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Cidade partida, cidade dual, cidade da exclusão, cidade dos enclaves fortificados,
cidade do apartheid social, várias são as metáforas utilizadas nos debates nos meios
acadêmicos e públicos para descrever as mudanças em curso nas cidades brasileiras 2 . Como
sustentação dessas imagens encontramos dois argumentos que se diferenciam segundo as
causas a que se atribuem tais mudanças. O primeiro centra a explicação na dimensão
institucional ou, mais precisamente, na crise de governabilidade das cidades, e o segundo, na
economia, tomando a globalização e a reestruturação produtiva como causas direta dessas
mudanças. Nos dois diagnósticos a realidade urbana emergente é descrita como
crescentemente polarizada entre “ricos” e ‘pobres”, ‘incluídos’ e ‘excluídos’, desaparecendo
as oposições de classe como centro da segmentação social.
Até que ponto essas imagens estão sendo confirmadas na metrópole do Rio de
Janeiro? Responder a essa questão é tarefa importante não apenas no plano acadêmico, mas
também no político, em razão de elas sustentarem projetos de intervenção sobre a cidade, em
1
Este texto é resultado de um trabalho coletivo desenvolvido pelo Projeto Observatório de Políticas Urbanas e Gestão
Municipal (IPPUR/UFRJ-FASE) e se insere na pesquisa intitulada Impactos Metropolitanos da.Estabilização e do Ajuste,
com apoio da FINEP. Atualmente este trabalho está sendo desenvolvido no quadro do PRONEX sob o título Desigualdades
Sócio-espaciais e Governança Urbana, envolvendo a comparação entre as Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro, de São
Paulo e de Belo Horizonte. A tipologia sócio-ocupacional aqui apresentada foi elaborada conjuntamente com Edmond
Preteceille, pesquisador do Centre Sociétés et Cultures Urbaines - CSU, com que mantemos um programa de cooperação e
intercâmbio científico com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e do Conseil
National de la Recherche Scientifique - CNRS, e com a colaboração de Luciana Corrêa do Lago. Apresentamos uma versão
deste texto no seminário “O Futuro das M etrópoles: impactos da globalização”, realizado em maio de 1999.
2
Alguns exemplos:
“Surgem, pouco a pouco, raças novas no Brasil. O que a miscigenação tentou fazer para unir as diversas raças em uma nova
raça brasileira, a economia está fazendo para separar em raças distintas. Da mesma forma como a diferença de raça facilita o
apartheid entre brancos e negros, a continuação dessa ruptura social trará para as elites brasileiras a vantagem de facilitar a
exclusão social de grupos debilitados física e intelectualmente. Mais fáceis de controlar politicamente, sem necessidade de
serem contra a barbárie e a favor da cidadania, contra a violência e a favor da convivência, contra o desespero e a favor da
esperança.” (Buarque, C. O que é Apartação Social)
“Este livro é o diário do front de uma guerra muito especial: a guerra contra a barbárie e a favor da cidadania, contra a
violência e a favor da convivência, contra o desespero e a favor da esperança. O campo onde se travam as batalhas é o Rio de
Janeiro, cidade dividida em que o apartheid social provocou o surgimento dos “bárbaros”, que agora ocupam pontos situados
no alto dos morros e ameaçam invadi-la.” (VENTURA, Z. A Cidade Partida, São Paulo, Companhia das Letras, 1996)
2
que o mais importante é o plano estratégico 3 . Trata-se de um novo modelo de gestão da cidade
que busca seus fundamentos teóricos e suas bases de legitimidade na defesa do pressuposto de
que as ameaças inerentes à globalização das economias locais possam ser contornadas pela
instauração de um “patriotismo de cidade”, pelo qual os riscos da dualização e fragmentação
da sociedade urbana são superados e a coesão da cidade é restaurada 4 .
