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«Esta velha angústia»

Esta velha angústia, O poema desenvolve-se em torno da


Anáfora angústia do sujeito poético; termo que se
Esta velha angústia,
repete na segunda estrofe e que deu origem
Esta angústia que trago há séculos em mim,
a um suceder de emoções associadas à
Transbordou da vasilha,
palavra «transbordou»; Trata-se de um
Em lágrimas, em grandes imaginações,
sentimento que perdura no tempo, como
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
vemos no v.2. e que provoca alterações
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
incompreendidas no sujeito poético
(referência ao deítico «mim» e às «emoções
Transbordou. súbitas sem sentido).
Metáfora Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! Na segunda estrofe, reforça a ideia de que a
Se ao menos endoidecesse deveras! angústia transbordou e que lhe causou
Mas não: é este estar entre, sofrimento, incómodo («pregas na alma») e
Este quase, sem saber o que fazer, deseja endoidecer;
Este poder ser que...,
Na terceira estrofe, sugere novamente a
Isto.
ideia de loucura, colocando-o num estado
de indefinição entre o «lúcido» e o «louco»;
Um internado num manicómio é, ao menos, alguém,
O uso dos quantificadores «tudo» e «todos»
Antítese Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
reforça a alienação do sujeito relativamente
Estou doido a frio, a todas as pessoas e simultaneamente uma
Estou lúcido e louco, ideia de igualdade perante quem o cerca.
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura É o estado de alienação e de indefinição que
Porque não são sonhos vai originar a invocação à sua «pobre velha
Estou assim... casa», símbolo da sua infância perdida;
procura afeto, carinho, mas tal como a casa,
Pobre velha casa da minha infância perdida! que sofreu com o tempo, também na sua
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! alma esses sentimentos parecem
Que é do teu menino? Está maluco. irrecuperáveis. (v.29).
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
A religião surge como uma solução para o
Está maluco. seu drama, ainda que contemple em si a
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. impossibilidade, pelas características que o
desagradam, «feiíssimo» e «grotesco», e
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! pela repulsa que lhe causa, refletida pelo
Por exemplo, por aquele manipanso uso do modo condicional.
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco, Na última estrofe, o sujeito poético introduz
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. a imagem de um coração feito de vidro, para
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer — reforça a ideia do sentir como algo frágil e
Júpiter, Jeová, a Humanidade — transparente, como que a sensibilidade que
Qualquer serviria, ainda exista nele e que é visível o faz sofrer.
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

16-6-1934

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

Rosa Oliveira
«ESTA VELHA ANGÚSTIA» |

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