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GENERALIDADES

A FILOSOFIA COMO PROBLEMA

1. Introdução
Não é possível abordar a filosofia jurídica no seu mais amplo sentido, sem se
ter já um certo conhecimento prévio da problemática e do próprio movimento do
pensamento filosófico geral e da sua história.
A filosofia do direito não é uma disciplina jurídica ao lado das outras; não é
sequer, rigorosamente uma disciplina jurídica. É uma actividade mental ou ramo
da filosofia que se ocupa do direito; é uma parte, um capítulo particular da
filosofia.
A filosofia como disciplina e forma de actividade mental do homem teorético é
talvez a única que não possui, em todo o rigor, um objecto próprio e
exclusivamente seu, um objecto específico, como o possuem as outras ciências
e os outros saberes aplicados só a certos sectores limitados da realidade.
A filosofia do direito não é também mais que uma certa visão ou
contemplação das coisas do direito, ou, numa palavra, do “jurídico”. Essa visão
ou contemplação é precisamente a filosofia. Trata-se de uma aplicação do
prisma próprio da visão filosófica as coisas do direito e do Estado como
realidades com as quais o homem também se preocupa e não pode deixar de se
preocupar. É uma transposição para o mundo das nossas habituais
preocupações de juristas, daquelas mesmas interrogações fundamentais que se
nos impõem a respeito de tudo o que pode ser objectivo de pensamento, quer
no domínio da fria especulação, quer no da acção, se formos filósofos.

2. Reflexão e especulação
Sendo essencialmente interrogativa, problemática e não solucionante, a
filosofia é, igualmente, reflexão, ou pensamento reflexivo, especulação ou
pensamento especulativo
A filosofia é uma actividade que consiste na própria reflexão filosófica, é um
caminhar gradual na busca da verdade.

3. Filosofia e ciência
Enquanto a ciência ou as ciências procuram conhecer aspectos particulares
da realidade, os modos como ela se manifesta, ou seja, os fenómenos e suas
leis ou relações, à filosofia interessa o ser enquanto ser, ou, para usar os termos
claros e decisivos de Aristóteles:
“Cada ciência trata de algum género limitado de seres considerado como
realidade que é e como é, e não enquanto ser, ao passo que a filosofia é o único
tipo de saber ou actividade intelectual que se ocupa dos seres ou da realidade
enquanto ser”, isto é, na sua determinação contingente mas na sua essência,
naquilo que faz que cada um seja o que é.
Daqui decorre também ser a filosofia um saber especulativo e teórico e não
um saber prático e operativo, um saber “dos primeiros princípios e das primeiras
causas” e não um conhecimento de causas segundas ou de princípios
derivados, que, por isso mesmo, é o único capaz de estabelecer os fundamentos
de todo o saber humano, pois consiste também numa actividade de
fundamentação do saber, designadamente das condições de possibilidade e da
validade do conhecimento e seus limites e de todo o saber, quer teórico quer
prático, incluindo o próprio conhecimento científico.
4. A noção de “aporia”
Termo que significa falta de caminho ou de saída, aquilo que impede o
movimento e não deixa avançar.
Trata-se de contradições ontológicas, da irredutibilidade de uma coisa ou de
uma realidade ao pensamento, do desacordo entre o ontos e o logos.
A filosofia é, fundamentalmente aporética, já que a sua actividade
interrogativa do real e do próprio pensamento a conduz à identificação e ao
tratamento das aporias, à verificação de que o pensamento e a realidade se não
identificam e de que nem tudo é pensável ou abarcável pela razão humana.

5. Noção de filosofia do direito


A expressão filosofia do direito é relativamente recente e teve as suas
primeiras e mais difundidas utilizações na primeira metade do séc. XIX, através
das obras de Hegel, Lerminier, Austin, Ahrens e Rosminie, e entre nós, de
Vicente Ferrer, Neto Paiva e António Luís de Seabra.
Sendo reflexão filosófica sobre o direito, a filosofia do direito é filosofia e,
como tal, não é reconduzível ou assimilável à Ciência Jurídica ou à Teoria Geral
do Direito. Por outro lado, porque é filosofia, o modo como a filosofia do direito
considera o Direito é muito diverso daquele pelo qual estas ciências ou formas
de conhecimento do jurídico o consideram.
Na verdade, ao passo que a Ciência Jurídica e a Teoria Geral do Direito
partem sempre do direito positivo, de um sistema jurídico-normativo concreto,
espácio-temporalmente definido, do direito vigente numa determinada
comunidade e numa determinada época; a filosofia do direito, porque é filosofia,
interroga-se sobre a essência do direito, sobre o seu valor e o seu fim, sobre o
ser do direito ou o direito enquanto ser e sobre a justiça que o garante, bem
como sobre o valor gnosiológico do saber do direito dos juristas, isto é, sobre o
fundamento e valor da própria ciência jurídica.

DO CONHECIMENTO JURÍDICO

6. Do conhecer em geral
Todo o conhecimento humano pressupõe a existência de dois elementos ou
pólos: um “sujeito” e um “objecto”, alguém que conhece e algo que é conhecido,
ou ainda, um cogitans e um cogitatum. É exclusivamente sob a condição do
funcionamento destes dois pólos em combinação um com o outro, que pode dar-
se a respectiva relação chamada “gnósea” ou relação de conhecimento. A
ciência é apenas um tipo particular ou grau mais evoluído na vida dessa relação.
Nas ciências do espírito porém, deve notar-se que nesta relação entre o “sujeito”
e o “objecto” alguma coisa de muito especial se passa que não se passa nas
outras: o primeiro elemento da relação, o sujeito, assume em face do outro,
indubitavelmente, um papel muito mais importante do que nas ciências da
natureza. Por outros termos: não só os referidos “dispositivos” e meios de captar
o “dado” e de reelaborar, comunicando-lhe um sentido, são em maior número,
como ainda e sobretudo, crê-se, os conceitos primordiais na base daquelas
ciências assumem, mais do que as “categorias” Kantianas nas outras, função
mais decisiva na organização dos dados da respectiva experiência sobre que
trabalham. Mais: tais conceitos são, não só formais e a priori como “categorias”,
mas inclusivamente materiais, possuidores dum conteúdo analisável, e
constitutivos, isto é, altamente enformadores daquela parte da realidade que o
homem com o seu esforço é chamado a construir com eles.

