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EXPRESSÕES DO CORPO

MARIA LUÍSA COUTO SOARES*

INTRODUÇÃO

A relação corporeidade-linguagem será o mote para uma primeira


exploração do carácter constitutivamente simbólico do corpo enquanto instinto
de forma e de significado, dotado de uma aesthetica connata – expressão de
Herder – mais ampla do que a lógica connata. A noção de expressão indica o
modo de entender a fusão entre símbolo e sentido, da qual a corporeidade é o
exemplo emblemático, e põe em causa uma “lógica do duplo” que tanto a
fenomenologia (pense-se sobretudo em Merleau-Ponty) como as descrições
paisagísticas de Wittgenstein denunciam.
Para compreender a força expressiva do corpo humano, é necessário
precisar o sentido a dar ao termo «signo», que tem um significado muito
ambíguo. Nem todos os signos são manifestação da realidade; em muitos casos,
como os signos arbitrários, exteriores, instituem mesmo uma realidade
substitutiva, uma segunda realidade como um pano de cena a encobrir a
realidade originária. A nossa aparência corpórea não é apenas denotação de
uma realidade escondida, mas expressão no sentido forte, na medida em que
contém a motivação real da persuasão da realidade. O corpo é natural e
realmente expressivo, não apenas indicativo (tenha-se em conta a distinção
husserliana entre Anzeichen e Ausdruck que se aproxima da distinção
tradicional entre signo instrumental arbitrário, consuetudinário e instrumental,
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natural); simplesmente o corpo não se esgota em ser signo, é «a melhor


imagem da alma» - imagem, similitudo, semelhança reveladora. Por isso, além
*Universidade Nova de Lisboa
da expressividade natural, espontânea, instintiva, há uma intencionalidade
expressiva que penetra e anima toda a conduta humana
Como pensar a intencionalidade deste “agir expressivo”? Se o corpo é
naturalmente expressivo, transparente, como se justificam então as várias
formas de dissimulação - o fingimento, a mentira, a má-fé? Como se
compreendem todos os comportamentos desviantes, ambivalentes, ambíguos?
E como explicar as patologias mentais, as situações em que o «eu» se cinde do
próprio corpo, e se dá uma ruptura profunda na consciência da identidade
pessoal? Serão formas de contra-expressão, de redução ao silêncio, nas quais o
corpo se torna algo estranho ao próprio eu.
A evidência da corporeidade na primeira pessoa - e não como “chose
tierce et étrangère à nous mêmes” (Montaigne) - e a vivência da identidade
pessoal seriam então meras ilusões, e a dinâmica expressiva encontrar-se-ia
minada por dentro. Imagem deformada, simulacro, gatafunho, esse corpo que
não sou, representaria um obstáculo, um fardo estranho e pesado, maciço e
opaco que se me cola como um objecto e me sobrecarrega com uma carapaça
incómoda e inestética. Lançado no mundo das coisas como uma coisa mais,
tenho um corpo que está a mais e colide continuamente com outros corpos,
oferecendo resistência e obstruindo toda a possibilidade de coexistência e de
comunidade.
Este é precisamente um dos aspectos mais enigmáticos da nossa
condição humana: a virtualidade, inscrita no ser corpóreo, de comunicar, de
tornar-se transparente e simultaneamente de instituir-se num bloco de
opacidade, de escondimento e dissimulação. Estes dois vectores – expressão/
dissimulação, transparência/opacidade – residem numa mesma força ou
potencialidade bifronte que o corpo humano tem, de dar-se a ver, exercendo a
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sua capacidade simbólica, e também de ocultar e obstruir a eficácia


comunicativa. A maleabilidade deste processo simbólico transparece nas
lógicas sociais e culturais próprias da corporeidade e nas regras da grande
variedade de jogos que entretecem a rede da coexistência humana.
Tratarei, portanto, de explorar a ideia de expressão como força natural,
instinto congénito para a revelação inscrito no corpo; a sua expressividade
releva de uma semântica peculiar que não se rege pelos esquemas tradicionais
de tripartição dos conceitos de significante/sentido/significado. Tendo em conta
que, como disse, o corpo não é mero signo, não se esgota na sua função
simbólica, propor-se-á o seguinte: na corporeidade, funde-se de modo
inextricável a função do signo com a do significado, dando lugar a novos
regimes de símbolos que desencadeiam espontaneamente forças de
comunicação e de relações intersubjectivas.
Pela expressividade conatural – nas suas variadas formas, desde a
linguagem à géstica, fisionomia, etc. – o corpo torna-se presença, manifestação,
palavra; mas a presença convoca a ausência, a manifestação o ocultamento, a
palavra o silêncio. O segundo vector da força simbólica revela-se nas
estratégias de fingimento, dissimulação, mentira, que parecem um desafio à
capacidade comunicativa do corpo. E, no entanto, este é a condição de
possibilidade dessas mesmas estratégias.
Em confronto com as modalidades de expressão, fenómenos como o
fingimento, a mentira, a dissimulação, podem considerar-se, de facto, como
formas de contra-expressão que provocam a ausência do sentido, a
instauração de um vazio comunicativo e a rotura da sociabilidade humana.
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1. O corpo é um símbolo, sem dúvida, pois está dotado de uma forma de


expressão peculiar, que não se rege pelas estritas regras semânticas e
linguísticas, visto que não se dá uma perfeita adequação entre significante e
significado. Isto quer dizer que não é possível identificar corpo e signo, na sua
materialidade física e instrumental: o corpo humano não se apresenta como um
objecto natural ou convencional que remete para uma outra realidade, mas
revela-se ele próprio uma realidade originária plenamente expressiva,
luminosa, reveladora de uma subjectividade que não se explica cabalmente na
sua dimensão corpórea. O corpo é a melhor «imagem» da pessoa, do sujeito,
precisamente porque não tem um carácter instrumental, mas inscreve-se de
pleno direito na interioridade e intimidade pessoal.
Como construir então um «discurso sobre o corpo»? Ou como entender
a função significativa e expressiva do corpo? Embora dotado de sentido e de
significado, não é possível detectar e identificar um sentido referenciável
preciso, o signo permanece em aberto, disponível, na sua plasticidade
simbólica: tem «um valor simbólico zero», segundo a expressão de Lévi-
Strauss, pois significa tudo e nada, é «símbolo no estado puro, susceptível
portanto de suportar qualquer conteúdo simbólico».
A própria ideia de signo está neste caso sujeita a um regime que
transgride todas as tentativas de a circunscrever categorialmente no contexto da
comunicação humana. As definições mais abarcantes apontam sempre para
uma certa ideia de «substituição» que permite a função de referência: neste
sentido todo o signo será “o antecedente evidente de um consequente ou, ao
contrário, o consequente do antecedente quando consequências similares foram
observadas primeiro; e quanto mais vezes tiverem sido observadas, menos
incerto é o signo” (Hobbes, Leviathan, I, 3); a reiteração da experiência da
ligação antecedente consequente inscreve de um modo cada vez mais explícito
a relação simbólica; o signo é uma presença que convoca algo ausente, como
exprime esta outra definição: “um ente do qual se infere a presença ou a
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existência passada e futura de um outro ente” (Wolff, Ontologia, 925); e a


