíbrio dinâ- versidades brasileiras e entre essas e as de
mico entre desenvolvimento econômico e outros países, entre as sociedades científi-
preservação ambiental ou mesmo para o cas e culturais de alcance nacional e inter-
respeito humano entre distintos grupos so- nacional, hão de servir, pelo menos, para
ciais de cada sociedade. Esse descompasso identificar alguns dos termos daquele gran-
entre conhecimento científico-tecnológico de debate ou de parte dele. Certamente, é
e valores humanos pode ser interpretado ambição talvez desproporcionada atribuir
como integrando uma crise de paradigmas também ao domínio acadêmico a busca de
ou um declínio das utopias, uma questão novos paradigmas para a organização dos
de fundo ainda mais ampla. Estados, das nações, de modelos para o
Nem os interlocutores nem os termos desenvolvimento solidário das sociedades.
para o debate dessa questão estão dados. De toda forma, já será um auspicioso co-
O enfraquecimento interno de inúmeras meço a discussão de novos paradigmas para
nações produz descrédito também nos a universidade, instituição que tem cruza-
fóruns políticos mundiais, como a própria do séculos, presente em todas as nações
Organização da Nações Unidas, onde os como instrumento de promoção e afirma-
protagonistas relevantes representam as ção cultural e política. Talvez a atual
mesmas corporações e interesses que con- multiplicidade de bons livros31 e artigos so-
tribuem para o enfraquecimento das na- bre os impasses da universidade, à qual este
ções, até porque o fim da divisão polar do pequeno livro se inclui, como mais um ace-
mundo não correspondeu a uma no, nos possa dar esperança de que, na rea-
multipolaridade mais rica, mas sim a uma lidade, o debate já tenha começado.
lógica imperial tácita, única e incontestada, O chamamento para este debate foi rei-
que tem num pretenso mercado livre seu terado, há pouco, por Aziz Ab’Saber, que
único sacrário formal. É nesse contexto de entende ser preciso “defender a universi-
dissolução de valores e de desmonte de ins- dade pública, não por causa corporativa,
tituições que se há de situar a problemática mas por causa de consciência”, e a convo-
nacional ou, em termos mais gerais, a pro- ca a “dar a volta por cima” nessa situação
blemática das nações, das culturas e dos que constrange a ela e a toda a nação, nes-
povos. O Estado e suas instituições, entre sa “colonização de enquadramento [...] que
elas a universidade, devem ser pensados destrói e desindustrializa”32. A comunida-
como um conjunto, nesta transição que, por de universitária talvez ainda não esteja de
curioso e simbólico sincronismo, é também todo consciente desse seu papel de repen-
uma transição entre séculos. A universi- sar-se, repensando o mundo contemporâ-
dade brasileira sitiada, como vimos, inter- neo. O movimento docente, que se cons-
namente por suas próprias contradições e truiu na defesa da universidade, centrada
externamente por um entorno social que na reivindicação de direitos dos professo-
vai se dissolvendo em mercado, vai encon- res, poderia crescer como pólo mobiliza-
trar muitas de suas congêneres em situa- dor desse debate, retomando ou reforçan-
ção semelhante, em toda a América Lati- do a dimensão política mais universal do
na e em outras partes do mundo. trabalho acadêmico.
UNIVERSIDADE SITIADA 60
Notas
1. Entre estas publicações, com que entra- rama cultural. Revista da Adusp, São Pau-
mos em contato ao concluir a preparação lo, Associação de Docentes da Universi-
desse texto, vale a pena ressaltar Univer- dade de São Paulo, nº 17, p. 30-37, jun.
sidade em ruínas: na república dos pro- 1999.
fessores, organizado por Hélgio Trindade 12. Citado em The Economist. A survey
(Petrópolis, Vozes, 1999), assim como o of universities. Londres, out. 1997. Núme-
texto de circulação restrita intitulado A ro especial.
presença da universidade pública, edita- 13. Idem, ibidem.
do em janeiro de 2000 pela Universidade 14. Idem, ibidem.
de São Paulo, com as principais conclu- 15. CHAUI, Marilena. Ética e universida-
sões da Comissão de Defesa da Universi- de. Universidade e Sociedade. São Pau-
dade Pública que trabalhou no Instituto de lo, Andes - Sindicato Nacional, 8 , p. 82-
Estudos Avançados da USP, ao longo do 86, fev. 1995.
ano de 1999. 16. VELLOSO, Jacques. Investimento pú-
2. CHAUI, Marilena. A universidade hoje. blico em educação: quanto e onde? Ciên-
In: AGUIAR, Flávio (org.) Antonio Can- cia e Cultura, 40(4), p. 359-365, abr. 1988.
dido: pensamento e militância. São Pau- 17. ACUADA, a ciência reage. Revista da
lo, Editora Fundação Perseu Abramo, Adusp, São Paulo, Associação de Docen-
1999, p. 276. tes da Universidade de São Paulo, out.
3. CAMPOS, Francisco. Exposição de mo- 1999.
tivos. Reforma do Ensino Superior. Diá- 18. The Economist. A survey of
rio Oficial da União, Rio de Janeiro, 15 universities. Londres, out. 1997. Número
abr. 1931, p. 5.830-39. especial.
4. A reconstrução educacional no Brasil 19. Veja-se a esse respeito: DURHAM,
- Ao povo e ao governo. In: Manifesto Eunice R. As universidades públicas e a
dos pioneiros da Educação Nova. São pesquisa no Brasil. São Paulo, NUPES,
Paulo, Companhia Editora Nacional, 1932, Documento de trabalho, 9/98.
p. 16. 20. TEIXEIRA, Anísio. Educação e uni-
5. Idem, ibidem, p.61. versidade. Rio de Janeiro, Editora UFRJ,
6. Idem, ibidem, p. 63. 1998, p. 118.
7. Idem, ibidem, p. 65. 21. Idem, ibidem, p. 105-106.
8. Idem, ibidem, p. 66. 22. Idem, ibidem, p. 118.
9. CAMPOS, Francisco, op. cit., p. 23. Idem, ibidem, p. 119.
5.8030-39 24. ESCOLAS com maior porcentual de
10. Manifesto dos Pioneiros da Educação alunos com melhor e pior desempenho;
Nova, op. cit. notas médias por curso. Folha de S. Pau-
11. AGUIAR, Flávio. Antonio Candido: lo, São Paulo, 10 dez. 1999. O jornal pu-
A Faculdade de Filosofia mudou o pano- blicou os resultados do “Provão/99” usan-
61 LUÍS CARLOS DE MENEZES
do como fonte DAES/ INEP/MEC – Exa- 29. CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Ócio
me Nacional de Cursos, 1999. e Negócio. In: DÓRIA, Francisco Antô-
25. LISTA revela 44 cursos classe A. No- nio (coord.) A crise da universidade. Rio
tícias, INEP/MEC, 9 dez 1999. de Janeiro, Revan, p. 9, 1988.
26. CUNHA, Luis Antônio. Crise de iden- 30. Idem, p. 65
tidade: na universidade pública a avalia- 31. Uma das mais recentes dessas publi-
ção em questão. Universidade e Socieda- cações, Universidade em ruínas, já re-
de, junho/1992. ferida na abertura desse texto, traz alguns
27. SOUZA, Paulo Renato. Governador: bons artigos sobre a perspectiva interna-
escolha sua universidade. Qual Universi- cional das universidades e do ensino su-
dade? In: ARAÚJO, Braz J. (org.) A crise perior.
da USP. São Paulo, Brasiliense, 1980. 32. Trecho da fala do geógrafo Aziz
28. Em seminário de maio de 1999, na Uni- Ab’Saber em 23 de março de 2000, ao
versidade de São Paulo, reuniram-se repre- receber o título de Professor Emérito da
sentantes de duas dezenas de programas Faculdade de Filosofia, Letras e Ciênci-
interinstitucionais com representantes de as Humanas da Universidade de São
universidades de uma dezena de estados. Paulo.

