Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A natureza da interdependência
Elizabeth Mattis-Namgyel
Ensinamento no "Festival of Faiths" em abril de 2017, em Louisville, KY, EUA
(vídeo no YouTube)
(Antes de tudo, eu gostaria de agradecer a todas as pessoas envolvidas na
organização desse evento maravilhoso. Eu sei quanto trabalho um evento como
esse demanda. Ausley, Sara e todos, muito obrigada.)
Esta é uma grande oportunidade para todos nós de nos unirmos e nos abrirmos para
algumas ideias muito importantes e grandiosas. Eu gostaria de agradecer a todos
aqui, principalmente, a todos os palestrantes que vieram antes de mim porque eles
tornaram extremamente difícil planejar o que eu vou dizer. E eu aprecio isso porque
isso significa que eu não posso realmente repousar no meu próprio estar-correta (se
eu puder fazer disso uma palavra), não posso repousar nos meus pressupostos, não
posso me apegar a pontos de vista. Eu tenho que estar sempre disposta a
desmantelar todas essas coisas. E essa é a beleza da interdependência — que nós
influenciamos uns aos outros e que entendemos a nossa vida como essa troca
lúdica de nossos mundos interno e externo. Eu acho isso extremamente excitante,
de modo que, de alguma forma, isso conversa com a natureza da interdependência.
De acordo com o que nos foi pedido para fazer no início, eu vou tentar expressar
com o melhor da minha capacidade o que significa interdependência no contexto da
minha própria tradição, que é a tradição do Budismo Mahayana. A interdependência
está na própria essência do despertar do Buda e também dos ensinamentos
budistas. Quando o Buda atingiu a iluminação, ele falou sobre a interdependência.
Agora, quando uso essa palavra “iluminação”, eu sinto que ela é uma palavra muito
pomposa e outras tradições podem não entender o que isso significa, por isso, eu
quero trazê-la de volta à condição humana, porque a iluminação não é algo
impossível ou distante de quem somos.
Interdependência: vivendo em graça
Em meu novo livro, The logic of faith ["A lógica da fé", ainda sem tradução], que
acabei de terminar, decidi falar sobre a interdependência como “vivendo em graça”,
em outras palavras, a iluminação não é algo que acontece num vácuo independente
de tudo o mais, a iluminação tem a ver com quem somos ou como entendemos a
nós mesmos em relação a todas as coisas. Não apenas em relação a outras
pessoas, mas também em relação ao nosso mundo interior de pensamentos e
emoções — e como entendemos quem somos no meio de tudo isso.
Já que estamos no sul (acho que nós podemos dizer isso) e sempre ouvimos falar
da graciosidade no sul, e realmente vejo isso aqui em Louisville. Eu sinto que as
pessoas aqui são extremamente graciosas, então acho que todos nós entendemos
a graça. A graça não é necessariamente apenas uma palavra religiosa. A graça está,
por exemplo, quando alguém entra na casa de outra pessoa e essa pessoa está
atenta ao que o outro precisa “Você está com sede?”, “Está com fome?” Onde
gostaria de se sentar?”. Isso é gracioso! Essa é uma maneira de falarmos sobre
graça de uma forma bem comum. Podemos também falar sobre graça no
movimento físico, por exemplo, se alguém está dançando em um palco — essa
pessoa tem uma boa noção de quem ela é em relação ao espaço ao seu redor, ela
está muito sintonizada com o funcionamento do seu corpo e como ele pode mover,
o que ela pode fazer e como vai funcionar. Isso também é graça.
Deixe-me dizer novamente, isso é muito importante, e não se preocupem, eu
detalharei isso e ficará muito claro para vocês. Então, ele diz: “Isto sendo, aquilo se
torna”. Por exemplo, se as causas e as condições do sofrimento estão presentes,
então o sofrimento surgirá; se as causas e as condições da felicidade estiverem
presentes, a felicidade surgirá. E tudo funciona desse jeito — se há uma direita, há
uma esquerda; se há um bom, há um mal. Que tudo surge na dependência de outras
coisas é basicamente o que isso significa. Então, “Isto sendo, aquilo se torna; do
surgimento disto, aquilo surge” e então “Isto não sendo, aquilo não se torna”: se não
há causas e condições para que algo surja — como se você plantasse uma semente
e não houvesse boas condições — nada virá disso. "A partir da cessação disto,
aquilo cessa."
Os vários nomes de p
ratityasamutpada
Basicamente, o que estamos falando aqui é de relacionamento. Antes de
prosseguirmos, eu quero apresentar algumas palavras para vocês. Aqui chamamos
de “interdependência”, mas no contexto dos ensinamentos budistas, a palavra
sânscrita para isso é p
ratītyasamutpāda.