mesma ideia é expressa na definição dos Estóicos, “uma proposição constituída
por uma conexão válida e reveladora do consequente” (Sexto Empírico, Adv.
Math., VIII, 245).
No Dicionário de Filosofia de Abbagnano é dada uma definição mais
abarcante de signo, que compreende qualquer objecto, acontecimento usado
como substituto de outro; permite-se, assim diversas possibilidades de
estabelecer a relação referencial: do efeito à causa e vice-versa, da condição ao
condicionado e vice-versa, do estímulo de uma recordação à própria
recordação, da palavra ao seu significado, do gesto indicativo à coisa indicada,
do indício ou do sintoma de uma situação à própria situação. Nesta variedade
de possíveis relações simbólicas estão implicados diferentes processos mentais,
cognitivos, instintivos, que vão desde o simples reflexo condicionado, à
associação, inferência, ou abdução1. Neste contexto tão vasto, todos os aspectos
da cultura e da vida social podem ser incluídos entre os signos2, e caberá à
semiótica estabelecer classificações suficientemente exaustivas, segundo
critérios que percorram os diferentes factores do processo significativo.

É claro que também se pode pensar na universalidade do homem como


animal symbolicum e na força significativa de todo o mundo natural, como uma
linguagem auto-reveladora, carregada de poderes simbólicos metafísicos:
entraríamos então no registo de uma mística da pansignificação que vê a
natureza como uma linguagem divina3 ou, na forma laicizada de natureza
baudelairiana, como floresta simbólica, não criada pelo homem para dominar

1 Cfr Eco, Umberto, O Signo, pp. 34-37.

2 Há uma semiótica dos objectos da sociedade de consumo (Moles, Baudrillard), da arquitectura (Eco,
entre outros). O vestuário, os automóveis, os objectos de uso comum, além das suas funções primárias,
adquirem funções segundas de ordem cultural, social, religiosa.

3 Os versos de Alain de Lille, no século XII, citados por Eco, exprimem bem a ideia do universo como
teofania: “Omnis mundi creatura/ quasi liber et pictura/ nobis est in speculum. Nostrae vitae, nostrae
mortis, /nostri status, nostrae sortis, /fides signaculum”. Veja-se O Signo, cap. IV.
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as coisas, mas uma epifania universal, a linguagem como a voz do Ser que fala
e interpela a escuta, num lugar e num tempo onde não existe a convenção,
porque é anterior ao próprio homem. Neste caso tudo é signo, o que anula a
viabilidade de construir uma semiótica ou uma teoria dos signos. A força
simbólica invade e preenche de tal modo tudo o que existe, que
paradoxalmente reduz ao silêncio total e instaura um regime de incomunicação
radical. Poderia aqui referir-se o que escreve um autor italiano (De Mauro) a
propósito da filosofia da Expressão de Croce: “A luz da total exprimibilidade
que penetra todo o universo crociano com um indesejado impulso dialéctico
converte-se então na sombra, misteriosa e insondável, da incomunicabilidade”4.
É evidente que esta «pansemantização» onde tudo comunica e se
exprime, significa como vimos a anulação da própria semiótica; como observa
Eco, a investigação semiótica é justamente a explicação de como é que se
comunica ou significa, e pressupõe a diferença entre o que é e o que não é
signo. A situação a que conduz a invasão do signo está bem retratada no caso
emblemático evocado por Jorge Luís Borges: o de uma cultura na qual se
aperfeiçoou tanto a arte da cartografia que, no final, os mapas tinham a mesma
extensão que os próprios territórios. O mundo dos signos autonomiza-se a tal
ponto, os signos multiplicam-se de tal modo que deixam de ser signos de
alguma coisa, mas apenas signos de um signo. A realidade é indiscernível da
ficção5.
O que está em causa nestas concepções do símbolo é uma oscilação
entre uma ideia de dualidade que separa e isola o signo – a materialidade física
do objecto significativo – do significado, e uma ideia de unidade monolítica
que anula a diferença e a especificidade da linguagem propriamente dita e do
que esta exprime. No primeiro caso, impõe-se sempre um esquema que
apresenta o signo como uma forma de «substituição» da realidade originária ou

4 Citado por Eco, U. – O Signo, Editorial Presença, 1997, p. 118.

5 Cfr Inciarte, F. – Imágenes, palabras, signos. Sobre arte y filosofía, Pamplona, EUNSA, p.34.
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de mediação entre esta e a sua compreensão. No segundo, a força do signo


domina e impõe-se, tudo é símbolo e não resta nada para além deste.
No que diz respeito à capacidade expressiva do corpo, o primeiro
modelo de signo assenta numa forma de dualismo, e configura todo um
processo simbólico no qual a dimensão corpórea assume apenas o carácter de
mediação para algo que o transcende e com o qual nunca se identifica. Em
alternativa, a concepção que designei de «pansemantização», vê o corpo como
mero símbolo e nada mais: a sua capacidade expressiva esgota-se totalmente na
variedade das suas manifestações que constituem uma linguagem fechada em si
mesma, auto-referencial e intransitiva.
A ideia do corpo como expressão conduz a uma reformulação destes
esquemas de modo a encontrar um modelo que dê conta da unidade, da
identidade/diferença entre a dimensão corpórea e espiritual, que é constitutiva e
essencial da condição humana.