UNIVERSIDADE SITIADA 62
Bibliografia

A RECONSTRUÇÃO educacional no Brasil – Ao povo e ao governo. In: Manifesto dos


pioneiros da Educação Nova. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1932, p. 16.
ACUADA, a ciência reage. Revista da Adusp, São Paulo, Associação de Docentes da
Universidade de São Paulo, nº 18, out. 1999.
CAMPOS, Francisco. Exposição de motivos. Reforma do Ensino Superior. Diário Oficial
da União, Rio de Janeiro, 15 abr. 1931, p. 5.830-39.
CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Ócio e Negócio. In: DÓRIA, Francisco Antônio (coord.)
A crise da universidade. Rio de Janeiro, Revan, p. 9, 1988.
CHAUI, Marilena. A universidade hoje. In: AGUIAR, Flávio (org.) Antonio Candido:
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CHAUI, Marilena. Ética e universidade. Universidade e Sociedade, São Paulo, Andes -
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CUNHA, Luis Antônio. Crise de identidade: na universidade pública a avaliação em
questão. Universidade e Sociedade, junho/1992.
DURHAM, Eunice R. As universidades públicas e a pesquisa no Brasil. São Paulo,
NUPES, Documento de trabalho, 9/98.
ESCOLAS com maior porcentual de alunos com melhor e pior desempenho; notas médias
por curso. Folha de S. Paulo, São Paulo, 10 dez. 1999.
LISTA revela 44 cursos classe A. Notícias, INEP/MEC, 9 dez 1999.
MEMÓRIAS da educação. Revista da Adusp, São Paulo, Associação de Docentes da
Universidade de São Paulo, nº 17, jun. 1999.
SOUZA, Paulo Renato. Governador: escolha sua universidade. Qual Universidade? In:
ARAÚJO, Braz J. (org.) A crise da USP. São Paulo, Brasiliense, 1980.
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TRINDADE, Hélgio. Universidade em ruínas: na república dos professores. Petrópolis,
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Comissão de Defesa da Universidade Pública/Instituto de Estudos Avançados, jan.
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VELLOSO, Jacques. Investimento público em educação: quanto e onde? Ciência e
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