7. Dos diferentes graus e tipos de conhecimento jurídico


O conceito a priori é apenas condição do conhecimento. Será quando muito
um pré-conhecimento, mas não ainda rigoroso conhecimento.
O verdadeiro conhecimento neste domínio só é dado a alcançar no “juízo”,
quando se afirma a existência de uma relação, suposta legítima, de
conveniência ou não conveniência, entre certos pensamentos, conceitos ou não
conceitos, dois quais um, pelo menos, pressupõe necessariamente, em qualquer
grau, a experiência.
Aquilo a que se chama conhecimento do direito pertence, antes de tudo, ao
domínio de objectos e experiência1 , e faz-se, em quatro tempos ou graus
[1]

distintos de apreensão e elaboração do seu particular “objecto”. São eles:


1) Um conhecimento espontâneo e como que ainda só intuitivo, vulgar, do
jurídico ou do jurídico-político;
2) Um conhecimento propriamente dito do direito, ou melhor, jurídico do
jurídico;
3) Um conhecimento científico do direito e das coisas políticas;
4) Um conhecimento filosófico dessas mesmas coisas.

8. Do conhecimento filosófico do direito e a sua utilidade para o jurista


O conhecimento da problemática filosófica do direito interessa o jurista, pode
dizer-se, em duas direcções fundamentais. Em primeiro lugar, é esse
conhecimento filosófico, e só ele, que pode dar a justa noção do equilíbrio e da
exacta proporção que entre si devem manter no quadro geral do estudo jurídico
as diferentes partes desse estudo.
Mas, há ainda, em segundo lugar uma outra função não menos importante na
filosofia do direito para a formação do jurista. Esta poderia chamar-se antes uma
função de pedagogia moral e de deontologia profissional. O jurista é talvez, entre
todos os cultores das ciências do espírito, depois do teólogo, aquele que maior
tendência tem para o dogmatismo.
2[1]
Experiência dos objectos espirituais e culturais, em cujo domínio aparece justamente o “jurídico” histórico e positivo, e
que está na base das chamadas “ciências da cultura”.

1
2
ONTOLOGIA DO DIREITO

GENERALIDADES

9. Da ontologia do direito
É preciso notar, antes de tudo, que isso a que genericamente chama-se
direito não se deixa de situar numa camada, região ou esferas únicas do ser.
Situa-se, por assim dizer, antes, ao mesmo tempo ou sucessivamente, em várias
dessas esferas ou regiões. Trata-se aqui dum ser que, como alguns outros,
percorre ou atravessa, as diversas esferas e regiões ônticas do ideal, do real, do
não-sensível e até mesmo do sensível, projectando-se em cada uma delas de
modo e com determinações gerais muito diferentes. Este pensamento tornar-se-
á mais claro se disser, que o direito, partindo do ser ideal como valor e ideia 3 , [2]

torna-se real como ser não-sensível na foram de direito histórico 4 . [3]

10. O direito positivo; suas fontes, modos e manifestação e determinações


ônticas
Direito positivo chama-se precisamente ao direito, a ideia de direito, quando
projectados na região da realidade não-sensível a que se dá o nome de “espírito
objectivo”. É como dizer, metaforicamente: é essa ideia com os seus valores
feitos carne. De simples ideia, o direito torna-se aí realidade histórica concreta.
Enche-se de conteúdos. Ou, por outras palavras ainda: transforma-se em
cultura. O direito positivo é, ao lado de muitos outros, um dos ramos ou
manifestações dessa cultura e “espírito objectivo”.
Nesse sentido, é lícito dizer que a positividade, o ser positivo, é tanto da
essência do direito, como da religião, da arte e de todos os outros seres e
objectos culturais.

11. A teoria egológica do direito


A noção de conduta e o papel decisivo atribuído à sentença judicial,
entendiam como fenómeno jurídico por autonomástica, são o cerne da teoria
egológica do direito formulada e desenvolvida pelo jusfilósofo argentino Carlos
Cossio. Reconhecendo e denunciando as limitações inerentes tanto ao
positivismo como ao empirismo jurídicos, no que um e outro representam de
hipertrofia, simultaneamente deformante e redutora, de um momento ou aspecto
da realidade complexa que é o direito, a teoria egológica parte de uma
concepção culturalista, isto é, da visão do direito como realidade cultural,
procurando surpreender e determinar o que nele há de específico.
O seu pressuposto é o de uma ontologia pluralista, na qual distingue quatro
zonas ou regiões, a dos objectos ideais, a dos objectos naturais, a dos
objectos culturais e a dos objectos metafísicos, distintas quanto à sua
realidade, à sua relação com a experiência, com o tempo e com os valores e ao
seu método próprio de conhecimento.
3[2]
A ideia de direito.

