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TEORIA DEMOCRATICA E DELIBERACAO PUBLICA LEONARDO AVRITZER ‘A teoria democritica, de Rousseau até os nossos dias, tem tido uma relagdo histérica circular com o conceito de deliberagio (Manin, 1987). Alguns autores tém utilizado 0 termo com o significado de um processo no qual um ou mais agentes avaliam as razdes envolvidas em um determinada questo (Habermas, 1994; Cohen,1989); outros autores uti- lizam 0 termo tendo em vista o momento no qual 0 processo de tomada de decisio ocorre (Rousseat,!968; Schumpeter, 1942; Rawis,1971). Na ver- dade, Bernard Manin nao chega a apontar para o fato de que o termo deli- beragio, na sua origem etimoldgica, permite os dois significados: deliberar pode tanto significar “ponderar, refletit” quanto “decidir, resolver.”! (Hollanda, 1975). A teoria democratica, adotando implicitamente a distingdo eti- mol6gica apontada acima, tem tratado a relagao entre a praitica democréti- ca € 0 processo deliberativo de duas formas distintas. Por um lado, autores classicos como Jean Jacques Rousseau claramente privilegiaram 0 aspecto decisério, no interior do processo deliberativo, ao tratar do processo de for- magao da vontade geral. Para Rousseau, “Quando uma lei € proposta na assembléia popular, o que é per- guntado a eles [os representantes] nao tanto se eles aprovam ' Vale a pena notar que a dualidade de significados do termo deliberacdo perpassa as Ifnguas latinas © est também presente na lingua inglesa. O diciondrio Webster nos oferece os seguintes significados para o termos deliberation: “careful thought and weighting of consid- eration” € “to determine or resolve.” 26 LUA NOVA N* 49 — 2000 ou rejeitam a proposig&o, mas sim se ela esta de acordo com a vontade geral, que também € a deles. Toda pessoa ao votar dé a sua opinido a respeito dessa questo ¢ a vontade geral é entio deduzida da contagem dos votos. Portanto, quando uma opiniaio contréria a minha prevalece, isso apenas prova que eu estava equivocado ¢ que aquilo que eu supus ser a vontade geral néio 0 era.”(Rousseau, 1968: livro TV, caput 2). Rousseau, ao identificar 0 processo de formagdo da vontade geral com o processo de aferigao da vontade da maioria, propde uma con- cepgaio de democracia baseada nos seguintes elementos: a decis’io como 0 elemento central do processo deliberativo; a idéia de que, uma vez aferida a vontade da maioria, a posi¢do perdedora nada mais representa do que um erro. Essa posicao, que foi hegeménica no interior da teoria democritica por quase 200 anos, tem dado lugar a uma concepgao alternativa, que uti- liza 0 segundo significado etimoldgico do conceito de deliberagio, qual seja, a idéia de um processo de discussio e avaliaco no qual os diferentes aspectos de uma determinada proposta so pesados. Desde os anos 70 tem surgido no interior da teoria democratica contempordnea uma tendéncia a reavaliar 0 peso do elemento argumenta- tivo no interior do processo deliberativo. Tal processo tem diversas ori- gens, a mais importante delas sendo 0 questionamento da centralidade do momento decisério no processo deliberative. Autores como Touraine, Habermas, Cohen, Melucci e Bohman, que propuseram ou teorias dos movimentos sociais ou teorias da estera publica, chamaram a atengo para a centralidade do momento argumentative, momento esse entendido como um “...intercdmbio de razGes feito em ptiblico” (Cohen, 1997:73). Autores que trabatham com a questo da identidade (Melucci, 1996; Young, 1996) também chamaram a atencdo para a centralidade do processo argumentati- vo no momento do reconhecimento da validade de uma identidade alterna- tiva, Melucei, por exemplo, chama a atengiio no processo de construgio de novas identidades para 0 seu” carter interativo através do qual diferentes individuos ou grupos definem o significado das suas ages.” (Melucci,1996:67) Por fim, um conjunto de experiéncias administrativas (Santos,1998; Abers,1998; Avritzer, 2000; Fung,2000) tem colocado em cheque os principais elementos de uma concepeao decisionistica de deli- beraciio, em particular a idéia defendida a partir de Weber (1919) de que as formas complexas de administragao podem prescindir de elementos parti- cipativos e argumentativos. ‘TEORIA DEMOCRATICA E DELIBERAGAO PUBLICA 2 Esse artigo tem como objetivo caracterizar a passagem no inte- rior da teoria democritica de um conceito decisionistico de deliberacio para um conceito argumentativo de deliberagdo. O nosso argumento ser desenvolvido em trés partes: em uma primeira parte caracterizaremos a concepgo de deliberacZio que se tornou dominante na teoria demoeritiea do século XX. Iremos denomind-la_concepgdo decisionistica de delibe- taco, uma concepcaio que tem as suas origens em Rousseau e que € uti- lizada por todos os autores que pertencem ao assim chamado elitismo democratico.2 Em uma segunda parte, mostraremos a origem da crise de um conceito decisionistico de deliberagao. Iremos mostrar a dualidade da utilizagdo do conceito de deliberagio na obra de John Rawis, especial- mente na sua Uma teoria da justiga. Iremos ainda, na segunda segio desse artigo, mostrar como Rawls e Habermas consolidam um uso alternativo do conceito de deliberagio, uso esse que €, entao, teorizado por Cohen (1987). Na terceira parte desse artigo iremos relacionar 0 coneeito de deliberagao que surge das obras de Rawls, Habermas e Cohen com algumas experi cias empfricas, colocando-nos a questdio de quais seriam os féruns da democracia deliberativa. DE WEBER A DOWNS: O MODELO DECISIONISTICO A primeira metade do século XX foi um momento de crise pro- funda da democracia. Max Weber foi 0 tesrico social cuja obra melhor expressou 0 ceticismo de inicio do século em relagdo A democracia. Weber antecipou, na sua obra, duas questes que se tornariam, ao longo da primeira metade do século XX, elementos de uma concepgio decisionisti ca de deliberacdo: 0 primeiro desses elementos seria o ceticismo em relagdo a debates envolvendo tradigdes culturais distintas; 0 segundo seria 2 Entendemos por elitismo democritico todas as concepgées de democracia que operam com dois elementos: a redugio do conceito de soberania ao processo eleitoral e a justificagao da racionalidade politica enquanto decorrente da presenca de elites politicas ao afvel de gover no, Tal concepeio teria a sua origem em Max Weber (1919), teria 0 seu momento te6rico prin- cipal em Schumpeter (1942) e teria como seus principais representantes contemporfineos ‘Anthony Downs, Giovanni Sartori Norberto Bobbio. Para uma caracterizagao do elitismo democratico vide (Bachrach, 987). Para uma critica vide Avritzer, 1996.

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