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Universidade Sitiada PDF
Universidade Sitiada PDF
Universidade sitiada
A ameaça de liquidação
da universidade brasileira
Diretoria
Luiz Dulci – presidente
Zilah Abramo – vice-presidente
Hamilton Pereira – diretor
Ricardo de Azevedo – diretor
Coordenação Editorial
Flamarion Maués
Revisão
Maurício Balthazar Leal
Vera Lúcia Pereira
Capa e Ilustrações
Gilberto Maringoni
Imagem da capa
Photodisc
Editoração Eletrônica
Augusto Gomes
Impressão
Cromosete Gráfica Ltda.
NOTAS..............................................................................................61
BIBLIOGRAFIA............................................................................63
Luís Carlos de Menezes
Professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, trabalhou como físico
pesquisador na Alemanha e depois no Brasil. Especialmente nos últimos 15 anos, se
dedica à formação de professores e à orientação curricular para a educação básica. Diri-
giu atividades de extensão universitária e de pesquisas sobre ensino superior. Tem escri-
to sobre física, educação, questões energéticas e políticas sociais. Tem coordenado ou
assessorado programas de Aperfeiçoamento docente, de reforma curricular e de avalia-
ção em sistemas públicos de educação. Participa do Partido dos Trabalhadores desde
sua fundação.
Agradecimentos
Entre as várias contribuições para a elaboração das idéias aqui
expressas, é justo destacar a de Sônia Salém, pesquisadora em
educação que sistematizou dados e referências, e a de Aytan
Sipahi, médico pesquisador que orientou a discussão relativa ao
sistema de saúde. Este trabalho é dedicado à memória do
engenheiro Jorge Abrahão, um dos mais firmes defensores das
instituições públicas no Brasil, com quem o autor ainda teve o
privilégio de discutir o projeto que resultou neste livro.
UNIVERSIDADE SITIADA 4
Introdução
UNIVERSIDADE SITIADA 12
derado pelo regime de trabalho. Um pro- atividades de investigação e de produção
fessor pago por hora-aula, por meio perío- científica, tecnológica ou cultural.
do, pesaria ainda menos no denominador É claro que formar especialistas custa
daquela relação, mostrando uma faculda- tempo e dinheiro. Entre cada uma das ca-
de ainda mais “eficiente”. Alguns desses tegorias acadêmicas expressas na tabela
“horistas” chegam a dar oito horas de aula e a categoria imediatamente superior há,
num único dia, trabalhando em diferentes para cada docente, alguns anos de prepa-
instituições; oito horas, aliás, que é o mí- ração e um investimento grande em bol-
nimo exigido por lei como carga didática sas ou salários, equipamentos e infra-es-
dos professores das universidades públi- trutura. Do término da graduação ao grau
cas, só que por semana! Seriam as escolas de mestre leva-se cerca de três anos e se
privadas assim tão mais eficientes? Cer- utilizam investimentos médios em torno de
tamente não é o caso, se o critério de “efi- 50 mil dólares; do grau de mestre para o
ciência” não for exclusivamente financei- de doutor leva-se cerca de cinco anos e o
ro, mas considerar aspectos pedagógicos. investimento médio é de cerca de 100 mil
Também no que se refere a uma maior dólares (em números redondos, é claro,
percentagem de doutores, tal critério de como os números da própria tabela). Con-
eficiência poderia levar à conclusão equi- siderando o número de mestres e de dou-
vocada de representar mais um ônus do tores do quadro apresentado (45 mil e 31
que uma vantagem. No entanto, sem qual- mil, respectivamente) e o tempo de for-
quer dúvida e a despeito de aparentes so- mação (cerca de três e oito anos) pode-se
fismas, os doutores são hoje a medida mais perceber o enorme esforço para formar
imediata da maturidade didática de uma essa relativamente pequena elite, ou van-
universidade e da pesquisa e extensão que guarda, do ensino superior, e isso é muito
ela pode realizar porque, até por princípio mais custoso de repor, se de todo possível,
acadêmico, é o doutoramento que garante do que os muitos bilhões de dólares que
a um docente tornar-se professor e pesqui- esse esforço de construção acadêmica
sador autônomo, ou seja, poder conduzir terá custado em investimentos. Aliás, con-
por iniciativa própria investigação cientí- tinuamente, em qualquer época e institui-
fica ou cultural em geral, propor e coor- ção, mais de 10% do corpo docente das
denar disciplinas em cursos de graduação universidades públicas está temporaria-
e de pós-graduação, orientar a formação mente afastado de suas instituições, em ati-
pós-graduada de futuros mestres e douto- vidade de formação, de aperfeiçoamento
res, aceitar demandas de extensão. Os mes- ou de intercâmbio, o que também não cus-
tres, em princípio e em geral, participam ta pouco.
de pesquisas sob orientação de doutores, Como a produção de conhecimento cien-
coordenam disciplinas em cursos de gra- tífico, tecnológico e cultural demanda per-
duação e de extensão, mas não têm auto- manente intercâmbio e trabalho coletivo,
nomia acadêmica plena, não podendo, por a “unidade” de produção acadêmica autô-
exemplo, orientar nem conduzir cursos na noma e de formação pós-graduada não é
pós-graduação. Os bacharéis, assim como um doutor, isoladamente, mas um grupo de
os licenciados, à parte seu trabalho didáti- pesquisa, que só se consolida em vários
co-pedagógico e sua eventual atuação em anos, e que inclui entre seus participantes
extensão universitária, na melhor das hi- não só os docentes, mas também os esta-
póteses são aprendizes ou iniciantes em giários, os visitantes, os estudantes de pós-
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graduação e os de iniciação científica. cas ou acadêmicas. Dessa forma, se cons-
Cada uma dessas unidades se relaciona tituem comunidades de cada especialida-
com muitas outras, suas congêneres, por de, que em muito transcendem os muros
correio eletrônico, pela troca de artigos ou da universidade, da cidade, do estado ou
informações diretas, por visitas a labora- do país. Não é difícil ilustrar essa afirma-
tórios, por seminários ou colóquios e por ção com exemplos históricos, que nos en-
meio de conferências gerais, de alcance volvem direta ou indiretamente. Já no co-
nacional ou internacional. Isso tudo, aliás, meço do século, quando o núcleo atômico e
custa muito. Esses custos humanos e fi- o primeiro modelo quântico de átomo fo-
nanceiros de construção e de manutenção ram descobertos, no laboratório Cavendish
de equipes de pesquisa, de desenvolvimen- da Inglaterra, o investigador chefe, Ruther-
to e de formação pós-graduada deveriam ford, era neozelandês, e entre seus princi-
servir para orientar nosso julgamento, numa pais colaboradores estavam Bohr, um dina-
breve nova observação do quadro geral, marquês, e Gamov, um russo. Mais tarde,
comparando os números das universida- noutro espaço, o russo Gamov, o indiano
des propriamente ditas com outras insti- Chandrasekar e o brasileiro Schenberg
tuições de ensino superior, por exemplo cooperaram em trabalhos em que as no-
estabelecendo as proporções entre o nú- vas idéias sobre o núcleo atômico ajuda-
mero de doutores de que dispõem e o nú- ram a desvendar a evolução das estrelas.
mero de doutores que estão formando. Esse mesmo intercâmbio acadêmico, nas
Nesse sentido, cabe ainda uma advertên- ciências humanas, permitiu, por exemplo,
cia relativamente a dados estatísticos. É a vinda da França de Claude Levi-Strauss,
importante ressaltar que as médias e da- Fernand Braudel e Roger Bastide para a
dos globais “escondem” a heterogeneida- formação de um dos primeiros centros de
de: em algumas de nossas universidades investigação social e antropológica no Bra-
públicas, praticamente todos os docentes sil. Em diferentes épocas, é também o meio
são doutores ou, pelo menos, o acadêmico que promove o debate e a di-
doutoramento é condição de ingresso de fusão mundial de idéias de educadores
novos professores. Essas universidades, como o suíço Piaget e o russo Vigotsky.
por um lado, concentram boa parte dos Aliás, entre as mais significativas contri-
recursos de pesquisa do país, por outro lado, buições para o pensamento educacional
são formadoras da maior parte dos docen- em nosso século, está a do brasileiro Pau-
tes pós-graduados para todo o ensino su- lo Freire, em parte desenvolvida durante
perior brasileiro. Quanto às universidades longo exílio, acolhido pela comunidade de
privadas, tirante poucas exceções, a mé- educadores em diferentes partes do mun-
dia expressa sim uma homogeneidade pró- do, como a Europa, a América Central e a
xima dos valores mínimos exigidos por lei África. Esses são só exemplos históricos,
para o credenciamento universitário. vividos há muitas ou há algumas décadas.
A ciência em especial e a cultura aca- Na atualidade, muitos milhares de progra-
dêmica em geral são atividades universais, mas de cooperação e intercâmbio ligam
portanto cada grupo de pesquisa está em nossos grupos de pesquisa, das mais va-
permanente intercâmbio com congêneres riadas áreas de conhecimento, a seus con-
no país e no mundo, em relações diretas gêneres em todos os continentes.
de cooperação e emulação ou em relações Nas primeiras décadas da constituição
indiretas por meio de publicações científi- de muitas universidades brasileiras, espe-
UNIVERSIDADE SITIADA 14
cialmente das que foram implantadas em capacidade de investimento público. Como
regiões economicamente mais frágeis e esse deslocamento não tem acontecido, é
socialmente menos desenvolvidas, o tem- o setor privado, cada vez mais agressivo
po médio de formação pós-graduada foi em seus investimentos e em sua propa-
ainda mais dilatado e dispendioso, deman- ganda, que está se assenhoreando dessa
dando vários anos de estágio em outras demanda. Isso já está acontecendo em todo
instituições; além disso, muitos docentes o país, mas há anos é um processo majori-
só atingiram sua autonomia científica já tário e de improvável reversão nas gran-
com tempo de serviço suficiente para uma des cidades do centro-sul do país. Como
aposentadoria. Isso não só atrasou o pro- vimos, o setor privado tem conseguido
cesso de criação das universidades como credenciar-se com o status universitário
aumentou muito seus custos e, até mes- e, mesmo não possuindo maturidade aca-
mo, houve casos de se desperdiçar o in- dêmica para a formação dos próprios do-
vestimento, quando os grupos de pesqui- centes, os tem atraído do setor público e, o
sa não chegaram a se formar ou não tive- que é pelo menos curioso, já começa a
ram meios para se reproduzir. Em algu- oferecer algumas modalidades de pós-gra-
mas dessas universidades, criadas por in- duação ou especialização, às vezes sob
fluência de interesses mesquinhos de che- franquia de instituições norte-americanas,
fes políticos regionais, foi preciso muito e não se trata de hambúrgueres...