2. A corporeidade apresenta-se como um exemplo emblemático da fusão


entre símbolo e sentido, numa anulação de qualquer distanciamento ou
duplicidade, que instaura um novo e totalmente diferente regime de signos: o
corpo é um signo no qual colapsam as duas noções de significante e
significado, de tal forma que deixa de fazer sentido tentar olhar para além dele,
na procura de um sentido oculto, diferente e isolado do próprio significante. E é
esta «lógica do duplo» que tanto a fenomenologia (pense-se sobretudo em
Merleau-Ponty), como as descrições paisagísticas de Wittgenstein denunciam.
O pensamento tende para a expressão como seu preenchimento e
acabamento, não é um pressuposto, anterior à palavra, lemos na
Fenomenologia da Percepção ; o sentido das palavras é induzido pelas próprias
palavras, o seu significado conceptual forma-se por uma antecipação sobre uma
significação gestual, imanente à palavra. Isto significa que o pensamento não é
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uma representação, no sujeito locutor, não põe expressamente objectos ou


relações, como se o orador pensasse antes de falar, nem mesmo enquanto está a
falar: a sua palavra é o seu pensamento, não um «signo» do pensamento que
evoca a ideia de um fenómeno que remete para um outro, como o fumo remete
para o fogo6. Merleau-Ponty combate a tradicional forma de considerar o
processo de significação como uma relação exterior entre dois termos – o
pensamento e a palavra – e corrige esta «lógica do duplo», mostrando a fusão
entre o pensamento e a sua expressão. A palavra é um verdadeiro gesto e
contém o seu próprio sentido, como o gesto contém o seu, dispensando que o
espectador procure em si mesmo, na sua experiência íntima, o sentido dos
gestos que observa: para compreender um gesto de cólera ou de ameaça, não
necessito de recordar os sentimentos que experimentei quando fazia eu próprio
os mesmos gestos7.
No fim do Livro Castanho, Wittgenstein denuncia esta tendência a
reduplicar o processo da simbolização e do pensamento, a «lógica do duplo»
nos seus próprios termos: um rosto tem uma expressão particular, e somos
induzidos a procurar a expressão como algo que está no rosto, mas para além
dele, diferente dele, como se estivéssemos à procura de algo, sondando a
própria aparência daquele rosto.
“É como se – escreve Wittgenstein – quando eu deixo que o rosto me
produza uma impressão, existisse um duplo da sua expressão, como se o duplo
fosse protótipo da expressão e como se perceber a expressão do rosto,
correspondesse a encontrar o protótipo a que ele correspondia. É como se, na
nossa mente, tivesse estado um molde e a imagem que vemos tivesse aí sido
vasada, ajustando-se-lhe”8.

6 Cfr Merleau-Ponty, M. Phénoménologie de la Perception, pp. 206-211.

7 Cfr ibidem, p. 215.

8 Livro Castanho, p. 109-110.


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Olhemos para O Grito de Munch. Vemos um rosto gritando, as mãos na


cabeça, a boca aberta, olhar esgazeado sobre um fundo de cores fortes e
quentes. O quadro, como bem sabemos traduz com uma carga emotiva
sombria, pesada, toda a ansiedade, o medo, a aflição do homem contemporâneo
perante um mundo caótico e uma existência sem sentido. A expressão de
angústia, solidão, impotência, está impressa no desenho sóbrio do rosto, nas
cores vivas do céu, na forma vibrante de todo o fundo. Munch anota o
momento preciso da origem da emoção expressa neste quadro: “Percorria o
caminho com dois amigos – foi então que o sol se pôs – o céu tornou-se de
repente vermelho cor de sangue – parei, encostei-me a uma barreira esgotado
até à morte – o fjord de um negro azulado e a cidade estavam inundados de
sangue e devorados por línguas de fogo – os meus amigos prosseguiram o seu
caminho, enquanto eu tremia ainda de angústia – e senti que a natureza estava
atravessada por um longo grito infinito”.
O rosto de Munch tem uma expressão, ou é uma expressão? Onde
situamos a expressão do rosto? Funde-se inteiramente no desenho – de parcas
linhas e volumes, aliás -, não está para além do desenho, como um protótipo
que o desenho pretendesse exemplificar, ou um modelo armazenado na
experiência íntima, ao qual recorremos para identificar a solidão e a angústia
representadas no quadro. Não há uma relação causal, ou de antecedente-
consequente entre a materialidade do signo, do desenho e um certo sentimento
de angústia vital que o precede e dele se diferencia. Munch viu a natureza
atravessada por esse longo grito infinito que é este mesmo rosto. O desenho
não é um signo da angústia e solidão do homem contemporâneo, é a própria
angústia. E quando olho para o desenho vejo a angústia e a solidão? Ou a
minha percepção visual é a de um rosto, um desenho, à qual se deverá
acrescentar uma impressão de angústia?
Se passarmos para outros exemplos, esta resistência a pressupor um
duplo, para lá da materialidade do signo, ao qual remetemos a sua tonalidade
!10

expressiva tornar-se-á mais clara. Uma melodia triste: onde reside a tristeza que
as notas transmitem? No final das Investigações Filosóficas, Wittgenstein
pergunta:
“Pensa na expressão seguinte: «A melodia que ouvi era um lamento!» E
agora pensa na seguinte pergunta «Ouves o lamento»?” (XI, §123).
Alguém passa por nós na rua: imediatamente e de modo espontâneo,
sem inferência, vemo-la triste ou radiante, cansada ou cheia de energia, gasta
ou fresca como uma alface e fazemos todo um diagnóstico sobre o seu estado
de saúde, a sua situação social, familiar, o seu estilo de vida, as suas
dificuldades económicas. Vemo-lo no andar, no olhar, no porte, no vestir. Os
exemplos abundam na literatura: as descrições fisionómicas, a tradução dos
gestos, do modo de olhar, de sorrir, as posturas, um inclinar da cabeça, a atitude
corporal, fazem-nos ver as personagens com a sua psicologia, os medos, os
desejos, as ambições, os fracassos, as angústias, as virtudes e as fragilidades.
Captamos, através da percepção , as «qualidades dinâmicas» que estão
«carregadas de significado expressivo»9. Dois exemplos: o primeiro de Balzac
num pequeno ensaio A teoria do modo de andar, o segundo do Livro do
Desassossego. Ambos apresentam um transeunte, descrevendo o seu aspecto, o
seu andar, revelador de toda uma forma de vida. Balzac escreve: “Ele andava
com as mãos cruzadas para trás, ombros encolhidos e fortes, as espáduas quase
unidas: parecia um filhote de perdiz assado sobre um pedaço de torrada.
Parecia que ele se movia para a frente só com o pescoço e o seu corpo todo
recebia esse impulso através do peito”10.
Fernando Pessoa – Bernardo Soares – vê nas costas de um homem que
passa a banalidade da sua vida, a rotina e o cansaço de um empregado a
caminho do trabalho, a sua condição remediada, a inconsciência ingénua

9 Cfr Arnheim, R. – Arte & Percepção Visual. Uma Psicologia da Visão Criadora. São Paulo, Livraria
Pioneira Editora, 1989 (5ª ed.).