4[3]
Direito positivo e assume finalmente a forma de ser sensível nos objectos ou coisas em que acaba por aparecer.
Para a teoria egológica do direito é concebido como algo que o homem faz
actuando segundo valorações, isto é, como objecto cultural. Dado, porém que o
seu substrato não é nenhuma porção da natureza, tem de concluir-se que é a
conduta humana, ou seja, que o direito é conduta, sendo, como tal, um objecto
egológico. Mas a conduta humana constitui uma experiência de liberdade, em
que a criação de algo axiologicamente original emerge a cada instante,
constituindo por isso, não um ser, mas um dever-ser existencial.
Para a teoria egológica do direito, as normas, sendo um dever-ser, são-no de
natureza lógica e não axiológica, constituem a representação conceitual de uma
certa conduta, um esquema interpretativo da conduta, no qual a referência da
norma à conduta corresponde à relação gnosiológica entre o significado ou
conceito e o objecto.

12. A teoria tridimensional do direito


Apesar de se situar também numa perspectiva culturalista, a teoria
tridimensional do direito e o seu principal sistematizador, o filósofo brasileiro
Miguel Reale, afasta-se, consideravelmente, da visão egológica, à qual
censuram o conceber a norma jurídica como simples esquema lógico, a
exclusão do teleologismo e a redução do direito ao facto da conduta,
insuficiências que pensam resultarão da fracassada e ecléctica tentativa de
fundir o formalismo Kelseniano com elementos retirados da corrente
fenomenológica e da filosofia heideggeniana.
Pretende-se afirmar que este, o direito, na experiência que dele tem-se, se
apresenta à nossa observação, não sob uma mas sob três formas: ora como
facto, ora coo norma ou lei, ora como valor. Dar-se-ia aqui uma como que
natureza trina.
O direito é tridimensional. Simplesmente, só se tem de acrescentar a isto,
dentro da doutrina do “espírito objectivo”, que esta tridimensionalidade é a que
se deixa observa em todos os outros seres ou objectos culturais da mesma
região que possam envolver a ideia dum dever-ser, e, antes de tudo, na moral e
na religião.
A teoria tridimensional, não é exclusivamente própria do mundo do direito,
mas sim mais ou menos aplicável a todos os objectos da realidade cultural, não
região do não-sensível, a que pertencem.
Para esta teoria, a norma jurídica, mais do que uma proposição lógica, é uma
realidade cultural, que não pode ser interpretada com abstracção dos factos e
valores que condicionaram, o seu advento, nem dos factos e valores
supervenientes, assim como da totalidade do ordenamento em que se insere.
Recusa, portanto, a concepção que vê na norma um simples e abstracto
enunciado lógico, um mero dever-ser lógico, concebendo-a como uma relação
concreta surgida na imanência do processo factual-axiológico, através da qual
se compõem conflitos de interesses e se integram tensões factico-axiológicas,
segundo razões de oportunidade e de prudência. Toda a norma jurídica surge da
integração do facto e do valor, pois assinala uma tomada de posição perante
factos em função de valores.
Direito é uma realidade tridimensional, constitui uma triunidade, é,
simultaneamente, facto (a conduta ou o agir humano), valor a que se refere
esse facto e pelo qual ele se afere e norma que pretende ordenar o primeiro em
função do segundo, encontrando-se essas suas três faces ou dimensões
interligadas e co-implicadas, nenhumas delas tendo sentido separada das
restantes.

O HOMEM E A CULTURA

13. O homem como problema


É precisamente a revisão crítica a que contem puramente, foi sujeito este
conceito positivista materialista ou naturalista de homem, a reivindicação da
especialidade da realidade psíquica e espiritual, bem como a atenção dada
pelas correntes ritualistas e pragmáticas e por pensadores como Dilthey,
Nietzsche, Unamuno, Zergson ou Husserl ao mundo próprio do homem e ao
sentido da vida e da evolução criadora, ou o estudo do inconsciente
desenvolvido pelas diversas escolas em que se dividiu a psicanálise 5 , que
[4]

vieram atribuir irrecusável actualidade à interrogação sobre o homem, sobre o


que singulariza no conjunto dos seres, sobre o seu ligar no mundo e sobre o seu
mundo próprio, o da cultura.

14. O lugar do homem no mundo


Na estrutura do mundo ou da realidade definida por esta nova ontologia
pluralista, o lugar do homem é o de um ser composto por três elementos
distintos mas inseparáveis e reciprocamente interdependentes que participa das
três últimas ordens ou estratos do real: enquanto ser corpóreo, integra-se na
região da vida, enquanto ser psíquico, na da alma ou da psique, enquanto ser
racional ou espiritual, na do espírito.

15. Valores e cultura


É pelo espírito que o homem se torna capaz de se elevar ao conhecimento e
à realização dos valores, dos princípios ou dos ideais e de criar, assim, o seu
mundo próprio, o da cultura, contraposto ou complementar do mundo
meramente natural de que participa pelo seu corpo.
Nas suas diversas e múltiplas formas a cultura é sempre criação do homem,
tentativa de criar realidades valiosas, de incorporar valores nas coisas, de
acrescentar à natureza ou de dar à natureza um sentido valioso.
A cultura, porque criação humana, é marcada, simultaneamente, pela
temporalidade, pela historicidade e pela objectividade, já que a obra de arte, a
posição filosófica, a norma jurídica, uma vez criadas ou formuladas, adquirem
vida própria, tornam-se como que independentes do seu autor ou do seu criador,
são portadoras de um sentido próprio e seu, aberto dinamicamente ao
conhecimento e à interpretação vivificante daqueles que como elas entram em

5[4]
Freud, Jung, Alder.
contacto, sendo nessa relação, a um tempo cognitiva e estimativa, que
plenamente são e adquirem a sua plenitude de ser e de sentido.