tempo para autonomizar essas instituições Está armado o cenário em que pode se
relativamente à pequenez do clientelismo dar o desfecho do sítio a que se submete a
político, e custou grande esforço, e por universidade pública brasileira. Sua defe-
vezes o sacrifício de jovens lideranças sa não se pode restringir ao domínio da
universitárias, para se conseguir o estabe- quantidade, pois a marca da academia é a
lecimento de um corpo acadêmico efeti- qualidade, mas é preciso cautela contra um
vamente comprometido com os objetivos problema de teor exatamente oposto, o da
institucionais e capacitado para isso. En- elitização, pois o caráter universal da cul-
quanto isso, o mundo não parou, e a mo- tura e da produção científica pode também
dernização produtiva e dos serviços am- apartá-la das problemáticas locais e isolá-
pliou a demanda por educação superior. la estrategicamente, podendo abrir um
O ensino superior fornecido pelas uni- flanco de fragilidade, relativamente a sua
versidades, especialmente os cursos de avaliação pública. A produção intelectual
graduação, é a forma mais tradicional de de uma universidade deveria, em princí-
serviço prestado pela universidade à co- pio, alcançar e interessar toda a comuni-
munidade. Muitos desses cursos têm tam- dade, o entorno social de que é parte e
bém sido oferecidos por instituições não que a mantém. Os problemas sociais, eco-
universitárias, menos dispendiosas, ou pri- nômicos, culturais, educacionais e ambi-
vadas, mantendo-se quase literalmente entais da comunidade e da região em que
como prerrogativa formativa das universi- está a universidade deveriam ser parte de
dades simplesmente os cursos de pós-gra- sua temática de investigação, como ob-
duação. O deslocamento de parte do ensi- jeto de diagnóstico, proposição e desen-
no superior público para instituições públi- volvimento. As questões da sociedade e
cas não universitárias talvez seja inevitá- da região em que se desenvolve a univer-
vel, tendo em vista o crescente descom- sidade deveriam assumir para ela imedia-
passo entre o aumento da demanda e a ta importância, sob o risco de ela se tornar
15 LUÍS CARLOS DE MENEZES
corpo estranho ou, o que dá na mesma,
supérflua. Cenários realistas
A ironia dessa questão está no fato de
que, muitas vezes, justamente a parcela da e possíveis desfechos
universidade mais bem preparada científi-
ca e culturalmente é a que O futuro de qualquer instituição
acaba por distanciar-se mais não é como um cardápio fechado,
das problemáticas locais, dan- com um certo número de escolhas
do menor prioridade aos pro- definidas, mas como o tabuleiro de
blemas educacionais ou soci- um jogo aberto, com incontáveis
ais em geral. Essa postura, na possíveis configurações. Por isso, há
realidade, não é um traço es- uma certa arbitrariedade ao se se-
pontâneo mas sim resultado lecionar uns tantos possíveis cená-
de uma política de décadas, rios sociais e, para cada um deles,
que promoveu a pesquisa e a imaginar eventuais desenvolvimen-
pós-graduação em detrimen- tos, no que se refere à questão da
to da graduação e da extensão. Pode-se universidade. Trata-se aqui, nesse instan-
entender que a intenção dessa política era te, de fazer um exercício de visualização
a promoção de excelência acadêmica, mas das conseqüências de políticas que, em
ela precisa ser contrabalançada rápida e última análise, mantenham o atual curso
lucidamente, sem prejudicar o investimen- de acontecimentos, no mundo acadêmico
to em qualidade que a caracterizou. Essa em particular ou no ensino superior em
e outras necessárias revisões dependem geral. Os cenários apresentados a seguir
de uma vontade política que ainda não se não são mera especulação, mas conseqü-
revelou. Não se revelou nas principais ins- ências da política econômica e social que
tâncias de governo, mais preocupadas com está sendo seguida. O estudo de suas de-
os custos relativos do que com os desem- corrências servirá para compreender me-
penhos efetivos. Não se revelou entre as lhor as ações necessárias para mudar es-
principais lideranças acadêmicas, mais pre- sas perspectivas, quando não para justificá-
ocupadas com a defesa de curto prazo, di- las, uma vez que, sem nenhuma pretensão
ante da asfixia econômico-financeira da a neutralidade analítica, o presente texto
universidade. Não se revelou nas instân- estará propondo ações nesse sentido.
cias representativas da sociedade civil, para Há aspectos gerais e outros bastante
as quais escapa qualquer percepção de específicos na composição do cenário so-
qualquer significado estratégico da univer- cial e econômico em que a universidade
sidade, o que não é de estranhar. Diante pública e as demais instituições de ensino
disso, vale a pena esboçar as decorrênci- superior se desenvolvem, e para os quais
as da continuidade das políticas atuais, ou contribuem. Do geral ao específico, pode-
seja, sem que nada muito significativo seja mos lembrar, por exemplo, condições de
empreendido para mudar o estado de coi- economia nacional e global, que condicio-
sas, ainda que seja para compreender o nem a demanda por ensino superior; defi-
que se estará destruindo e questionar se é nições políticas nacionais ou estaduais, que
isso mesmo que se pretende. proponham a defesa de instituições ou o
“enxugamento” do Estado; decisões legis-
lativas, que podem garantir autonomia fi-
UNIVERSIDADE SITIADA 16
nanceira ou cancelar prerrogativas de pro- sil e noutras partes do mundo. Não só no
fessores universitários; deliberações da que se relaciona à pesquisa, um escanca-
Câmara de Ensino Superior do Conselho ramento ainda mais profundo do Estado à
Nacional de Educação, que podem pressão de interesses privados, nacionais
credenciar ou não como universidades e internacionais, certamente acrescentaria
novos conglomerados de faculdades pri- à longa lista de privatizações, que já in-
vadas; táticas empresariais dos setores de cluiu siderurgia, energia, comunicações, o
capital, operando no ensino superior, que que resta de instalações públicas de saúde
podem atrair para seus quadros docentes e educação, incluídos aí os hospitais uni-
universitários de difícil reposição; estraté- versitários e as próprias universidades
gias dos colegiados de dirigentes universi- públicas. O que se poderia sim discutir são
tários e das associações docentes das uni- as diferentes modalidades e ritmos em que
versidades públicas, que poderiam romper se daria essa privatização, seja pela neces-
o relativo isolamento político a que acaba- sidade de mudanças legais e constitucio-
ram confinados. Todos esses fatores, sem nais, seja pelo interesse em se diluir even-
qualquer exagero, envolvem diretamente tuais resistências.
os destinos de mais de dois milhões de Se esse cenário viesse a se estabelecer
pessoas e, da perspectiva do interesse com ritmo mais lento, começaria com cor-
empresarial, envolvem um mercado atual tes ainda mais profundos que os atuais ao
de bilhões de dólares anuais e um merca- financiamento da pesquisa, até reduzi-los
do potencial muito maior. Indiretamente, à simples compra de eventuais serviços
envolvem toda a nação. Cautelosamente, acadêmicos pelo Estado, acompanhada da
escolheremos nesse momento, com algu- liberação de cobranças, diretas aos usuá-
mas variações, dois cenários possíveis, no rios, de serviços educacionais e outros,
sentido de não implicarem transformações assim como do congelamento nos salários
abruptas, reservando para outro momento e contratações estatutárias, conduzindo as
aqueles que demandem, por exemplo, mu- atuais universidades a serem geridas em
danças radicais na orientação de políticas função de seus interesses próprios de so-
sociais. brevivência, de fato como empresas. Se
Um primeiro cenário leva em conta a esse cenário fosse estabelecido com rit-
possibilidade de um aprofundamento do mo mais rápido, incluiria a mudança de
processo de globalização, acompanhado regimes estatutários, funcionais e insti-
de um correspondente aumento da exclu- tucionais, levando a curto prazo ao em-
são social. O enfraquecimento do Estado presariamento, não só de fato, também de
levaria a uma sua desobrigação maior, re- direito. Há diferentes agentes que defen-
lativamente aos serviços públicos, dem políticas que conduzem a esse cená-
privatizando o que resta de infra-estrutura rio, desde políticos com propostas
material ainda de posse do governo. Para ultraliberais até empresários da educação
um Estado de tal forma enfraquecido, a superior que consideram a universidade
manutenção de instituições públicas de pública uma espécie de “concorrência des-
produção científica e cultural poderia ser leal”. Relativamente à gratuidade, depen-
vista como um luxo desproporcional. Ain- dendo da proposta, seria simplesmente
da que algo mais pessimista, esse cenário abolida, ou substituída por bolsas de estu-
não é improvável, pois corresponde a um do ou crédito educativo, para estudantes
avanço de uma tendência em curso no Bra- carentes.