Será viável instaurar acordos e pactos inclusivos que unifiquem os diversos atores de
uma cidade em torno de um projeto comum, quando ela está sendo supostamente submetida a
processos de dualização e fragmentação do seu tecido social? Que cultura cívica e política a
segregação social e as desigualdades sócio-espaciais têm incentivado? Qual o impacto sobre a
capacidade associativa ocasionada pelas enormes diferenças que hoje marcam e dividem a
metrópole fluminense? Alguns trabalhos sobre o Brasil recente têm chamado a atenção para a
existência de fortes relações entre crise social, crise das instituições e a difusão de uma
“cultura cívica predatória” (Santos, 1993) ou de um “familismo amoral”, como formulou
recentemente Elisa Reis (1995). Qualquer que seja o conceito utilizado, vários cientistas
políticos têm coincidido na constatação do alargamento de uma espécie de “individualismo
negativo 5 ”, como expressou R. Castel (1995).
Por outro lado, outros estudos, ao refletirem sobre a violência em nossas cidades – e
especificamente no Rio de Janeiro (Velho, 1996) –, têm destacado a crise do sistema de
reciprocidade baseado nas relações hierárquicas de compadrio e clientelismo e os bloqueios à
instauração da reciprocidade fundada na cidadania – portanto, em direitos e deveres. O
clientelismo e a patronagem implicavam em valores sociais e culturais de solidariedade e
lealdade minimamente compartilhados entre os patrões e os empregados, os de cima e os de
baixo, os superiores e os inferiores, e até mesmo entre os marginais e os integrados. Não é
desprezível o papel desse sistema de reciprocidade na explicação do fato de termos tido um
processo urbano marcado, ao mesmo tempo, pela desigualdade e pela pobreza, mas também
3
“O Rio de Janeiro é uma grande cidade. No continente latino-americano é a quarta maior aglomeração urbana
metropolitana, superada apenas pelas cidades do México, de São Paulo e de Buenos Aires. Vive entretanto uma conjuntura
crítica onde se constata uma baixa auto-estima de seus habitantes e uma frágil coesão social, esta uma das características
tradicionais de toda a história da cidade, hoje equilibrada no “fio da navalha.” (Diagnóstico da Cidade do Rio de Janeiro, s/d)
4
“Em primeiro lugar, a definição de um Projeto de Futuro só é eficaz se mobilizar, desde o seu momento inicial, os atores
públicos e privados e concretizar-se em ações e medidas que possam começar a implementar-se de imediato. Somente assim
verificar-se-á a viabilidade do plano, gerar-se-á confiança entre os agentes que o promovem e poder-se-á construir um
consenso público que derive numa cultura cívica e num patriotismo de cidade. Esta será a principal força de um plano
estratégico.” (CASTELLS, BORJA, 1996)
5
... “on voit se développer aujourd’hui un autre individualisme, de masse cette fois, et qui apparaît comme une
métamorphose de l’individualisme pré-industriel. Métamorphose et pas du tout reproduction, parce qu’il est produit de
l’affaiblissement ou la perte des régulations collectives, et non de leur extrême regidité. Mais il garde ce trait fondamental
d’être un individualisme par défaut de cadres et non par excès d’investissements subjectifs” (CASTEL, 1995: 468). Grifos
do autor.
3
pela mobilidade social. Entre as razões deste bloqueio encontra-se o quadro de profundas
desigualdades sócio-espaciais 6 .
Não apresentamos aqui respostas conclusivas a essas perguntas, mas trazemos à sua
reflexão alguns resultados da análise das transformações da estrutura sócio-espacial da
metrópole fluminense. Não obstante, não nos furtamos a empreender ao final do texto um
exercício reflexivo acerca dos possíveis efeitos da transformação do espaço social da
metrópole do Rio de Janeiro sobre a sua historicidade. Iniciaremos a nossa aventura
intelectual pela apresentação resumida das principais questões presentes no debate sobre os
impactos da globalização nas grandes cidades, atendo-nos ao ponto que permite melhor
formular as questões aqui enunciadas, ou seja: que mutações vêm ocorrendo na estrutura de
classes herdada do fordismo com a globalização das economias urbanas? Em seguida,
avaliaremos em que medida vêm ocorrendo movimentos de aumento da segmentação, da
desigualdade e da diferenciação sócio-espacial e, ao final, abandonaremos o território seguro
e protetor das avaliações quantitativas e descritivas para ingressarmos no arriscado e
desafiador espaço da reflexão sobre a história.