Deixe-me fazer uma demonstração para vocês para que isso não permaneça no
domínio do pensamento abstrato, porque isso é muito prático, isso pode se tornar
muito prático. Eu quase não vou a lugar nenhum sem meus três gravetos, as
pessoas que me conhecem bem sabem... Eu, de fato, pedi a minha comunidade
espiritual que, quando eu morrer, queimem meus três gravetos comigo. Eu tenho
uma conexão muito forte com esses ensinamentos em particular. Hoje sendo o Dia
da Terra, eu gostei muito de poder segurar algo natural, eu acho isso muito
estabilizador. E eu amo o fato de que, onde quer que eu vá, eu coleto gravetos das
árvores de onde fico. Esses três gravetos aqui, eu consegui no lindo jardim da
Christie Brown, e eu gosto deles. Os gravetos são diferentes em todos os lugares,
isso é tão incrível.
O que estou prestes a apontar é que estou segurando esse graveto (talvez eu
precise de um pouco de participação do público — isso não pode acontecer comigo
apenas, isso é um trabalho em grupo). Se eu lhes perguntasse “este aqui é um
graveto grande ou um graveto pequeno? O que vocês diriam?” [audiência responde:
"grande, pequeno..."] Alguns estão dizendo grande, algumas pessoas dizendo
pequeno. O que mais eu ouvi? [audiência responde: "médio"] Médio? Algo mais?
[audiência responde: "depende"] Depende! Isso é o que eu estava procurando!
E a propósito, este ensinamento foi dado por um professor chamado Chandrakirti,
um grande mestre indiano. Eu não sei se ele usava gravetos para ilustrá-lo, mas está
em seus textos. Eu quero salientar isso para me sentir conectada com a minha
linhagem.
Agora, eu estou apontando para esse primeiro graveto e coloco-o ao lado deste
outro graveto. “O que o primeiro graveto se torna? É maior que esse outro graveto,
certo?” Agora, se eu segurar este terceiro graveto, o que acontece com o primeiro
graveto? Torna-se menor. Então, deixe-me perguntar uma coisa: o tamanho do
graveto existe no próprio graveto? Não! Depende do graveto que vem ao lado!
Você pode, então, dizer "bem, você poderia dizer que esse graveto tem talvez dois
pés e meio de comprimento". Isso é intrínseco ao graveto? Não! Por quê? Porque
medidas são apenas artifícios criados pelo homem, é uma invenção. E é uma
invenção muito muito útil. Eu gostaria de dizer que o tamanho e medidas são
extremamente importantes e poderosos. Construímos catedrais com base em
medidas, todo o nosso mundo é baseado em medidas e números. Algo semelhante
acontece com a linguagem: o que é linguagem senão uma série de sons com os
quais concordamos para nos comunicarmos e participar do mundo em que
vivemos? Então, quando eu digo que esse objeto não tem um tamanho objetivo, não
é para enfraquecer o fato de que esses acordos que temos sobre as coisas e a
relação que as coisas têm entre si não são extremamente profundas e poderosas.
Nós todos sabemos o quão poderosas são as linguagens, todos nós sabemos o
quão poderoso é esse mundo da relatividade.
Você nunca consegue estar certo
Algumas vezes, é nesse ponto que o ensinamento se torna confuso para as
pessoas. Eu conversava com Geshe Thupten Jinpa na noite passada sobre esse
ensinamento que eu dou com os gravetos e ele disse que havia outra professora que
fazia isso, mas ela assustava as pessoas. E é assustador! Porque o que isso está
dizendo é que não existe uma verdade intrínseca sobre nada. Então, frequentemente
as pessoas podem interpretar isso como “talvez não importa o que eu faça” ou “o
mundo da relatividade perde sua potência”, mas isso não é verdade. As relações são
poderosas, esse é o ponto principal. Não há uma existência ou verdade intrínseca,
não há realmente nenhuma realidade pelo fato de que as coisas não existem no
objeto em si, o que significa que você nunca consegue estar certo. Isso é poderoso!
Tudo depende de onde você está posicionado, porque todas as coisas se apoiam
umas nas outras.
Pessoalmente, eu sinto que essa é a coisa mais extraordinária, o que significa que
você sempre deveria ficar admirado de uma forma ou de outra. Você não pode
realmente saber nada de uma forma determinada e definitiva. E muitas vezes, eu
penso que nós olhamos para a admiração como uma espécie de luxo ou algo que
vem ao nosso encontro, porém que não é muito prático. No entanto, eu acho que a
admiração é extremamente prática e extremamente importante no contexto de tudo
o que falamos aqui. Primeiro de tudo, se não há admiração, pode haver
fundamentalismo; quando há admiração, não pode haver fundamentalismo. Eu até
acho que o desespero é uma espécie de fundamentalismo. Não estou dizendo que
não devamos ser tocados. Não podemos evitar de ser tocados pela tristeza do
mundo e pelo sofrimento das pessoas. Não podemos evitar isso. Mas quando você
expõe o desespero a um pouco de admiração, sinto que ele se transforma em
compaixão.
Reificação como a raiz de todas as emoções negativas
Nós temos essa tendência de reificar, olhamos para uma situação e dizemos, por
exemplo, “o que fazemos com a Coreia do Norte?” O que você faz com uma
pergunta como essa? O que fazemos a respeito da crueldade contra animais ou
racismo ou todas essas coisas sobre as quais falamos aqui, que são tão
significativas e devemos responder a elas?