17 LUÍS CARLOS DE MENEZES
Outro cenário corresponde à simples donar suas pretensões de se tornarem cen-
continuidade das atuais condições e políti- tros de pesquisa e de desenvolvimento
cas sociais e econômicas, assim como da científico e cultural. Aos poucos perderi-
reduzida presença do Estado, ou seja, tam- am sua condição de autonomia carente, de
bém de ausência de políticas mais vigoro- “desenvolvimento dependente”; na melhor
sas para o ensino superior. De certa for- da hipóteses, se consolidariam como insti-
ma, esse é um cenário até menos prová- tuições de ensino superior público, remu-
vel, pois implica a existência de algum freio neradas, em última análise, de acordo com
em lugar da aceleração do desmonte. O o número de alunos atendidos ou gradua-
que poderia viabilizar, a médio prazo, esse dos. Para as universidades maiores, tal-
cenário de continuidade seria a concreti- vez uma dúzia delas, que em certas pro-
zação de alguma das versões de autono- posições seriam os “centros de excelên-
mia universitária, hoje em discussão, que cia”, as modificações seriam de outra na-
estabilizaria um patamar de financiamento tureza; assim como entre empresas num
público às universidades e descentraliza- mundo globalizado – sobrevivem as que
ria amplamente as decisões de gestão aca- se adequarem a um desempenho compe-
dêmica e administrativa das universidades. titivo global –, essas universidades estari-
Uma primeira conseqüência de uma com- am fisicamente no Brasil mas trabalhari-
pleta descentralização, possibilidade nada am em uníssono com congêneres ameri-
surpreendente, seria a descaracterização canas e européias. E, assim como nessa
institucional do conceito de universidade sociedade que consolida a exclusão social
pública, pois, especialmente as federais, e econômica as empresas globalizadas têm
enfraquecido o lastro de sua rede comum, como mercado unicamente os incluídos,
se equilibrariam cada uma como pudesse, essas universidades estariam se relacio-
em suas circunstâncias, ora sucumbindo nando com o Brasil incluído. Por exemplo,
a pressões locais, ora encontrando saídas fornecendo quadros docentes para as uni-
de tipo empresarial, para completar seus versidade privadas...
orçamentos, usando brechas legais que, Em suma, nos cenários realistas que hoje
como parte daquelas propostas de auto- se apresentam, mantidas as demais condi-
nomia, já estão sendo providenciadas. Os ções que levam a eles, a universidade tem
políticos conservadores norte-americanos pouca chance de vitória; no embate em
usavam uma expressão sarcástica, que vive hoje, perde por nocaute ou perde
benign neglect, “negligência benigna”, ao por pontos. Isso acontece lado a lado com
designar sua própria política social, que o que acontece com o Estado, o que nos
contrapunham ao welfare state, para a traz de volta à idéia central de que, pro-
população carente; de certa forma, esse posta como instrumento de construção na-
“largar mão e deixar que se virem” cional, a universidade perde sentido quan-
corresponde ao tratamento para as uni- do a nação perde sentido. Seria útil tentar
versidades e para o ensino superior decor- rever seus fundamentos originais, entrar
rente da continuidade pura e simples das no mérito dos embates que viveu e vive,
políticas hoje esboçadas. para que possamos empreender a difícil
Nesse cenário mais conservador há al- tarefa de sua defesa e reconstrução, não
gumas possíveis alternativas de desdobra- para a glória de si mesma, por certo, mas
mento, mas em qualquer delas as universi- como elemento da própria reconstrução do
dades públicas menores teriam de aban- Estado e da nação. Contudo, a universida-
UNIVERSIDADE SITIADA 18
de só pode ser elemento para a reconstru- dadãos e passa a tratá-la como qualquer
ção do Estado se isso for definido como outro serviço público, que pode ser
projeto nacional. Hoje, pelo contrário, como terceirizado ou privatizado”2, e, ainda que
lembra Marilena Chaui ao discutir a situa- a universidade seja mais do que estrita-
ção atual da universidade, o Estado, “ao mente educação, não há qualquer indica-
colocar a educação no campo de servi- ção de que, mantidos os rumos, venha a
ços, deixa de considerá-la direito dos ci- ter destino diferente.
UNIVERSIDADE SITIADA 20
autênticos valores da cultura...”3. Essa crí- somente subentendido por seus proposi-
tica à limitação cultural das escolas pro- tores:
fissionais está igualmente presente no
Manifesto: “A organização de universidades é, pois,
tanto mais necessária e urgente quanto
“É que a cultura, como a ciência, exige mais pensarmos que só com essas insti-
uma iniciação. Não se improvisa o obser- tuições, a que cabe criar e difundir ideais
vador, de espírito científico. Toda a cul- políticos, sociais, morais e estéticos, é
tura superior, no Brasil, nunca ultrapas- que podemos obter esse intensivo espí-
sou os limites das ambições profissio- rito comum, nas aspirações, nos ideais e
nais. Mas, organizada exclusivamente nas lutas esse ‘estado de ânimo nacio-
para a formação profissional, sem qual- nal’, capaz de dar força e coerência à ação
quer aparelhamento de cultura livre e dos homens, sejam quais forem as diver-
desinteressada, ela constituiu, no impé- gências que possa estabelecer entre eles
rio e na república, o único sistema de ins- a diversidade de pontos de vista na so-
trução superior, cujas deficiências em vão lução dos problemas brasileiros”6.
se procurava suprir [...]”4.
Se, por um lado, vêem a universidade
Em seguida, o Manifesto já aponta como como essencial em um sentido geral – “não
transcender a condição dada: há sociedade alguma que possa prescindir
desse órgão especial [...] para enfrentar a
“A educação superior, que tem estado, variedade dos problemas que põe a com-
no Brasil, exclusivamente a serviço das plexidade das sociedades modernas ”7 –,
profissões ‘liberais’ (engenharia, medi- por outro lado explicitam a importância
cina e direito), não pode evidentemente particular da universidade na formação dos
erigir-se à altura de uma educação uni- professores, “tratada entre nós [...] como
versitária, sem alargar para horizontes se a função educacional, de todas as fun-
científicos e culturais [...] Ao lado das ções públicas a mais importante, fosse a
faculdades profissionais existentes, re- única para cujo exercício não houvesse
organizadas em novas bases, impõe-se a necessidade de qualquer preparação pro-
criação simultânea ou sucessiva, em cada fissional”8.
quadro universitário, de faculdades de O embate político que envolve as uni-
ciências sociais e econômicas, de ciênci- versidades, entre interesses gerais de na-
as matemáticas, físicas e naturais, e de ção e interesses particulares, religiosos,
filosofia e letras que [...] deverão abrir às profissionais ou corporativos, é de fato tão
universidades que se criarem ou se reor- antigo quanto a criação das universidades.
ganizarem um campo cada vez mais vas- Francisco Campos já deixa entrever que
to de investigações científicas”5. sua proposta de reforma “representa um
estado de equilíbrio entre tendências
O sentido social e político dessa univer- opostas [...] auscultadas todas as corren-
sidade pública, tanto quanto seu caráter tes e expressões de pensamento, desde
necessariamente plural, não foi deixado as mais radicais às mais conservadoras”9.
21 LUÍS CARLOS DE MENEZES
Equilíbrio, efetivamente, é o que nunca versidade quanto para a democracia, é que
houve. O que tem havido desde então é lhe tem custado seus mais duros golpes
uma periódica alternância de hegemonias. políticos.
Sempre que posições mais progressistas É claro que não se pode depositar na
prevalecem, durante algum período, em universidade a responsabilidade isolada na
defesa de interesses nacionais e democrá- defesa da democracia social e econômica,
ticos, elas têm promovido instituições uni- nem faz sentido colocá-la à parte da pro-
versitárias compatíveis com essas posi- blemática política, como se a academia
ções. Alternativamente, sob inspiração fosse uma ilha ou um mero posto de ob-
religiosa, “liberal” ou autoritária, essas ins- servação. Certamente, os fundadores da
tituições têm sido dissolvidas, combatidas universidade depositavam nela grandes
ou manietadas, quando o poder político esperanças, mesmo sabendo que ela car-
muda de mãos. regaria as contradições do meio em que se
O ataque conservador, capitaneado pela desenvolveria. Em recente entrevista, An-
Igreja, a Fernando Azevedo e a Anísio tonio Candido de Mello e Souza, um dos
Teixeira, que resultou entre outras coisas intelectuais íntegros e lúcidos de nossos
no sacrifício da Universidade do Distrito tempos, por um lado considera ilusória a
Federal criada por Anísio, foi só um pri- idéia da revolução pela educação:
meiro exemplo. A criação da Universida-
de de Brasília por Darcy Ribeiro em 1962, “Num país como o nosso, o entrosamento
e a intervenção nessa universidade pela indispensável entre projeto educacional,
ditadura militar, em 1964, é outro exemplo ação governamental e vontade coletiva
dessa alternância. Finalmente, a interven- só ocorrerá se houver transformação so-
ção na USP em 1968, com a cassação do cial profunda da sociedade, [...] ao con-
reitor Hélio Lourenço e de intelectuais trário do que pensavam os educadores
como o médico Alberto Carvalho da Silva, progressistas das décadas de 1920 e
o sociólogo Florestan Fernandes e o físico 1930, não é a instrução universal que
Mário Schenberg, ilustra o quanto a produz a mudança social num sentido de-
pluralidade e a autonomia de pensamento, mocrático; é a mudança social profunda
características da universidade, incomo- que permite chegar a uma verdadeira ins-
dam qualquer autoritarismo obscuro. A trução para todos”.
universidade, em seu “conceito moderno”
já preconizado no Manifesto, foi combati- Por outro lado, ele entende que só parte
da pelos conservadores de 1935 ou pelos do papel de sua geração na universidade
reacionários de 1964 e 1968 não por ser foi cumprido, “pois construímos uma cul-
“de esquerda” mas sim por sua vocação tura universitária, [...] fator decisivo de
de “criar e difundir ideais políticos, sociais, progresso cultural [...]” mas, prestando
morais e estéticos [...] sejam quais forem homenagem a seus mestres e contempo-
as divergências que possa estabelecer [...] râneos que mais batalharam por uma edu-
a diversidade de pontos de vista”10. A idéia cação básica pública de qualidade, como
vigorosa de que a nação se constrói pela Fernando de Azevedo, Florestan Fernan-
diversidade, que é tão fundante para a uni- des e Darcy Ribeiro, reconhece que essa
UNIVERSIDADE SITIADA 22
missão ainda não foi cumprida e respon-
sabiliza a elite, a quem competia “intervir
Pesquisa, pós-graduação
na sociedade, a fim de contribuir para a
sua melhoria ou a sua transformação no
e desprestígio
campo da instrução e da cultura”11.