O primeiro ponto que nos parece relevante diz respeito às transformações globais da
estrutura sócio-ocupacional das metrópoles sob o impacto da globalização das suas economias
urbanas. A hipótese da global city (SASSEN, 1991; MARCUSE, 1987; VAN KEMPEN e
MARCUSE, 1997; BORJA e CASTELLS, 1997) postula que vem ocorrendo a transformação
do papel das cidades que passam a integrar as redes da economia no mundo e mudando a sua
divisão social e espacial do trabalho, com o declínio da atividade industrial e a expansão das
atividades financeiras e os serviços produtivos e pessoais. A conseqüência desse conjunto de
transformações seria a emergência de uma nova estrutura social, caracterizada não só pela
expansão das camadas superiores e inferiores da hierarquia social e pela concentração da
renda, como pela contração do peso das camadas médias.
6
“O Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que aparece como locus do cosmopolitismo, tem sido apontado como caso limite de
violência, à medida que a explicitação da desigualdade se dá de modo intenso e dramático dentro do próprio quadro de
organização sócio-espacial.” (VELHO, 1996:21)
4
trabalho produzida pela economia urbana globalizada, que passa a caracterizar-se pela mistura
de empregos altamente qualificados e muito bem pagos e de empregos pouco qualificados e
mal remunerados. O primeiro segmento seria a conseqüência do novo papel de articulação das
cidades na rede da economia global e o segundo, o resultado do aumento da demanda por
serviços pessoais, com o surgimento e expansão das camadas sociais de alta renda, e da
introdução de formas “degradadas” de emprego no remanescente setor industrial. Essas
mudanças resultariam em uma “nova ordem espacial”, cuja característica central seria a
dualização das estruturas urbanas.
O segundo ponto tem a ver com o destino das “classe médias”. Esse segmento da
estrutura social, juntamente com o operariado industrial, é objeto de importante
reconfiguração, em razão das transformações da estrutura produtiva e dos padrões
organizacionais e tecnológicos: expansão da economia de serviços, informatização,
automação dos escritórios, privatização dos serviços sociais etc. Há a reconfiguração das
profissões típicas das “classes médias”, com o desaparecimento de algumas, a desqualificação
de outras e, ao mesmo tempo, o surgimento de novas profissões ligadas à expansão das
funções de gestão.
Como vimos anteriormente, as análises sobre as cidades globais não convergem nestas
conclusões, chegando mesmo a avaliações contraditórias. Muito provavelmente, as diferentes
conclusões decorrem do uso de matrizes teóricas diferentes (pós- industrialismo X pós-
fordismo) e da análise de casos diferentes de globalização (globalização financeira X
globalização produtiva). Uns estão avaliando a emergência de uma economia de serviços cuja
produtividade se fundamenta essencialmente no uso econômico do saber e da informação;
outros estão examinado a reconfiguração da industrialização fordista, cuja produtividade
5
Até que ponto essa relação está se transformando com as mudanças do padrão de
segregação urbana e desigualdades sócio-espaciais? O modelo cultural que organizava as
necessidades de consumo urbano muda, com a emergência e a difusão da “cultura do medo”.
As classes médias tendem a “abandonar a cidade”, transferindo-se para os “enclaves
fortificados” (CALDEIRA, 1997), fato facilitado pelas novas tecnologias que permitem, ainda
que parcial e limitadamente (até quando?), a reunificação de trabalho e moradia.
O terceiro ponto tem a ver com efeitos territoriais da globalização das economias
urbanas. A literatura tem apontado a emergência de fraturas na antiga ordem sócio-espacial da
cidade fordista, caracterizada até então pelas desigualdades e, ao mesmo tempo, por
tendências integradoras. As transformações econômicas e o recuo da função regulatória do
Estado fazem surgir uma cidade pós-industrial marcada, ao contrário, por movimentos
fragmentadores da ordem sócio-espacial, em que cada pedaço tende a se organizar por
dinâmicas próprias. P. Marcuse e R. Van Kempen (1989;1997), baseados na análise de Nova
York, propõem o conceito de quartered city para descrever e explicar os tipos de espaços
gerados pela globalização e pela reestruturação, a saber: luxury city, a cidade da riqueza, onde
predomina a localização do poder e do lucro; gentrified city, que serve aos profissionais,
administradores, técnicos, yuppies; tenement city, cidade dos cortiços ocupada pelos
trabalhadores de baixa renda exercendo empregos irregulares, com reduzida remuneração,
com pouca segurança e sem nenhuma chance de mobilidade social; suburban city, cidade da
