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Coleção DIREITO GV

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ORIGINAi.
José Reinaldo de Lima Lopes

AS PALAVRAS E A LEI
Direito, Ordem e Justiça na História
do Pensamento Jurídico Moderno

Presidente Carlos Ivan Simonsen Leal


Vice-Presidente Francis<:o Oswaldo Neves Dornelles
Vice-Presidente Manoel Fernando Thompson Motta
Vice-Presidente Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque
Diretor Geral José Affonso Barbosa

DIREITOGV

EDESP - Es<:olade Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas


Diretor Ary Oswaldo Mattos Filho
Vice-Diretor Acadêmico Antonio Angarita DIREITOGV
Vice-Diretor Administrativo Paulo Clarindo Goldschmidt •••••• FUNDAÇÁO
.•• GETULIO VARGAS
Assessor da Diretoria Esdras Borges Costa
Coordenador de Metodologia de Ensino Jean Paul Veiga da Rocha
Coordenador de Pesquisas e Publicações José Rodrigo Rodriguez
editora 34
Editora 34 Ltda.
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São Paulo - SP Brasil TellFax (11) 3816-6777 wwW.editora34.com.br
AS PALAVRAS E A LEI
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Edesp - Escolade Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas Agradecimentos . 9


Rua Pamplona, 227 2" andar Bela Vista CEP 01405.000 Apresentação . 13
São Paulo. SP Brasil Te! (11) 3281.3313 Fax (11) 3262-3701 www.edesp.edu.br Prefácio . 15
Introdução : .....•~.:•... 19

Capítulo 1. As definições e os conceitos na histÓria ::' : ' . 27


Copyright (Ç) Editora 34 Ltda. I Edesp - Escola de Direito de São Paulo da Fundação 1. Definições em geral : , " 27
Getúlio Vargas, 2004 2. Definições de direito - características : . 28
As palavras e a lei (Ç) José Reinaldo de Lima Lopes, 2004 3. Uma definição estipulativa de uma práticacorístitutiva . 33
4. Regras constitutivas: interpretação e classificação . 35
A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE lIVRO É ILEGAL, E CONFIGURA UMA
APROPRIAÇAo INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.
5. História da linguagem jurídica . 36
6. O caráter prático do direito e a natureza da ciência do direito . 38
7. Definições de direito e princípios do direito . 44
8. Momentos, temas e autores das mudanças . 46
9. O direito natural e os séculos XVII e XVIII . 50
Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:
Bracher & Malta Produção Gráfica
10. Da Ilustração ao século XIX . 60