Nesse momento, há novos desafios A universidade é uma instituição mile-
apresentados à luta social, um impasse e nar, mais velha mesmo que o Estado-na-
mesmo um retrocesso na questão da de- ção, mas a universidade moderna é sim-
mocracia social, por conta de um verda- plesmente centenária e um de seus mar-
deiro programa de exclusão cos conceituais foi a busca
associado à globalização do saber, apartada das vi-
econômica. A ameaça à de- cissitudes imediatas da
mocracia e à universidade, vida. O cardeal John Henry
contudo, não está vindo nem Newman, fundador da Uni-
de uma direita autoritária versidade de Dublin, que já
nem de uma esquerda sec- em meados do século XIX
tária, mas de um novo caracterizou os traços prin-
postulante a “pensamento único”, um cipais da universidade contemporânea,
pragmatismo ultraliberal, que pretende tentou definir essa universidade, na qual a
erigir as forças de mercado como critério busca da verdade fosse independente das
último de razão, para além dos direitos agruras humanas, de forma a abrigar e pro-
do indivíduo ou dos interesses da nação, mover “todo o conhecimento e ciência, de
que, aliás, pode vir a sucumbir junto com fato e de princípio, de investigação e des-
a universidade. Contudo, para ver como coberta, de experimento e especulação”12.
e por que a universidade poderá sucum- Essa definição, se, por um lado, constituiu
bir e tentar impedir que isso aconteça, é uma armadura protetora, relativamente às
preciso saber de que forma está ameaçado turbulências dos debates conjunturais, per-
hoje seu núcleo conceitual, que é a pes- mitindo a constituição de uma espécie de
quisa, como esse núcleo foi construído e sacrário do saber, por outro, deu margem
compreender como se deram os principais a uma visão da universidade como estru-
lances do desenvolvimento e da manuten- tura alienada dos dramas humanos, que se
ção da qualidade acadêmica, da capaci- expressa pejorativamente na expressão
dade de investigação e produção do sa- “torre de marfim”. Essa contradição ori-
ber, e, ao mesmo tempo, entender como ginal tem ecos até nossos dias, mas está
foi se alijando e se distanciando dos pro- longe da realidade de qualquer universi-
blemas nacionais, ainda que contradito- dade contemporânea, pois o século XX
riamente vivendo-os em seu próprio in- trouxe dois elementos novos que opera-
terior. ram no sentido exatamente oposto, de
envolvimento visceral da universidade
com a vida econômica e social.
O primeiro desses novos elementos foi
a exponencial emergência da ciência e do
23 LUÍS CARLOS DE MENEZES
conhecimento em geral como componen- “Oxford respirou fundo, tapou o nariz e,
te central da produção e dos serviços, no depois de muita dissimulação, decidiu
que hoje já se denomina terceira revolu- aceitar uma dotação financeira de um mi-
ção industrial; o segundo elemento foi a lionário saudita para estabelecer, por de-
emergência da democracia moderna, que manda deste, nada menos que uma esco-
trouxe consigo uma demanda crescente por la de administração de empresas.
educação, para a qual a universidade é Cambridge, sua rival, se encheu de or-
imediatamente convocada, quando não gulho quando Bill Gates a escolheu para
explicitamente concebida, como vimos na local do primeiro laboratório de ciência
seção anterior. Um levantamento amplo da computação que a Microsoft estabe-
sobre as universidades no mundo de hoje, leceu fora de seus domínios próprios”14.
assunto recente de uma das mais presti-
giosas revistas da atualidade, The É inútil tentarmos nos consolar, vendo
Economist, afirma que o brio inglês sucumbir à força do capital
internacional, pretendendo com isso nos
“essas duas forças – o triunfo da ciência convencer de que, já que é inevitável, é
e a demanda por educação superior de melhor relaxar... Interessa sim saber que
massa – respondem por muito do suces- não só no Brasil a universidade vive a tur-
so e da durabilidade da universidade no bulência da transição de paradigmas, mas
século XX. Ambas promoveram uma é preciso saber que o que se passa entre
vasta expansão no número de universi- nós é bem mais grave, pois não está em
dades, criaram centenas de milhares de cogitação o financiamento internacional de
empregos acadêmicos e atraíram grandes cursos profissionais em nossas universi-
somas de recursos públicos para os sis- dades públicas, muito menos se discutem
temas de educação superior”, propostas de grandes parcerias dessas uni-
versidades com grandes multinacionais
mas aponta com a mesma ênfase que, pre- para o desenvolvimento de tecnologia de
cisamente por atrair muitos recursos, tem ponta. O que está hoje em jogo é a
trazido maior supervisão e restringido a desmobilização gradual de nossos grupos
“autonomia intelectual, que alguns vêem de pesquisa, ou até a possibilidade de seu
como uma característica definidora da desmonte abrupto, a pretexto de serem
universidade”13. menos produtivos que os de outros países,
Ao lado dessas limitações à independên- ou porque sua utilidade estaria sendo vis-
cia acadêmica, o sentido prático do ensi- ta como cada vez mais discutível e, mais
no superior e da pesquisa científica e a do que todas as outras razões juntas, por-
“força do mercado” têm também condu- que seriam demasiadamente caros. De toda
zido a modificações profundas em alguns forma, qualquer que seja a razão ou o pre-
pressupostos básicos da universidade. O texto, se estará cancelando um esforço
referido artigo ilustra isso com exemplos nacional de mais de meio século.
marcantes de duas das mais tradicionais Nas origens da universidade brasileira e
universidades do mundo: de seus grupos de pesquisa, nos anos 30 e
40, foi essencial a participação de cientis-
UNIVERSIDADE SITIADA 24
tas europeus na formação de seus qua- poder nas duas décadas seguintes, até a
dros acadêmicos, sendo natural assim que revolta estudantil antiautoritária que eclodiu
ela se tenha desenvolvido de acordo com em todo o mundo ocidental e que, no Bra-
um padrão europeu, que se manteve até sil, polarizou o movimento contra a ditadu-
os anos 60. Nessa década, muitas trans- ra militar e influiu na própria reforma uni-
formações concomitantes, de diferentes versitária. Aprovada em versão muito dis-
naturezas, interferiram na evolução sub- tante do sonho libertário dos estudantes
seqüente. No âmbito da pesquisa e da es- sublevados, a reforma comprometeu mes-
pecialização dos docentes, houve a cria- mo certos aspectos da autonomia univer-
ção de duas agências federais de fomen- sitária, mas o fim das velhas cátedras e a
to, que sistematizaram o acesso ao finan- introdução dos ciclos básicos esboçava
ciamento da pesquisa e a bolsas de aper- uma estrutura algo mais articulada, para
feiçoamento. Uma delas, o CNPq, Con- uma universidade que fora criada como
selho Nacional de Pesquisas, hoje deno- colcha de retalhos das escolas profissio-
minado Conselho Nacional de Desenvol- nais anteriores, com as faculdades de filo-
vimento Científico e Tecnológico, e, a ou- sofia, ciências e letras que lhes foram agre-
tra, a CAPES, Coordenação de Aperfei- gadas. É difícil estabelecer claramente o
çoamento de Pessoal de Nível Superior. que mais contribuiu para frustrar definiti-
Nesse período e com a ajuda desses no- vamente a reforma universitária dos anos
vos instrumentos, o Brasil acompanha ten- 60, se os militares no poder ou se os acadê-
dência internacional, adotando um outro micos retrógrados que assumiram muitas
modelo de relação entre a pesquisa e o das universidades; o que é certo é que es-
aperfeiçoamento, com nova sistemática de ses dois grupos se articularam, permitindo
cursos de pós-graduação, de padrão mais submeter a maior parte de nossas universi-
norte-americano, que propiciou um cres- dades a direções submissas ou diretamente
cimento em escala do público que passou envolvidas com o governo autoritário, como
a atender a esse novo nível, assim como Gama e Silva na USP e outros intervento-
ampliou o intercâmbio internacional e nú- res de triste memória.
mero de bolsas para estada no exterior. O Bem ou mal, a configuração dada pela
sentido prático ou aplicado de parte signifi- reforma universitária pautou o período
cativa das pesquisas era indiscutível, com o mais importante para a consolidação da
apelo nuclear nas áreas físicas e com o apelo pós-graduação e da pesquisa no Brasil, dos
médico nas áreas biológicas. Essas áreas anos 60 aos 80, seja nas poucas universi-
científico-tecnológicas também contaram dades que já tinham tradição de trabalho
por décadas com uma terceira agência, a acadêmico, seja nas recém-criadas ou que
FINEP, Financiadora de Estudos e Proje- foram fundadas nesse mesmo período.
