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INTRODUÇÃO
2 Há uma semiótica dos objectos da sociedade de consumo (Moles, Baudrillard), da arquitectura (Eco,
entre outros). O vestuário, os automóveis, os objectos de uso comum, além das suas funções primárias,
adquirem funções segundas de ordem cultural, social, religiosa.
3 Os versos de Alain de Lille, no século XII, citados por Eco, exprimem bem a ideia do universo como
teofania: “Omnis mundi creatura/ quasi liber et pictura/ nobis est in speculum. Nostrae vitae, nostrae
mortis, /nostri status, nostrae sortis, /fides signaculum”. Veja-se O Signo, cap. IV.
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as coisas, mas uma epifania universal, a linguagem como a voz do Ser que fala
e interpela a escuta, num lugar e num tempo onde não existe a convenção,
porque é anterior ao próprio homem. Neste caso tudo é signo, o que anula a
viabilidade de construir uma semiótica ou uma teoria dos signos. A força
simbólica invade e preenche de tal modo tudo o que existe, que
paradoxalmente reduz ao silêncio total e instaura um regime de incomunicação
radical. Poderia aqui referir-se o que escreve um autor italiano (De Mauro) a
propósito da filosofia da Expressão de Croce: “A luz da total exprimibilidade
que penetra todo o universo crociano com um indesejado impulso dialéctico
converte-se então na sombra, misteriosa e insondável, da incomunicabilidade”4.
É evidente que esta «pansemantização» onde tudo comunica e se
exprime, significa como vimos a anulação da própria semiótica; como observa
Eco, a investigação semiótica é justamente a explicação de como é que se
comunica ou significa, e pressupõe a diferença entre o que é e o que não é
signo. A situação a que conduz a invasão do signo está bem retratada no caso
emblemático evocado por Jorge Luís Borges: o de uma cultura na qual se
aperfeiçoou tanto a arte da cartografia que, no final, os mapas tinham a mesma
extensão que os próprios territórios. O mundo dos signos autonomiza-se a tal
ponto, os signos multiplicam-se de tal modo que deixam de ser signos de
alguma coisa, mas apenas signos de um signo. A realidade é indiscernível da
ficção5.
O que está em causa nestas concepções do símbolo é uma oscilação
entre uma ideia de dualidade que separa e isola o signo – a materialidade física
do objecto significativo – do significado, e uma ideia de unidade monolítica
que anula a diferença e a especificidade da linguagem propriamente dita e do
que esta exprime. No primeiro caso, impõe-se sempre um esquema que
apresenta o signo como uma forma de «substituição» da realidade originária ou
5 Cfr Inciarte, F. – Imágenes, palabras, signos. Sobre arte y filosofía, Pamplona, EUNSA, p.34.
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expressiva tornar-se-á mais clara. Uma melodia triste: onde reside a tristeza que
as notas transmitem? No final das Investigações Filosóficas, Wittgenstein
pergunta:
“Pensa na expressão seguinte: «A melodia que ouvi era um lamento!» E
agora pensa na seguinte pergunta «Ouves o lamento»?” (XI, §123).
Alguém passa por nós na rua: imediatamente e de modo espontâneo,
sem inferência, vemo-la triste ou radiante, cansada ou cheia de energia, gasta
ou fresca como uma alface e fazemos todo um diagnóstico sobre o seu estado
de saúde, a sua situação social, familiar, o seu estilo de vida, as suas
dificuldades económicas. Vemo-lo no andar, no olhar, no porte, no vestir. Os
exemplos abundam na literatura: as descrições fisionómicas, a tradução dos
gestos, do modo de olhar, de sorrir, as posturas, um inclinar da cabeça, a atitude
corporal, fazem-nos ver as personagens com a sua psicologia, os medos, os
desejos, as ambições, os fracassos, as angústias, as virtudes e as fragilidades.
Captamos, através da percepção , as «qualidades dinâmicas» que estão
«carregadas de significado expressivo»9. Dois exemplos: o primeiro de Balzac
num pequeno ensaio A teoria do modo de andar, o segundo do Livro do
Desassossego. Ambos apresentam um transeunte, descrevendo o seu aspecto, o
seu andar, revelador de toda uma forma de vida. Balzac escreve: “Ele andava
com as mãos cruzadas para trás, ombros encolhidos e fortes, as espáduas quase
unidas: parecia um filhote de perdiz assado sobre um pedaço de torrada.
Parecia que ele se movia para a frente só com o pescoço e o seu corpo todo
recebia esse impulso através do peito”10.
Fernando Pessoa – Bernardo Soares – vê nas costas de um homem que
passa a banalidade da sua vida, a rotina e o cansaço de um empregado a
caminho do trabalho, a sua condição remediada, a inconsciência ingénua
9 Cfr Arnheim, R. – Arte & Percepção Visual. Uma Psicologia da Visão Criadora. São Paulo, Livraria
Pioneira Editora, 1989 (5ª ed.).
qualquer ser vivo faz ver a sua alma15 . O que se entende por ver? Não se trata
de exigir um fundamento ou uma intuição intelectual. O mais originário que
Wittgenstein encontra não é nada de ordem intuitivo ou cognitivo, mas uma
atitude (eine Einstellung): “A minha atitude em relação a ele é uma atitude em
relação a uma alma. Não sou da opinião que ele tem uma alma”16. A opinião
releva de um saber teórico, à distância, que se dissocia da cultura da vida,
incrustada numa comunidade, a cultura das camadas populares mantêm o corpo
no seu lugar central, enquanto pivot do enraizamento do homem no tecido
mundano17.
