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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Psicologia

Lembrar ou esquecer?
O trabalho analítico com crianças vítimas de violência sexual.
Cassandra Pereira França1
Diego Henrique Rodrigues2
Anna Paula Njaime Mendes3

A prática clínica do Projeto CAVAS4 permitiu-nos observar que os pacientes, depois de


terem percorrido todo o processo que envolve a denúncia do abuso sofrido, desenvolvem um
conflito entre “a necessidade de lembrar” e “a necessidade de esquecer” semelhante àquele
descrito na bibliografia especializada. Daí surgiu o nosso interesse por uma pesquisa teórica
que buscasse suportes na obra freudiana para essa importante polaridade, com o objetivo
principal de produzir recomendações técnicas para o início de análise dos casos de abuso
sexual infantil.

Objetivos:
1. Descrever os fatores econômico, topográfico e dinâmico dos processos de lembrança e
recalcamento de um evento traumático, conforme a metapsicologia de Freud.
2. Determinar qual deveria ser a direção das intervenções clínicas feitas pelo analista no início
do tratamento com crianças vítimas de abuso sexual.

A questão principal da pesquisa


Sabemos que do momento da denúncia até a finalização dos trâmites jurídicos, a vítima é
entrevistada por vários profissionais da rede de proteção, composta pelo Conselho Tutelar,
Delegacia Especializada, Instituto Médico Legal, Hospitais e Juizados da Infância. Todo esse
longo processo, que sem dúvida alguma é importante para a responsabilização do agressor,
envolve um contínuo relembrar do evento traumático. Assim, duas importantes questões ficam
em aberto: Quais são os efeitos psíquicos do contínuo recontar dos fatos traumáticos? Como
esses efeitos são transpostos para o campo transferencial da análise e qual deveria ser, então,
a postura teórico/clínica do analista?

Esquecer e lembrar
A prática clínica do Projeto CAVAS mostrou que muitas vítimas reclamavam mais do processo
que envolvia a denúncia do que da própria cena de violência sexual sofrida. Isso levou à
hipótese de que a denúncia ressignifica a cena do abuso, dando-lhe, a posteriori, o seu

Prof. Adjunta do Departamento de Psicologia da UFMG. Dra. em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Coordenadora do
1

Projeto CAVAS.
Psicólogo. Especialista em Filosofia. Estagiário do Projeto CAVAS.
2
3
Psicóloga. Estagiária do Projeto CAVAS.
Projeto CAVAS (Projeto de Pesquisa e Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Abuso Sexual) em
4

funcionamento no Serviço de Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Minas Gerais, desde 2005.
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Psicologia

verdadeiro caráter de violência sexual que precisa ser recalcado. Estaria a necessidade dos
profissionais da rede de proteção em checar a realidade dos fatos incrementando a
necessidade de recalcamento dos pacientes? Se o papel do analista é aliviar o sofrimento,
então será preciso que ele trabalhe a favor do recalcamento no início da análise de crianças
vítimas de abuso sexual?

A função do analista
O trabalho analítico com crianças vítimas de abuso sexual impõe ao analista a necessidade de
compreender a singularidade do funcionamento psíquico de cada paciente para que a análise
não seja vivida como uma violação. Levando em conta tal premissa, a de não violar ainda mais
o psiquismo da criança, surgem inúmeras dúvidas e impasses clínicos que nos fazem debater
algumas recomendações da literatura específica, tal como as que se seguem. Para BOLLAS
(1992) a dificuldade da análise de vítimas de abuso sexual relaciona-se ao enquadre analítico,
onde o silêncio do analista pode ser confundido com a mensagem sexual inconsciente e
enigmática do abusador. UCHITEL (2001) defende uma despadronização do setting analítico na
clinica do trauma em geral. ALVAREZ (1994) pensa ser importante que o analista não faça
interpretações que encorajem equações simbólicas, mas, sim, aquelas que favorecem a criação
de distinções desejáveis como eu/você ou realidade/fantasia. O crime de abuso sexual contra
crianças destrói as bases sobre as quais se estruturaria o psiquismo: sexualidade e
culpabilidade. Nesse sentido, a violência sexual também é algo da ordem do não-sexual, da
ameaça de morte. Somente depois que o analista trabalhe para descondensar esse núcleo
patológico é que poderá acompanhar seu paciente na busca do desejo inconsciente.

Bibliografia
ALVAREZ, Anne (1994). Companhia viva: psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderlines, carentes e
maltratadas. Porto Alegre: Artes Médicas.
BOLLAS, Christopher (1992). O trauma do incesto. In:______ Forças do destino, Rio de Janeiro: Imago.
CROMBERG, Renata Udler (2004). Cena incestuosa: abuso e violência sexual (Coleção “Clínica Psicanalítica”). 2 a ed.
São Paulo: Casa do Psicólogo.
FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. Vol. XII da ESB.
_______ . (1920). Além do princípio de prazer. Vol. XVIII da ESB.
UCHITEL, Myriam (2001). Neurose traumática: uma revisão crítica do conceito de trauma (Coleção “Clínica
Psicanalítica”). São Paulo: Casa do Psicólogo.

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