tos, que ainda existe mas com objetivos dis- Assim como, 30 anos antes, dezenas de
tintos dos que teve em passado recente. jovens vocacionados vieram de todo o país
Muito mais aconteceu na década de 1960, para compor as equipes de pesquisadores
que foi determinante para o desenvolvi- das primeiras universidades, no Rio de
mento subseqüente, desde o golpe de Es- Janeiro e em São Paulo, e alguns deles,
tado, que estabeleceu a centralização do como Cesar Lattes, foram ao exterior in-
25 LUÍS CARLOS DE MENEZES
tegrar equipes científicas de vanguarda, a Essa ameaça não vem só de fora da uni-
partir dos anos 60 já somam milhares os versidade, nem é coisa recente. Algumas
jovens acadêmicos que passam a freqüen- universidades, aliás, já surgiram macula-
tar pós-graduações nos grandes centros no das por seu próprio processo de criação,
Brasil e no exterior, obtendo seus mestra- em que chefes políticos da região promo-
dos e doutoramentos e passando a consti- veram sua fundação para ampliar seus pri-
tuir o corpo de pesquisadores que, ainda vilégios, combateram ostensivamente
hoje, conduz a investigação científica, a aqueles que pretendiam uma efetiva cons-
produção cultural e novos cursos de pós- trução acadêmica dessas instituições e ten-
graduação, em nossas universidades, mui- taram décadas a fio submeter o mérito ci-
tas desenvolvidas nesse mesmo período. entífico e os interesses educacionais ao
Isso foi, por assim dizer, o período “ro- fisiologismo político ou ao nepotismo puro
mântico” da construção universitária bra- e simples. Por ter aceito, com certa natu-
sileira. Os muitos milhares de doutores que, ralidade, como aponta Marilena Chaui, “a
como vimos, constituem um quarto dos forma com que elas foram criadas para
docentes da universidade pública foram servir aos interesses e ao prestígio de oli-
formados nesse período ou em imediata garquias locais, que as transformaram em
decorrência dele. Isso custou cerca de cabides de emprego para clientes e paren-
uma dezena de anos de trabalho de cada tes...”15, parte da própria comunidade aca-
um dos professores envolvidos, freqüen- dêmica acabou conivente com desvios éti-
temente deslocando com eles as suas fa- cos desse processo. A luta contra esses
mílias em seus estágios, e um enorme in- adversários internos, não de todo encerra-
vestimento de recursos públicos. A esse da, tem sido um dos principais obstáculos
custo é que muitas instituições públicas na construção acadêmica em certos esta-
brasileiras de pesquisa e de ensino supe- dos brasileiros. A importância dessa luta
rior atingiram a condição de se denomina- é maior do que parece. Nela, o meio aca-
rem universidade. Como é tão novo esse dêmico tem sido só um cenário de um
país, não há nele nenhum centro urbano embate mais geral, em defesa dos interes-
cuja história recente não esteja marcada se sociais, promovendo a autonomia ins-
por esse esforço de formação especializa- titucional relativamente à manipulação
da, não só por conta de suas universida- política espúria. Especialmente em centros
des, mas pela presença das lideranças in- urbanos econômica e culturalmente mais
telectuais que produziu, atuando na vida atrasados, esse tipo de embate se deu e está
política, em seus periódicos, em seus ser- se dando em todas as instituições, sejam
viços médicos, em seus tribunais, em sua de educação, de saúde ou de justiça. É pre-
vida cultural em geral. Isso tudo, no en- ciso ter isso em vista, pois muitas vezes a
tanto, está sendo ameaçado por uma con- defesa da privatização, de forma aparen-
tínua restrição do investimento e do cus- temente contraditória, expressa uma revol-
teio da pesquisa, já há cerca de 15 anos, e ta contra o desvio de objetivos de equipa-
com indicações recentes de que mudan- mentos públicos, a serviço de interesses
ças qualitativas podem vir a acelerar o privados. Por outro lado, a luta pela
desmonte. “desprivatização” das instituições públicas
UNIVERSIDADE SITIADA 26
produziu o que há de melhor entre as no- mento, mas é também inegável que ela o
vas lideranças políticas em muitas regiões realizou em detrimento do crescimento em
do Brasil. quantidade e qualidade dos cursos de gra-
O processo de desarticulação institucio- duação, assim como pelo virtual abandono
nal, que resulta na ameaça explícita atual, ou não-desenvolvimento, em quase toda
se iniciou nos anos 80, com uma inflexão aquela fase, das atividades de extensão
naquele sistema de financiamento criado universitária. Noutras palavras, a constru-
20 anos antes, acompanhado de uma re- ção de longo prazo foi feita a custo da perda
dução relativa nos percentuais de recur- de contato com a demanda social de mé-
sos destinados à educação pública em ge- dio e curto prazos, ou seja, falta de vagas
ral e à educação superior em especial. Esse para os jovens em cursos superiores e bai-
fato, para analistas como Jacques Velloso, xo engajamento da universidade em pro-
parece não ser independente da ação de blemas nacionais, como o do atendimento
agências internacionais, apontando os ru- básico de saúde e o da educação funda-
mos do mercado para nosso ensino supe- mental e média, que exigiam e continuam
rior, cujo “cerne das recomendações a exigir grande mobilização da parcela mais
gravita em torno da idéia de sujeitar o en- consciente da população. Se é indiscutível
sino aos ditames de um mercado suposta- que esse distanciamento foi promovido por
mente concorrencial, com o que se aumen- políticas explícitas das agências de fomen-
tariam a eficiência e a eqüidade no siste- to, é não menos verdade que a comunida-
ma educacional”16 , ou ainda resultar de de acadêmica se acomodou durante um
uma articulação ou convergência de visões longo intervalo. A universidade talvez te-
e de interesses de grupos nacionais com nha perdido, ou esteja perdendo, as mais
agências internacionais, que tratavam de preciosas oportunidades de exercer fun-
nos impor seu receituário de privatização. ções de diagnóstico social e de proposição
Veremos que muitas variáveis diferentes de políticas públicas, que talvez nenhuma
parecem ter contribuído para a grande outra instituição possa exercer em seu lu-
privatização do ensino superior, mas inte- gar, e que também por isso resgatasse pro-
ressa aqui já registrar que essa questão messas feitas já quando de sua fundação.
interferiu no financiamento da pesquisa e Agrava esse quadro de desprestígio o
da pós-graduação e, por essa via, numa fato de a mística da relação ciência &
interrupção do esforço de construção do tecnologia em cada nação estar sendo
corpo acadêmico de dezenas de universi- trocada pela idéia de produção e mercado
dades públicas. globais. Há hoje, em toda a parte, um com-
Do ponto de vista de sua imagem públi- preensível deslumbramento com a chama-
ca e de seu significado social mais geral, a da sociedade do conhecimento, que con-
universidade possivelmente até mesmo centra o valor no saber e na capacidade
perdeu prestígio precisamente nessa fase, de sua renovação, não nos materiais, e esse
que lhe foi tão importante, de investimento conhecimento parece brotar, sem ende-
em qualidade, de formação pós-graduada reço nem nacionalidade, de uma pervasiva
de seus docentes. É inegável que ela não teia, vivida individualmente através de
se forma de fato sem realizar esse investi- redes informáticas sem fronteiras, cuja
27 LUÍS CARLOS DE MENEZES
estrutura tentacular e a agilidade de con- cunstâncias. Uma das conclusões do le-
tato ponto a ponto constituem uma inédita vantamento mundial já mencionado é de
democracia de acesso a informações. Isso, que
de um lado, difunde uma idéia sedutora
de um saber disseminado, sem locus, que, “o advento do espaço cibernético tem
em princípio, dispensaria centros de pro- menos chances de destruir a universida-
dução e difusão como a academia; de ou- de do que de colocá-la ao alcance de mais
tro, leva a desprezar instituições de pes- estudantes a menor custo. E, ao invés de
quisa, exceto aquelas capazes de, conti- desmantelar a comunidade de estudiosos,
nuamente, gerar conhecimento prático, pode é lhe facilitar a vida, criando novas
assim como de “incubar” e lançar no mer- conexões entre acadêmicos que traba-
cado empresas de base tecnológica, glo- lhem em disciplinas adjacentes, mas em
balmente competitivas. locais distantes”18.
Essa configuração convence muita gen-
te de que nossos duramente conquistados Não se deve excluir a hipótese de que a
centros universitários de pesquisa só têm nossa universidade possa mesmo vir a se
como destinos possíveis um pátio de obso- beneficiar das novas disponibilidades
lescências ou um museu de reminiscênci- tecnológicas, ganhar uma nova e mais vi-
as. Quem pensa ter aprendido essa nova gorosa configuração e ver seus estudos e
“revelação”, vê como mera relíquia a de- serviços novamente prezados e mesmo
fesa de um desenvolvimento científico na- reconhecidos como essenciais. No entan-
cional, como a que fazem a bioquímica to, dificilmente alguma solução surgirá
Glaci Zancan e os físicos José Leite Lopes espontaneamente para o problema que está
e Roberto Salmeron em recentes manifes- vivendo, até porque não se trata de
tações17. Mesmo que percebamos que o impasses conjunturais. Tão importante
conhecimento e a capacidade de sua re- quanto pesquisa científico-tecnológica, e
novação, mais do que endereço tenham pelo menos como condição para conduzir
preço, pago à vista na compra do remédio uma formação profissional de alto nível,
de última geração, do computador de últi- seria essencial reconquistar o sentido ori-
ma geração ou da última geração de seu ginal da universidade como espaço de in-
software, da semente transgênica de últi- vestigação cultural, de criação, de inven-
ma geração, da injeção eletrônica de com- ção e de proposição, de debate das gran-
bustível automotivo de última geração, res- des questões sociais, como educação e
taria uma espécie de consolo de que, se as saúde públicas ou como a exclusão eco-
transnacionais que dominam esse conhe- nômica, mas também questões de alcance
cimento são mais fortes que nações ou que filosófico, de interesse mais estritamente
as tradições de Oxford e Cambridge, afi- cultural, cosmologia evolutiva, ou de re-
nal de que nos serviria tentar produzir sa- percussão em questões práticas, como li-
ber para competir globalmente com elas? mites éticos da bioengenharia. Sem a prá-
A esperança, de uma perspectiva global, tica da pesquisa, por outro lado, dificilmen-
da sobrevivência da academia se basearia te a condução desses debates seria signi-
na hipótese de sua adaptação às novas cir- ficativa, se de todo possível.
UNIVERSIDADE SITIADA 28
Reconquistar o espaço do debate inte- que atinge quase todas as instituições pú-
lectual de interesse social não será fácil, blicas ou de interesse público, que é a su-
pois, de todas as fases por que passou, a jeição ao mercado de seus serviços e de
universidade brasileira nunca viveu um suas potencialidades, ao lado da busca no
isolamento político tão acentuado quanto mercado do suprimento de suas necessi-
o atual em que, por questões ideológicas dades, como forma de racionalização de
de fundo ou por conflitos entre diferentes suas práticas. Isso não acontece por de-
grupos de interesse, está em xeque ao creto ou, pelo menos, não só por decreto,
mesmo tempo seu núcleo conceitual, que mas também e sobretudo por uma postura
é a pesquisa19 e a produção cultural, e sua que vai sendo introjetada pelos próprios in-
razão de ser política, que é a capacidade tegrantes da universidade, diante da difi-
de atender às demandas de diferentes se- culdade de equacionar suas questões e
tores sociais por conhecimento, informa- realizar seu trabalho dentro dos velhos
ção, formação e cultura. Para diferentes marcos institucionais, buscando as saídas
agentes sociais, nossa universidade esta- possíveis, e as saídas possíveis têm sido
ria antiquada e atrasada, mas isso pode sig- as de mercado.
nificar julgamentos muito diversos: pode Talvez nem pudesse ser muito diferente,
simplesmente expressar uma avaliação em nossos dias, pois são tantas as institui-
de que ela é cara e, portanto, careça de ções responsáveis por serviços públicos
mais eficiência, no sentido da relação que têm sido literalmente substituídas por
entre seu custo e o serviço que presta, serviços oferecidos pelo mercado, no pro-
mas pode também significar uma avalia- cesso usualmente denominado terceiriza-
ção de que o que ela produz ção, que a universidade talvez
é impróprio ou desnecessá- devesse se dar por satisfeita
rio e, portanto, ou se muda o em só ter parcialmente sido
que faz, ou simplesmente dei- alcançada por esse processo
xa de existir, pelo menos e ainda ter de certa forma so-
como instituição autônoma, brevivido. Talvez, em última
que tem a prerrogativa de análise, o mercado seja mo-
escolher suas tarefas. dernizador de muitos serviços,
pelo menos na medida em que
o usuário possa escolher o que
Modernização e melhor lhe sirva. Talvez o li-
UNIVERSIDADE SITIADA 34
cacia. Quando essa diferença houver de- Nacional de Educação, sua pressão direta
saparecido, já terá sido absorvido o Esta- exercida sobre o executivo eleito, ou o
do e leiloada a nação, definitivamente su- apoio à eleição de forças políticas que adi-
cumbidos ao apetite ultraliberal, capaz de ram a seus objetivos. Pode-se discutir se
reduzir a mercadoria qualquer necessida- esse cerco territorial realmente ameaçaria
de humana, individual ou coletiva e pron- a universidade pública ou se, dirão alguns,
to a terceirizar qualquer instituição, públi- a protegeria da pressão numérica, que po-
ca ou não, sagrada ou profana. Em segun- deria vir a consumir muito de sua capaci-
do lugar, cumpre esclarecer que, ao come- dade de trabalho em só uma de suas fun-
çarmos esse livro mencionando grandes ções, a de formação superior, particular-
universidades americanas como Berkeley, mente na formação profissional, desvian-
Columbia ou Harvard, como instituições do seu esforço de qualidade, concentrado
em que, além de educação superior, se pro- durante décadas na implantação, no aper-
duz cultura, se faz ciência e se desenvolve feiçoamento e na ampliação da pesquisa e
tecnologia, explicamos que são mantidas da pós-graduação. Pode-se também discu-
com recursos públicos e fundacionais pri- tir se o atendimento público ao crescimen-
vados; não se excluindo a hipótese de que to da demanda por ensino superior não
os aportes de recursos privados nessas fun- poderia ser absorvido pelo crescimento do
dações mantenedoras sejam, de um lado, número de vagas no ensino superior pú-
uma forma de imposto indireto, de outro, blico não-universitário, que minimizaria
até mesmo elemento de prestígio institu- aquele desvio de capacidade. Esses e ou-
cional de corporações, mas por certo não tros pontos podem, por certo, ser discuti-
são espaços de acumulação direta de lu- dos. O que é indiscutível é o significado
cros. Esclarecida essa questão conceitual, financeiramente estratégico do mercado.