A ideia do corpo como um resto surge nos alvores da modernidade com
a autonomização do indívíduo e o saber anatómico que visa o corpo
isoladamente, numa espécie de indiferença em relação ao homem ao qual
confere visibilidade. O dualismo contemporâneo não tem as suas raízes apenas
no cogito cartesiano, mas também nos atomistas da Itália do Quattrocento,
nomeadamente no De corporis humani fabrica de Vesalio18 . Índice
fundamental da concepção moderna do corpo, o saber anatómico ilustra bem o
corte ontológico do homem com o cosmos, com os outros e consigo mesmo, e
o recuo até ao corpo residual, forma ontologicamente vazia que deixou de ser
signo da presença humana, indiscernível do homem, mas a sua forma acessória,
acidental e por vezes depreciada. O corpo é associado ao ter, não ao ser,
descentrado do sujeito ao qual dá rosto, é encarado mais como um acessório da
pessoa do que como a sua expressão mais originária. O dualismo de Descartes
é um prolongamento do dualismo de Vesalio – a unidade da pessoa desagrega-
se e esta fractura indica o corpo como um resíduo, não penetrado pelo
pensamento. O homem cartesiano é uma «colagem» entre um espírito que se
19 Cfr Le Breton, ob. Cit., p. 69. Veja-se o cap. 3, sobre a metáfora do corpo-máquina, que inspirou a
concepção moderna do corpo e o relegou para a categoria de um «resto» inexprimível, silencioso,
alheio ao processo de simbolização da presença humana.
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desejo, às emoções para lhes dar visibilidade, como se toda a vida psíquica
permanecesse silenciosa e escondida sem essas manifestações externas. Se
assim fosse, deparar-nos-íamos de novo com uma «lógica do duplo». A «acção
expressiva» seria uma tradução e exteriorização de algo diferente dela própria,
como se re-apresentasse o interior. Todo o agir expressivo é por si mesmo uma
presentação de si mesmo, que não se coaduna nem com um tratamento nos
termos de uma semântica triádica –signo, significado e referente – pois na
própria expressão colapsam as noções de significante e significado, nem com o
esquema tradicional na antropologia e na medicina, sobretudo na psiquiatria, de
antecedente-consequente, ou causa-efeito. A própria crença na causalidade
psíquica é posta em causa por este modo de pensar e compreender a acção e a
conduta expressivas.
4. A questão que se põe agora é esta: tendo em conta este colapso entre
significante e significado nas expressões do corpo, como entender uma série de
comportamentos e atitudes que vão desde o escondimento e o resguardo da
própria intimidade, até à representação (teatral) e à dissimulação, à má-fé, à
“mentira interior” (Kant), “mentira orgânica” (Scheler), e todos as formas de
comportamentos duplos, ambíguos e desviantes? O corpo constitui-se num
meio de comunicação primordial, institui o âmbito mais originário da
intersubjectividade e da abertura e relação com o mundo e com o outro. Mas é
também fundamentalmente um factor de individuação, no qual radica o
sentimento de ser um indivíduo antes de ser membro de uma comunidade,
rodeado por uma fronteira precisa que marca a diferença entre um homem e o
outro: o corpo é simultaneamente a muralha de contenção que garante o
sentimento de si, a construção do self ou do «eu» que é o fundamento da
individualização e do corte originário com o não-eu – o mundo, o meio, o
outro. O contorno do corpo próprio, cria um espaço privado, exclusivo que
funda o sentimento de si, a apropriação das experiências próprias, e ao mesmo
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21 Maxime 87: “Les hommes ne vivraient pas longtemps en société s’ils n’étaient les dupes les uns des
autres”.
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“Os homens são tanto mais comediantes quanto mais civilizados forem:
adoptam a aparência da afecção, do respeito pelo outro, do desinteresse
(Uneigennützigkeit) sem enganar ninguém, pois cada um entre os outros
entende bem que o coração não toma parte nisso; é muito bom que isto seja
assim no mundo. Pelo facto de os homens desempenharem estes papéis, as
virtudes que durante certo tempo se contentaram com afectar, acabam por
despertar e passam a ser disposições do espírito. Mas enganar o impostor que
está em nós próprios, a inclinação, é voltar a submeter-se à lei da virtude; não é
dissimulação, mas uma inocente maneira de nos iludirmos a nós próprios”22.
O risco que se corre é o da inautenticidade, do culto das meras
aparências ocas e vazias; mas o jogo da moderação e da reserva tem como
contrapartida a vantagem de permitir a contenção dos excessos na relação
consigo mesmo e com os outros; e sobretudo a arte das aparências conquista a
estima mútua e mesmo que comece por ser apenas uma conduta de superfície,
na medida em que é motivada pelo respeito e consideração pelo outro, acaba de
facto por transformar-se em virtude.