6
7
P. Veltz (1996: 56) chama esta tendência de “décrochage des extrêmes”.
7
8
Nos dois últimos anos temos desenvolvido no Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal um esforço de pesquisa
sobre as desigualdades intrametropolitanas no Rio de Janeiro e o desempenho das políticas locais, com base em dados
desagregados das PNADs referentes aos anos 1981/1990 e em pesquisas de campo. Quanto ao primeiro tema, pudemos desagregar
o Estado do Rio de Janeiro em 10 áreas homogêneas, definidas a partir de características demográficas e sob inspiração dos
trabalhos realizados na década de 70. Quanto ao segundo, pudemos fazer algumas análises pontuais sobre a atuação e as
dificuldades dos governos municipais na área da gestão urbana. Os trabalhos sobre a segregação sócio-espacial no Rio de
Janeiro têm se restringido à escala da capital, nos quais procura-se evidenciar as relações entre estrutura urbana e dinâmica do
mercado imobiliário. (SMOLKA,1990; RIBEIRO e LAGO, 1992; CARDOSO e RIBEIRO, 1996).
8
A crise dos anos 80, a reestruturação econômica e a política de ajuste dos anos 90 têm
repercussões específicas no Rio de Janeiro, em razão de sua economia estar há alguns
decênios em decadência estrutural, cuja princ ipal causa está no fato de ter sido historicamente
depositária dos setores que se tornaram sucessivamente obsoletos no decorrer das revoluções
industriais, tais como o da siderurgia e o da construção naval (SULAMIS, 1990). Nunca
conseguiu apropriar-se dos setores de ponta de bens de consumo duráveis, que se concentram
em São Paulo, o que levou à instauração de uma estrutura industrial dinamizada apenas pelo
mercado local. Por esse motivo, a dinâmica econômica do Rio de Janeiro sempre foi
dependente do comportamento do setor terciário local, formado por um segmento moderno
(financeiro, da informática, do comércio) e por outro, tradicional, de serviços pessoais e das
variáveis macroeconômicas que influenciam os movimentos da massa salarial.
9
Estima-se que o setor público, federal, estadual e municipal, seja responsável por cerca de 1 milhão de empregados públicos
– a economia do Rio de Janeiro é altamente sensível às políticas recessivas.
10
Ver Pero (1998).
9
(ii) redução constante da participação feminina no mercado de trabalho (de 64% para
58%).
O exame da queda da renda real do trabalho pela natureza e pelo setor da ocupação
mostra a relação entre as mudanças econômicas introduzidas pela política de ajuste e
reestruturação e as transformações do mercado de trabalho. Com efeito, paradoxalmente têm
aumento da sua renda os trabalhadores sem carteira e os que trabalham por conta própria
(além dos empregadores) e, por outro lado, os que estavam ocupados nos serviços pessoais e
domésticos. Ou seja, os segmentos mais informalizados também obtiveram aumento de suas
rendas. Tiveram perdas significativas: os operários da indústria de transformação (30%), os
ocupados nos serviços profissionais (25%) e os trabalhadores com carteira assinada (28%). O
10
paradoxo se dissipa quando se constata que os setores que estavam voltados à produção de
bens comercializáveis (commodities) foram os mais atingidos pela política de abertura e de
estabilização fundada na valorização cambial. Ocorreu uma importante mudança dos preços
relativos, em favor dos bens e serviços gerados pelo setor informal, que, por natureza e
condições, são pouco ou nada comercializáveis.
Por outro lado, o crescimento do trabalho por conta própria e o conseqüente aumento
de sua renda têm também como explicação o fato de essa forma de emprego crescer
significativamente entre os ocupados de maior escolaridade e que exercem atividades no setor
moderno dos serviços produtivos e distributivos.