Revisão: Capítulo 2. Conceito antigo e moderno - directum, ius, lex


Carmen T. S. Costa (ou da semântica) . 67
Rita de Cássia Sam 1. Jus e lex - os romanos . 69
1.1. Jus e lex em Gaio . 71
1.2. Jus e lex no Corpus, de Justiniano . 73
2. Os medievais . 75
I" Edição- 2004 2.1. Directum . 76
2.2. Ius e lex - o direito canônico . 78
2.3. Graciano (c. 1140) . 80
2.3.1. A primeira distinção: direito humano e direito divino
Catalogação na Fonte do Departamento Nacional do Livro (em torno do direito natural) . 81
(FundaçãoBibliotecaNacional, Rj, Brasil) 2.3.2. Segunda e terceira distinções: as formas do direito
humano e eclesiástico . 84
Lop<s, José Reinaldo de Lima
L436p As palavras e a lei: direito, ordem e justiça na 2.4. Inglaterra . 86
história do p<nsamenlo jurídico moderno I José Reinaldo
2.4.1. Glanville (?-1190) . 86
de Lima Lopes. - São Paulo: Ed. 34 I Edesp, 2004.
304 p. (Coleção Direito GV) 2.4.2. Braeton (1210-1268) . 87
ISBN 85-7326-312-1 2.5. Tomás de Aquioo (1225-1274): Ius e lex na Suma teológica . 88
Incluí bibliografia,
2.6. Bártolo de Sassoferrato (1313-1357) . 92
3. Os humanistas e o alvorecer da modernidade . 96
I. História do direito. 2. Filosofia do direito.
3, Ciência do direitO 4, Direito e sociedade. I. Título. 3.1. Donellus (Hugue Doneau, 1527-1591) . 97
11.Série 3.2. Cujácio (Jacques Cujas, 1522-1590) . 98
CDD- 340.1
senvolvimento da teoria é reservado a Jean de Gerson (também mencionado
Escolhi, para a exposição que se segue, concentrar-me nos trechos ini-
por Villey, aliás), chanceler da Universidade de Paris no início do século XV
ciais das obras dos juristas e, quando não se tratar de obras declaradamente
e que já em 1402, no seu De Vita Spirituali Animae, dizia com clareza: "O
de direito, nos trechos especificamente dedicados aos temas do direito e da
direito (ius) é uma faculdade ou poder adequado a alguém e conforme com
os ditados da reta razão" (apud Tuck, 1998: 25). lei. O direito contemporâneo, ainda que passe hoje por significativas mudan-
ças, cujo resultado futuro ainda não está determinado, é exposto, ensinado e
O exame do uso das palavras neste capítulo não pretende entrar direta-
compreendido como um sistema de princípios cujas c~tegorias fundamentais
mente nessa polêmica (Villey vs Tierney), senão aproveitá-la para compreen-
são, respectivamente, de direito subjetivo e direito objetivo, assim como de
der como, de fato, o tratamento da palavra ius como faculdade passou a ocu-
órdenamento ou sistema normativo, entendidas as normas como comandos
par um lugar principal nas exposições do conceito de direito. Isso, por si só,
ou prescrições de uma autoridade ou de um soberano ..2 O método aqui utili-
independentemente do fato histórico de quem usou em primeiro lugar a pa-
zado permite comparar as exposições introdutórias de diversos juristas e es-
lavra ius em sentido subjetivo, veio a constituir uma forma nova de enten-
der, ensinar, aprender a disciplina e aplicar o direito. colas e notar duas coisas. Em primeiro lugar, quanto as introduções diferem
e, portanto, quanto cada uma delas cria um campo de saber para seu tempo
O mesmo vale para a palavra lex, que teve realmente um significado
ou estilo. Em segundo lugar, quanto certos temas aparecem ou desaparecem
objetivo, de medida, na filosofia original de Tomás de Aquino e em Bártolo
da exposição. Há uma confessada limitação nesse método, já que não exa-
e passou de forma progressiva a ser usada quase que exclusivamente no sen-
mina a coerência e a consistência interna de cada um dos autores no uso dos
tido de comando pelos autores modernos. O que se vai apresentar, portan-
termos que estipula. Em alguns casos, eventu~lmente isso poderá ser feito,
to, é uma história do deslocamento de sentidos de duas palavras que se apre-
mas de maneira geral não me dispus a fazê-lo.
sentavam e continuam se apresentando como princípios da exposição da dis-
ciplina. Esse deslocamento (esta é, afinal, a tese deste trabalho) resultou na
configuração de um novo campo simbólico, hoje familiar aos juristas, mas
1. Ius E LEX - OS ROMANOS
nem por isso necessário ou "natural".
A discussão que se trava em torno dos termos pode ser entendida em
Os textos recuperados e tratados como objeto de estudo na universidade
diversos níveis. Um deles é o da sua própria tradução para as línguas ver-
medieval concentravam-se naqueles colecionados no Digesto e nas Institui-
náculas. A discussão deu-se com as palavras latinas, pois os jusnaturalistas
ções, de justiniano, no Código e nas Novelas.3 Eles serviram de modelo para
modernos escreveram suas obras em latim, desde os salmantinos (como Mo-
os juristas. A filosofia jogara um papel relativamente importante na formação
lina e Suárez), passando por um inglês (como Hobbes, De Cível, chegando
dos romanos cultos e é aceito hoje em dia que no período propriamente clássi-
mesmo aos alemães (Pufendorf e Wolff, por exemplo). Foi durante o longo
co o estoicismo serviu como uma espécie de língua comum dos intelectuais,
período do Renascimento até a institucionalização do Estado liberal no sé-
inclusive dos juristas (Kunkel, 1994; Schultz, 1953; Manthe, 2000). Desse
culo XIX que teve início e, afinal, se consolidou vagarosamente o uso das
papel da filosofia, no entanto, não se mostra uma exposição específica no
línguas vernáculas pelos tribunais, pelas universidades e pelos profissionais
corpus justinianeu.
dos respectivos Estados nacionais. Esse uso do vernáculo ger~u um problema
O fato é que os termos ius e lex aparecem usados nos textos jurídicos e
de tradução não apenas entre línguas naturais (do latim para o vernáculo).
designam inicialmente coisasdiferentes, embora dentro de universos de sentido
Houve outro, o de uma tradução entre linguagens filosófico-políticas, como
próximos. Na síntese de Gianetto Longo, a palavra' lex é usada nos textos
dizem Pocock e Tuck: da linguagem medieval (do direito natural clássico)
jurídicos romanos
para a moderlla (do humanismo cívico e do direito natural racionalista) e
da moderna para a contemporânea (do positivismo e do utilitarismo, por
"para indicar qualquer tipo de norma, de qualquer valor e conteúdo,
exemplo). Houve, portanto, vários níveis de "tradução" que se contamina-
qualquer regra emanada de uma pessoa física ou jurídica e ditada
ram. Cada autor quis traduzir de alguma forma e ao traduzir "estipulou" o
.uso dos termos que faria. a qualquer um, para catacterizar as determinações de conduta mo-
ral, para aludir às modalidades e às cláusulas das convenções. Tem,