EXPERIÊNCIA JURÍDICA E ONTOLÓGICA DO DIREITO

16. A experiência jurídica


Para uma adequada compreensão do conceito de experiência, há desde logo,
que ter em conta que este termo comporta dois sentidos diferentes, objectivo
um, subjectivo o outro. No primeiro deles, designa-se habitualmente por
experiência o acto de experimentar ou de fazer experiências, visando provar, ou
comprovar hipóteses científicas acerca de determinados fenómenos, das
relações permanentes entre eles ou das condições da sua ocorrência ou
verificação, enquanto, no segundo, se refere ao resultado vital ou vivencial do
experienciado ou da vida vivida, reportando-se, por isso, ao mundo do homem e
da consciência e não já ao dos factos, dos fenómenos naturais das coisas.
Se se procura determinar em que se distingue a experiência jurídica da
experiência científica, tida até há pouco como a única experiência, verificar-se-á
que diferem uma da outra tanto pelo seu objecto como pelo critério a que
obedecem, como ainda pelo tipo de ordem a que se reportam.
A experiência jurídica, porque se insere no domínio da acção ou da conduta
humana livre, apresenta afinidades e traços comuns à experiência ética, pois
também esta tem por objecto regras de acção e por critério juízos sobre essa
mesma acção, fundados em determinados princípios, valores ou ideais, agora
de índole ética e já não jurídica. A experiência ética é porem mais ampla.
A experiência jurídica apresenta um duplo sentido: ou refere-se a duas
realidades distintas, pois tanto pode designar os dados através dos quais se nos
revela a realidade jurídica, apresentado valor e sentido eminentemente
ontognosiológico, na medida em que nos dá a conhecer essa mesma realidade,
como reporta-se às formas de constituição ou criação do próprio direito, à
experiência constituinte do direito.
A experiência jurídica aparece constituída por um conjunto complexo mas
unitário, de dados, de que se destaca, em primeiro lugar, a sua estrutura
antinómica, a natureza ou dimensão conflitual das relações jurídicas, o envolver
uma questão prática, um problema referente à conduta em que existe um
conflito entre diversos sujeitos, de modo a obter a paz social.
Este tipo de experiência que é a experiência jurídica revela-se constituído por
dados que se referem não só a pessoas e a realidades da vida ou a coisas do
mundo, como também a valorações, a necessidades e pretensões, envolvendo
questões concretas que é necessário resolver ou decidir.

17. Direito como realidade cultural


Como realidade cultural, o direito não pertence ao mundo físico nem
biológico, em que imperam a necessidade, a causalidade e o determinismo, nem
ao domínio psíquico das emoções e dos sentimentos, nem sequer ao dos seres
ideais, em que se situam as realidades lógicas e matemáticas, pois enquanto
estas são intemporais e abstractas, o direito é concreto, variável no tempo e no
espaço, e, como realidade humana, é profundamente marcado pela
temporalidade e pela historicidade essenciais ao próprio homem.
Como criação cultural não é um dado, uma realidade preexistente que o
homem encontre no mundo ou na natureza, nem uma realidade estática, mas
sim espírito objectivado, projecção espiritual do homem. Algo que está aí para
ser pensado, conhecido e vivido e cuja existência depende, por isso, da relação
cognitiva e vivencial que o homem como ele estabelece e mantém, a qual lhe dá
vida e contendo e actualiza, dinâmica e criadoramente, o sentido que nele está
latente e lhe é conferido pela referência a valores, princípios ou ideais.
O direito caracteriza-se por ser uma criação humana que se objectiva em
normas, constituindo uma ordem reguladora da conduta ou do agir humano na
sua interferência intersubjectiva, na sua convivência ou na sua vida social.
No domínio da cultura, o direito individualizando-se, assim, por se referir à
actividade prática do homem e não à sua actividade teorética, por dizer
respeito à acção e à conduta e não ao saber, ao conhecimento ou à verdade,
por ter como domínio específico o dos conflitos de interesses surgidos na vida
social, que visa resolver ou decidir de acordo com determinados princípios,
valores ou ideias.
Sendo realidade humana e criação cultural, o direito define-se também pela
sua temporalidade e historicidade (características), dado que não só a visão
dos princípios, valores ou ideias a que se refere e procura tornar efectivos é
sempre imperfeita e precária, porque obtida a partir de uma determinada
situação concreta, historicamente definida, como ainda o direito só enquanto
vivido e aplicado verdadeiramente é.
A temporalidade e a historicidade são, evidentemente, a própria condição
essencial de tudo o que é humano. Nada relativo à existência empírica do
homem, indivíduo ou comunidade, pode pensar-se fora do quadro temporal.
Toda a realidade sensível ou não-sensível é dada no tempo. Só estão fora dele
os seres e objectos ideais, como a ideias e conceitos gerais, que jamais deve-se
confundir com a sua projecção temporal no campo da realidade, sensível ou
não. E o mesmo diga-se da outra determinação fundamental da existência
humana: a sua historicidade. A duas determinações são, de resto, convertíveis
uma na outra. A historicidade é, pode dizer-se, a efectivação mais concreta e
repleta de conteúdo da temporalidade, com a nota particular de se referir só ao
homem.
Esta particularidade do direito e o ponto de vista de que considera a conduta
humana revelam o seu carácter de realidade social e a sua bilateralidade
(característica), pois envolve sempre relações entre pessoas, implicando direitos
e deveres de uns perante os outros.
Por outro lado, o direito é uma realidade social heterónoma (característica),
uma vez que a regulamentação ou a ordenação da conduta que se propõe
estabelecer é imposta do exterior dos sujeitos, por um outro sujeito dotado de
poder de definir e impor critérios, regras ou normas de conduta ou de
comportamento.
18. Direito como ordem normativa
Outra determinação fundamental do direito positivo, evidenciada pela
experiência, é a que consiste na sua imperatividade e normatividade. Todos
os preceitos jurídicos se deixam reduzir a um imperativo ou ordem dada a
alguém, sendo a designação dessa ordem, sobretudo quando referida a uma
generalidade de homens e igualdade de condições, o mesmo que norma ou
normatividade e imperativo, sendo esta determinação aliás uma determinação
que pertence ao próprio conceito de direito.
São ainda determinações fundamentais ou características do direito positivo
as suas obrigatoriedade e coercibilidade. Pela primeira, entende-se uma
obrigatoriedade de consciência.
O homem obedece às normas do direito, desde que o faça conscientemente,
tem de o fazer no sentimento de quem presta uma homenagem a certas ideias
de valor, mesmo que isso lhe custe.
A obrigatoriedade do direito em consciência só pode ser uma obrigatoriedade
moral, ou então não será coisa alguma; será tão só coacção, medo,
conveniência ou despotismo. Esta consideração coloca, porém, diante de uma
derradeira determinação ou característica essencial do direito positivo: a sua
coercibilidade.
Costuma-se dizer que o direito é norma coactivamente imposta pelo Estado
aos homens na vida social. À primeira vista, pode ser contraditório falar em
coercibilidade do direito, justamente depois de se ter acabado de dizer que ele
se funda só numa obrigatoriedade toda moral de adesão aos seus preceitos,
fora de qualquer coacção. Todavia a contradição é meramente aparente. Ela só
existirá se disser, ser todo o direito só coacção, mas direito só se torna coactivo
eventualmente; torna-se coactivo, ainda em homenagem a um dever-ser moral,
só na medida em que o não acatamento dos seus preceitos por parte de alguns
homens arraste necessariamente consigo: ou a ofensa dos direitos dos outros,
ou a ruína da ordem social estabelecida.
As normas em que se objectiva o direito constituem uma ordem, num amplo
sentido: por um lado, formam um conjunto ordenado a partir dos princípios,
valores ou ideias de cuja visualização ou interpretação são objectivada
expressão; por outro lado, procuram ordenar, reflectir ou tornar direita ou recta a
vida social, a convivência entre os homens, as suas relações, substituindo por
uma ordem, caos a que a desordenada conduta individual inevitavelmente
conduziria, no seu jogo de egoísmos e na luta em que o mais fraco sucederia ao
arbítrio do mais forte.
A ordem que o direito visa instituir, porque referida a valores, princípios ou
ideias, não é uma ordem neutra ou indiferente, mas sim uma ordem justa, uma
ordem concreta, definida a partir do princípio ou valor justiça, que é
precisamente, aquele que dá sentido e conteúdo ao direito na sua essencial
dimensão axiológico-cultural.
Partindo da justiça como princípio, valor ou ideal, o direito é, pois, o meio de
que o homem se serve para alcançar uma adequada ordenação da sua conduta
social, com o fim de coordenar o exercício da liberdade de cada um com a
liberdade dos restantes, realizando deste modo, o bem comum da sociedade
política.