11
Tomamos como referência os trabalhos desenvolvidos por Tabard (1993), Chenu e Tabard (1993) e Wright (1964), sobre
as categorias sócio-ocupacionais, construídas a partir da combinação das variáveis de renda, de ocupação, de posição na
ocupação, de setor de atividade e de grau de instrução. A opção pela utilização da variável ocupação deveu-se ao fato de ela
permitir testar as possíveis relações entre transformações econômicas e mudanças sócio-espaciais, ponto de partida da nossa
pesquisa. Por outro lado, essa variável nos permitiria uma aproximação descritiva da estrutura de classe e o seu papel na
estratificação sócio-espacial. Por fim, a ocupação apresenta características de “variável-síntese” de múltiplos processos
sociais cujo conhecimento é fundamental na análise da estruturação da cidade, tais como modelo de consumo, estilo de vida
etc. Ver descrição das categorias na Nota Metodológica, ao final do livro.
11
estrutura social da região metropolitana, fato que tem merecido pouco interesse na literatura
sociológica brasileira, mais atenta às pontas superior e inferior da estratificação. Em segundo
lugar, destacamos a diminuição relativa e absoluta do proletariado industrial, sem dúvida uma
das conseqüências do processo de desindustrialização regressiva fluminense. Esse processo
tem como contrapartida o aumento do proletariado terciário e do sub-proletariado urbano, o
que certamente corresponde à transformação do Rio Janeiro em metrópole de serviços
institucionalizados e informais.
Com relação a renda, houve uma forte diminuição da renda média do conjunto da
população economicamente ativa (-18%), com exceção da elite dirigente, única categoria que
teve aumento da sua renda. Portanto, cresceu a polarização social no que concerne às
desigualdades na distribuição da renda, com especial incidência sobre a elite intelectual e a
classe média.
12
“A melhor imagem ... é talvez aquela do ovo e da ampulheta: a população de uma cidade se distribui normalmente como
um ovo, mais larga no meio e se estreitando nas extremidades; quando ela se polariza, o meio se retrai e as extremidades
incham até a curva da distribuição se parecer com uma ampulheta. Podemos definir o meio do ovo como as “as camadas
intermediárias”... Ou se a polarização é entre ricos e pobres, o meio do ovo representa os grupos de renda média... A metáfora
não evoca linhas de divisão estrutural, mas um contínuo sobre uma única dimensão, cuja distribuição torna-se crescentemente
bi-modal” (MARCUSE, 1992: 699).
12
Antes de mais nada, são necessárias três sucintas explicações metodológicas, sem as
quais o que se segue pode parecer incompreensível, razão por que não estão em nota de
rodapé. Construímos uma tipologia sócio-espacial empregando a técnica da análise fatorial
por correspondência da distribuição das 25 categorias sócio-ocupacionais apresentadas
anteriormente pelas 219 áreas geográficas em que o espaço metropolitano foi desagregado,
separando-se homens e mulheres, seguida de uma classificação hierárquica ascendente 13 . O
emprego dessa técnica permitiu identificar os princípios segundo os quais o espaço social da
metrópole do Rio de Janeiro se segmenta, testando, em primeiro lugar, a relação entre
estrutura urbana e estrutura de classes e, posteriormente, avaliando outras dimensões da
diferenciação social, tais como ciclo de vida, migração, raça, formas de acesso à moradia,
qualidade da moradia e acesso aos serviços urbanos. A identificação dos conteúdos sociais
dos tipos encontrados está fundada na análise do perfil médio da composição sócio-
ocupacional de cada tipo, baseada no grau de homogeneização social, no grau de
concentração espacial, o que é sintetizado no índice de densidade relativa das categorias
sócio-ocupacionais em cada tipo 14 .
A hierarquia social dos espaços corresponde a 55% da inércia total, ou seja, mais da
metade das variações dos perfis sócio-ocupacionais é explicada por esse fator. O segundo
13
Essa técnica é, em grande medida, herdeira da tradição de análise de “áreas sociais” desenvolvida nos Estados Unidos no
fim dos anos 40, cuja inspiração são os trabalhos desenvolvidos por C. Booth na Inglaterra meio século antes (ver
Rhein,1994). Quanto à descrição das técnicas de análise fatorial por correspondência múltipla e classificação ascendente, ver
Sanders (1989) e Fenelon (1981). A separação entre homens e mulheres teve como finalidade testar as possíveis influências
das relações entre gêneros na constituição das distâncias e proximidades sociais entre os espaços.