10 Citado em Arnheim, R. – ob. cit., p. 437.


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perante o quotidiano; e este transeunte inspira-lhe uma “ternura informe e


imensa por toda a humanidade infantil”. Tudo isto a partir das costas de um
transeunte na Rua do Almada: “ as costas vulgares de um homem qualquer, o
casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma
pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando,
um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.”11 Não vê
apenas a imagem do transeunte que passa, mas apreende o seu modo de andar,
de ser, de estar na vida, através dos movimentos, das posturas, das atitudes
corporais. Todo o seu corpo mostra a sua forma de vida, os seus hábitos e
modos de ser.
Arnheim define expressão como “maneiras de comportamentos orgânico
ou inorgânico revelados na aparência dinâmica de objectos ou acontecimentos
perceptivos”. Não são captadas apenas pelas sensações externas do que aparece
aos sentidos, mas são propriedades estruturais que actuam no comportamento
da mente humana e servem para caracterizar metaforicamente uma infinidade
de fenómenos não sensoriais como a má disposição, o alto custo de vida, a
lucidez dos argumentos, bem como o cansaço, o tédio, a audácia, o
contentamento, etc.12 .
É óbvio que não há aqui um processo de significação que vai destes
fenómenos para as pressões sensíveis que os podem denotar; trata-se de uma
captação directa e imediata que se dá no próprio corpo e seu modo de aparecer.
Não há um gesto, uma atitude, uma postura que denote cansaço, fastio, rotina;
o cansaço, o fastio ou a rotina são o andar lento, o olhar apagado, a postura
encurvada. Pretender introduzir nesta dinâmica expressiva uma dualidade entre
a forma e o conteúdo da expressão, entre a exteriorização corpórea e algum
suposto estado na mente, só serviria para iludir a compreensão da vitalidade
expressiva do corpo.

11 Livro do Desassossego, Lisboa, Assírio & Alvim, 2001, p. 101

12 Cfr Arnheim, R. – ob. cit. , p. 438.


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3. A mesma «lógica do duplo» é posta em causa por Wittgenstein nas


suas argumentações contra o solipsismo e a linguagem privada. Contra o
isolamento do “mental”, do privado, separado drasticamente do corporal e
público por uma fronteira demasiado nítida e marcante, Wittgenstein defende
uma concepção orgânica do homem na qual ocupa um papel central a
expressividade do corpo como sutura da cicatriz profunda a que dão origem
todas as formas de pensar no ser humano a dois. Esta ruptura entre corpo/
mente, público/privado, fora/dentro, levanta problemas em dois campos: se por
um lado a ideia de uma identificação interna e privada do próprio “eu”, seus
estados, processos e acontecimentos mentais, é problemática (cfr Investigações
Filosóficas, §§288-316), por outro lado, no outro extremo ficamos com um
corpo que não é mais do que um “resto físico”, inexpressivo, como uma
«prótese» externa de um misterioso e oculto interior. Extremados estes dois
pólos, a noção de paralelismo psico-físico impregnou a psicologia e a
antropologia filosóficas, alimentando o preconceito dualista, que tem as suas
raízes numa má interpretação dos nossos conceitos13. Nenhuma forma de
paralelismo que leva a pensar o ser humano “a dois” serve como estratagema
ou justificação de uma unidade cindida na sua própria origem. É essa unidade
originária, mais do que simples harmonia, que Wittgenstein pretende fazer ver.
E é precisamente a significatividade e expressividade do corpo que constitui o
sopro de vida (expressão de Wittgenstein) que o atravessa e apaga as marcas
das fronteiras traçadas entre o «dentro» e «fora». Não se trata, portanto, de um
“corpo deixado em completa tranquilidade”14 , de um resto ou complemento
externo: o corpo é a “melhor pintura da alma”, e por isso o comportamento de

13 Cfr Zettel, 611.

14 Cfr Herbert, G. F. Einleitung in d. Philos., (A) §118, pp. 147-148.


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qualquer ser vivo faz ver a sua alma15 . O que se entende por ver? Não se trata
de exigir um fundamento ou uma intuição intelectual. O mais originário que
Wittgenstein encontra não é nada de ordem intuitivo ou cognitivo, mas uma
atitude (eine Einstellung): “A minha atitude em relação a ele é uma atitude em
relação a uma alma. Não sou da opinião que ele tem uma alma”16. A opinião
releva de um saber teórico, à distância, que se dissocia da cultura da vida,
incrustada numa comunidade, a cultura das camadas populares mantêm o corpo
no seu lugar central, enquanto pivot do enraizamento do homem no tecido
mundano17.
A ideia do corpo como um resto surge nos alvores da modernidade com
a autonomização do indívíduo e o saber anatómico que visa o corpo
isoladamente, numa espécie de indiferença em relação ao homem ao qual
confere visibilidade. O dualismo contemporâneo não tem as suas raízes apenas
no cogito cartesiano, mas também nos atomistas da Itália do Quattrocento,
nomeadamente no De corporis humani fabrica de Vesalio18 . Índice
fundamental da concepção moderna do corpo, o saber anatómico ilustra bem o
corte ontológico do homem com o cosmos, com os outros e consigo mesmo, e
o recuo até ao corpo residual, forma ontologicamente vazia que deixou de ser
signo da presença humana, indiscernível do homem, mas a sua forma acessória,
acidental e por vezes depreciada. O corpo é associado ao ter, não ao ser,
descentrado do sujeito ao qual dá rosto, é encarado mais como um acessório da
pessoa do que como a sua expressão mais originária. O dualismo de Descartes
é um prolongamento do dualismo de Vesalio – a unidade da pessoa desagrega-
se e esta fractura indica o corpo como um resíduo, não penetrado pelo
pensamento. O homem cartesiano é uma «colagem» entre um espírito que se