68
As palavras e a lei Conceito antigo e moderno - directum, ius, Jex (ou da semântica) 69
portanto, um significado não apenas concreto, mas também abs- direito chamado civil não é senão parte de um todo, o direito. da natureza.
trato. Por isso os romanos, para distinguir, usavam atributos espe- Para encaixar o direito civil no universo das leis, é preciso, dizia ele, "explicar
cificadores (leges regiae, eensoriae, eo/legii, eontraetus, leges sibi a natureza mesma do direito, e devemos buscá-la na natureza do homem"
dietatae)" (Longo, 1968: 787). (Cícero, Das Leis, L. 1, p. 98). A obra de Cícero é exemplar também daquilo
que Manthe chama de jurisprudência helenizada, isto é, da influência da fi-
Ius denota o direito, tomado positiva e objetivamente, e não apel)as como losofia grega sobre a elite romana, da qual procediam os juristas (Manthe,
ideal. Não é o preceito ou comando. No sentido ideal, ius é substituído por 2000: 59):
aequitas ou quálificado como ius naturale ou ius gentium. Esta é a explicação
de Biondo Biondi (1968: 375-376). Embora ius possa se referir a 'objetos "A influência da filosofia grega sobre a jurisprudência tardo-
socialmente avaliados, sua característica é ser objetivo. O ius de cada um, ainda republicana nunca pode ser suficientemente valorizada. Alguns dos
que formado por avaliações sociais, é ius porque é reconhecido. Daí o contrá- maiores juristas são claramente influenciados pela filosofia estói-
rio de ius ser iniuria, aqúilo que non iure fito Ius e [ex distinguem-se inicial- ca (...) outros aproximaram-se da Academia cética. (... ) A era 'he-
mente, segundo Biondi, não apenas pelo fato de lex ser preceito (embora lenística' da jurisprudência romana reconheceu que acima do di- .
qualquer preceito), mas pelo fato de lex dizer respeito às coisas da cidade e reito positivo p~irava uma idéia de justiça, que era válido pesqui-
ius, às relações entre os cidadãos e ser independente do Estado. Tanto assim sar e aplicar."
que o ius civile, segundo ele o ius por excelência, originava-se da interpretatio
dos iuris periti e por isso os iura poderiam ser adaptados e desenvolvidos. Por todas essas razões, no direito romano a distinção entre ius e lex tem
Houve um momento histórico, porém, em que a lex começou a determinar o sua especificidade, que se nota claramente nos textos que nos chegaram. Lex
ius, muito provavelmente para interpretar relações entre cidadãos e peregri- não é uma fonte exclusiva, primária ou hierarquicamente superior; costumes,
nos (estrangeiros). Passou-se então aos pretores a importante tarefa de acres- práticas, razão, tudo isso declara o que é o devido a cada um e tudo isso pre-
centar interpretações (que já haviam sido privilégio dos pontífices e depois cisa ser interpretado de modo que tenha algum sentido e nesses termos é que
dos jurisperitos) e por isso eles também criaram um ius, o ius honorarium, a filosofia contribui para o discurso da jurisprudência clássica.
ao qual Paulo diz que com não menor razão se chama também ius (non minus
reete ius dicitur). 1.1. Ius e lex em Gaio
Para Arangio-Ruiz a lei era em princípio o meio de se introduzir exceções
aos direitos garantidos pelo ius civile. Daí o caráter sempre subsidiário da lei As Instituições, de Gaio, iniciavam-se com um proêmio, ou primeiro li-
em relação ao costume, diz ele. Já a atividade do pretor, que permitia incor- vro, presumindo uma idéia de direito (ius) para dizer que todos os povos têm
porar outras espécies de inovações, também se justificava apenas como com- seu próprio ius e todos compartilham um ius comum ao gênero humano:
plementação ou especificação do ius (Arangio-Ruiz, 1943: 170-171). A uni-
dade de todo o direito romano, de fato proveniente de dois sistemas (ius civile "Todos os povos que são regidos por leis e costumes seguem
e ius honorarium) foi, para Kunkel, obra da ciência jurídica clássica (Kunkel, em parte um direito (jus) que lhes é próprio e em parte um direito
1994: 92), que ainda percebia os dois sistemas como coisas diferentes e pro- comum a todos os homens. Com efeito, o direito que cada povo se
curava interpretá-los com referências recíprocas. Na idade pós-clássica, quan- deu a si mesmo lhe é próprio e se chama direito civil (jus civile),
do já não sobrevivera a consciência das contraposições entre os dois conjun- quer dizer o direito próprio da cidade, enquanto aquele que a ra-
tos, é que lex passou a designar mais especificamente as leis imperiais (Kunkel, zão natural (naturalis ratio) estabelece para todos os homens e é
1994: 134). observado igualmente por todos os povos é chamado direito de
Aliás, o tratado das leis de Cícero pode fornecer um bom exemplo do gentes (ius gentium), isto é, o direito usado por todas as nações
que veio a ser a tarefa da jurisprudência clássica. Ele a explica como um esforço (omnes gentes)." (Gaio, Instituições, Proêmio, 1, 1)4 :. .-\,'