14
A reflexão sociológica sobre o emprego dessa técnica pode ser encontrada em Grafmeyer (1994).
15
Este percentual é obtido pela divisão da soma das variâncias relativas dos fatores pela variância total.
13
O exame do Gráfico 2 (em Anexo) e das Tabelas 2 e 3 (em Anexo) põe em evidência a
estreita relação existente entre hierarquia social e hierarquia espacial na Região Metropolitana
do Rio de Janeiro. A análise das posições ocupadas pelas categorias no eixo horizontal (Fator
1) indica que a divisão de classe é o principal princípio de divisão do espaço metropolitano do
Rio de Janeiro. Reforça tal constatação o fato de as categorias dos operários (construção,
serviços auxiliares da economia, serviços especializados e indústria tradicional), dos
empresários, dos altos dirigentes, dos profissionais de nível superior, dos pequenos
empregadores e dos profissionais de nível médio, ou seja, as que expressam fortemente
oposições propriedade do capital econômico X trabalho produtivo, contribuírem com cerca de
78% na constituição da hierarquia social sintetizada pelo fator 1.
O segundo fator sintetiza outra forma de divisão do espaço metropolitano. Ele opõe
um misto de categorias populares – operários (empregados domésticos, operários da
construção civil), agrícolas e superiores (empresários, dirigentes do setor público,
profissionais liberais) – às categorias médias (empregados de escritório, empregados da
segurança, justiça e correios), empresários, dirigentes do setor público e profissionais
liberais), sendo que estas últimas contribuem com 73% da dispersão expressa pelo fator 2. A
análise desse resultado aponta a existência de outro princípio de organização espacial fundado
na maior ou menor polarização dos espaços. Temos, de um lado, áreas onde predominam as
categorias intermediárias que se caracterizam por apresentarem um perfil sócio-ocupacional
equilibrado e próximo ao perfil médio do conjunto da metrópole. Correspondem aos bairros
suburbanos da Cidade do Rio de Janeiro situados nos primeiro e segundo anéis do núcleo
metropolitano (Engenho Novo, Méier, Engenho de Dentro, Piedade, Inhaúma, Olaria etc.).
14
Esses espaços se diferenciam de outros bairros da zona sul da Cidade do Rio de Janeiro
(Leblon, Copacabana, Ipanema, Lagoa) e do bairro Itaipu da zona sul de Niterói, onde a
estrutura social é fortemente polarizada por conter as duas pontas, especialmente as categorias
da elite dirigente e intelectual e as de empregada doméstica e de trabalhadores da construção
civil. Por outro lado, a polarização também se expressa ao nível inter- metropolitano pela
oposição entre espaços contendo estruturas sociais muito pouco diversificadas, nos quais
predominam as categorias populares misturadas às ocupações agrícolas. Trata-se das
periferias mais distantes da metrópole, que vêm se formando em torno da área densa
constituída nas décadas de 50/60/70, tais como:
A distribuição das 219 áreas nesses dois sistemas de hierarquia pode ser visualizada no
Gráfico 3 (em Anexo).
Como se pode perceber, o eixo 1 representa o gradiente formado pelas áreas da zona
sul das cidades do Rio de Janeiro e de Niterói e pelos subúrbios, chegando a algumas áreas
das cidades que formam a periferia metropolitana e as favelas do Rio de Janeiro. Já o eixo 2
forma um contínuo, contendo em suas extremidades as áreas da periferia metropolitana
distante.
A identificação dos conteúdos sociais de cada tipo encontrado é realizada com base na
análise dos indicadores constantes da Tabela 4 (em Anexo).