19. Positividade, validade e vigência


O tipo de ordem normativa que o direito constitui nas diversas formas por que
se manifesta e nos vários modos como se torna efectiva, apresenta como traço
individualizador a positividade. Esta, como atributo essencial das normas
criadas ou reconhecidas pelas entidades investidas de autoridade ou de poder,
significa que o direito é posto por essas mesmas entidades, que é por elas
definido, estabelecido, estatuído ou criado, seja pelo legislador, seja pela
comunidade que adopta determinado costume, seja pelo juiz que profere uma
sentença.
A positividade, enquanto atributo e específico do direito, não deve confundir-
se com a sua validade, a sua vigência ou a sua eficácia.
O termo validade para o positivismo jurídico deve ser entendida de um modo
formal, reportando-se à conformidade de qualquer norma com as de valor
superior que definem o seu processo de formação.
O conceito de vigência reporta-se à força vinculante do direito positivo, à
circunstância ou ao atributo de ter força por si, pelo que este, quando pela
revogação ou pela caducidade, deixa de estar em vigor, não perde o seu
carácter de direito nem a sua essencial positividade.

O DIREITO E AS OUTRAS ORDENS NORMATIVAS

20. Direito e moral


O direito não é, porem, a única ordem normativa da vida social do homem,
outras com ele coexistindo, como a moral, a religião e os usos sociais.
A moral de que aqui se fala é a moral positiva, a que se dá também muitas
vezes, o nome de moral dos costumes.
É o conjunto de preceitos, concepções e regras, altamente obrigatórios para a
consciência, pelos quais se rege, antes e para além do direito, algumas vezes
até em conflito com ele, a conduta dos homens numa sociedade.
É aquilo que os homens apreendem ou julgam apreender no seu esforço de
realização dos valores éticos, como única fonte e fundamento de todo o dever-
ser e obrigatoriedade nas suas relações consigo mesmo e com os outros
homens.
A primeira distinção ou o primeiro distintivo destas duas ordens normativas e
do qual, de certo modo, os restantes decorrem, parece encontrar-se no diferente
ponto de vista de que cada uma delas valora a conduta humana, pois que,
enquanto a moral a considera de um ponto de vista absoluto e radical, no
sentido que tem para a vida do sujeito, ao direito apenas importa o alcance ou a
dimensão social dessa mesma conduta, sendo, portanto, relativo e não já
absoluto o seu ponto de vista.
Esta diversa natureza das ordens normativas explica, igualmente, outro
decisivo e essencial elemento distintivo: é que, atendendo ao indivíduo ou ao
sujeito da conduta enquanto tal, considerando-o a partir do domínio da
interioridade e da consciência, a moral caracteriza-se pela sua unilateralidade,
e pela imanência do critério moral, pelo seu carácter radicalmente autónomo,
pela total liberdade no cumprimento dos respectivos preceitos e pela sua
irrecusável incoercibilidade, enquanto, pelo contrário, o direito se define,
precisamente, pela sua bilateralidade atributiva, em que cada direito
corresponde sempre um dever, e vice-versa, e pela sua natureza heterónoma,
que faz que a realização dos seus comandos possa ser imposta às vontades
individuais.
Da autonomia da moral e da imanência do critério moral decorre que ela só
obriga o sujeito ou o agente se e na medida em que este reconhece e aceita os
respectivos preceitos e, de certo modo, os faz seus, sentindo-se obrigado, em
consciência e a dimensão social do direito que explicam que ele não só se
desinteresse da intenção com que o sujeito cumpre as normas jurídicas, como
obriga tanto os que concordam com o respectivo conteúdo como os que dele
discordam.