de compreender todo o direito em sua "universalidade", de maneira que o

70 As palavras e a lei . 71
Conceito antigo e moderno - directum, ius, lex (ou da semântica)
li Houve, pois, uma tentativa de distinguir o direito dos romanos (direito
civil, da sua cidade - cívicas) e o direito comum a todos (ius gentium), que 1.2. Ius e Lex no Corpus, de justiniano
para Gaio originava-se da "razão natural" e, portanto, poderia confundir-se
com o "direito natural". Em Gaio a primeira distinção diz respeito a ius: um
deles é comum a todos os homens por causa da mesma natureza humana,
natureza que consiste na razão comum dos seres humanos. Este é um ius de
todas as gentes. Gaio, porém, não usou a expressão direito natural: na breve
o manual introdutório do corpo justinianeu (Instituições, de justiniano)
seguia substancialmente o manual de Gaio (Instituições). A ordem dos as-
suntos era a mesma. Feito, porém, por encomenda de um imperador cris-
tão e com uma diferença de mais de três séculos, mostra-se ligeiramente dis-
I
passagem disse apenas que havia um direito comum a todos os seres huma- tinto em alguns pontos. Assim, antes de tratar do ius em si mesmo, esclare-
nos (o ius gentium) cujo fundamento era a razão natural. ce o que é a justiça e qual sua relação com o ius. Essa ordem (começando
Depois desse primeiro parágrafo sobre o ius, Gaio passa a expor como pela justiça) seria também aplicada ao Digesto, no qual se recolheram em
se compõe esse direito que rege a vida dos romanos. Imediatamente, ao fa- primeiro lugar os textos sobre a justiça e a relação desta com o ius. Ela teve
lar do direito civil (próprio dos romanos) usou a palavra no plural: "os iura especial relevância para os medievais. Respeitosos que eram de toda auto-
que regem o povo romano, derivam de..." e então enumerou aquilo que hoje ridade textual, conservaram quanto possível o tratamento da justiça e mes-
chamaríamos de fontes: as leis, os plebiscitos, os senadoconsultos, as cons- mo a própria definiçãoconstante do Digesto e das Instituições, de justiniano.
tituições imperiais, os editos emanados de quem detém o ius edicendi, as re- já se vê que essa abertura apresenta uma importante diferença com O direi-
postas dos prudentes.5 A lei, o senadoconsulto, o plebiscito e as constitui- to contemporâneo. Nem os códigos nem os manuais modernos iniciarão pela
ções do imperador, segundo Gaio, tinham todos a mesma força _ a força definição de justiça. Começarão, antes, pela estipulação do conceito de su-
de lei. Todos valiam igualmente. Essa afirmação já é em parte surpreenden- jeito e de pessoa.
te, comparada às idéias de hoje, pois Gaio não parecia querer fazer, à par- As Instituições, de justiniano, e o Digesto adotam também uma divi-
tida, uma hierarquia entre as distintas formas ou fontes que os iura apre- são ligeiramente diferente da de Gaio. Em Gaio havia uma distinção bipartida
sentavam. Todas asJontes ali citadas "têm (a mesma) força de lei". A ques- simples e clara: ius proprium e ius gentium, o primeiro fruto das conveniên-
tão era ligeiramente diferente apenas para o caso das respostas dos pruden- cias e dos costumes, o segundo fruto da razão universal. No manual justinia-
tes: sua validade dependia de certa sistematização. Se fossem todos concor- neu adotou-se a divisão tripartida: (1) um ius da natureza (ius natura/e), (2)
des e tivessem o ius respondendi, sua opinião teria força de lei. Se houvesse um ius de todos os povos (ius gentium) e finalmente (3) um ius de cada cida-
dissidência, o juiz poderia seguir a opinião que quisesse, "como decidira o de (ius proprium ou ius civile). Nessa tripartição, direito natural é o conjunto
imperador Adriano", acrescenta Gaio. Isso teria sentido, pois de uma nor- de regras que homense animais seguem,enquanto o direito das gentes é aquele