Os espaços superiores (Super) são caracterizados por concentrarem fortemente a elite
dirigente: 60,8% dos empresários, 67,5% dos dirigentes do setor privado, 80,3% dos
dirigentes do setor público e 76,1% dos profissionais liberais, muito embora o conjunto da
elite dirigente represente apenas 5,8% dos ocupados que moram nesses espaços. O peso da
elite dirigente está expresso pela densidade relativa alcançada; 5 a 7 vezes superior ao que se
verifica no conjunto da estrutura social da região metropolitana. A elite intelectual tem
também importante presença nos espaços superiores, pois estes concentram 43,7% dos
profissionais de nível superior autônomos e 38,6% dos profissionais de nível superior
empregados representando uma densidade relativa 4,1 a 3,6 vezes superior ao peso dessas
categorias na estrutura social da metrópole. Ao lado das elites dirigente e intelectual, os
espaços superiores também são caracterizados pela importante presença dos pequenos
empregadores, dos empregados de supervisão e dos técnicos e artistas. As elites, os pequenos
empregadores e as frações superiores da classe média, conjuntamente, representam 55,3% dos
ocupados que moram nos espaços superiores. Observam-se, contudo, traços de um espaço
polarizado, pois as categorias populares representam 28,9% dos ocupados que também moram
naqueles espaços, dos quais 10,3% são empregados domésticos cuja presença decorre
essencialmente de relações de trabalho e não de vizinhança, e 13,4% compõem o proletariado
16
Nos espaços médios (M ed), cai muito fortemente a presença das elites dirigente e
intelectual, permanece inalterado o peso da classe média e aumenta o grau de mistura social
pelo aumento do proletariado terciário e do operariado.
Nos espaços populares (Pop), cai a presença do operariado industrial e aumenta ainda
mais a presença dos empregados domésticos (16%) e dos prestadores de serviços não-
especializados (8,8%). O sub-proletariado e o proletariado terciário representam 55% dos
ocupados que moram nos espaços populares.
17
A Tabela 5 (em Anexo) apresenta a distribuição das 219 áreas segundo as tipologias
de 1980 e 1991. A concentração das áreas na diagonal esquerda-direita indica que poucas
áreas mudaram de posição nas duas hierarquias sócio-espaciais. Apenas 10 tiveram
mobilidade descendente, mudando para tipos inferiores entre 1980 e 1991, enquanto 153
mantiveram-se nos mesmos tipos e 66 passaram para tipos de maior status social. Entre as que
se deslocaram nas hierarquias, o fizeram para tipos imediatamente inferiores ou superiores,
chamando atenção as 4 áreas populares-operárias que se transformaram em populares-
periféricas (Cava, duas áreas de Queimados e outra de Japeri), caracterizando um claro
processo de perda de status, e a que evoluiu de popular-periférica para superior (a zona sul de
Itaipu em Niterói), caso típico de conquista de um espaço popular da periferia metropolitana
pelas classes superiores, em uma espécie de gentrification à la brasileira organizada pelo
grande capital imobiliário 16 .
16
Trata-se de um caso típico de operação imobiliária precursora da atual tendência de articulação entre capital imobiliário e
financeiro na transformação de vastas áreas periféricas em enclaves sociais das classes superiores. Ver Motta (1983).
18
Se, por um lado, não ocorreu aumento da polarização no que diz respeito a sua estrutura
social, não confirmando a tendência à dualização prevista em parte da literatura, por outro, é
possível que tenhamos um espaço crescentemente desigual. Testamos essa hipótese por meio
de alguns indicadores referentes aos seguintes temas: renda, acesso a bens de consumo
duráveis, acesso a serviços urbanos, acesso à educação e qualidade da moradia, cujo resultado
é impossível apresentar nos limites deste texto. Dados os nossos objetivos, escolhemos
examinar apenas os cinco indicadores que nos parecem pertinentes à reflexão aqui proposta.
Como já foi mostrado em outros trabalhos (ROCHA, 1994; RIBEIRO et all, 1995), a
década de 80 é marcada pelo empobrecimento e aumento da desigualdade de renda na
metrópole fluminense, onde foi particularmente dramático o impacto negativo da crise
econômica nacional. Essas tendências não tiveram, contudo, expressão direta e homogênea na
distribuição da renda entre os tipos que compõem a estrutura sócio-espacial. A distância
social entre os 2 tipos superiores e os outros tipos manteve-se elevada entre 1980 e 1991, ao
mesmo tempo que cresceu expressivamente a distância entre eles, em razão do importante
empobrecimento relativo do tipo Medsup.
áreas operárias e populares mantiveram percentuais abaixo dos observados para o conjunto da
região metropolitana.