Kant engloba, no entanto, estas formas de contenção, decência, modos,
temperança, moderação, no conceito de dissimulação; não se trata, porém, de
uma ilusão ou de um logro para consigo próprio, mas de diplomacia para com
as nossas inclinações, de sincero reconhecimento dos nossos limites e
impurezas que precisam de ser domesticadas. (Kant fala aqui numa vingança
da moralidade). Não se trata de enganar, mas de um princípio da caridade, de
ter em conta as máximas da boa convivência e coexistência entre os homens,
que são todos limitados, imperfeitos, impuros, e enganar-se-iam se se
considerassem seres angélicos acima dos condiciomentos próprios de um ser
corpóreo. No fundo destas considerações de Kant, permanece uma visão
negativa da condição humana, assente numa espécie de atitude de resignação
perante a própria dimensão corpórea; é esta que o obriga a um jogo de auto-
23Cfr Elders, Leo – Jean Paul Sartre; El Ser y la Nada, Madrid, EMESA, 1977, onde se faz
uma análise crítica da obra de Sartre.
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25 Cfr Barata, A. – Metáforas da Consciência, pp. 262 e ss., onde se faz uma caracterização da má-fé
sartriana.
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ser consciente. Não coincide, portanto, com o sentido corrente com que
empregamos a expressão para dizer que alguém actua de má-fé: neste caso
pressupomos uma valorização ética negativa, porque quem actua de má-fé
poderia não actuar desse modo, actua intencionalmente de má-fé, com o
explícito intuito de mentir a si próprio, embora possa saber a verdade: quer
decididamente enganar-se a si e aos outros. A possibilidade de atribuir uma
valorização ética à má-fé pressupõe a possibilidade de uma actuação sincera, de
uma concordância entre o que se crê e o que se é. Ora esta situação – a da
consciência crer e ser o que é – em Sartre é sempre uma situação instável,
precária, sempre em alternância com situações contrárias, em perpétua fuga e
desagregação da consciência. Para Sartre, “o ideal da sinceridade é uma tarefa
irrealizável”. O campeão da sinceridade expõe-se a cair na má-fé porque no
fundo da sinceridade encontramos o mesmo trânsito entre o que se é e o que se
não é. Não sou o meu corpo na medida em que não sou o que sou e há uma
separação artificial entre corpo e consciência: o corpo é um obstáculo a
transcender, como um intruso ou um falsário.
Daí o absurdo total, a incomunicação, o silêncio e a cegueira de toda a
consciência que não visa nunca uma síntese positiva, mas que se mantém numa
constante desintegração, consequência da sua intrínseca negatividade e
nihilização. Não se pode ver a si mesma, nem pode crer a não ser de um modo
sempre enviezado e por isso nada a pode exprimir porque permanece sempre
um fundo obscuro e ambíguo. A má-fé faz curto circuito a qualquer
possibilidade de expressão: se um homem está triste, essa tristeza não é sua
como o verde é dos olhos ou a lisura é da mesa. Se a ideia de expressão
pressupõe uma fusão ou mesmo identidade entre o que se é e o que aparece,
entre o que se é e o que se exterioriza, o que fazemos, o modo como nos
comportamos, etc., na situação da consciência em Sartre, a relação dialéctica
entre facticidade e transcendência instaura uma instabilidade entre ser e
aparecer, entre o que se é e o que se não é, e ludibria toda e qualquer forma de
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expressão. Não há expressão porque não há nada para exprimir. O corpo é uma
“passividade roída pelo mal”, um obstáculo, uma obstrução a qualquer
passagem de sentido e portanto totalmente inexpressivo. Conhecido
objectivamente, o meu corpo já não é o meu corpo, mas uma coisa externa a
mim. Sartre mostra bem que o corpo não pode ser encarado como coisa ou
objecto exterior a mim, mas rejeita qualquer forma de consciência ou
conhecimento do próprio corpo. Descreve com subtileza as nossas impressões
ao sermos examinados pelo médico, mas considera aberrante a inclinação
natural para atribuir ao nossos corpo o que os outros vêem nele26. O olhar do
outro é sempre uma ameaça devastadora27, sob o qual a consciência se reveste
de um corpo como expressão sua no mundo. Mas este corpo «agarrado» à
consciência é captado sob a forma de um “sabor insosso que acompanha
sempre o meu paladar”.
27 O «outro» existe como condição de possibilidade para a consciência se tornar objecto para si
mesma; sem esta passagem pelo olhar do outro, não há conhecimento de si. A questão que se põe é a de
saber como pode o olhar alheio produzir esta transformação se a consciência carece de capacidade
auto-reflexiva. E para que esse olhar possa afectar a consciência, esta tem que estar incarnada, possuir
uma estrutura corporal. Cfr Zaner, Richard – The Probem of Embodiment. Some Contributions to a
Phenomenology of the Body, Haia, 1964, p. 74.
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