A AXIOLOGIA DO DIREITO

O PROBLEMA AXIOLÓGICO DO DIREITO

21. A ideia de Direito Natural


A ideia de Direito Natural tem como elemento comum unificador e identificador
a ideia de existência de uma ordem normativa, imanente e manifestada na
natureza ou na realidade, que é como que o paradigma, o modelo ou o arquétipo
a que deve subordinar-se o direito positivo, que deve procurar explicitá-lo,
desenvolvê-lo e concretizá-lo nas ordens normativas que estabelece ou
constitui.
Sendo um Direito ideal, o Direito Natural tende a ser concebido ou pensado
como algo tão permanente ou intemporal – ainda que apenas no plano formal,
variando ou podendo variar historicamente os seus conteúdos concretos – como
permanente e supra temporal é essa ordem normativa essencial e supra-
empírica que rege ou estrutura a natureza ou a realidade cósmica, social e
humana.
Por outro lado, a ideia de existência de um Direito Natural contraposto ao
Direito positivo, faz apelo a uma determinada ideia ou noção de natureza, na
qual se conteria, implícita mas cognoscível, essa legalidade ou normatividade
que constitui o Direito Natural, e segundo a qual essa mesma natureza seria
permanente e imutável, o que explicaria a permanência e a imutabilidade quer
seriam atributos do Direito Natural.
A ideia de Direito Natural implica ou pressupõe quatro ideias ou noções
complementares ou essenciais:
a) A de que existe uma natureza permanente, constante e imutável;
b) A de que essa natureza contém em si, como seu elemento intrínseco
essencial e estruturante, uma determinada legalidade ou ordem normativa;
c) A de que o homem pode ascender ao conhecimento dessa legalidade ou
dessa ordem normativa que se contém ou se manifesta na natureza;
d) A de que o Direito positivo, enquanto ordem normativa humana
reguladora da conduta e da convivência social, retira a sua validade da
conformidade com essa legalidade ou ordem normativa natural, que deve
ser o seu modelo ou paradigma.

22. A ideia de natureza


O termo natureza é dos mais equívocos e plurissignificativos dos com que lido
o pensamento filosófico, pelo que não será de estranhar que, quando usado ou
contido na designação Direito Natural, essa sua característica igualmente se
revele.
Ele tem, desde logo, um duplo sentido ou significado, que se pode qualificar,
respectivamente de cosmológico ou físico e de ontológico.
No primeiro sentido, o tema natureza reporta-se ao universo da matéria e da
vida, contrapondo-se, então, ao domínio psíquico ou ao reino espiritual,
enquanto, no segundo, designa o que faz que cada ser ou ente seja o que
verdadeiramente é, equivalendo então a substância ou essência, como quando
se fala na natureza humana ou na natureza das coisas.

23. Concepção essencialista ou substancialista do Direito Natural


a) Concepção cosmológica
Esta concepção individualiza-se por referir o Direito Natural à ideia de
natureza como ordem cósmica, que contém em si a sua própria lei, fonte da
ordem em que se processam os movimentos dos corpos que se articulam os
seus elementos constitutivos ou essenciais.
b) Concepção teológica
Se o pensamento pré-socrático e, de certa maneira, a tragédia grega, em
especial Ésquilo e Sófocles, representam de forma paradigmática e exemplar o
jusnaturalismo essencialista ou substancialista de feição ou inspiração
cosmológica, a versão predominantemente teológica deste modo de pensar o
Direito Natural encontrou na filosofia medieval e, de modo eminente em Santo
Agostinho, São Tomás de Aquino e Suarés a sua mais acabada expressão.
O primeiro, fundindo em síntese original platónica e a sua teoria das ideias
com a teologia e o pensamento cristão, sustentou que a ordem universal ou a
ordem do mundo é regida pela lei eterna, dimanada de Deus, cujas ideias são os
arquétipos eternos das coisas.
Por sua vez, a lei natural é entendida como participação do homem na lei
eterna e encontra-se impressa na alma humana, dela devendo os legisladores
extrair as regras de conduta, as normas ou as leis mais adequadas ao
condicionalismo histórico.
São Tomás de Aquino e, em geral, o pensamento filosófico-escolástico
desenvolveram estas ideias, designadamente o conceito de leis e suas espécies
e a distinção entre as duas formas de Direito Natural.
Para o Aquinatense, a lei era definida como “prescrição da razão prática, em
ordem ao bem comum, promulgada por quem tem o cuidado da comunidade”.
Toda a lei deriva da lei eterna, na medida em que participa da recta razão.
A lei natural decorre da natureza humana, é participação da lei eterna na
criatura racional, tendo sido promulgada através da sua impressão na mente do
homem, pelo que é naturalmente cognoscível.
A mutação da lei natural pode verificar-se por dois modos: ou ela adição de
novas realidades ou por subtracção, deixando certos preceitos particulares de
ser lei natural.
c) Concepção antropológica
A versão antropológica do jusnaturalismo essencialista ou substancialista
encontrou a sua expressão vincada e significativa no pensamento pós-
renascentista, racionalista e iluminista, em especial em Grócio, Hobbes,
Espinosa, Puffedorf e Locke.
Para esta corrente de pensamento filosófico-jurídico, o fundamento do Direito
Natural deixa de ser Deus e a lei eterna dele directamente derivada, para passar
a encontrar-se na razão humana ou na natureza racional do Homem.