voltemos a discutir o mercado para o en- O significado desse mercado é fácil de
sino superior. quantificar; há dois milhões de estudantes
A idéia de que, nesse sentido, haja de em cursos de graduação, dos quais bem
fato um cerco consciente, intencional, não mais de um milhão estão em estabeleci-
é fantasiosa, pois quanto mais efetivo esse mentos privados. Isso já significa um
cerco, ou seja, quanto menos crescer o faturamento anual de alguns bilhões de
atendimento da demanda do ensino supe- dólares. O crescimento inercial já obser-
rior público, tanto mais poderá crescer o vado do ensino superior no Brasil, acres-
mercado atendido pelo setor privado. cido da pressão devida à ampliação do
Pode-se discutir se não seria legítimo esse ensino médio, que dobrou em dez anos, já
cerco, pois é da natureza do capital a bus- sinaliza a possibilidade de o tamanho do
ca do domínio estratégico de seu merca- mercado do ensino superior também do-
do. Pode-se discutir quais instrumentos brar em pouco mais de uma década, agre-
seriam aceitáveis ou não para esse cerco, gando outros tantos bilhões de dólares
como os representantes no parlamento dos àquele faturamento anual. Seria tolice,
segmentos de capital atuando em educa- portanto, subestimar o interesse do capi-
ção superior, seus representantes na Câ- tal em restringir o atendimento público à
mara de Ensino Superior do Conselho demanda crescente ou ignorar sua deter-
35 LUÍS CARLOS DE MENEZES
minação em disputar a curto e médio pra- ção das universidades públicas, que incor-
zos o novo milhão de alunos e, a longo pra- poraram boa parte das escolas profissio-
zo, os muitos milhões de novos alunos e os nais superiores. Ainda hoje é tratada, em
muitos bilhões de dólares. Seria ingenui- boa medida, como uma questão de Esta-
dade imaginar que esses mercados, o efe- do, uma vez que em estabelecimentos pú-
tivo e o potencial, atraiam menos interes- blicos de ensino superior há cerca de 800
se que siderurgia, energia, medicamentos mil alunos em cursos de graduação, cerca
ou telefonia. de 80 mil alunos fazendo mestrado ou dou-
Antes que se torne cansativa a explici- torado, cerca de 250 mil em cursos de es-
tação desse mercado e de seus protagonis- pecialização, de extensão ou seqüenciais.
tas, discutamos os aspectos centrais que Acrescentem-se a isso todos os progra-
interessam ao cerco territorial vivido pela mas de bolsas de estudo para pós-
universidade pública e aos eventuais pa- graduandos e graduandos e já não poderia
péis que ela pode ou deve desempenhar haver dúvida de que o ensino superior ain-
relativamente ao ensino superior. É preci- da é considerado uma questão de Estado.
so estabelecer claramente se a demanda Em contrapartida, o crescimento do en-
social por ensino superior é algo que pos- sino superior privado e, especialmente, o
sa ser simples objeto de mercado ou se é grande crescimento do número de institui-
também algo que se deva considerar uma ções privadas credenciadas como univer-
necessidade nacional, merecedora de uma sidades, que já vai ultrapassando o núme-
estratégia de Estado, de um programa de ro de universidades públicas, pode ser in-
metas específico ou de uma supervisão de terpretado como uma política ostensiva de
ações, ou se, pelo contrário, como a fast- privatização do ensino superior e univer-
food, trata-se de uma opção individual que sitário ou como um simples reconhecimen-
resulta numa demanda coletiva, cuja to do empobrecimento relativo do Estado.
contrapartida é uma oferta competitiva, Deixa-se à iniciativa privada o investimen-
regida pelas leis de mercado e por órgãos to que já não consegue fazer ou, pelo con-
de defesa do consumidor. Se ficarmos com trário, como uma efetiva entrega ao mer-
a primeira hipótese, é preciso tentar de- cado da demanda por educação superior,
terminar se o ensino superior precisa da estando o Estado complementarmente ga-
universidade pública e para quê, se a uni- rantindo a parcela que a iniciativa privada
versidade pública precisa do ensino supe- ainda não conseguiu abarcar? Seria con-
rior e para quê, e em que medida uma iden- cebível acreditar que se esteja encami-
tificação entre ensino superior lato sensu nhando uma proposta híbrida, em que a
e universidade stricto sensu é desejável, complementaridade entre ensino superior
defensável ou praticável. Em suma, deve- público e privado fosse buscada como um
se decidir se deve o Estado cuidar disso. equilíbrio desejável, que não deveria ser
Certamente ensino superior era uma descompensado nem em favor do público
questão de Estado no século XIX, quando nem em favor do privado? Como se posi-
da criação das escolas profissionais supe- cionaria a universidade pública diante des-
riores públicas, e certamente continuava a sas várias possibilidades, ou ainda, que
ser no início do século XX, quando da cria- papéis estaria disposta ou preparada para
UNIVERSIDADE SITIADA 36
assumir, se preservasse sua autonomia, ou ção brasileira – e se esboçam os contor-
seja, se lhe fosse dada escolha? Das res- nos de um sistema educacional que inclu-
postas a perguntas como estas pode depen- ísse a universidade”. Por um lado, ele elo-
der o destino da universidade. gia a Medicina, que “introduz na cultura
brasileira o espírito científico moderno,
200
No. APROXIMADO DE
150
INSTITUIÇÕES
PRIVADAS
100 PÚBLICAS
50
0
até 1 930 30-35 35-40 40-45 45-50 50-55 55-60 60-65 65-70 70-75 75-80 80-85 85-90 90-95 95-00
PERÍODO
UNIVERSIDADE SITIADA 38
Como sabemos hoje, a nova reforma funções, no crescimento dos grupos de
desmembrou aquelas faculdades em uni- pesquisa e dos projetos de extensão uni-
dades menores, possivelmente não me- versitária. Isso talvez tenha também con-
nos isoladas entre si do que o isolamento tribuído para recompor em parte a imagem
antes reinante entre as FFCLs e as esco- externa da universidade, pois esses proje-
las profissionais. tos se desenvolveram lado a lado com um
A alternativa adotada pela e para a uni- novo entrelaçamento ou enraizamento, ain-
versidade, a partir desse período e até re- da que incipiente, das temáticas universitá-
centemente, acabou sendo, em última aná- rias de investigação com as problemáticas
lise e uma outra vez, a promoção da quali- sociais, culturais e produtivas locais. Foi um
dade em detrimento da quantidade. O de- ensaio significativo de romper o cerco
senvolvimento da pós-graduação e a im- territorial e político mas, curiosamente, ten-
plantação dos grupos de pesquisa foi o que tando romper na lateral, pelos flancos, a
efetivamente deu consistência acadêmica partir da qualidade do conhecimento e das
à universidade pública, não obstante a per- especialidades, o que aliás é pertinente à
sistência de seu fracionamento interno. natureza da universidade.
Essa política geral, a partir das agências O cerco numérico mais importante foi o
centrais de fomento, baseada nos ministé- do ensino de graduação; não só foi literal-
rios, talvez tenha se “apoiado” inicialmen- mente negligenciado, do ponto de vista
te no centralismo próprio do regime mili- quantitativo, não tendo havido um movi-
tar. Em cada universidade, a procura de mento das instituições públicas no senti-
uma articulação mais orgânica ao seu do da ampliação de suas vagas, como tam-
loteamento de unidades tomou a forma de bém não houve significativa moderniza-
pró-reitorias, no sentido de se estabelecer ção didática ou outras mudanças qualita-
ou pelo menos se esboçar uma política tivas. A maior parte dos cursos continuou
central para a pesquisa, uma para a pós- engessada em sua natureza e na designa-
graduação, uma para a extensão e, é claro, ção de suas disciplinas, não obstante mo-
também uma para o ensino de graduação, dificações perceptíveis na demanda, que
enquanto os ciclos básicos e, dependendo levaram a se superlotarem muitos cursos
da instituição, os “Centros”, de ciências e se esvaziarem tantos outros. Não
exatas, de ciências humanas etc., foram obstante as teorias educacionais tenham
pré-nucleações da desejada organicidade, trazido nova compreensão dos processos
mas nada disso resultou num ensino de de aprendizado, mantiveram-se as disci-
graduação efetivamente mais ágil ou mais plinas confinadas às velhas metodologias
atento às demandas sociais. de trabalho, às exposições tradicionais e
O crescimento interno das universida- aos laboratórios convencionais. Não
des que de fato ocorreu, não só mas espe- obstante a evolução das próprias ciências
cialmente em um bom número de novas e da realidade tratada no curso como um
universidades que foram desenvolvidas todo, em muitos cursos, os mesmos currí-
entre os anos 60 e os anos 80, deu-se so- culos, seqüências e textos foram mantidos
bretudo na ampliação do número de do- por inércia décadas seguidas, por gerações
centes efetivamente qualificados para suas de professores. Já há algumas poucas boas
39 LUÍS CARLOS DE MENEZES
exceções, mas será preciso segui-las e ge- formação e comunicação. No entanto, já
neralizá-las. se entrou nos anos 90 em clima de desmo-
Em todo esse período, contribuiu para o bilização e, se hoje cresce a consciência
autoconfinamento numérico e o descaso do problema, é tímida sua retomada pela
pela graduação o fato de as avaliações universidade, que ainda não reuniu ener-
docentes e seus planos de carreira e crité- gia e clareza suficientes para empreender
rios de promoção somente considerarem novas e vigorosas iniciativas.