15 Cfr Investigações Filosóficas II, IV, 6 e § 357.

16 Investigações Filosóficas II, IV, § 3.

17 Cfr Le Breton, D. Anthropologie du corps et modernité, p. 61.

18 Cfr Le Breton, D. pp. 46-62.


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reduz a pensamento e um corpo-máquina, redutível à sua extensão19. Por um


lado, a dimensão pública do corpo, que se expõe facilmente e se dá a conhecer
como objecto científico, por outro lado, a privacidade do pensamento, não
acessível senão ao próprio sujeito que com ele se identifica.
A tradição de toda a cultura moderna pesa sobre as concepções
antropológicas correntes, subjacentes aos modelos da semântica que
Wittgenstein denuncia como inadequada para dar conta da noção de expressão
e dos processos de significação em geral. No que diz respeito às formas de
expressão do corpo, estes modelos sugerem uma fronteira que introduz
discontinuidade entre o “interior” e o “exterior”, o “dentro” e “fora”, o psíquico
e o físico, como se se tratasse de dois blocos autónomos e separados.
De facto há um “agir expressivo” que mobiliza o corpo todo ao serviço
da significação e é a mise en scène necessária para construir um drama ou uma
comédia, uma história de amor ou uma tragédia. E este “agir expressivo” não é
apenas uma espécie de código ou de sistema de signos para traduzir o que se
passa na história psíquica – sentimentos, desejos, emoções. É a própria vida
psíquica incarnada, incorporada.
A expressividade do corpo, não constitui apenas o modo como este se
mobiliza ao serviço da significação, do acto de significar para outrem aquilo
que vive o «eu» recorrendo a um sistema de símbolos usados como
instrumentos ou meios para comunicar; ela é a própria dinâmica congénita e
originária do corpo todo que se revela de modo espontâneo – gestos,
fisionomia, palavras, mímica, pantomímica, e também a respiração, suores,
tremuras, palidez, secura de boca, etc., não são «sinais» de algo que se passa e
que deverão ser interpretados ou descodificados pelo outro. São a própria vida
em acção da pessoa na sua unidade e na sua multiplicidade de manifestações.
Não se trata apenas de um acompanhamento corporal ao pensamento, ao

19 Cfr Le Breton, ob. Cit., p. 69. Veja-se o cap. 3, sobre a metáfora do corpo-máquina, que inspirou a
concepção moderna do corpo e o relegou para a categoria de um «resto» inexprimível, silencioso,
alheio ao processo de simbolização da presença humana.
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desejo, às emoções para lhes dar visibilidade, como se toda a vida psíquica
permanecesse silenciosa e escondida sem essas manifestações externas. Se
assim fosse, deparar-nos-íamos de novo com uma «lógica do duplo». A «acção
expressiva» seria uma tradução e exteriorização de algo diferente dela própria,
como se re-apresentasse o interior. Todo o agir expressivo é por si mesmo uma
presentação de si mesmo, que não se coaduna nem com um tratamento nos
termos de uma semântica triádica –signo, significado e referente – pois na
própria expressão colapsam as noções de significante e significado, nem com o
esquema tradicional na antropologia e na medicina, sobretudo na psiquiatria, de
antecedente-consequente, ou causa-efeito. A própria crença na causalidade
psíquica é posta em causa por este modo de pensar e compreender a acção e a
conduta expressivas.

4. A questão que se põe agora é esta: tendo em conta este colapso entre
significante e significado nas expressões do corpo, como entender uma série de
comportamentos e atitudes que vão desde o escondimento e o resguardo da
própria intimidade, até à representação (teatral) e à dissimulação, à má-fé, à
“mentira interior” (Kant), “mentira orgânica” (Scheler), e todos as formas de
comportamentos duplos, ambíguos e desviantes? O corpo constitui-se num
meio de comunicação primordial, institui o âmbito mais originário da
intersubjectividade e da abertura e relação com o mundo e com o outro. Mas é
também fundamentalmente um factor de individuação, no qual radica o
sentimento de ser um indivíduo antes de ser membro de uma comunidade,
rodeado por uma fronteira precisa que marca a diferença entre um homem e o
outro: o corpo é simultaneamente a muralha de contenção que garante o
sentimento de si, a construção do self ou do «eu» que é o fundamento da
individualização e do corte originário com o não-eu – o mundo, o meio, o
outro. O contorno do corpo próprio, cria um espaço privado, exclusivo que
funda o sentimento de si, a apropriação das experiências próprias, e ao mesmo
!16

tempo institui um âmbito onde cabem atitudes e comportamentos que parecem


constituir contra-argumentos fortes à expressividade natural e imediata do
próprio corpo: a reserva, a contenção, ou o silêncio com respeito ao mais fundo
de nós mesmos. Este sentimento instintivo de auto-protecção funda-se, também
ele, na forma do corpo próprio e nos seus contornos que delimitam um espaço
do qual nos podemos legitimamente apropriar, do qual dizemos «eu», «meu» e
que rodeamos com uma linha de fronteira que nos demarca do outro e do
mundo. Sem este sentimento de apropriação ficaríamos desprotegidos,
indigentes, e perderíamos toda a consistência individual. A coexistência e a
convivência social seriam insustentáveis, todos nos desvaneceríamos numa
amálgama informe e caótica. A protecção que nos empresta o corpo próprio é a
medida do nosso limite: porque somos seres limitados, não há uma
transparência total, mas é essa não transparência que possibilita a construção e
manutenção da subjectividade. No final da Antropologia, Kant20 evoca uma
situação imaginária de um planeta onde os seres racionais seriam incapazes de
pensar a não ser em voz alta. A menos que se tratasse de naturezas puramente
angélicas, seria inviável a coexistência, a estima recíproca e o acordo entre
eles. La Rochefoucauld21 exprime a mesma ideia: seria impossível viver em
sociedade se os homens não fossem enganados uns pelos outros. Mas tratar-se-
á aqui de dissimulação, ou de um conjunto de regras constitutivas da própria
sociabilidade e de salvaguarda do próprio (do self ) e do respeito mútuo? Há
aqui vários aspectos ou factores a ter em conta: o instinto congénito de
resguardo do que nos é próprio, de protecção do espaço do eu cujas fronteiras
coincidem, até certo ponto, com o contorno do corpo, e a protecção natural da
esfera privada, íntima, a salvo de intromissões estranhas; este instinto
manifesta-se tanto no que diz respeito ao eu, ao próprio corpo, como à