24. Concepção formalista do Direito Natural


Esta segunda grande concepção do Direito Natural tem a sua origem no
pensamento Kantiano, tendo encontrado a sua mais acabada expressão na
corrente neo-Kantiana desenvolvida em Marburgo, no final do séc. XIX em
especial por Rudolf Stammler.
Para esta corrente neo-Kantiana (o ser), aliás inacessível ao conhecimento,
não é possível retirar ou fazer derivar nenhuma norma ou princípio ético (dever-
ser), que só na razão pode encontrar-se. Tal princípio, de natureza racional,
formal ou universal, na sua máxima generalidade, como imperativo ético
categórico, apresentar-se-ia da seguinte forma: “age como se a máxima da tua
acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da Natureza” 6 .
[5]

25. Concepção existencialista do Direito Natural


O pensamento filosófico-jurídico desenvolvido a partir da perspectiva
existencial vem, neste ponto, a opor-se a qualquer das correntes jusnaturalistas
anteriores, ao negar que exista qualquer essência, substância ou natureza
humanas, comum a todos os homens e dada previamente como virtualidade ou
potencia que a cada um caiba passar a acto ou realizar, pois sustenta que no
Homem a existência precede a essência e entende que aquela resulta da
dialéctica entre a natureza das coisas e a vocação do Homem, entre o dado e as
circunstâncias exteriores, a situação em que o Homem se encontra e aquilo que
a sua radical liberdade constrói, no caminho sempre ameaçado entre o ser ele
próprio e o fracasso, a alienação ou a alteração.

A JUSTIÇA

6
26. A problemática da Justiça
A problemática da Justiça é, simultaneamente, ontológica, gnosiológica e
metafísica, defronta-se com três interrogações fundamentais: que é a Justiça?
Como é possível conhecê-la? Porque é a Justiça, qual é o seu fundamento?
Na consideração do problema ontológico da Justiça, na tentativa de saber o
que ela é em si, duas perspectivas são possíveis, pois que ela apresenta dois
diversos sentidos ou duas faces complementares, podendo ser considerada de
um ponto de vista subjectivo, como virtude individual, como atributo do Homem
justo, ou de um ponto de vista objectivo, como valor, princípio, ideia ou ideal.
A primeira perspectiva é adoptada pela Ética, enquanto a segunda, é a
própria da Filosofia do Direito e da Axiologia.
A circunstância, porém, durante largos séculos, a reflexão sobre a Justiça se
ter desenvolvido quase exclusivamente no âmbito da Ética e de ser
relativamente tardia a autonomia especulativa da Filosofia do Direito marcou
profundamente o modo de concebê-la, sendo fonte de não pequeno número de
dificuldades com que, ainda hoje, se defrontam a Axiologia e a Filosofia do
Direito.
Duas advertências cabem fazer aqui. A primeira para notar que, quando
considerada como virtude, a Justiça individualiza-se, face às restantes, pode
dizer respeito a acções e não a paixões e pela sua bilateralidade, por se referir
sempre e necessariamente a relações intersubjectivas.
A segunda observação será para recordar que, sabem que estas duas
perspectivas ou estes dois modos de considerar ou de pensar a Justiça sejam
complementares, o segundo (objectivo) tem prioridade lógica e axiológica sobre
o primeiro (subjectivo), dado que, sendo a Justiça virtude do Homem que age
rectamente, necessário se torna, para defini-la saber o que é, em si, a Justiça
como valor, princípio, ideia ou ideal.

27. O princípio da Justiça


A Justiça é acima de tudo e antes de mais, liberdade, que implica respeito
pela personalidade livre de cada um ou por cada Homem enquanto pessoa. Mas
se não é a lei que nos pode dizer o que é devido a cada um, nem a Justiça se
reporta apenas a bens exteriores, as coisas ou a cargos, se o seu a que se
refere é o próprio de cada um, num sentido ontológico radical, vindo a consistir
na liberdade e na personalidade e no que uma e outra implicam de direitos e
bens exteriores, isto é, de propriedade, então deve concluir-se que a Justiça não
depende nem pode procurar-se ou fazer-se residir na generalidade da lei, antes
se encontrando na diversidade do concreto, do singular e do individual.
Se é exacto que, a inadequação entre Justiça e igualdade é menos evidente e
clara, subsiste ainda aqui, todavia, uma não coincidência entre elas, porquanto
nessa consideração analítica de certos aspectos da realidade ou da situação
humana há sempre, inevitavelmente, um esquecimento, uma indiferença ou um
ocultamento de que individualiza e distingue-se as situações, as pessoas e as
relações entre elas e entre elas e as coisas e a própria diversidade real e
funcional das coisas, que contêm já em si, virtualmente, uma injustiça ou uma
Justiça incompleta ou imperfeita, que põe ou pode pôr em perigo o seu ou o
próprio de cada um dos sujeitos em causa.
Com efeito, exigindo a Justiça plena e perfeita o integral respeito e
consideração pelo individual e pelo singular e concreto de cada homem,
envolve, em si, o Homem todo e não aspectos dele abstractamente
considerados.
Daí que, se a igualdade pode ser e tende a ser o critério da Justiça legal ou
da Justiça que se exprime na lei, de modo sempre imperfeito, dada a sua
generalidade, que corresponde a uma abstracta média, a uma imagem ou um
modelo mental e não a qualquer concreta singularidade, que nunca com ela
plenamente se conforma, nunca pode ser o fundamento e o critério essencial e
decisivo da Justiça enquanto valor, princípio, ideia ou ideal.
Se a Justiça é sempre concreta, se o seu fundamento ou o seu critério
essencial não pode ser a igualdade e se a lei, na sua generalidade, não é a
forma mais adequada da justiça, perde sentido a distinção clássica entre a
Justiça, entendida como conformidade com a lei, e a equidade, concebida como
correcção da generalidade da lei quando esta se revela claramente inadequada
para reger o caso concreto e para dar a este uma solução mais justa do que a
que da aplicação daquela resultaria, pois tal como se pensa, a verdadeira
Justiça é sempre equidade.