ma cuja origem é um magistrado singular ou um corpo que delibera cole- que é comum apenas aos homens, embora não se confunda com a regularidade
giádamente é fácil determinar o conteúdo. As opiniões emitidas pelos pru- natural. Esse direito de todos os homens, distinto da regularidade natural ou
dentes como respostas a casos concretos e complexos seriam sempre mais instintiva, esclarece Ulpiano no Digesto (D. 1, 1,4) inclui a escravidão: na-
difíceis de unificar. turalmente todos os homens nascem livres, mas em toda parte há escravos.
Não havia nessa altura do texto de Gaio um contraste entre direito ob- Foi o ius gentium que criou essa forma de subordinação, explica ele.
jetivo e direito subjetivo. Não era esta uma noção inicial e fundamental. Pa~ Segue-se, como em Gaio, o elenco das fontes do direito escrito e não-
rece que estava assentado que direito é uma regra, um sistema de sentidos: escrito. Deve-se mencionar, porém, que a divisão entre direito escrito e di-
algumas destas eram próprias de cada cidade, outras eram comuns. As co- reito não-escrito não havia sido destacada como digna de nota no texto de
muns compreendiam-se porque todos os seres humanos se assemelham em Gaio. As Instituições, de justiniano, a relevam. Para o texto justinianeu, di-
pontos fundamentais; as particulares responderiam apenas a questões tradi- reito não-escrito é aquele cujo próprio uso torna válido. O costume diário,
cionais e costumes locais. com o consentimento dos que o seguem, tem a mesma força da lei (/eges
imitandur I, 1,9), lê-se nas Instituições.
O Digesto organizava-se de forma semelhante às Instituições nesse tre-
cho inicial quanto à lógica da introdução. No livro primeiro, introdutório, o
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As palavras e a lei
Conceito antigo e moderno - directum, jus, lex (ou da semântica)
73
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capítulo primeiro referia-se justamente a ius e a iustitia. O capítulo segundo do Digesto (D. 50,54 e 55) em que se pode até entender ius em sentido sub- t
dava conta da origem do direito (em que já começava a haver certa confusão jetivo, embora nesses trechos também se possa entender adequadamente ius !
,,
entre ius e lex) e o capítulo terceiro fazia uma lista de fontes, seguida, no como o quinhão, a quota ou a parte de cada um e, portanto, outra vez em ,
capítulo quarto, de uma série de justificativas do poder do imperador para um sentido mais objetivo do que moral (de faculdade). Ao dizer que ninguém,
editar regras jurídicas com força de lei. A partir daí, entrava-se na disciplina transfere mais direito do que tem, pode-se entender de forma objetiva que
do estado das pessoas e em seguida nos deveres de distintas autoridades (exceto ninguém transfere mais quinhão do que possui. Pode-se também argumen-
do imperador, cuja autoridade havia sido definida no capítulo quarto). Des- tar que o sentido subjetivo de direito era conhecido dos romanos, embora re-
sa forma, dos 22 capítulos do primeiro livro, apenas três, a rigor, definiam vestido pela palavra dominium, como argumentam alguns e como no século
ius (o direito) e o faziam com um misto de explicações históricas (empíricas, XVI discutirão os dominicanos e salmantinos'(Tuck, 1998: 12-13).
portanto), nas quais se encontrava a origem da forma de os romanos cria- Tudo isso não invalida o fato de que a primeira distinção feita por GaJO
rem suas normas jurídicas e alguma explicação conceitual. e pelo Digesto, que interessava no ensino do direito, não era a distinção en-
Exceto pela distinção entre direito escrito e direito não escrito nas Ins- tre regra e faculdade, mas entre direito civil e direito universal. Para um ju-
tituições, não parecia haver confusão entre ius e lex. A lei é uma manifesta- rista clássico que introduzia seus alunos na jurisprudência, a distinção direi-