as atividades de pesquisa e pós-gradua- Antiga e séria que possa ser essa difi-
ção, nunca a atividade didática de gradua- culdade de lidar com a demanda social por
ção ou extensão. A desvalorização do en- ensino superior, o cerco territorial tem con-
sino de graduação foi reforçada por vári- seguido efetivamente sitiar a universidade
os instrumentos, como a concessão, por pública não só por esses seus problemas
agências como o CNPq, de “bolsas de internos, mas por ações externas consci-
pesquisa” em longos períodos de depreci- entes e articuladas do setor privado, para
ação dos salários, tendo por único critério o qual a graduação é precisamente a fatia
as publicações científicas dos docentes. de mercado mais importante, além de ser
Essa sinalização convenceu a maior parte a única em que tem conseguido ser relati-
dos docentes de que uma dedicação mai- vamente competitivo, não em qualidade
or ao ensino era institucionalmente toma- mas, pelo menos, em oferta de variedade
da como uma espécie de “desvio de fun- e de quantidade. As iniciativas desse se-
ção”. Parte das lideranças universitárias tor em busca do controle estratégico da
tem consciência desse cerco territorial, ao demanda de educação superior incluem a
perceber a parálise conceitual do ensino promoção e a consolidação institucional,
de graduação no setor público e ao ver por meio da reunião de faculdades isola-
crescer em número o setor privado do en- das em federações e, em seguida, pelo
sino superior, isso em uma época de pro- credenciamento universitário dessas fede-
fundas modificações em todos os setores rações. Por essa via, o número de univer-
da vida humana, no plano político e econô- sidades privadas cresceu de 20 para 80,
mico internacional, nas tecnologias de in- em duas décadas, enquanto o número de
UNIVERSIDADE SITIADA 40
públicas cresceu de 45 para 80, e ainda sos que tiveram as três melhores coloca-
assim sobretudo pelo crescimento signifi- ções24. Outro resultado bastante significa-
cativo de universidades estaduais. Essa tivo apresentado pelo INEP mostra que,
evolução comparativa pode ser acompanha- de 16 cursos que obtiveram a nota máxi-
da numa tabela simples dos números arre- ma em três anos consecutivos, 15 são ofe-
dondados de instituições de cada natureza, recidos por instituições públicas e um por
existentes há 20 anos e atualmente. instituição particular25. Se, mesmo não
Os números do quadro falam por si mes- valorizando a graduação, o ensino supe-
mos, sendo ostensiva a migração das ins- rior público consegue lhe imprimir quali-
tituições privadas da condição de isoladas dade razoável, melhor em todas as espe-
para a condição de “federação”, usualmen- cialidades do que as empresas que cobram
te designada como “faculdades integra- de seus usuários por esse serviço, que se
das”, que vão pleitear seu credenciamen- poderia esperar, em qualidade e quantida-
to e completar sua migração para a condi- de, se fosse dada prioridade a essa tare-
ção de “universidade”. Mantida a tendên- fa? Principalmente se a universidade fizer
cia, as universidades públicas se tornarão uso de sua autonomia didático-pedagógi-
rapidamente minoritárias. Quanto ao nú- ca para realmente inovar seus cursos, em
mero de alunos em cada instituição, o cres- forma e conteúdo, articulando de fato ele-
cimento relativo das universidades priva- mentos educacionais inovadores, visão de
das é ainda mais significativo. Há duas mundo, valores humanos e excelência téc-
décadas, as dez maiores universidades nico-científica, poderá estar iniciando uma
eram todas públicas. Hoje, seis das dez revolução educacional que, na realidade,
maiores universidades brasileiras são pri- está sendo há muito esperada.
vadas e a maior delas tem dez mil alunos Trataremos disso nas conclusões desse
de graduação a mais do que a maior uni- texto, pois agora vale a pena aproveitar a
versidade pública! oportunidade para discutir dois temas, le-
A comparação em que a universidade vantados nos últimos parágrafos, cuja dis-
privada continua indiscutivelmente pior é cussão tem conseguido sensibilizar, nem
ainda a da qualidade na formação, mesmo sempre da melhor maneira, vários setores
nos cursos de graduação, em que tem con- acadêmicos: avaliação e autonomia. A
centrado seu esforço numérico, sobretudo idéia de universidade é inseparável da de
pela importância desse segmento, como autonomia, no sentido de poder, autonoma-
mercado. A despeito da baixa prioridade mente, escolher os objetos de estudo e as
que a graduação tem recebido nas univer- formas de estudá-lo, estabelecer os mo-
sidades públicas, seus cursos têm mantido dos de convívio e de debate intelectual, de
níveis não alcançados pelos congêneres promover e de credenciar o aprendizado
privados. O último Exame Nacional de básico ou especializado, de orientar e ava-
Cursos ou “provão”, como foi apelidado, liar trabalhos de pesquisa e atribuir títulos
foi aplicado pelo MEC a cursos de 13 di- acadêmicos que, por sua vez, credenciam
ferentes carreiras. Em 12 delas, os cursos para o trabalho acadêmico; e isso é uma
que tiveram a melhor colocação são públi- compreensão quase unânime. Há, no en-
cos e, em dez, são públicos todos os cur- tanto, perguntas que têm sido reiteradas,
41 LUÍS CARLOS DE MENEZES
relativamente à autonomia universitária, e do governo – do Ministério da Educação,
que estão longe de ter encontrado respos- no caso das federais, ou dos governado-
ta consensual. res, no caso das estaduais – na escolha
Uma delas é quanto a poder a universi- dos reitores. Todas essas questões, em
dade estabelecer de quanto necessita, ou princípio, poderiam vir a ser retomadas,
seja, qual deve ser sua margem de autono- mas grande parte delas se diluiu, a ponto
mia financeira. A outra questão, que não de algumas delas terem perdido sentido.
é independente da primeira, é sobre quem Ao longo da última década, novas ques-
poderia dizer se, ou em que medida, a uni- tões foram trazidas com a entrada em cena
versidade está de fato cumprindo seus ob- de um grande número de universidades
jetivos, ou seja, quem poderia avaliá-la: privadas, cujas pretensões de autonomia
ela mesma, os beneficiários de sua produ- tem um sentido incomensurável com o sen-
ção educacional, científica, cultural ou tido do que tem sido pleiteado pelas uni-
tecnológica, ou o Estado. É preciso dis- versidades públicas.
tinguir as muitas autonomias, didático- A Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
pedagógica, política, administrativa e fi- ção Nacional (Lei 9.394, de 20/12/96)
nanceira, para compô-las em uma propos- credencia instituições de ensino superior,
ta que mostre por que o interesse público em geral, e autoriza seus cursos, por pra-
seria prejudicado por certas restrições à zo limitado, dependendo de periódicas
autonomia universitária e protegido por avaliações, mas reserva às universidades
outras, explicitando processos de avalia- ampla autonomia para a condução de suas
ção externa e interna que podem ser utili- atividades, tanto no plano didático-peda-
zados para legitimar a autonomia, não para gógico, ao criar ou extinguir cursos e de-
cancelá-la. finir seus currículos, como no plano cien-
É discutível a universalidade desse tema, tífico e cultural, ao definir planos de tra-
como se pode exemplificar com a varie- balho e projetos ou ao conferir títulos, e
dade de óticas sob as quais ele foi debati- mesmo no plano político e administrati-
do, em sua dimensão política e administra- vo, na elaboração de estatutos, na contra-
tiva, em diferentes períodos. Nos anos 60, tação e dispensa de professores ou na de-
essa dimensão era expressa pela defesa finição de planos de carreira, cargos e sa-
de uma maior representação dos estudan- lários, no estabelecimento de contratos e
tes e até dos funcionários nos colegiados de convênios, na elaboração de orçamen-
centrais e nos das unidades; nos anos 70, tos. A atribuição de autonomia universi-
o divisor de águas era a representação tária depende de avaliação, realizada pelo
docente nesses colegiados, especialmente poder público, e é óbvio o interesse das
a proporção das outras categorias funcio- empresas dedicadas ao ensino superior em
nais relativamente à dos professores titu- poderem contar com a ampla autonomia
lares; nos anos 80, a ênfase maior foi pos- de gestão oferecida pela lei às universida-
ta nas eleições diretas para os cargos exe- des, razão pela qual se empenham em de-
cutivos acadêmicos, ou seja, a interveniên- ter poder político nas instâncias decisórias,
cia dos reitores na escolha de diretores de como no antigo Conselho Federal de Edu-
unidade e, especialmente, a interveniência cação e na Câmara de Ensino Superior do
UNIVERSIDADE SITIADA 42
atual Conselho Nacional de Educação. “provão”, que avaliou precisamente o que
Trata-se de questão de estratégia empre- as diferentes universidades em princípio
sarial, procurando a liberdade de oferecer fazem de mais semelhante, os cursos de
ao mercado uma linha diversificada de graduação, parecem corroborar sua idéia.
produtos, de poder alterar tais produtos de Que se diria de uma avaliação mais
acordo com a demanda, de deixar de ofe- abrangente? Claro que será preciso cuida-
recer produtos ou serviços se a relação do ao se aplicar critérios comuns a coisas
lucro/investimento não for compensadora, diferentes mas, antes de se mostrar teme-
elaborar programações de médio prazo, rosa de qualquer verificação externa, a
sem a interveniência de permanente audi- universidade pública deveria se adiantar,
toria externa. promovendo permanente e rigorosa auto-
Compreensível que seja, isso é comple- avaliação, revelando o que faz bem e o que
tamente diferente da autonomia desejada faz mal, os custos reais de tudo quanto faz,
pela universidade pública. Na realidade, é o que ela tem, o que lhe sobra e o que lhe
só mais um exemplo de como a designa- falta...