20 Cfr Anthropologie, VII, 332; 3, 1134.

21 Maxime 87: “Les hommes ne vivraient pas longtemps en société s’ils n’étaient les dupes les uns des
autres”.
!17

habitação (que é como um prolongamento da protecção mais próxima do


vestuário), à linguagem, aos gestos, aos modos. Este sentimento de pudor tem
uma polaridade positiva, a sua raiz está não só na precaridade própria da
condição humana, mas também na força com que cada indivíduo afirma e
defende a sua individualidade e identidade pessoais. Em relação ao outro, como
evoca Kant antes citado, trata-se de dominar ou domar as forças e as paixões
primárias para assegurar uma boa convivência e tecer as regras e convenções
que constituem a rede que protege qualquer trapezista nos seus saltos mortais.
Neste caso, não é propriamente que nos enganemos uns aos outros – como
observa La Rochefouculd – mas temos necessidade de ocultar ou simplesmente
de sombrear as reacções e respostas demasiado estridentes, dissonantes, que
destruiriam a relativa harmonia com que se regem as relações socias.
Kant fala de uma arte da aparência (die Kunst des äusseren Scheines)
que é a conveniência (Anstand). Ser inconveniente – nas palavras, nos gestos,
nas atitudes – deteriora a harmonia social e perverte a comunicação inter-
pessoal. É importante possuir essa arte das aparências, recomenda Kant, para
se manter a si mesmo impenetrável, cultivar esta forma de dissimulação
consiste na “moderação dos próprios defeitos”. Não se trata de fingimento, mas
de contenção, reserva, modéstia, discrição para consigo próprio. O mesmo
exprime Fernando Pessoa: “Rodeia de altos muros quem te sonhas”.
Para Kant, há uma legitimidade moral da dissimulação neste primeiro
sentido, que se manifesta na modéstia (pudicitia), no decoro (decorum), na
cortesia (politesse). Na Antropologia, Kant dedica uma secção a estas formas
de contenção, considerando-as como «aparências» moralmente permitidas: esta
secção intitula-se mesmo “Sobre a aparência permitida em moral” e começa
assim:
!18

“Os homens são tanto mais comediantes quanto mais civilizados forem:
adoptam a aparência da afecção, do respeito pelo outro, do desinteresse
(Uneigennützigkeit) sem enganar ninguém, pois cada um entre os outros
entende bem que o coração não toma parte nisso; é muito bom que isto seja
assim no mundo. Pelo facto de os homens desempenharem estes papéis, as
virtudes que durante certo tempo se contentaram com afectar, acabam por
despertar e passam a ser disposições do espírito. Mas enganar o impostor que
está em nós próprios, a inclinação, é voltar a submeter-se à lei da virtude; não é
dissimulação, mas uma inocente maneira de nos iludirmos a nós próprios”22.
O risco que se corre é o da inautenticidade, do culto das meras
aparências ocas e vazias; mas o jogo da moderação e da reserva tem como
contrapartida a vantagem de permitir a contenção dos excessos na relação
consigo mesmo e com os outros; e sobretudo a arte das aparências conquista a
estima mútua e mesmo que comece por ser apenas uma conduta de superfície,
na medida em que é motivada pelo respeito e consideração pelo outro, acaba de
facto por transformar-se em virtude.
Kant engloba, no entanto, estas formas de contenção, decência, modos,
temperança, moderação, no conceito de dissimulação; não se trata, porém, de
uma ilusão ou de um logro para consigo próprio, mas de diplomacia para com
as nossas inclinações, de sincero reconhecimento dos nossos limites e
impurezas que precisam de ser domesticadas. (Kant fala aqui numa vingança
da moralidade). Não se trata de enganar, mas de um princípio da caridade, de
ter em conta as máximas da boa convivência e coexistência entre os homens,
que são todos limitados, imperfeitos, impuros, e enganar-se-iam se se
considerassem seres angélicos acima dos condiciomentos próprios de um ser
corpóreo. No fundo destas considerações de Kant, permanece uma visão
negativa da condição humana, assente numa espécie de atitude de resignação
perante a própria dimensão corpórea; é esta que o obriga a um jogo de auto-

22 Anhtropologie, VII, § 14.


!19

ilusão e de dissimulação, como se se tratasse apenas de aceitar a inevitável


limitação pressuposta pelo facto de ter um corpo com todas as suas inclinações.
Esta reserva moralmente admissível é, para Kant o reconhecimento humano do
grande abismo interior que impede a reconciliação entre instinto e razão, duas
forças em constante conflito. A atitude de reserva (contenção, pudor, modéstia,
etc.) resulta de uma manifestação da razão e uma opção que favorecem a
moralidade e sociabilidade humanas.
De facto, é muito mais do que isso: no fundo é a expressão do respeito
pelo próprio, e da salvaguarda da privacidade de direito, não a clausura dentro
de si, mas o domínio do próprio domínio de cada um. Não é apenas uma
estratégia diplomática para controlar as inclinações sensíveis desnorteadas: esse
é o pólo negativo; mas é também uma manifestação de respeito e de apreço por
si próprio, de reconhecimento da grandeza e valor da condição humana.

Há formas de dissimulação – mentira, engano, logro, fingimento – que,


essas sim, pervertem a relação consigo mesmo e com os outros.
Uma dessas formas é a má-fé: estar e actuar de má-fé significa uma
duplicidade interior, um desdobramento da consciência que se mente e engana
a si mesma de modo intencional. Como é possível mentir a si mesmo? Parece
uma atitude estranha, pois há uma total coincidência entre o mentiroso e a
pessoa que é enganada. Enganar-se a si próprio implica primeiro um
afastamento e um alheamento de si e depois um retorno enviezado, no qual o
mesmo sujeito se quer iludir. Há, portanto, uma vontade explícita de ocultar
algo e de viver como se isso não existisse, ou de crer em algo que se sabe ser
falso, mas que se postula como verdadeiro. Um exemplo banal: a pessoa que
nega pretender seduzir alguém, mas todas as suas atitudes, comportamentos,
modos de apresentar-se, são chamativos e provocatórios. Pode insistir e
convencer-se que actua e se comporta com inocência, mas de facto, a sua
intenção é ambígua, pois quer e não quer seduzir e provocar. Trata-se de um
!20