28. Atributos da Justiça


A Justiça como valor, princípio, ideia ou ideal não pode ser concebida ou
pensada como algo de substancial ou entitativo; ela é antes o que é o próprio do
justo, o que o faz ser justo e que se revela pela sua negação ou pela sua
ausência, isto é, pela injustiça.
Sendo princípio, valor, ideia ou ideal, a Justiça é um insubstancial que de
nada depende mas do qual, no mundo jurídico, tudo depende.
Por outro lado ainda, porque é insubstancial e concreta, a Justiça não é
susceptível de ser objectivada ou aprisionada ou expressa em fórmulas ou
regras, de ser limitada ou delimitada por qualquer definição. Verdadeiramente
real é a injustiça. A Justiça, pelo contrário, sendo o nada de que tudo depende,
não existe em si, não tem ser, é uma meta, um objectivo nunca plenamente
realizado ou alcançado, é uma intenção ou uma intencionalidade, é a luta
permanente, infindável e sempre recomeçada pela sua própria realização.
Resulta serem ainda atributos da Justiça a alteridade ou bilateralidade, já que
se refere ou se reporta às relações entre os Homens, a quem outros Homens ou
a sociedade devem dar o que é próprio a cada um; a equivalência ou a
proporcionalidade, que impõe que haja equilíbrio ou punidade entre as
prestações de cada um dos sujeitos da relação.
Decorre ainda algumas importantes consequências:
Cumpre notar que as diversas fórmulas ou regras de Justiça tradicionalmente
apresentadas, ou revelam do puro domínio da Ética, como acontece com a
honeste viverem ou são meras variantes particularizadas do princípio essencial
do suum cuique tribuere, como ocorre com o neminem laedere ou com o pacta
sunt servanda, pois o não prejudicar ninguém ou o respeitar os compromissos
validamente assumidos mais não são do que formas de dar a cada um o que lhe
é devido.
Em, segundo lugar, deve notar-se que, do ponto de vista da Justiça, é mais
decisiva a aplicação da lei do que a própria lei, porquanto é então que, em
concreto, o direito se realiza e o próprio de cada um se afirma e define, o que,
obviamente, não impede um juízo sobre a Justiça ou a injustiça da lei em si.
Desta conclusão uma outra deriva: a de que, na concreta realização da
Justiça, é mais decisivo o papel do juiz do que o do legislador, da jurisprudência
do que da lei. De igual modo, o costume e a norma, e pela sua menor
abstracção e generalidade, pela sua maior proximidade do concreto, pela sua
origem mais vivencial do que racional-voluntária, mais colectiva do que
individual, poderá garantir melhor do que aquela uma solução justa.
Por outro lado, esta visão de Justiça vem pôr a claro a inadequação do modo
de entender a sentença como meio processo lógico formal, como um raciocínio
silogístico e chamar a atenção para que o dizer o direito – a jurisdição – do caso
concreto, o juízo de legalidade que o juiz profere, é condicionado, precedendo
em larga medida, determinado por um juízo de Justiça de natureza intuitivo-
emocional, ditado pelo sentido de Justiça.

29. Gnosiologia da Justiça


Porque a Justiça é valor, princípio, ideia ou ideal e, por isso, insubstancial,
não é susceptível de ser apreendida ou aprisionada por uma definição, na
medida em que esta é sempre um pôr limites, um marcar de contornos de uma
aspecto da realidade.
Por outro lado, a sua natureza de valor, princípio, ideia ou ideal impede-a de
ser objecto de um conceito, pois é o resultado das possibilidades criadoras da
razão e os valores, os princípios e os ideais transcendem a razão e ano
dependem dela na sua existência, e apenas na sua efectividade e na sua
realização parcialmente dela quedam dependentes.
O conhecimento que da Justiça alcançamos é um conhecimento concreto,
existencial, um conhecimento imediato, intuitivo e emocional, em que o
sentimento inato de Justiça tem um papel decisivo e determinante, não
dispensando, porém, a colaboração ou a participação de elementos racionais,
que laboram a partir dos dados fornecidos por aquele primeiro conhecimento
intuitivo-emocional.
Sendo pois insusceptível de ser definida ou deduzida genérica e
abstractamente pela razão, a Justiça apenas pode ser intuída no caso concreto,
mediante a emoção ou o sentimento avaliador ou sentimento moral ou de
Justiça, do qual, contudo, é possível dar razão, pois possui a sua verdade que,
não sendo do domínio lógico-dedutivo, não deixa de ter a validade e garantia,
próprias das “razões do coração”, da experiência imediata e da vivência dos
valores.

30. A Justiça e os outros valores jurídicos


Se a Justiça é o princípio ontológico do Direito, o valor que fundamento e o
ideal que ela visa realizar, não é, no entanto, o único valor ou o único fim que o
direito serve ou procura tornar efectivo.
Assim, é corrente atribuir-lhe outros fins ou indicar outros valores como
jurídicos. É o que acontece com a ordem, a paz, a liberdade, o respeito pela
personalidade individual, a solidariedade ou a cooperação social e a segurança
como fins do direito ou como valores jurídicos que coexistem com a Justiça no
firmamento axiológico do Direito, conveniente se tornando, por isso, estudar o
modo como ela se articula e compatibiliza.
7[5]
Kant, in Fundamentação da Metafísica dos Costume.

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