ção universidade, atribuída a instituições
tão distintas, acaba por promover uma con-
fusão conceitual e por dificultar a defesa Perdas e danos:
da instituição pública. Luiz Antônio Cunha,
que classifica as universidades em efetivas, o cerco econômico
potenciais e nominais, acredita que a uni-
versidade pública, ao invés de resistir à ava- Se o cerco territorial é uma alegoria, o
liação externa, na realidade deveria propô- cerco econômico é uma realidade palpá-
la, até como mecanismo de autodefesa: vel. Em parte, o cerco
econômico está associ-
“a avaliação externa [...] propiciará ado ao cerco territorial
o descredenciamento das uni- exercido pelo ensino su-
versidades nominais e a perior privado, mas so-
identificação dos se- bretudo resulta de mu-
tores dinâmicos das danças no regime previ-
universidades po- denciário dos servidores
tenciais, em es- públicos, assim como da
pecial os que de- adoção de políticas de
senvolvem pós-graduação e pesquisa, os contingenciamento financeiro, que signi-
que são suporte da nova identidade, hoje ficam cortes no número de bolsas de pós-
ameaçada [...] A universidade pode não graduação, redução no apoio à pesquisa e
ficar de imediato mais forte com a avali- no custeio das universidades públicas.
ação, mas, com certeza, sairá dela me- Cada um desses fatores já seria, isolada-
nos fraca”26. mente, razão de preocupação; combinados,
têm efeito devastador. Algumas perdas po-
Ele escreveu isso há alguns anos, e os derão, talvez, ser recuperadas em caso de
mencionados resultados do recente rápida reversão da política de cortes. Há
43 LUÍS CARLOS DE MENEZES
danos, contudo, que são irreversíveis; como sintetizou as duas principais razões do cerco
um desastre que acontece em um breve a esses centros; a razão política:
instante mas deixa seqüelas definitivas.
Contudo, diferentemente de um desastre, “uma universidade voltada para a cria-
não se trata de incidente isolado ou de cri- ção científica e cultural deve necessaria-
se conjuntural. mente propiciar uma visão crítica da so-
Não há qualquer exagero em afirmar que ciedade e das políticas oficiais, o que em
o cerco econômico já dura duas décadas; si é valioso e deveria ser bem recebido
toda uma geração de pesquisadores tendo pelas autoridades governamentais”;
convivido com seu torniquete e, em parte,
sobrevivido a ele. O que tem permitido e a razão econômica:
essa sobrevivência é o fato de a academia
ter constituído, nacionalmente, como que “Essa universidade que temos e quere-
um sistema de “vasos comunicantes”, em mos aperfeiçoar tem custos mais eleva-
torno de alguns pólos. Um desses pólos, dos do que sua alternativa que procura
especialmente até os anos 80, foi a Socie- apenas transmitir ‘pacotes’ de ciência
dade Brasileira para o Progresso da Ciên- importada. A relação professor-aluno
cia, SBPC, que atuou como um importan- deve ser necessariamente mais alta e as
te núcleo político, de denúncia do cerco e pesquisas em geral são mais ‘caras’ por-
de apoio recíproco. As demais sociedades que enfrentam problemas para os quais
científicas, associações de educadores, de não há paradigmas disponíveis. Diante
profissionais e de especialistas das muitas desses dois ‘tipos’ de universidade de-
áreas até hoje constituem pólos importan- vemos optar”27.
tes, por meio dos quais se tem conseguido
exercer pressão política, obtendo recursos Vinte anos depois, o docente que denun-
para encontros nacionais de pesquisado- ciava se fez ministro, mas esse cerco está
res e de pós-graduandos, por onde fluem se fechando sobre uma universidade que
as relações de cooperação científica e se continua justificando seus custos, que não
articulam as propostas de trabalho mais ge- está mais conseguindo preservar-se e, can-
rais. sada de batalha, ainda manifesta sua “vi-
A resistência da universidade foi tam- são crítica da sociedade e das políticas
bém beneficiada pelo fato de os principais oficiais”.
centros de formação pós-graduada, sobre- Como se trata de uma situação e de um
tudo nas grandes universidades, até recen- processo que se arrastam há décadas, é
temente, terem conseguido administrar preciso mostrar o que está acontecendo
suas perdas, de forma a preservar “massa hoje, por uma correlação entre efeitos que
crítica” acadêmica, ou seja, terem evitado se acumularam e outros devidos a uma
o desmonte de seus grupos de pesquisa, o nova configuração, o que pode vir a des-
que, para a pesquisa brasileira, equivaleria fechar um golpe de misericórdia na resis-
a sacrificar a semente. No tempo em que tência da universidade pública. Entre os
atuava no movimento docente, o atual mi- efeitos cumulativos, o mais grave é o pro-
nistro da Educação, Paulo Renato Souza, blema previdenciário. Como o Estado nun-
UNIVERSIDADE SITIADA 44
ca constituiu um fundo de pensão, no qual docentes relativamente jovens, com pou-
recolhesse as contribuições previdenciá- co mais de 50 anos, no ponto mais alto e
rias das universidades públicas, o custo produtivo de suas carreiras. Esse é um des-
crescente da folha dos aposentados das fecho trágico de um processo cumulativo,
universidades não fica por conta da previ- agravado por uma reforma conduzida de
dência social, que também não viu a cor maneira infeliz e açodada por declarações
da contribuição recolhida, mas passa a irresponsáveis. Mas é importante ver como
onerar o orçamento universitário, dividin- esse desfecho do cerco econômico é com-
do os mesmos recursos para o pagamento binado com o cerco territorial: as institui-
do pessoal em serviço, para custeio ou para ções de ensino superior privado, interes-
investimento. Como diferentes universida- sadas entre outras coisas em garantir o
des cresceram particularmente num perí- mínimo de 30% de docentes titulados, exi-
odo entre 40 e 20 anos atrás, o momento gido por lei para conseguir ou manter seu
atual é tal que muitas aposentadorias têm status universitário, está tratando de atra-
condições legais para acontecer, ainda que ir para seus quadros precisamente estes do-
a tradição universitária sempre tenha sido centes altamente qualificados, sub-remu-
de os docentes só se aposentarem mui- nerados, estimulando-os a deixar a univer-
tos anos mais tarde, 20 ou mais às vezes, sidade pública.
do que a lei permite. Essa tradição tem Atualmente, um docente com doutorado
sido fundamental para a vida universitá- tem salário básico em torno 1.500 dólares,
ria, pois são os anos mais preciosos, em numa universidade pública, e não conse-
termos de experiência, maturidade inte- gue dobrar seus ganhos em 30 anos de
lectual, capacidade de liderança. A insti- serviço. Não é de estranhar, portanto, que
tuição da aposentadoria compulsória, aos milhares de docentes universitários de São
70 anos de idade, é a prova mais cabal Paulo, alguns deles no topo de suas car-
dessa tradição. reiras, tenham participado recentemente
Pois bem, esse é o cenário geral em que de um concurso de seleção, aberto por
um processo particular está acontecendo, uma universidade privada, que oferece
atingindo mais diretamente muitas insti- para doutores salários iniciais da ordem de
tuições, entre as quais as universidades 3 mil dólares, o dobro do que se pagaria
mais maduras, que têm atuado como for- como salário inicial a essa categoria numa
madoras dos docentes de muitas outras. As universidade pública. Calculemos o prejuí-
recentes mudanças previdenciárias que zo produzido na universidade pública, com
atingiram os servidores públicos têm sido a saída de um professor, que decida se
promovidas e alardeadas, com um certo aposentar aos 55 anos, com salário final
terrorismo moral, ameaçando não só ex- da ordem de 2.500 dólares, para acrescen-
pectativas pessoais mas também direitos tar a seus ganhos o novo salário oferecido
adquiridos até há pouco considerados pela instituição privada. O custo mínimo de
intocáveis. Isso, somado aos salários aca- formação, que já avaliamos anteriormente
dêmicos congelados há vários anos, tem nesse mesmo texto, não é inferior a 100
promovido a quebra naquela tradição, le- mil dólares. O mínimo dispêndio em salári-
vando a incontáveis aposentadorias de os para substituí-lo, supondo que, noutras
45 LUÍS CARLOS DE MENEZES
circunstâncias, ficasse mais 15 anos no Trata-se realmente de uma perda, não
serviço público, somaria 450 mil dólares. de uma transferência, pois as condições
Assim, só o custo financeiro, que certa- de trabalho de pesquisa, hoje disponíveis
mente é o menor dos custos com a perda na universidade, não serão encontradas em
de um só desses docentes, seria bem maior seu novo emprego, onde as prioridades são
do que meio milhão de dólares! outras. Não importa o ângulo sob o qual
Se voltarmos a observar o quadro geral se observe o processo a que está sendo
apresentado, de números aproximados do submetida nossa universidade, se esse cer-
ensino superior do Brasil, veremos que se co econômico continuar, imporá danos
o atual processo, de asfixia financeira com- crescentes e de tal forma irreversíveis que,
binada com sangria de competências, le- possivelmente, nada mais poderá ser feito
var o ensino superior público a perder, em para salvar a universidade. Reverter a atual
função desse tipo de migração, 5% de seus situação de cerco econômico não é algo
docentes, precisamente entre os mais qua- que possa ser equacionado só no plano eco-
lificados, só a perda financeira de curto nômico, pois sem se enfrentar e superar o
prazo seria de cerca de 5 bilhões de dóla- cerco político e o cerco territorial não ha-
res. Mesmo que a questão fosse “só” o veria como afastar o cerco econômico. É
dinheiro, seria algo muito difícil de se con- preciso portanto agir agora, nesses vári-
seguir em curto prazo, pois quantias dessa os planos, para romper o múltiplo cerco,
ordem só têm sido mobilizáveis para sane- antes que os danos se tornem irreversí-
ar o sistema bancário... Contudo, os pre- veis. Para essa ação, medidas governa-
juízos não se resumiriam a isso, nem seri- mentais e novas políticas oficiais são in-
am “saneáveis”, pois além de ser preciso dispensáveis, mas para que elas ocorram
uma década, pelo menos, para formar cada é preciso que a universidade se mobilize e
pesquisador perdido, e duas décadas, pelo também mobilize vontades políticas mais
menos, para reconstituir cada grupo de pes- amplas, mostrando como a retomada do
quisa desmontado, seriam essenciais, para sentido maior da universidade servirá ao
essa formação e reconstituição, quadros interesse público e à reconstrução da pró-
acadêmicos de grande experiência, justa- pria nação, que, de certa forma, também
mente os mais atingidos pelas perdas. está sitiada.
UNIVERSIDADE SITIADA 46
Um projeto
estratégico para
romper o cerco
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Bibliografia