auto-convencimento de inocência, envolvido em atitudes e manifestações


nítidas de sedução.
O tema da má-fé foi explorado profundamente por Sartre. Será oportuno,
por isso, examinar brevemente a sua interpretação que radicaliza a má-fé,
apresentando-a como uma condição irrenunciável da própria consciência
humana.
Sartre tenta esclarecer através do fenómeno universal da má-fé23, na qual
a consciência mente a si própria, a natureza original da consciência humana.
Trata-se de um fenómeno complexo, que implica um abuso da própria
liberdade em relação à verdade, um autêntico ardil no qual o homem é
apanhado na sua própria liberdade que o leva a crer naquilo que se auto-impõe
como crença, e revela portanto algo da verdade da sua liberdade: neste caso a
liberdade imiscui-se na dinâmica expressiva originária para a complexificar ou
distorcer e dá origem a uma mentira a si mesmo. O tema da má-fé é central em
Sartre, que vê nela uma manifestação da tentativa humana de ocultar a sua
própria e verdadeira condição, que no fundo é a da negação e do fracasso. A
maioria dos homens vive na má-fé, mentindo a si mesmo, mascarando a
verdade a si mesmo, em lugar de a mascarar para os outros. A má-fé tem uma
natureza “evanescente” e algo misteriosa, reconhece Sartre. Estamos aqui no
âmbito da própria consciência: a «censura», função pela qual a instância
inconsciente altera ou suprime o acesso às próprias representações gerais, só
pode funcionar como barragem selectiva de si a si mesmo, se puder dispor de
qualidades como a atenção, juízo, deliberação, próprias da actividade
consciente. Por isso, a ideia freudiana de uma censura inconsciente não se
mantém. Há uma intencionalidade consciente no exercício da censura e do
recalcamento, mas uma intencionalidade ambivalente que se bifurca entre o
que se é e o que se não é.

23Cfr Elders, Leo – Jean Paul Sartre; El Ser y la Nada, Madrid, EMESA, 1977, onde se faz
uma análise crítica da obra de Sartre.
!21

Um dos casos típicos de Sartre é o do empregado de café que representa


o seu papel de boneco virtuoso de servidor de bebidas, finge ser o que não é,
exemplificando bem a presença de uma consciência ambígua: a má-fé é uma
questão estritamente interna à consciência, não se trata de um desdobramento
entre o mentiroso e a mentira pela dualidade do consciente e inconsciente: mais
ainda, o próprio recurso ao inconsciente é uma tentativa de justificação da má-
fé – a psicanálide é, neste sentido como uma metafísica da má-fé. O empregado
de café representa o seu papel-de-empregado-de-café, com “gestos vivos e
firmes, um pouco precisos em demasia, um pouco rápidos em demasia, vem até
junto dos clientes (...) inclina-se com um pouco de solicitude em demasia, a sua
voz, os seus olhos exprimem um interesse demasiado cheio de deferência...” Se
pode fazer toda esta representação, é precisamente porque ele não é nunca
aquilo que faz, não se identifica nunca com a sua conduta, os seus gestos, toda
a sua situação é mera facticidade separada da sua própria essência por um hiato
irresolúvel. O em-si (o corpo, os gestos, a conduta) e o para-si (a consciência)
são como dois blocos ou ilhas sem mar nem espaço algum em comum, numa
relação de pura negação. Sendo pura negatividade, a consciência é o que não é
e não é o que é, numa total impossibilidade de alguma vez coincidir consigo
mesma a não ser numa situação ideal, mas nunca realizável, em que a
consciência pudesse ser totalmente transparente a si mesma, identificando-se
com o que é. Daí que a sinceridade seja remetida para uma situação utópica;
não é no fundo a antítese da má-fé, mas acabará por ser também uma
manifestação de má-fé. Não é possível escapar a esta ambiguidade radical
porque qualquer comportamento, qualquer atitude será sempre uma aparência
em oposição ao próprio homem, nunca me poderá exprimir cabalmente, sempre
separado, dividido, cindido de mim mesmo: “por todos os lados escapo ao ser
e, no entanto, sou”, conclui Sartre24.

24 L’Être et le Néant, p. 95, 86.


!22

Outra situação de má-fé descrita por Sartre é a da «jovem coquette» que


visa ao mesmo tempo a vantagem de ser desejável e foge ao inconveniente de
ser desejada. Alimenta por isso uma mentira a si própria, objectivando o seu
corpo, matendo-se de fora, assistindo passivamente ao que lhe acontece como
uma testemunha exterior que nunca se identifica com o seu ser corpóreo, nem
se compromete com a satisfação do desejo que o seu corpo provoca no outro.
Sendo mera facticidade, não se é o corpo, transcende-se esse corpo objectivado
como uma coisa, e assim o desejo de ser desejada mão é assumido
verdadeiramente e a conduta consequente parece ser inocente. Ao actuar de má-
fé, recusa-se afinal a apropriação das próprias acções e conduta, que não são
nossas, porque de facto não sou o meu corpo; a mentira a si próprio reside na
rotura da unidade da consciência, explorando a sua não-identidade e
convertendo-a, em parte, numa coisa25.
O diagnóstico é o mesmo: presença de uma consciência ambígua que
não pode nunca crer totalmente em si mesma: não pode ignorar que é (porque é
relação a si), nem saber o que é (porque só há relação de saber possível de um
dado objectivo). Só lhe resta à consciência ter fé em si mesma. Se o homem
pode estar de má-fé, é porque, filosoficamente, a própria relação duma
consciência com as suas qualidades, os seus estados característicos, não é
nunca uma simples relação de ser ou não ser: não sou covarde porque não sou
nada como os meus olhos são verdes ou a mesa é redonda; mas no entanto sou
covarde, porque de facto o sou e não sou capaz de ser corajoso. Posso portanto
estar de má-fé, julgando a meias que não sou covarde. Daí a conclusão de
Sartre: a má-fé de um ser consciente é a consequência da inevitável fé da
consciência no seu ser.