Essas questões são grandes ideias abstratas e dentro delas estão todo o tipo de
coisas acontecendo. A Coreia do Norte é um lugar grande com muitas pessoas e
tudo depende de onde você está posicionado e como você vê. Então, temos essa
tendência de reificar. Nós reificamos uns aos outros quando olhamos apenas para a
cor da pele de alguém. Quando estamos no nosso melhor, nós não fazemos isso,
nós realmente olhamos para a condição humana, vemos algum tipo de beleza
interior, nós deixamos de saber. Como eu estava dizendo na hora do almoço “o
maior respeito que podemos ter por alguém ou qualquer coisa é não assumir que
sabemos quem elas são”.
Não-dualidade
Eu acho que isso tem um lugar muito prático no campo do ativismo ou na nossa
capacidade de responder com inteligência ao mundo em que vivemos. De fato, uma
das maneiras interessantes de falarmos sobre isso é que comumente pensamos
que ou “as coisas existem e são verdadeiras” ou “elas não são verdadeiras”. Somos
muito dualistas. Há um grande professor chamado Mipham Rinpoche que disse que
nossas mentes são tão dualistas como elefantes: eles rolam na lama e, em seguida,
rolam na água para enxaguar a sujeira, mas então eles têm que rolar na sujeira de
novo para se secar. Nós tendemos a ver as coisas através dessa lente dualista, mas
quando você diz que tudo se inclina, se encosta, se apoia, você não pode dizer que
[referindo-se ao gesto de tocar os dedos indicadores] é um e você também não pode
dizer que são dois. É não-dual, e isso é muito poderoso. Isso tem sido muito
poderoso para mim porque eu sinto que o mundo é realmente mágico.
Quando eu acho que estou certa e as coisas estão presas no lugar delas, eu também
estou presa nesse meu lugar. O Buda disse que todas as emoções negativas
surgem a partir da reificação das coisas, de pensar que sabemos o que elas são, de
achar que elas são ruins e terríveis ou que são boas e perfeitas. Por exemplo,
divinizar alguém é muito desrespeitoso porque, assim, ela não pode ser totalmente
humana e demonizar alguém também é desrespeitoso porque nós não vemos todas
as causas e condições que levaram tais coisas a acontecerem.
Multidimensionalidade
No meu primeiro livro [O poder de uma pergunta aberta], eu dei alguns exemplos e
ainda acho que eles são muito bons exemplos sobre como a negatividade surge da
reificação, de fazer algo se tornar real. Aqui, "real" não significa que você não tem a
experiência de algo, "real" significa dizer que a coisa existe no objeto em si. Por
exemplo, eu li uma estatística sobre uma pesquisa que foi feita durante a Primeira
Guerra Mundial: eles perguntaram aos veteranos se eles preferiam atirar ou serem
alvejados e, a maioria deles, disse que preferiria receber um tiro a atirar em outra
pessoa. É claro que os militares ficaram sabendo disso e não gostaram, então, eles
começaram a inventar novas táticas para doutrinar os veteranos, fazendo-os reificar
ou objetificar o inimigo. Depois do Vietnã, as estatísticas mudaram, eles passaram a
dizer que preferiam atirar do que serem alvejados, o que é muito triste e alarmante.
Isso mostra que olhar para alguém de uma maneira unidimensional, como no caso
do inimigo, faz com que não vejamos a multidimensionalidade de quem eles são.
Podemos abrir essa conversa mais e mais e falar sobre a natureza prática da
admiração e como é importante usar a interdependência como uma ferramenta para
abrirmos a nós mesmos além desse modo de pensar de sabermos o que alguma
coisa é ou o que uma situação seja. Mesmo agora, no Dia da Terra, quando cairmos
no desespero e nos zangarmos com o estado do mundo, o estado do nosso governo
ou qualquer coisa em particular, podemos usar a interdependência para entender
que tudo depende de como você olha, que depende do momento, que há causas e
condições que dão origem a todas as coisas e assim por diante. É assim que a
interdependência funciona nesta tradição particular.
. . .
* Nota dos tradutores: Elizabeth sempre fala "Everything leans", no sentido de
encostar-se, inclinar-se, repousar em, apoiar-se. Quando algo encontra-se encostado,
inclinado, apoiado, sustentado por outras coisas, sua manifestação, posição e
movimento dependem da manifestação, posição e movimento daquelas que o
apoiam. As coisas que o apoiam, por sua vez, também estão encostadas, inclinadas,
sustentadas, apoiadas em mais outras coisas, tornando o primeiro também
dependente dessas terceiras, como em um gigante castelo de cartas. Podemos seguir
essa contemplação de modo infinito.
Tradução: Polliana Zocche, Alessandra Granato, Gustavo Gitti.
Revisão: Alessandra Granato, Gustavo Gitti, Rafael Longo e Stela Santin.