CONCLUSÕES
A exclusão urbana no espaço social do Rio de Janeiro é o produto das práticas de auto-
segregação das elites dirigente e intelectual. Confirmamos também aqui tendências
semelhantes às identificadas em outras grandes cidades (PINÇON e PINÇON-CHARLOT,
1989). A segregação é, com efeito, uma necessidade intrínseca às elites, ou mais
precisamente, aos seus segmentos superiores, pela sua importância no exercício do seu poder
social. Em síntese, são as classes dominantes que têm o poder segregativo, por acumular
capital econômico, capital cultural e capital político. A classe média tem pouco poder
segregativo, embora muita vezes possa ter interesse na segregação, na medida em que a
localização lhe permita o acesso ao capital cultural. Vários autores têm chamado atenção para
a importância atribuída por frações da classe média aos lugares que concentram as melhores
escolas, muitas vezes localizadas nos espaços onde as elites são dominantes, uma vez que
percebem a escolaridade e o diploma como meio de mobilidade social. No Rio de Janeiro, a
clássica pesquisa realizada por G. Velho (1978) mostrou como certos representantes dos white
colours realizam trajetórias residenciais orientadas pela busca de símbolos de ascensão e
prestígio sociais, o que os levaria a abandonar áreas mais periféricas da cidade (os subúrbios)
em favor dos bairros da zona sul, onde estão concentradas as elites. Os resultados do nosso
trabalho, porém, evidenciam a disseminação (ou espraiamento, ou alastramento, ou outra
palavra; parece-nos que disseminação não consegue exprimir o que se quer dizer) da classe
21
média, que está presente inclusive nos espaços operários e populares. Já as classes inferiores
podem muitas vezes se distanciar espacialmente dos grupos mais inferiores da estrutura social
– os migrantes, os grupos raciais e étnicos mais empobrecidos –, como mecanismo de
afirmação de uma identidade positiva, integradora em termos sociais. Em razão da
metodologia utilizada nesta pesquisa, foi impossível identificar essa tendência segregativa,
pois ela tende a concretizar-se na escala micro dos espaços populares.
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Serv. Espec. 3,6 9,4 13,2 25,0 11,8 25,6 5,1 6,3 100,0
Serv. Não-espec. 8,6 7,8 9,9 22,9 11,7 26,3 6,2 6,6 100,0
Oper. Ind. Mod. 1,2 7,0 10,8 28,0 14,4 30,3 2,3 5,9 100,0
Oper. Ind. Trad. 1,1 4,5 8,7 22,7 15,6 36,6 3,2 7,7 100,0
Oper. Serv. Aux. 1,5 7,2 10,3 26,5 13,6 29,5 4,1 7,3 100,0
Oper. Cciv. 2,6 4,1 4,6 17,3 12,1 39,3 5,2 14,9 100,0
Emp. Doméstic.. 12,5 7,5 6,2 14,7 10,6 29,8 6,8 11,9 100,0
Ambulantes 2,7 7,5 11,1 24,5 13,1 29,5 4,0 7,7 100,0
Biscateiros 2,3 4,7 10,6 22,9 10,1 30,6 6,3 12,7 100,0
Total 10,6 12,7 13,0 21,9 10,0 21,4 3,7 6,6 100,0
1,4744
2
Elite
dirigente
Agricultores
Subproletariado
Elite intelectual
Pequena burguesia
-2,3694 3,1603
1
Proletariado industrial
Proletariado terciário
Classes Médias
-1,3155
31
1,3138
2
RJ-Barra/
Mangarati
Maricá RJ-Lagoa/
Nit-Itaip RJ-Ipanem
Quei-DInd Nit-Itaip RJ-Leblon
Japeri-en
Itaguaí
Nit-SFran RJ-Laranj
Quei-limi
RJ-CopaP4Nit-Icara
N.Ig-VistSG-Ipiíba
Nit-Pendo
Cax-ChácA RJ-CopaP2Nit-Icara
Fav-Vigár RJ-Maraca
-2,5928 N.Ig-Jard RJ-Jacare 2,6035
Fav-Jacar Nit-Engen RJ-VIsabe 1
RJ-Taquar
SJM-VTira RJ-Meier
Nit-Fonse
SJM-VRosa
RJ-Cordov Nit-Centr
-1,3079
POPERIF
SUPER
POPULAR
POPOPERA
-2,5952 2,6011
OPERARIO
1
MEDSUPER
MEDINF
MEDIO
-1,3079