A má-fé sartriana é inescapável, porque faz parte constitutiva da própria


consciência: é uma fuga inevitável e infindável, inscrita na dinâmica interna do

25 Cfr Barata, A. – Metáforas da Consciência, pp. 262 e ss., onde se faz uma caracterização da má-fé
sartriana.
!23

ser consciente. Não coincide, portanto, com o sentido corrente com que
empregamos a expressão para dizer que alguém actua de má-fé: neste caso
pressupomos uma valorização ética negativa, porque quem actua de má-fé
poderia não actuar desse modo, actua intencionalmente de má-fé, com o
explícito intuito de mentir a si próprio, embora possa saber a verdade: quer
decididamente enganar-se a si e aos outros. A possibilidade de atribuir uma
valorização ética à má-fé pressupõe a possibilidade de uma actuação sincera, de
uma concordância entre o que se crê e o que se é. Ora esta situação – a da
consciência crer e ser o que é – em Sartre é sempre uma situação instável,
precária, sempre em alternância com situações contrárias, em perpétua fuga e
desagregação da consciência. Para Sartre, “o ideal da sinceridade é uma tarefa
irrealizável”. O campeão da sinceridade expõe-se a cair na má-fé porque no
fundo da sinceridade encontramos o mesmo trânsito entre o que se é e o que se
não é. Não sou o meu corpo na medida em que não sou o que sou e há uma
separação artificial entre corpo e consciência: o corpo é um obstáculo a
transcender, como um intruso ou um falsário.
Daí o absurdo total, a incomunicação, o silêncio e a cegueira de toda a
consciência que não visa nunca uma síntese positiva, mas que se mantém numa
constante desintegração, consequência da sua intrínseca negatividade e
nihilização. Não se pode ver a si mesma, nem pode crer a não ser de um modo
sempre enviezado e por isso nada a pode exprimir porque permanece sempre
um fundo obscuro e ambíguo. A má-fé faz curto circuito a qualquer
possibilidade de expressão: se um homem está triste, essa tristeza não é sua
como o verde é dos olhos ou a lisura é da mesa. Se a ideia de expressão
pressupõe uma fusão ou mesmo identidade entre o que se é e o que aparece,
entre o que se é e o que se exterioriza, o que fazemos, o modo como nos
comportamos, etc., na situação da consciência em Sartre, a relação dialéctica
entre facticidade e transcendência instaura uma instabilidade entre ser e
aparecer, entre o que se é e o que se não é, e ludibria toda e qualquer forma de
!24

expressão. Não há expressão porque não há nada para exprimir. O corpo é uma
“passividade roída pelo mal”, um obstáculo, uma obstrução a qualquer
passagem de sentido e portanto totalmente inexpressivo. Conhecido
objectivamente, o meu corpo já não é o meu corpo, mas uma coisa externa a
mim. Sartre mostra bem que o corpo não pode ser encarado como coisa ou
objecto exterior a mim, mas rejeita qualquer forma de consciência ou
conhecimento do próprio corpo. Descreve com subtileza as nossas impressões
ao sermos examinados pelo médico, mas considera aberrante a inclinação
natural para atribuir ao nossos corpo o que os outros vêem nele26. O olhar do
outro é sempre uma ameaça devastadora27, sob o qual a consciência se reveste
de um corpo como expressão sua no mundo. Mas este corpo «agarrado» à
consciência é captado sob a forma de um “sabor insosso que acompanha
sempre o meu paladar”.

A dissimulação, a mentira pressupõe uma consciência da verdade


ocultada que se traduz numa duplicidade explícita entre o que se é – sente,
pensa – e o comportamento, a atitude e a expressão. Esta duplicidade não
convida, no entanto, a voltar à «lógica do duplo»: o mentiroso ou o
dissimulador está a reduzir-se ao estatuto de uma coisa, utiliza-se a si mesmo
como meio de in-comunicação. A este respeito, o § 9 da Doutrina da Virtude de
Kant põe o problema fundamental da possibilidade da mentira interior: trata-se
de uma completa anulação da comunicação e veracidade, “um delito do homem
contra a sua própria pessoa e uma baixeza que o tornará desprezível aos seus
próprios olhos”. Ao mentir, o homem está a usar-se a si mesmo, enquanto ser
físico (homo phaenomenon), como um simples meio (uma máquina falante),

26 Cfr Elders, L. – ob. Cit., p. 188-89.

27 O «outro» existe como condição de possibilidade para a consciência se tornar objecto para si
mesma; sem esta passagem pelo olhar do outro, não há conhecimento de si. A questão que se põe é a de
saber como pode o olhar alheio produzir esta transformação se a consciência carece de capacidade
auto-reflexiva. E para que esse olhar possa afectar a consciência, esta tem que estar incarnada, possuir
uma estrutura corporal. Cfr Zaner, Richard – The Probem of Embodiment. Some Contributions to a
Phenomenology of the Body, Haia, 1964, p. 74.
!25

e com isso renuncia à sua própria personalidade, tornando-se uma «mera


aparência enganosa de homem, não o próprio homem», e transviando a
finalidade natural da sua faculdade de comunicar.
A mentira exterior torna o homem desprezível aos olhos dos outros, a
mentira interior torna-o desprezível aos seus próprios olhos; Kant é bem
explícito a este respeito, não é apenas o dano que se pode provocar no outro o
que torna a mentira um mal moral, mas a destruição da própria dignidade
humana, a redução de si mesmo a uma mera coisa, mais a desvalorização de si
mesmo abaixo de uma coisa; esta dá-se, apresenta-se como coisa real que é e
pode ser utilizada por alguém; o mentiroso, o dissimulador, transformado numa
«máquina falante», está a adulterar a própria função simbólica e expressiva
natural, no fundo está a aniquilar a expressão. É uma «coisa» que fala, que
pretende significar, mas que se anula a si mesmo como possível ser simbólico.
É como um símbolo que se apaga ou se aniquila, a rotura de qualquer
possibilidade de comunicação, a preversão da expressividade.
A mentira, a má-fé, a representação e o fingimento não põem em causa a
ideia de expressão, entendida como um modo peculiar de simbolização que não
recorre a uma mediação nem releva de uma dualidade fundante. Todas as
formas de dissimulação podem entender-se como modos alternativos de
expressão – em alguns casos, como no da representação teatral como um
processo que parte da exteriorização para a interiorização, dando visibilidade
autêntica a sentimentos, desejos, paixões, pensamentos, atitudes que o actor
vivencia de facto; noutros casos, como no fingimento, mentira, como
estratégias de anulação ou desvio da própria dinâmica expressiva. Não são
formas de expressão, mas de contra-expressão, que destroiem a própria
capacidade expressiva do corpo humano: a «melhor imagem da alma», o corpo
participa intimamente da dignidade do homem enquanto imago Dei. A
dissimulação, nas suas variadas formas, deteriora o próprio sujeito que finge,
mente ou actua de má-fé.
!26

Entre os deveres para com o corpo próprio – de domínio, disciplina, mas


também de cuidado, moderação – está o de salvaguardar a sua imagem, tanto
em relação a si mesmo como em relação aos outros. É um dever de
autenticidade e de transparência. Toda e qualquer forma de corrupção da força
expressiva originária do corpo, deturpa a sua verdadeira imagem e torna-o um
mero gatafunho estranho e ininteligível.

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