ção objetiva do ius, deliberada por qualquer uma das autoridades mencio- to objetivo/direito subjetivo não parecia a primeira a destacar. Quer, ~izer,
nadas (imperador, outros magistrados, prudentes). Mas não se fala de lex ela não era relevante a ponto de ser o marco inicial de um programa de ensi-
naturae nem de lex gentium nesse ponto e não há por que insistir em distin- no: os alunos não precisariam dela para construir seu objeto teórico.Preci-
gui-los. Tuck (1998: 7-11) tenta explicar que ius, no direito romano, certa- sariam, sim, saber distinguir o direito próprio do direito universal e ter uma
mente não era a palavra adequada ou, pelo menos, a primeira palavra ade- noção da razão natural que fazia o segundo. Em mais de uma passage,m do
quada para referir-se ao direito subjetivo dos modernos e contemporâneos. texto, a classificação em direito civil ou direito das gentes seria observada.
Se ius era o método de descobrir o juízo adequado para cada caso, ius era
algo objetivamente encontrável, algo, como Paulo descreve, sempre equâni-
2. Os MEDIEVAIS
me e bom ou útil para todos ou para muitos em uma sociedade particular
(D. I, I, 2).6 Por isso mesmo, os iura em cada caso eram a medida adequada Esses textos, ainda que de forma truncada ou fragmentada, chegaram
a cada situação. Mesmo as relações entre prédios, ditas depois servidões, eram aos medievais e ajudaram a determinar também o estilo que afinal seguiram.
iura, pois eram as relações adequadas entre as coisas mesmas. O direito medieval comparte, porém, com o direito romano clássico, a idéia
Tuck continua dizendo que, nos casos particulares, as regras (as distin- de que o direito procede de costumes. A lei é, conforme diz Grossi, "mais subs-
tas formas que tinham força de lei) confundiam-se com os iura. Isso porque tância do que forma e é uma noção relativa (e, pois, relativizada), porque,
tanto as regras quanto as relações parecem objetivas e não aleatórias. Mes- toda substancial; o oposto do que se operou na cultura político-jurídica mo-
mo quando procedentes de acordos, elas constituem-se em medidas. Tuck ob- derna, na qual a noção de lei é, ao contrário, rigidíssima e formal. Para esta
serva que iura era uma palavra usada para qualquer forma de acordo e de última não interessam primeiramente os conteúdos da lei. A lei tipifica-se como
obrigação, mas não se referia necessariamente ao "direito" como compreen- ato de império, isto é, essencialmente manifestação da vontade daquele in-
demos hoje, tanto porque poderia aplicar-se às "relações" entre imóveis (as vestido do poder político máximo". Dentro da cultura medieval, prossegue
servidões) quanto às obrigações (ônus e vínculos), que para nós não se tra- Grossi, "pouco importa quem a produz [a lex], mas importa muito mais o
tam como direitos. (Tuck, 1998: 7-13) Também na passagem de Gaio refe- que uma regra deve conter substancialmente para elevar-se a lei, isto é, im-
rente aos iura dos prédios urbanos Finnis vê que não se poderia simplesmen- portam seus conteúdos. Podem produzir leges uma pluralidade de sujeitos
te traduzir ius por direito no sentido moderno (Finnis, 1992: 209). Logo, esses , políticos: o populus, a plebs, o senatus, o princeps, a civitas, toda comunida-
iura seriam relações ou medidas antes que liberdades ou faculdades.? de dotada de autonomia; falar-se-á tranqüilamente de lex scripta ou non
Isso não quer dizer que o uso da palavra direito (jus) em sentido subje- scripta, relativizando ainda mais a noção, mas sempre se pretende que seja
tivo não aparecesse nos textos romanos. Cruz (1971: 17) menciona textos caracterizada por um determinado conteúdo." (Grossi, 1995: 136) ,

74 As palavras e a lei Conceito antigo e moderno - directum, ius, [ex (ou da semântica) 75

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